Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | EMÍDIO FRANCISCO SANTOS | ||
Descritores: | DIREITO DE PREFERÊNCIA TERRENOS CONFINANTES DESTINO PARA OUTRO FIM QUE NÃO SEJA A CULTURA ACTIVIDADES AGRÍCOLAS OU FLORESTAIS | ||
Data do Acordão: | 12/15/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO LOCAL CÍVEL DA FIGUEIRA DA FOZ DO TRIBUNAL DA COMARCA DE COIMBRA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 1380.º E 1381.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO CIVIL | ||
Sumário: | I) O proprietário de um terreno não goza do direito de preferência previsto no n.º 1 do artigo 1380.º do Código Civil quando se verificarem as seguintes circunstâncias: o terreno vendido era usado efectivamente pelo seu proprietário para outro fim que não a cultura; o adquirente do terreno tenha a intenção de afectar o terreno a outro fim que não seja a cultura; o fim que não seja a cultura seja permitido por lei. II) A prova de que o terreno objecto da preferência se destina a algum fim que não seja a cultura implica a demonstração de que o terreno em causa não se destina efectiva ou potencialmente ao exercício de actividades agrícolas e/ou florestais, competindo aos réus da acção de preferência o correspondente ónus de alegação e prova. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra
A... e mulher B... , residentes na rua ...., ....., intentaram a presente acção declarativa com processo comum contra C... e marido D... , residentes na rua ..., ..., e E... e marido F... , residentes na rua ..., ..., pedindo: Para o efeito alegaram: Os réus F... e mulher E... contestaram, pedindo se julgasse improcedente a acção. Para o efeito alegaram, em resumo: Os réus C... e D... contestaram, pedindo também se julgasse improcedente a acção. Para o efeito alegaram, em resumo, que a acção foi instaurada decorridos mais de 6 meses após os autores terem conhecimento elementos essenciais da compra e venda. Os autores responderam à matéria das excepções, impugnando-a. O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência final foi proferida sentença que decidiu: Os réus não se conformaram com a sentença e interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo a revogação e a substituição da sentença recorrida por decisão que julgasse improcedente a acção e os absolvesse dos pedidos. Os autores responderam, sustentando a manutenção da decisão de facto e de direito. Por acórdão proferido por esta Relação em 14-01-2020, a decisão proferida em 1.ª instância foi anulada a fim de o tribunal a quo, se possível pelo mesmo juiz, fundamentar devidamente a decisão de julgar provado que o prédio dos autores tem a área 532,00m2. Repetido o julgamento, foi proferida nova sentença que, julgando procedente a acção, decidiu: Os réus E... e F... voltaram a interpor recurso de apelação contra a sentença, pedindo a revogação e a substituição dela por decisão que os absolva. Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões consistiram em resumo: (…) * Julgada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, consideram-se provados e não provados os seguintes factos: Factos provados: Alegações de facto não provadas: * Descritos os factos, passemos à resolução da questão de saber se a sentença recorrida é de revogar e substituir por decisão que julgue improcedente a acção. Os recorrentes imputam à sentença a violação do artigo 1380.º, n.º 1, do Código Civil e da alínea a) do artigo 1381.º do mesmo diploma. Comecemos por apreciar a acusação de violação do n.º 1 do artigo 1380.º. A acusação assenta, em síntese, na seguinte linha argumentativa: Apreciação do tribunal: O fundamento do recurso ora em apreciação é de julgar improcedente, apesar de ser exacta a alegação dos apelantes de que o direito de os autores haverem para si o prédio alienado à recorrente E... estava dependente da prova de que tanto o prédio deles como o que é objecto da acção de preferência tinham área inferior à unidade de cultura. Com efeito, o direito de preferência invocado pelos autores tem a sua fonte no n.º 1 do artigo 1380.