Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
281/18.3T9MBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
SUPRESSÃO DO VÍCIO
Data do Acordão: 11/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MOIMENTA DA BEIRA - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 410.º, N.º 2, AL. A), DO CPP
Sumário: I – É insuficiente para a decisão de condenação de um arguido em crimes de coacção na forma tentada a alusão, no rol de factos provados, de que o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito não conseguido, por motivos alheios à sua vontade de, ao proferir tais palavras, conseguir que os assistentes saíssem daquele terreno, utilizando uma expressão que pretendia limitá-los na sua liberdade de determinação pessoal, o que configura um vício do artigo 410º, n.º 2, alínea a) do CPP.

II – Carecem os autos de uma explicitação mais concretizada, na factualidade, do estádio de tentativa na acção do arguido, devendo também dar-se como provado que os destinatários da coacção não acataram comportamento conforme à imposição do coactor, não configurando este aditamento qualquer alteração não substancial de factos que justifique a comunicação que alude o artigo 358º, n.º 1 do CPP, na medida em que tal aditamento mais não é do que a reafirmação ou a ilação explícita de factos que sinteticamente já se encontravam narrados na acusação e na pronúncia, embora só no segmento atinente ao elemento subjectivo do tipo de crime em causa.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO
           
1. A CONDENAÇÃO RECORRIDA

No processo comum singular n.º 281/18.3T9MBR do Juízo de competência genérica de Moimenta da Beira (Juiz 1), por sentença datada de 24 de Maio de 2022, foi decidido: 
«A.1. Condenar o arguido, AA, como autor material, e na forma tentada, de um crime de coação, p. e p. pelos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal., contra o ofendido BB, na pena de multa de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o montante global de € 540,00 (quinhentos e quarenta euros).
A.2. Condenar o arguido, AA, como autor material, e na forma tentada, de um crime de coação, p. e p. pelos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal., contra o ofendido CC, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o montante global de € 540,00 (quinhentos e quarenta euros).
A.3. Em cúmulo jurídico das penas aplicadas e referidas em A.1. e A.2., condenar o arguido, AA, na única de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o montante global de € 840,00 (oitocentos e quarenta euros).
(…)
B. O Tribunal julga o pedido de indemnização civil, deduzido pelos demandantes, BB e CC, parcialmente procedentes e, em consequência, decide:
B.1. Condenar o demandado, AA, a pagar a cada um dos demandantes, BB e CC, a quantia de € 500,00 (quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais, acrescidos dos devidos juros de mora, contados desde a data da sentença, até seu efetivo e integral pagamento.
B.2. Absolver o demandado, AA, do demais peticionado».


            2. O RECURSO
Inconformado, o arguido AA recorreu da sentença condenatória, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

      «1. A decisão constante da sentença e que aqui se reproduz, enferma de nulidade, por excesso de pronuncia ou conhecimento do Tribunal, quanto à extemporaneidade da apresentação da queixa – da extinção do procedimento criminal- o que inviabiliza e torna nulo o julgamento efectuado.
      2. E, pese embora o Ministério Público haja, aquando do despacho de arquivamento e acusação datado de 28 de Janeiro de 2021, apreciado e bem, relativamente aos crimes de natureza privada que a queixa apresentada foi extemporânea, porquanto os factos imputados na queixa ocorreram no dia 14 de Abril de 2018 e, esta, apenas deu entrada a 15 de Outubro de 2018, verdade é que, quanto às queixas que deram lugar à acusação pública constante do presente processo, crime pelo qual o arguido vem condenado, tal questão só foi apreciada em sede de sentença.
3. Ora, o procedimento criminal iniciou-se na sequência da queixa-crime apresentada pelos ofendidos, independentemente da natureza da qualificação jurídica que mais tarde lhe venha a ser atribuída.
4. Mais, a queixa-crime apresentada imputa ao arguido/denunciado, a prática de um crime de ameaça simples, logo, de um crime semipúblico, dependente de queixa e só porque veio o Ministério Público a entender que a factualidade denunciada consubstanciava a prática de um crime de coacção, é que o arguido vem acusado desses factos, nos termos do disposto no artigo 154º nº 1 e 2 do Código Penal.
5. Mas, mesmo assim, entendemos quer num caso, quer noutro, atenta a imputação dos factos pelos assistentes, o direito de queixa extingue-se decorridos que sejam 6 meses sobre a data em que o seu titular tiver tido conhecimento dos factos delituosos e do seu autor, conforme o disposto no artigo 115.º n.º 1 do Código Penal.
