Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
726/18.2T8FIG.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
TERRENOS CONFINANTES
DESTINO PARA OUTRO FIM QUE NÃO SEJA A CULTURA
ACTIVIDADES AGRÍCOLAS OU FLORESTAIS
Data do Acordão: 12/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA FIGUEIRA DA FOZ DO TRIBUNAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1380.º E 1381.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I) O proprietário de um terreno não goza do direito de preferência previsto no n.º 1 do artigo 1380.º do Código Civil quando se verificarem as seguintes circunstâncias: o terreno vendido era usado efectivamente pelo seu proprietário para outro fim que não a cultura; o adquirente do terreno tenha a intenção de afectar o terreno a outro fim que não seja a cultura; o fim que não seja a cultura seja permitido por lei.

II) A prova de que o terreno objecto da preferência se destina a algum fim que não seja a cultura implica a demonstração de que o terreno em causa não se destina efectiva ou potencialmente ao exercício de actividades agrícolas e/ou florestais, competindo aos réus da acção de preferência o correspondente ónus de alegação e prova.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

A... e mulher B... , residentes na rua ...., ....., intentaram a presente acção declarativa com processo comum contra C... e marido D... , residentes na rua ..., ..., e E... e marido F... , residentes na rua ..., ..., pedindo:
1. Se declarasse que os réus C... e D... eram donos e legítimos proprietários do prédio identificado no art.º 6.º da petição inicial;
2. Se declarasse que os autores são possuidores, donos e legítimos proprietários do prédio identificado no art.º 1.º da petição inicial;
3. Se declarasse que os prédios identificados nos artigos 1.º e 6.º da petição inicial são confinantes entre si;
4. Se declarasse que ambos os prédios têm áreas inferiores à unidade de cultura prevista para a região;
5. Se declarasse que os réus E... e F... não têm nenhum prédio confinante com o ora vendido;
6. Se declarasse e reconhecesse o direito de preferência dos autores na venda do prédio identificado no art.º 6.º da petição efectuada pelos réus
7. Se substituíssem e se colocassem os autores na posição dos réus E... e F... , devendo àqueles ser adjudicado e atribuído o direito de propriedade do prédio identificado no art.º 6.º da petição inicial;
8. Se condenassem os réus a abrir mão do prédio referido no art.º 6.º da petição inicial;
9. Se ordenasse o cancelamento de todos e quaisquer registos que os réus, compradores, hajam feito a seu favor em consequência da compra do supra-referido prédio e outras que estes venham a fazer.

Para o efeito alegaram:
· Que são proprietários de um prédio rústico, sito no lugar de ... , freguesia de ... , concelho da ... , com a área de 532, m2, inscrito na matriz sob o artigo 3320, que confina com um prédio rústico com a área de 1380 m2, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ... sob o n.º 3321;
· Que os primeiros réus, que eram os proprietários deste último prédio, venderam-no aos segundos réus, em 3 de Agosto de 2017, não comunicando aos autores, que gozavam do direito de preferência da venda, o projecto da venda e as cláusulas do respectivo contrato.

Os réus F... e mulher E... contestaram, pedindo se julgasse improcedente a acção. Para o efeito alegaram, em resumo:
· Que a acção foi instaurada decorridos mais de 6 meses após os autores terem conhecimento da venda;
· Que os autores não tinham direito de preferência porque o terreno vendido localizava-se parcialmente em solo urbano, sendo permitido ali construir, e os réus compraram o prédio para ali realizarem obras de ampliação da sua casa e construírem uma garagem.

Os réus C... e D... contestaram, pedindo também se julgasse improcedente a acção. Para o efeito alegaram, em resumo, que a acção foi instaurada decorridos mais de 6 meses após os autores terem conhecimento elementos essenciais da compra e venda.

Os autores responderam à matéria das excepções, impugnando-a.