º do Código Civil. E este preceito, ao dispor que os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante, é de interpretar no sentido de que é condição necessária do direito de preferência que o prédio daquele que exerce o direito e o prédio alienado tenham área inferior à unidade de cultura. Estas condições estão reunidas. Com efeito, a unidade de cultura fixada para a região onde estão situados os prédios – Região de ... – é de 2,5 hectares para terrenos de regadio e de 4 hectares para terrenos de sequeiro (anexo II da Portaria 219/2016) e provou-se que o terreno dos autores tem a área de 532,00 m2 e o que foi vendido a de 1 380 m2. Diga-se que se compreende mal à luz do princípio da boa-fé processual que impende sobre as partes [1.ª parte do artigo 8.º do CPC] que os réus, ora recorrentes, venham alegar que não foi provada a área do prédio vendido quando eles, recorrentes, juntaram aos autos várias plantas de localização, representando o prédio objecto da preferência precisamente com a área de 1380 m2, ou seja, com a área que o tribunal a quo julgou provado. Acresce contra a sua alegação que não impugnaram a decisão de julgar provada sob o ponto n.º 3 a área do prédio objecto da acção de preferência. Segue-se do exposto que, ao afirmar que o prédio dos autores e o que foi alienado tinham área inferior à unidade de cultura, a decisão recorrida não violou o n.º 1 do artigo 1380.º do CC. * Em segundo lugar, os recorrentes acusam a sentença de violar a alínea a) do n.º 1 do artigo 1381.º do Código Civil. Esta acusação visa o segmento da sentença que afirmou que não se verificava a excepção ao direito de preferência previsto na 2.ª parte da alínea a) do artigo 1381.º do Código Civil. As razões deste entendimento foram as seguintes: Os recorrentes contestam esta fundamentação com a seguinte linha argumentativa: Citam, em abono da sua interpretação, os seguintes acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, todos publicados em www.dgsi.pt: Apreciação do tribunal: O fundamento do recurso ora em apreciação remete-nos, antes de mais, para a interpretação da a) do artigo 1381.º do Código Civil, na parte em que dispõe que “não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes quando algum dos terrenos se destine a algum fim que não seja a cultura. Seguindo a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, o segmento do preceito acima transcrito é de interpretar no sentido de que o proprietário de um terreno não goza do direito de preferência previsto no n.º 1 do artigo 1380.º do Código Civil quando se verificarem as seguintes circunstâncias: Citam-se em abono desta interpretação as seguintes decisões do Supremo Tribunal de Justiça: Cita-se, ainda, em abono desta interpretação Agostinho Cardoso Guedes, que escreve a este propósito: “… quer a liberdade reconhecida ao proprietário do terreno na afectação a outras finalidades, que não a cultura, quer os antecedentes do art.º 1381.º, a), do Código Civil, permitem concluir que a intenção do adquirente de afectar o prédio a outro fim que não a cultura é relevante para excluir o direito de preferência do proprietário confiante. Todavia, não bastará esta mera intenção ainda que manifestada na escritura de compra e venda sendo também necessária a prova da mesma, por qualquer meio e, ainda, que o destino do imóvel pelo adquirente seja permitido por lei” (O Exercício do Direito de Preferência, Publicações Universidade Católica, páginas 125 e 126). Precisando a interpretação, dir-se-á ainda o seguinte. Em primeiro lugar, que a prova de que o terreno objecto da preferência se destina a algum fim que não seja a cultura implica a demonstração de que o terreno em causa não se destina efectiva ou potencialmente ao exercício de actividades agrícolas e/ou florestais. Na verdade, apesar de a lei não definir “cultura” para efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 1381.º, do Código Civil, este tribunal entende que este conceito é usado com o mesmo sentido com que é usado no n.º 1 do artigo 1376.º, na alínea a), 1378.