6. Assim, a queixa aqui em causa e apresentada contra o arguido AA, tendo sido apresentada no dia 15 de Outubro de 2018, com a imputação ao arguido da prática de um crime de ameaça simples p. e p. artigo 153.º do Código Penal – Vide folhas 1 e seguintes dos autos –, é extemporânea, estando já extinto o direito de queixa.
7. Pelo que, a queixa apresentada contra o arguido AA e que está no cerne da acusação pública e condenação do arguido é extemporânea pois os alegados factos ocorreram também a 14 de Abril de 2018, tendo os ofendidos conhecimento imediato dos mesmos e do seu alegado autor, mas apenas apresentaram queixa a 15 de outubro, ou seja, mais de seis meses após a alegada prática dos factos.
8. Foi o arguido condenado pela prática de dois crimes p. e p. pelo artigo 154º nº 1 e 2 do CP que dispõe: - Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. 2 - A tentativa é punível., mas, entende o arguido que da factualidade que resultou provada em juízo em caso algum poderá ser condenado pelo crime em causa.
9. É míster no crime de coacção que o visado se comece a comportar como o agente quer, pratique a acção ou omissão pretendida pelo agente ou suporte a actividade por este querida. Ora, se nenhum destes requisitos se vier a demonstrar, não estão preenchidos os requisitos deste tipo legal de crime de coacção, quando muito, podemos cair na previsão do crime de ameaça, já que a coacção é um crime de resultado, enquanto a ameaça é de perigo.
10. No crime de coacção, exige-se a verificação do resultado para a sua consumação, ou seja, exige-se que a pessoa objecto da acção de coacção tenha efectivamente sido constrangida a praticar a acção, a omitir a acção ou a tolerar a acção, de acordo com a vontade do coactor e contra a sua vontade. Mas basta-se com o simples início da execução da conduta coagida, sendo suficiente para a consumação, se o objecto da coacção for a prática de uma acção, que o coagido inicie esta acção.
11. Ensinando ainda a este propósito o Prof. Américo Taipa de Carvalho In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 358., o que supra se deixou transcrito.
12. E, no caso em apreço, resultou provado da ponderação acertada de todos os depoimentos prestados, que os assistentes, depois da troca de palavras com o arguido, que não se aceita ter sido nos moldes que vieram a ser dados como provados em sentença, mas que se coloca para efeitos de raciocínio, CONTINUARAM A TRABALHAR NO MESMO PRÉDIO EM QUE SE ENCONTRAVAM.
13. Os assistentes não adequaram o seu comportamento face ao referido pelo arguido, não tendo sido privados da sua liberdade, não saído do local, tendo continuado a executar os trabalhos de limpeza como se nada se tivesse passado.
14. Não houve qualquer temor, receio, ou medo sequer que fizesse os assistentes condicionar os seus comportamentos por força das alegadas palavras proferidas pelo arguido: “sai daqui senão corto-te o pescoço”….”sai daqui senão termino o que devia ter feito há dias, desta vez avio-te com a pá”.
15. Para a consumação do crime de coacção era imperativo que os ofendidos se comportassem no sentido do referido pelo arguido ou seja que tivessem saído de imediato daquele local/prédio adequando assim as suas condutas ao “mal anunciado” pelo arguido.
16. Aliás e, antes, do processo resultou que os ofendidos não adequaram nenhuma das suas condutas àquele “mal anunciado” tendo continuado a fazer o que estavam ou o que tinham destinado a limpar o terreno, como se nada fosse.
Veja-se a este propósito o testemunho dos ofendidos, das testemunhas por estes arroladas (seus familiares) e as restantes testemunhas:
Assistente BB, ouvido no dia 23-11-2021, cujo depoimento se encontra gravado em sistema sonoro de 15:31:19 a 15:51:48.
“Durante aquele dia o Sr. sentiu os seus movimentos de alguma forma limitados?” (15:29-15:51)
“Oh Sr. Dr. havia alturas que eu nem estava a pensar direito…então se a gente está…entra assim, põem logo uma motosserra no pescoço de uma pessoa… trabalhei à vontade…andava sempre a olhar para trás… e as vezes parava uns bocadinhos estava lá sentado…”
(20:10-20:18)
“Tínhamos a limpar outros terrenos e íamos limpar aquele…também era nosso…” “E o que fizeram durante o dia todo?”