O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência final foi proferida sentença que decidiu:
1. Julgar improcedente a excepção de caducidade invocada pelos réus;
2. Julgar procedente a acção e, em consequência:
a) Reconhecer o direito de preferência dos autores na compra e venda formalizada por escritura outorgada em três de Agosto de 2017, na Conservatória do Registo Predial da ... , perante a Dr.ª G... , tendo por objecto o prédio rústico, sito em ... , terra de cultura, com a área de 1380,00 m2, que confronta do Norte com Caminho, do Nascente com ... , do Sul com ... e do Poente com ... , inscrito na matriz respectiva sob o art.º 3321 rústico, da freguesia de ... , concelho de ... , nela passando a ocupar a posição deste;
b) Condenar os réus E... e F... a entregar imediatamente aos autores o prédio rústico anteriormente identificado;
c) Ordenar o cancelamento de todos e quaisquer registos que os réus compradores hajam feito a seu favor e consequentemente da compra supra-referida do prédio e outras que estes venham a fazer.

Os réus não se conformaram com a sentença e interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo a revogação e a substituição da sentença recorrida por decisão que julgasse improcedente a acção e os absolvesse dos pedidos.

Os autores responderam, sustentando a manutenção da decisão de facto e de direito.

Por acórdão proferido por esta Relação em 14-01-2020, a decisão proferida em 1.ª instância foi anulada a fim de o tribunal a quo, se possível pelo mesmo juiz, fundamentar devidamente a decisão de julgar provado que o prédio dos autores tem a área 532,00m2.

Repetido o julgamento, foi proferida nova sentença que, julgando procedente a acção, decidiu:
a) Reconhecer o direito de preferência dos autores na compra e venda formalizada por escritura outorgada em três de Agosto de 2017, na Conservatória do Registo Predial da ... , perante a Dr.ª G... , tendo por objecto o prédio rústico, sito em ... , terra de cultura, com a área de 1380,00 m2, que confronta do Norte com Caminho, do Nascente com ... , do Sul com ... e do Poente com ... , inscrito na matriz respectiva sob o art.º 3321 rústico, da freguesia de ... , concelho de ... , nela passando a ocupar a posição deste;
b) Condenar os réus E... e F... a entregar imediatamente aos autores o prédio rústico anteriormente identificado;
c) Ordenar o cancelamento de todos e quaisquer registos que os réus compradores hajam feito a seu favor, e consequentemente, da compra supra-referida do prédio e outras que estes viessem a fazer.

Os réus E... e F... voltaram a interpor recurso de apelação contra a sentença, pedindo a revogação e a substituição dela por decisão que os absolva.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões consistiram em resumo:

(…)


*

Julgada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, consideram-se provados e não provados os seguintes factos:

Factos provados:
1. Os autores são donos e legítimos proprietários do prédio rústico sito no Lugar ... , freguesia ... , concelho da ... , com a área de 0,05320ha (532,00 m2), a confrontar do Norte com Logradouros, casa próprio, do Poente com ... , do Sul com ... e do Nascente com ... , inscrito na matriz respectiva em nome do autor marido, sob o art.º 3320 rústico.
2. Este prédio veio à posse dos autores por partilhas abertas pelo óbito dos pais da autora, mulher.
3. O prédio referido e da propriedade dos autores confina, pelo lado sul com um prédio rústico, sito em ... , terra de cultura, com a área de 1380,00 m2, que confronta do Norte com Caminho, do Nascente com ... , do Sul com ... e do Poente com ... , inscrito na matriz respectiva sob o art.º 3321 rústico, da freguesia de ... , concelho de ... .
4. Os autores desde há muito que pretendiam adquirir esta parcela de terreno, com o intuito de a anexar à sua, de modo a tornar a sua propriedade mais rentável do ponto de vista agrícola.
5. Nunca os autores se aperceberam que o terreno referido no art.º 3º tivesse sido objecto de compra e venda nos últimos tempos, pois nenhum indício factual apontava para uma efectiva transmissão de proprietário.
6. Em Fevereiro de 2018 os autores iniciaram diligências no sentido de saberem se o dito prédio se mantinha na propriedade dos 1ºs réus, quando tiveram conhecimento que, por escritura outorgada em três de Agosto de 2017, na Conservatória do Registo Predial da ... , perante a Dra G... , através de título de compra e venda, os réus C... e D... venderam aos réus F... e E... e estes compraram, o referido prédio rústico, pelo preço de três mil euros.
7. Pelo que os réus F... e E... apresentam-se agora como proprietários do referido terreno.
8. Os autores procuraram entrar em contacto com todos os réus, através do envio de cartas registadas com aviso de recepção, dando conta da sua qualidade de preferentes, não tendo, contudo, obtido por parte daqueles destinatários, qualquer resposta.
9. Nenhum dos réus deu conhecimento aos autores da sua intenção de vender o prédio e das condições principais da venda, fosse o preço, as condições de pagamento ou a identificação do comprador.
10. Os autores só tiveram conhecimento do negócio, já depois da outorga da escritura.
11. Tanto o supra identificado prédio dos autores como o referido prédio no art.º 3.º são de lavradio.
12. O prédio dos autores confina pelo seu lado Nascente/Norte com o lado Nascente/Sul do prédio referido no art.º 3.º.
13. O prédio rústico da propriedade dos autores, confinante com aquele que foi alienado, tem área inferior à unidade de cultura estabelecida para aquela região pela Portaria 202/70 que é, para os terrenos de cultura de milho e batata, de 0,5h.
14. Os réus são donos e legítimos proprietários de um prédio urbano sito na Rua das ... , n.º ..., freguesia do ... , concelho da ... , art. matricial n.º 107.
15. Este prédio configura a sua casa morada de família há mais de 20 anos.
16. O prédio que veio à posse dos mesmos por partilhas.
17. Sempre ali os réus moraram enquanto casal, ali recebendo amigos e fazendo a sua vida.
18. Não sendo uma casa muito grande, sempre os réus tiveram o desejo de comprar o terreno que confina com a sua casa a nascente, e que era pertença dos 1.ºs réus, por forma a poderem ampliar a sua casa e construir uma garagem.
19. E com esse objectivo, por diversas vezes, contactaram os proprietários mais velhos do terreno (pais da ré C... ) aliciando-os para a venda.
20. O que foi sendo recusado com a justificação de que os filhos fariam o que quisessem quando eles morressem, mas que enquanto fossem vivos não vendiam.
21. Os filhos dos proprietários (mais antigos) estão emigrados em França, deslocando-se esporadicamente a Portugal (pelo menos que os réus tenham conhecimento), e por esse motivo o tempo foi passando sem que os RR. tenham contactado os mesmos a comunicarem as suas intenções.
22. No entanto, o ano passado, 2017, os réus tomaram conhecimento que a mãe da ré C... tinha falecido e que esta estaria com intenções de vender os prédios que tinha em Portugal, uma vez que a sua vida é em França e não teria interesse em manter propriedades em Portugal.
23. Esta intenção de se desfazerem das propriedades não chegou ao conhecimento dos réus E... e F... através dos 1.ºs réus, mas sim através do burburinho da vizinhança.
24. Alguém terá comentado essa intenção daqueles réus aos 2.ºs réus e foi por este motivo que logo, estes últimos, entraram em contacto com os potenciais vendedores a demonstrar interesse em comprar o terreno para poderem ampliar a sua habitação.
25. Assim, vieram os réus F... e E... a comprar o terreno em causa a 3 de Agosto de 2017.
26. Terreno que se demonstrava essencial para a pretensão dos réus em ampliarem a sua casa de habitação.
27. Logo em Agosto/Setembro de 2017, o réu F... arranjou a entrada do terreno objecto de aquisição aos 1.ºs réus, e que confina com a via pública para que pudesse entrar e sair com o seu carro sempre que bem entendesse!
28. Toda a vizinhança viu tais arranjos.
29. A mudança foi de tal forma notória que houve vizinhos que pediram autorização aos 2.ºs réus para ali estacionarem também sempre que necessário.
30. O terreno em causa não foi lavrado ou cultivado pelos 2.ºs réus, porque tal não era a sua intenção.
31. Para ampliar a casa de habitação e fazer uma garagem não era necessário lavrar ou limpar todo o terreno.
32. Motivo pelo qual, os 2.ºs réus apenas cuidaram da parte inicial do terreno e que confina com a estrada para poderem estacionar naquele local.
33. As cartas registadas que os autores referem ter enviado foram-no muito depois de o autor A... ter tido uma conversa com a ré E... sobre a compra desta do terreno em questão.
34. Em Setembro de 2017, os réus F... e E... foram avisados pelos 1ºs réus que o autor A... tinha abordado um familiar para confirmar que o art.º 3321 tinha sido vendido e que estava muito aborrecido por ter sido vendido aos 2ºs réus.
35. Confrontada com isto a ré E... sentiu-se na obrigação de ir falar com o autor, seu vizinho.
36. O art.º 3321 é um prédio de lavradio que está localizado parcialmente em solo urbano, com viabilidade de construção.
37. Os réus F... e E... , sabendo deste facto, compraram o prédio para ali realizarem obras de ampliação da sua casa (que confina com aquele terreno) e construírem uma garagem.
38. Tendo, até, já solicitado a um desenhador que lhes fizesse um projecto para a construção e ampliação já referidas.
39. Os 1.ºs réus eram donos e legítimos proprietários do prédio Rústico, sito em ... , ... , concelho de ... , inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 3321 e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o número 6911.
40. Porque, em princípio de Setembro de 2017 o autor (marido) abordou o Sr. H... , irmão da aqui 1.ª ré ( C... ), dando nota de que sabia que o prédio tinha sido vendido.
41. O que lhe foi confirmado pelo irmão da autora.
42. Os 1.ºs réus, em Março de 2018 vieram de férias a Portugal e, em conversa informal, o 1.º réu (marido) e o autor (marido) abordaram o assunto da venda do terreno. Tendo o autor (marido) expressado o seu descontentamento, apenas, pelo facto de o terreno ter sido vendido ao F... e à E... (2.ºs réus)