º, todos do Código Civil. Ora, “cultura” é usado nos referidos preceitos no sentido de terreno apto para o exercício de actividades agrícolas e/ou florestais. Com efeito, a razão de ser das normas citadas, bem como a do artigo 1380.º do Código Civil, é a fomentar o emparcelamento de terrenos rústicos e sabe-se, visto que é o legislador que o diz expressamente no Regime Jurídico da Estruturação Fundiária estabelecido pela Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto, que as actividades que se querem desenvolver através do emparcelamento rural são as actividades agrícolas e/ou florestais (alínea a), do n.º 1 do artigo 4.º). Daí que terrenos aptos para cultura são terrenos aptos para o exercício das actividades agrícolas e/ou florestais. Em segundo lugar que a interpretação da alínea a) do n.º 1 do artigo 1381.º do Código Civil no sentido da legalidade da intenção de afectar o terreno a outro fim que não seja cultura está de harmonia com a Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e do Urbanismo (Lei n.º 31/2014, de 30 de Maio) e com Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de Maio, alterado pelo Decreto-lei n.º 81/2020, de 2/10 e pelo Decreto-lei n.º 25/2021, de 29/03), designadamente com os seguintes preceitos daquela Lei: Em terceiro lugar que era aos réus recorrentes que cabia a prova de que o terreno vendido se destinava a algum fim que não fosse a cultura. Com efeito, estamos claramente perante um facto impeditivo do direito de preferência invocado pelos autores e a prova dos factos desta natureza cabe, nos termos do n.º 2 do artigo 342.º, do CC, àquele contra quem é feita a invocação do direito (a favor desta interpretação citam-se o acórdão do STJ proferido em 21 de Junho de 1994, no recurso n.º 85358, publicado na CJ, Acórdãos do STJ, Ano II, Tomo II – 1994, página 155, e o acórdão do STJ proferido em 19 de Março de 1998, no recurso n.º 9, publicado na CJ, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano VI – Tomo I, página 142). Interpretada a alínea a) do n.º 1 do artigo 1381.º do Código Civil, no segmento relevante para o caso, com o sentido exposto, há que reconhecer razão aos recorrentes quando afirmam que está provado que a sua intenção era a de dar ao prédio um fim diferente do da cultura. Com efeito provou-se que os réus, ora recorrentes, que são proprietários de um prédio urbano, que constitui a sua casa de habitação, que confina com o terreno objecto da preferência, compraram este último para ali realizarem obras de ampliação do seu prédio urbano e para aí construírem uma garagem, tendo até solicitado a um desenhador que lhes fizessem um projecto para a construção e ampliação referidas. Esta matéria de facto é suficiente para se afirmar que os compradores, quando adquiriram o prédio, tinham a intenção de lhe dar um destino que não era o de cultura. Observe-se que esta conclusão não colide em nada com a interpretação da alínea a) do n.º 1 do artigo 1381.º do Código Civil – afirmada em múltiplas decisões judiciais - de que a intenção de dar ao prédio um destino diferente da cultura tem de ser “séria”, “firme”. Na verdade, a questão de saber se os compradores, ao adquirirem o prédio objecto da acção de preferência, tinham a intenção de lhe dar um destino que não seja a cultura é uma questão de facto. E sendo questão de facto, produzida a prova, ou o tribunal se convence de que os adquirentes tinham tal intenção ou não se convence dela. Na primeira hipótese, declara provada tal intenção, na segunda julga-a não provada. Porém, uma vez provada, carece de sentido e pertinência discutir, em sede de direito, se a intenção é “firme”, é “séria” ou se foi ou não acompanhada de actos demonstrativos de tal intenção. A existência destes actos demonstrativos é susceptível de ter relevância, mas em sede de julgamento da matéria de facto. Uma vez provado que os compradores tinham a intenção de dar ao prédio um destino que não era o de cultura, a questão que se coloca ao tribunal, para efeitos de aplicação da alínea a) do n.º 1 do artigo 1381.