(20:19-20:27)
“O que fizemos durante o dia todo? Continuamos a limpar o terreno…aquele terreno…” Assistente CC, ouvida no dia 23-11-2021, cujo depoimento se encontra gravado em sistema sonoro de 15:52:32 a 16:09:54. Dr. DD:
“Durante o período que a senhora esteve ali, ficou ali até quando?” (10:06-10:17)
“Ficamos ali até à hora do almoço, e fomos almoçar e voltamos de tarde…” E depois nesse dia passou-se mais alguma coisa?”
(04:28-04:51)
“Aquilo ali depois, bom, sinceramente se formos a contar isto, eu andei lá a limpar com a roçadeira até as 3h, 3h30 mais ou menos da tarde e se formos a ver, ele provocou quase todo o dia mas eu disse para o meu cunhado “Opa…deixa lá…”
“O que conseguiram limpar?” (16:59-17:01)
“Limpamos o terreno todo…”
“Outra coisa: Diz a senhora que depois aquilo acabou, depois até foram almoçar e tal…Diz a Sra. que o Sr. AA andou o resto do dia a provocar…Aquilo não ficou mais calmo? Voltaram a discutir?”
(08:33-09:01)
Testemunha EE, ouvida no dia 19-01-2022, cujo depoimento se encontra gravado em sistema sonoro de 15:40:42 a 16:09:29. “Depois disso o Sr. AA, ficou lá não ficou? Os outros ficaram?”
(02:59-03:38)
“Eles andaram lá todo o dia, todos manteram-se lá todo o dia…Apercebi-me que o Sr. AA diz que tinha ligado para a GNR, connosco não foram ter connosco a GNR…tiveram na estrada a falar com o Sr. AA e com a Dona EE…”
Testemunha FF, ouvida no dia 19-01-2022, cujo depoimento se encontra gravado em sistema sonoro de 16:10:28 a 16:53:54.
“E depois como acabou isso?” (11:39-12:10)
“E depois o Sr. AA foi mais para a frente para ao pé de nós e eles pegaram numa motosserra e cortaram os carvalhos todos diziam que aquilo era tudo deles…”
“Os Srs. dos tractores e as senhoras que chegaram, estiveram lá todo o dia, foram embora?”
(16:03-16:51)
“Não..Todo o dia, tiveram lá todo o dia…até que nós chegamos ao meio da tarde.. nós almoçamos lá…eles foram almoçar a casa, saíram com os tractores na hora de almoço com certeza foram a casa comer…voltaram duas e qualquer coisa, duas e pouco…”
“E enquanto lá estiveram, o que fizeram durante todo o dia estes Srs e estas Sras?” Testemunha GG, ouvida no dia 28-02-2022, cujo depoimento se encontra gravado em sistema sonoro de 14:32:38 a 14:45:26.
“Viu chegarem umas senhoras?” (06:50-07:33)
“Vi chegar duas senhoras e duas crianças…foi depois…meia hora, uma hora…não tenho a certeza, foi mais tarde…Elas andaram na mesma, deviam ser os supostos maridos..conforme nós íamos subindo, eles acompanhavam…Eles andavam a cortar…eles até acartavam a lenha para as nossas fogueiras, estavam a limpar a parte deles…quer elas quer eles…”
Testemunha HH, ouvida no dia 28-02-2022, cujo depoimento se encontra gravado em sistema sonoro de 14:56:40 a 15:27:25.
Depois do que aconteceu, eles mantiveram-se lá?” (14:15-14:31)
“Sim sim, mantiveram-se no lugar deles, no terreno deles, andavam a limpar lá o que lá tinham, silvas e mato e essas coisas todas…”
17. Ora, DE TODOS OS DEPOIMENTOS, inclusive do dos próprios assistentes, resulta que nenhum condicionou as suas condutas face ao que teria dito o arguido; os assistentes e os seus familiares foram para aquele local para proceder à limpeza do terreno e continuaram a fazê-lo como se nada fosse. “O que fizemos durante o dia todo? Continuamos a limpar o terreno…aquele terreno…” – Disse o assistente BB; “Limpamos o terreno todo…” – Disse a assistente CC.
18. Como pôde o Tribunal a quo ter subsumido a conduta do arguido à prática do crime de coacção quando os próprios ofendidos assumiram que nada fizeram após a troca de palavras com o arguido? Se tivessem sido coagidos no mínimo teriam de ter abandonado o local o que não fizeram tendo-se mantido impávidos e serenos nos seus trabalhos de limpeza agrícola, as alegadas palavras do arguido não levaram a que nenhum dos assistentes mudasse o seu comportamento tendo continuado a realizar os seus trabalhos sem nenhum constrangimento.