Alegações de facto não provadas:
a) Que no início do mês de Fevereiro do presente ano (2018), os autores depararam-se com o réu F... , marido da R. E... , a proceder a arranjos no interior do supra-referido terreno, nele colocando touvenant junto à entrada virada para a via pública.
b) Que os autores muito estranharam que aquela intervenção não fosse efectuada por quem tinham como seus proprietários, os réus C... e D... .
c) Que os réus compradores, apesar de terem realizado o negócio em Agosto de 2017, sempre esconderam tal facto;
d) Que os autores não fazem qualquer tipo de exploração agrícola nos seus terrenos;
e) Que tal compra foi comentada na vizinhança,
f) Que o facto dado a conhecer à vizinhança quer pelos próprios compradores, quer por quem tratou da documentação para se proceder à escritura e que é pessoa da zona.
g) Que os trabalhos realizados pelo réu F... foram feitos ao longo dos meses e consoante o tempo de chuvas o permitisse;
h) Que a entrada para o terreno foi arranjada mais do que uma vez devido às chuvas que teimavam em fazer buracos no piso;
i) Que toda a vizinhança, soube da intenção dos 1ºs réus de vender e bem assim da venda. Assim como sabiam do interesse dos 2.ºs réus na aquisição do prédio, conforme já referido, porque essa circunstância era do conhecimento de toda a vizinhança, onde se incluem os autores.


*

Descritos os factos, passemos à resolução da questão de saber se a sentença recorrida é de revogar e substituir por decisão que julgue improcedente a acção.

Os recorrentes imputam à sentença a violação do artigo 1380.º, n.º 1, do Código Civil e da alínea a) do artigo 1381.º do mesmo diploma.

Comecemos por apreciar a acusação de violação do n.º 1 do artigo 1380.º. A acusação assenta, em síntese, na seguinte linha argumentativa:
· A procedência da acção de preferência implicava a prova por parte dos autores, ora recorridos, de que a área do seu prédio e a do prédio vendido eram inferiores à unidade de cultura e não fizeram esta prova;
· A sentença errou ao afirmar que esta prova fora feita.

Apreciação do tribunal:

O fundamento do recurso ora em apreciação é de julgar improcedente, apesar de ser exacta a alegação dos apelantes de que o direito de os autores haverem para si o prédio alienado à recorrente E... estava dependente da prova de que tanto o prédio deles como o que é objecto da acção de preferência tinham área inferior à unidade de cultura. Com efeito, o direito de preferência invocado pelos autores tem a sua fonte no n.º 1 do artigo 1380.º do Código Civil. E este preceito, ao dispor que os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante, é de interpretar no sentido de que é condição necessária do direito de preferência que o prédio daquele que exerce o direito e o prédio alienado tenham área inferior à unidade de cultura.