º do Código Civil, é a de saber se tal destino é permitido por lei. Ora é nesta sede que, com o devido respeito, claudica a argumentação dos recorrentes. Vejamos. Em primeiro lugar, não é exacta a alegação deles segundo a qual apresentaram com a contestação uma viabilidade de construção emitida pela Câmara Municipal da ... . Com efeito, o que os réus, ora recorrentes, apresentaram com a contestação foi uma informação da Câmara Municipal da ... prestada ao abrigo do artigo 110.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento Jurídico da Urbanização e Edificação (Decreto-Lei n.º 555/99, de 16-12-1999) sobre a viabilidade de construção no prédio rústico identificado nas plantas anexas ao requerimento. As informações prestadas ao abrigo de tal preceito são informações sobre os instrumentos de desenvolvimento e de gestão territorial em vigor para determinada área do município, bem como das demais condições gerais a que devem obedecer as operações urbanísticas a que se refere o presente diploma. E assim, a informação que a Câmara deu foi a de que o terreno assinalado nas peças desenhadas localizava-se parcialmente em solo urbano, na categoria de Espaço Habitacional de Tipo III e em solo rústico, na Categoria de Espaço Agrícola de Produção II coincidente com a Reserva Agrícola Nacional (RAN) e com a Estrutura Ecológica Municipal”. A Câmara Municipal da ... não emitiu, pois, qualquer informação sobre a viabilidade de construção, no terreno em causa, das obras de ampliação da casa de habitação dos réus e de uma garagem. É certo que a Câmara Municipal também podia prestar esta informação (artigo 14.º do RJUE), a qual, sendo favorável, vinculava as entidades competentes na decisão sobre um eventual pedido de licenciamento [n.º 1 do artigo 17.º do RJUE]. Porém, não a prestou. Em segundo lugar, também não é inteiramente exacta a alegação dos recorrentes de que o Plano Director Municipal da ... permite construir naquele prédio, no sentido de que permite construir “em todo o prédio”. E não é inteiramente exacta porque não está provado que “todo” o solo do terreno em causa está classificado por tal Plano como solo urbano e só com esta prova se podia afirmar que o terreno permitia a construção. O que está provado é que o prédio vendido está localizado, em parte, em solo urbano, com viabilidade de construção. E assim se uma parte do solo do terreno está afecto à urbanização ou edificação (alínea b) do n.º 2 da Lei n.º 31/2014), permitindo destino que não seja a cultura, a outra parte dele destina-se, segundo o PDM, à cultura. Temos, assim, uma parte do solo do prédio que permite um destino que não seja a cultura (concretamente a urbanização e edificação) e outra parte que não o permite. A prova de que uma parte do solo permite a edificação não é, no entanto, suficiente para se concluir que são viáveis nela as obras que os réus, ora recorrentes, pretendem levar a cabo. Para tanto seria necessário conhecer, em concreto, a área do terreno que está incluída no solo urbano, segundo o PDM, a área de implantação das obras e todas as condicionantes da edificação segundo o PDM. Sucede que se ignoram estes aspectos. Daí que a situação com que se depara o tribunal é a de dúvida: as obras tanto poderão ser viáveis, como não ser.
Esta dúvida seria afastada se os réus, ora recorrentes, dispusessem de licença camarária para realizar as obras em questão ou se tivessem informação prévia vinculativa favorável à realização das obras em causa na parte do solo classificado como urbano (artigos 14.º e 17.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, com as alterações posteriores - Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, o que também não sucede. E assim na dúvida sobre a viabilidade das construções na parte do solo classificado como urbano, é de decidir contra os réus, ora recorrentes, por aplicação do artigo 414.º do CPC na parte em que dispõe que a dúvida sobre a realidade de um facto, resolve-se a quem o facto aproveita. * Decisão: Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a sentença recorrida. * Responsabilidade quanto a custas: Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de os recorrentes terem ficado vencidos no recurso, condenam-se os mesmos nas custas do recurso. Coimbra, 15 de Dezembro de 2021
|