19. O tipo objectivo de ilícito do crime de coacção consiste em determinar outrem à prática de certo comportamento ou à omissão do mesmo, qualquer que seja a relevância do mesmo, sendo que tal constrição deve ser obtida mediante a utilização de violência ou ameaça de mal importante. Refira-se que a violência pode ser exercida sobre a pessoa do constrangido ou de outra pessoa, desde que tenha o efeito de determinar aquele a certa acção ou omissão, o mesmo se referindo quanto ao objecto em que se concretizará a ameaça, isto é, a violência e o mal importante podem ser concretizados na pessoa do constrangido, em qualquer pessoa, ou mesmo numa coisa, importando apenas que tenham o já referido efeito determinativo.
20. O preenchimento do tipo objectivo, por a coacção se tratar de um crime de resultado, carece que a pessoa constrangida pratique a acção ou adopte o comportamento omissivo visados pelo coactor. O tipo subjectivo de ilícito exige o dolo em qualquer uma das suas formas (directo, necessário ou eventual - cfr. artigo 14.° do Código Penal).”
21. Não resultaram provados os elementos constitutivos do tipo de infracção em causa, por ter sido clarividente que os ofendidos não praticaram qualquer acção ou adoptaram qualquer comportamento visado pelo coactor, veja-se e reitere-se que mesmo que o arguido tenha dito “sai daqui senão…” ficou deveras demonstrado que nenhum dos ofendidos dali saiu continuando durante todo o dia a limpar o terreno trabalho que iniciaram e concluíram e isso considerou o Meritíssimo juiz do tribunal a quo na sentença proferida ora atente-se à fundamentação da decisão de facto (página 5 da sentença recorrida) o seguinte: No que respeita à dinâmica do sucedido o Tribunal formou a sua convicção….. embora os assistentes não tenham abandonado o local, permanecendo aí, mas longe do arguido, a realizar tarefas de limpeza.”
22. Ora se não houve nenhuma conduta por parte dos ofendidos coadunada com o comportamento propalado – já que se houvesse os mesmos teriam no mínimo saído do local o que não sucedeu – não ficou preenchido o tipo de crime da coacção.
23. Mais, em concreto e de forma objectiva, a própria expressão adiantada pelo Ministério Público como tendo sido proferida pelo arguido em relação à pessoa da assistente CC não é susceptível de preencher qualquer mal. Logo, mesmo que provado tal facto, não há enunciação e mal futuro, logo não há coacção.
24. A sentença recorrida é ainda nula na medida em que existe contradição expressa entre os factos dados como provados e a fundamentação da decisão recorrida.
25. De forma parcialmente assertiva o Meritíssimo Juiz considera na fundamentação da decisão de facto (página 5 da sentença recorrida) o seguinte: No que respeita à dinâmica do sucedido o Tribunal formou a sua convicção….. embora os assistentes não tenham abandonado o local, permanecendo aí, mas longe do arguido, a realizar tarefas de limpeza.” Contrariamente deu como provado o seguinte facto: 8. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito não conseguido, por motivos alheios à sua vontade de, ao proferir tais palavras, conseguir que os assistentes saíssem daquele terreno, utilizando uma expressão que pretendia limitá-los na sua liberdade de determinação pessoal.
26. Ora tal contradição é expressa na medida em que não pode o Tribunal considerar que o propósito do arguido era obrigar os ofendidos a sair daquele terreno quando da própria convicção do julgador resultou que os ofendidos não tiveram qualquer temor já que continuaram a trabalhar como se nada fosse não tendo adequado nenhum comportamento em função das alegadas expressões.
27. Além do sobredito não proceder entende o arguido que sempre terá de ser absolvido já que os factos que foram dados como provados factos que não encontram assento na prova produzida sendo esta completamente contraditória sem qualquer coerência, lógica e similitude que permitisse fundar a convicção do julgador.
28. Diga-se a este propósito que não se entende como o julgador pode ter considerado o depoimento dos assistentes “seguros, escorreitos e nessa medida credíveis, mas sobretudo amparados pelos testemunhos de II e JJ, que apesar da proximidade de parentesco (cunhado e irmã do assistente) revelaram versão similar, unívoca e assim credível”, quando da prova produzida resulta o contrário sendo os depoimentos completamente contrários quanto à dinâmica dos factos, às pessoas que ali se encontravam e aos objectos alegadamente envolvidos.