Estas condições estão reunidas. Com efeito, a unidade de cultura fixada para a região onde estão situados os prédios – Região de ... – é de 2,5 hectares para terrenos de regadio e de 4 hectares para terrenos de sequeiro (anexo II da Portaria 219/2016) e provou-se que o terreno dos autores tem a área de 532,00 m2 e o que foi vendido a de 1 380 m2.

Diga-se que se compreende mal à luz do princípio da boa-fé processual que impende sobre as partes [1.ª parte do artigo 8.º do CPC] que os réus, ora recorrentes, venham alegar que não foi provada a área do prédio vendido quando eles, recorrentes, juntaram aos autos várias plantas de localização, representando o prédio objecto da preferência precisamente com a área de 1380 m2, ou seja, com a área que o tribunal a quo julgou provado. Acresce contra a sua alegação que não impugnaram a decisão de julgar provada sob o ponto n.º 3 a área do prédio objecto da acção de preferência.  

Segue-se do exposto que, ao afirmar que o prédio dos autores e o que foi alienado tinham área inferior à unidade de cultura, a decisão recorrida não violou o n.º 1 do artigo 1380.º do CC.


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Em segundo lugar, os recorrentes acusam a sentença de violar a alínea a) do n.º 1 do artigo 1381.º do Código Civil.

Esta acusação visa o segmento da sentença que afirmou que não se verificava a excepção ao direito de preferência previsto na 2.ª parte da alínea a) do artigo 1381.º do Código Civil. As razões deste entendimento foram as seguintes:
· Que os réus não demonstraram que era sua firme convicção ampliar a casa e que foi esse o fim imediato da compra e venda, designadamente dando entrada do projecto junto da Câmara Municipal competente para o efeito;
· Que a mera intenção desacompanhada de actos, logo após a aquisição, demonstrativos de que era o efectivo motivo da compra, não podia ser imposta aos autores, no sentido de obstar ao exercício do direito de preferência;
· Que os autores não podiam estar dependentes de meras intenções ou da eventual alteração de qualquer situação económica dos réus que lhe permitisse, um dia, proceder à ampliação desejada.  

Os recorrentes contestam esta fundamentação com a seguinte linha argumentativa:
· Que compraram o prédio para ampliar a sua habitação e fazer uma garagem;
· Que fizeram um projecto para submeter à Câmara;
· Que o PDM permite construir naquele prédio;
· Que apresentaram com a contestação ma viabilidade de construção emitida pela Câmara Municipal de ... ;
· Que os apelantes apenas não avançaram mais com o projecto de construção porque os apelados reagiram contra a venda do prédio em questão;
· Que a reacção a essa venda foi logo em Setembro de 2017;
· Que não se podia exigir aos apelantes que continuassem a ter gastos com licenças de construção e afins quando já sabiam que os apelados iam recorrer a tribunal para fazer valer os seus alegados direitos;
· Que os factos em causa no acórdão invocado na sentença – o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 4/11/2008, no processo n.º 557/2001.C1 – nada têm a ver com os factos dos presentes autos;

Citam, em abono da sua interpretação, os seguintes acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, todos publicados em www.dgsi.pt:
· Acórdão proferido em 19-12-2017, no processo n.º 303/16.2T8CLD;
· Acórdão proferido em 23-05-2017, no processo n.º 408/15.5T8LMG;
· Acórdão proferido em 20-09-2011 [por lapso os recorrentes referiram a data de 29-09-20119] no processo n.º 851/10.8TBGRD.C1,
· Acórdão proferido em 20-04-2010, no processo n.º 712/06.5T8TNV.C1;
· Acórdão proferido em 10-05-2016, no processo n.º 1/13.9TBAMM.C1;
· Acórdão proferido em 11-05-2004, no processo n.º 953/04;
· Acórdão proferido em 20-10-2015, no processo n.º 768/12.1TJCBR.

Apreciação do tribunal:

O fundamento do recurso ora em apreciação remete-nos, antes de mais, para a interpretação da a) do artigo 1381.º do Código Civil, na parte em que dispõe que “não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes quando algum dos terrenos se destine a algum fim que não seja a cultura.

Seguindo a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, o segmento do preceito acima transcrito é de interpretar no sentido de que o proprietário de um terreno não goza do direito de preferência previsto no n.º 1 do artigo 1380.º do Código Civil quando se verificarem as seguintes circunstâncias:
1. Quando o terreno vendido era usado efectivamente pelo seu proprietário para outro fim que não a cultura;
2. Quando o adquirente do terreno tenha a intenção de afectar o terreno a outro fim que não seja a cultura;
3. Quando o fim que não seja a cultura seja permitido por lei.

Citam-se em abono desta interpretação as seguintes decisões do Supremo Tribunal de Justiça:
1. O Acórdão do STJ de 12 de Julho de 1983, BMJ, n.º 329, páginas 561 a 567;
2. O Acórdão do STJ de 21 de Junho de 1994, proferido no recurso n.º 85358, publicado na CJ, Acórdãos do STJ, Ano II, Tomo II – 1994, páginas 154 a 156;
3. Acórdão do STJ de 19 de Março de 1998, proferido no recurso n.º 9, publicado na CJ, Acórdãos do STJ, Ano VI, Tomo I- 1998, páginas 143 a 145;
4. Acórdão do STJ de 15 de Dezembro, proferido no recurso de revista n.º 971/98, publicado no BMJ n.º 482, páginas 235 a 242;
5. O acórdão do STJ de 20 de Novembro de 2012, publicado na CJ, Acórdãos do STJ, Ano XX, Tomo III, 2012, páginas 133 a 138;
6. O acórdão do STJ de 17-10-2019, processo n.º 295/16.8T8VRS, proferido no âmbito de um recurso de revista excepcional em que a questão a decidir era precisamente a interpretação da 2.ª parte da alínea a) do artigo 1381.º do Código Civil, que exclui o direito de preferência aos proprietários de terrenos confinantes quando o terreno adquirido se destine a fim que não seja a cultura.

Cita-se, ainda, em abono desta interpretação Agostinho Cardoso Guedes, que escreve a este propósito: “… quer a liberdade reconhecida ao proprietário do terreno na afectação a outras finalidades, que não a cultura, quer os antecedentes do art.º 1381.º, a), do Código Civil, permitem concluir que a intenção do adquirente de afectar o prédio a outro fim que não a cultura é relevante para excluir o direito de preferência do proprietário confiante. Todavia, não bastará esta mera intenção ainda que manifestada na escritura de compra e venda sendo também necessária a prova da mesma, por qualquer meio e, ainda, que o destino do imóvel pelo adquirente seja permitido por lei” (O Exercício do Direito de Preferência, Publicações Universidade Católica, páginas 125 e 126).

Precisando a interpretação, dir-se-á ainda o seguinte.

Em primeiro lugar, que a prova de que o terreno objecto da preferência se destina a algum fim que não seja a cultura implica a demonstração de que o terreno em causa não se destina efectiva ou potencialmente ao exercício de actividades agrícolas e/ou florestais. Na verdade, apesar de a lei não definir “cultura” para efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 1381.º, do Código Civil, este tribunal entende que este conceito é usado com o mesmo sentido com que é usado no n.º 1 do artigo 1376.º, na alínea a), 1378.º, todos do Código Civil. Ora, “cultura” é usado nos referidos preceitos no sentido de terreno apto para o exercício de actividades agrícolas e/ou florestais. Com efeito, a razão de ser das normas citadas, bem como a do artigo 1380.º do Código Civil, é a fomentar o emparcelamento de terrenos rústicos e sabe-se, visto que é o legislador que o diz expressamente no Regime Jurídico da Estruturação Fundiária estabelecido pela Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto, que as actividades que se querem desenvolver através do emparcelamento rural são as actividades agrícolas e/ou florestais (alínea a), do n.º 1 do artigo 4.º). Daí que terrenos aptos para cultura são terrenos aptos para o exercício das actividades agrícolas e/ou florestais.

Em segundo lugar que a interpretação da alínea a) do n.º 1 do artigo 1381.º do Código Civil no sentido da legalidade da intenção de afectar o terreno a outro fim que não seja cultura está de harmonia com a Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e do Urbanismo (Lei n.º 31/2014, de 30 de Maio) e com  Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de Maio, alterado pelo Decreto-lei n.º 81/2020, de 2/10 e pelo Decreto-lei n.º 25/2021, de 29/03), designadamente com os seguintes preceitos daquela Lei:
· Com a alínea a) do n.º 1 do artigo 6.º, que afirma que “todos têm o direito a usar e fruir o solo, no respeito pelos usos e utilizações previstos na lei e nos programas e planos territoriais”;
· Com o n.º 3 do artigo 9.º, que afirma que o regime de uso do solo é estabelecido pelos planos territoriais de âmbito intermunicipal ou municipal através da classificação e qualificação do solo;
· Com o n.º 1 do artigo 10.º, que afirma que a classificação do solo determina o destino básico do solo, com respeito pela sua natureza, e assenta na distinção entre solo rústico e solo urbano;
· Com o artigo 13.º, n.º 1, que afirma que os proprietários do solo têm o direito a utilizar o solo de acordo com a sua natureza e com observância do previsto nos programas e planos territoriais;
· Com o n.º 1 do artigo 20.º, que afirma que “o uso do solo é definido exclusivamente pelos planos territoriais de âmbito intermunicipal ou municipal, através da definição de áreas de construção ou, na impossibilidade dessa definição, pela aplicação de parâmetros e índices quantitativos e qualitativos, de aproveitamento ou de edificabilidade, nos termos da lei”.

Em terceiro lugar que era aos réus recorrentes que cabia a prova de que o terreno vendido se destinava a algum fim que não fosse a cultura. Com efeito, estamos claramente perante um facto impeditivo do direito de preferência invocado pelos autores e a prova dos factos desta natureza cabe, nos termos do n.º 2 do artigo 342.º, do CC, àquele contra quem é feita a invocação do direito (a favor desta interpretação citam-se o acórdão do STJ proferido em 21 de Junho de 1994, no recurso n.º 85358, publicado na CJ, Acórdãos do STJ, Ano II, Tomo II – 1994, página 155, e o acórdão do STJ proferido em 19 de Março de 1998, no recurso n.º 9, publicado na CJ, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano VI – Tomo I, página 142).

Interpretada a alínea a) do n.º 1 do artigo 1381.º do Código Civil, no segmento relevante para o caso, com o sentido exposto, há que reconhecer razão aos recorrentes quando afirmam que está provado que a sua intenção era a de dar ao prédio um fim diferente do da cultura. Com efeito provou-se que os réus, ora recorrentes, que são proprietários de um prédio urbano, que constitui a sua casa de habitação, que confina com o terreno objecto da preferência, compraram este último para ali realizarem obras de ampliação do seu prédio urbano e para aí construírem uma garagem, tendo até solicitado a um desenhador que lhes fizessem um projecto para a construção e ampliação referidas. Esta matéria de facto é suficiente para se afirmar que os compradores, quando adquiriram o prédio, tinham a intenção de lhe dar um destino que não era o de cultura.

Observe-se que esta conclusão não colide em nada com a interpretação da alínea a) do n.º 1 do artigo 1381.º do Código Civil – afirmada em múltiplas decisões judiciais - de que a intenção de dar ao prédio um destino diferente da cultura tem de ser “séria”, “firme”. Na verdade, a questão de saber se os compradores, ao adquirirem o prédio objecto da acção de preferência, tinham a intenção de lhe dar um destino que não seja a cultura é uma questão de facto. E sendo questão de facto, produzida a prova, ou o tribunal se convence de que os adquirentes tinham tal intenção ou não se convence dela. Na primeira hipótese, declara provada tal intenção, na segunda julga-a não provada. Porém, uma vez provada, carece de sentido e pertinência discutir, em sede de direito, se a intenção é “firme”, é “séria” ou se foi ou não acompanhada de actos demonstrativos de tal intenção. A existência destes actos demonstrativos é susceptível de ter relevância, mas em sede de julgamento da matéria de facto.

Uma vez provado que os compradores tinham a intenção de dar ao prédio um destino que não era o de cultura, a questão que se coloca ao tribunal, para efeitos de aplicação da alínea a) do n.º 1 do artigo 1381.º do Código Civil, é a de saber se tal destino é permitido por lei.    

Ora é nesta sede que, com o devido respeito, claudica a argumentação dos recorrentes.

Vejamos. Em primeiro lugar, não é exacta a alegação deles segundo a qual apresentaram com a contestação uma viabilidade de construção emitida pela Câmara Municipal da ... . Com efeito, o que os réus, ora recorrentes, apresentaram com a contestação foi uma informação da Câmara Municipal da ... prestada ao abrigo do artigo 110.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento Jurídico da Urbanização e Edificação (Decreto-Lei n.º 555/99, de 16-12-1999) sobre a viabilidade de construção no prédio rústico identificado nas plantas anexas ao requerimento. As informações prestadas ao abrigo de tal preceito são informações sobre os instrumentos de desenvolvimento e de gestão territorial em vigor para determinada área do município, bem como das demais condições gerais a que devem obedecer as operações urbanísticas a que se refere o presente diploma.

E assim, a informação que a Câmara deu foi a de que o terreno assinalado nas peças desenhadas localizava-se parcialmente em solo urbano, na categoria de Espaço Habitacional de Tipo III e em solo rústico, na Categoria de Espaço Agrícola de Produção II coincidente com a Reserva Agrícola Nacional (RAN) e com a Estrutura Ecológica Municipal”.

A Câmara Municipal da ... não emitiu, pois, qualquer informação sobre a viabilidade de construção, no terreno em causa, das obras de ampliação da casa de habitação dos réus e de uma garagem. É certo que a Câmara Municipal também podia prestar esta informação (artigo 14.º do RJUE), a qual, sendo favorável, vinculava as entidades competentes na decisão sobre um eventual pedido de licenciamento [n.º 1 do artigo 17.º do RJUE]. Porém, não a prestou.

Em segundo lugar, também não é inteiramente exacta a alegação dos recorrentes de que o Plano Director Municipal da ... permite construir naquele prédio, no sentido de que permite construir “em todo o prédio”.

E não é inteiramente exacta porque não está provado que “todo” o solo do terreno em causa está classificado por tal Plano como solo urbano e só com esta prova se podia afirmar que o terreno permitia a construção.

O que está provado é que o prédio vendido está localizado, em parte, em solo urbano, com viabilidade de construção. E assim se uma parte do solo do terreno está afecto à urbanização ou edificação (alínea b) do n.º 2 da Lei n.º 31/2014), permitindo destino que não seja a cultura, a outra parte dele destina-se, segundo o PDM, à cultura. Temos, assim, uma parte do solo do prédio que permite um destino que não seja a cultura (concretamente a urbanização e edificação) e outra parte que não o permite.

A prova de que uma parte do solo permite a edificação não é, no entanto, suficiente para se concluir que são viáveis nela as obras que os réus, ora recorrentes, pretendem levar a cabo. Para tanto seria necessário conhecer, em concreto, a área do terreno que está incluída no solo urbano, segundo o PDM, a área de implantação das obras e todas as condicionantes da edificação segundo o PDM. Sucede que se ignoram estes aspectos.

Daí que a situação com que se depara o tribunal é a de dúvida: as obras tanto poderão ser viáveis, como não ser.

Esta dúvida seria afastada se os réus, ora recorrentes, dispusessem de licença camarária para realizar as obras em questão ou se tivessem informação prévia vinculativa favorável à realização das obras em causa na parte do solo classificado como urbano (artigos 14.º e 17.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, com as alterações posteriores - Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, o que também não sucede.

E assim na dúvida sobre a viabilidade das construções na parte do solo classificado como urbano, é de decidir contra os réus, ora recorrentes, por aplicação do artigo 414.º do CPC na parte em que dispõe que a dúvida sobre a realidade de um facto, resolve-se a quem o facto aproveita.


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Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a sentença recorrida.


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Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de os recorrentes terem ficado vencidos no recurso, condenam-se os mesmos nas custas do recurso.

Coimbra, 15 de Dezembro de 2021