29. A decisão é ainda errada, na medida em que, o que ali consta, não reflecte os depoimentos das testemunhas, nem das indicadas pelos assistentes “que atiraram uma para cada lado”, muito menos das demais ouvidas.
Ora atente-se aos seguintes depoimentos:
Assistente BB, ouvido no dia 23-11-2021, cujo depoimento se encontra gravado em sistema sonoro de 15:31:19 a 15:51:48.
“Então não aconteceu mais nada?” (05:19-05:29)
“Ahh depois mais tarde, depois contou-me a minha esposa, ela não nos queria enervar.. senão…” “Eu estou a perguntar isso porque terá havido alguma coisa entre a sua esposa e o Sr. AA…Mas o senhor não assistiu é isso?”
(06:28-07:34)
“Não, não…Nós estávamos da parte de cima…eu e o meu cunhado a limpar…Ela nem quis falar por causa de não haver mais problemas, senão….Oh Sôtor isto é uma situação que já se arrasta
muitos anos, isto já não é de agora…É assim.. isto já é uma perseguição, após a morte do meu pai, isto…este senhor… temos vindo ao longo dos anos aqui a assistir a vários episódios…não sei o porquê com vários terrenos…o problema é que não é com o Sr. AA, os terrenos são do sobrinho e o Sr. AA insiste em meter-se não sei porquê, não sei a razão..”
(08:03-08:21)
“Estava muita gente? Quando lá chegamos não estava, inclusive estava o Sr. sozinho no nosso terreno não estava mais ninguém…encontravam-se pessoas sim a limpar na parte superior do monte que faz uma encosta e não assistiram a nada, só depois com as discussões e os berros é que apareceu primeiro uma senhora no alto e depois é que vieram as outras pessoas…a ver o que se estava a passar…”
“Em relação à sua esposa já sabemos que não viu, foi o que ela lhe contou, ela também está cá para contar mas o que ela lhe contou?”
(10:27-11:27)
“Ela contou-me por alto porque nem quis contar bem as coisas por causa…podia ser um caso sério…ela também disse que a insultou que também a tratou mal…que estava com uma pá..que só lhe faltou atingir com a pá…mas pronto contou-me assim…segundo que ela disse que lhe atirou a pá…de nomes? Sim sim.. isso já não é…já é habitual..a linguagem dele…para sairmos do terreno, que não era nosso…para sair dali que eramos uns ladrões..para sairmos dali para fora que eramos uns ladrões…que o terreno não era nosso..quando o terreno era nosso…ele é que não devia estar a limpar aquilo que era nosso…”
“Disse que se o Sr. não tivesse posto a mãe que já não estava cá…Então a mão…o que se passou na mão?”
(16:38-16:52)
“Na mão? Eu não votei a mão à motosserra…votei a mão à mão dele para segurar a motosserra. A lâmina. A motosserra estava parada, nunca disse que estava a trabalhar…”
Assistente CC, ouvido no dia 23-11-2021, cujo depoimento se encontra gravado em sistema sonoro de 15:52:32 a 16:09:54. “Antes da Sra. lá chegar, o seu marido ligou-lhe por exemplo? Nada? Não lhe disse que tinha acontecido alguma coisa? Não lhe disse: Cuidado que está aqui o Sr. AA e está exaltado, nervoso?”
(03:20-03:25) “Não..não..”
“Já depois do final do dia, o seu marido contou-lhe se nesse mesmo dia tinha acontecido alguma coisa com ele?”
(08:30-09:10)
“Sim porque é assim, eu fiquei um bocado em baixo, e é assim ele conhece-me bem e havia ali qualquer coisa que não estava bem, eu não queria falar, eu queria saber dali e depois falava mas não queria falar ali, mas depois ele disse, “não fala..” e depois eu contei e ele também contou o que já tinha acontecido logo de manhã. Que ele lhe tiha encostado um motosserra ao pescoço que eu ainda fiquei pior porque é assim, a mim a pá e a ele um motosserra, não sei o que se estava ali a passar..”
“Que idade tinha o seu filho quando aconteceu isto?” (15:00-15:05)
“17 anos…” “Ele estava lá?” (15:08-15:23)
“Eu não disse que ele estava lá…Não estava lá…Só com a minha cunhada, só íamos as duas…”
“Oh sôtor se me dá licença, no depoimento da Sra. diz que tinha o filho ao colo…O KK é seu sobrinho? Ele estava lá naquele dia?”
(16:50-17:07)
“Não..não íamos com uma criança tão pequena para um sitio daquele onde havia fogueiras e havia motosserras, não levei o meu que tinha mais idade, não ia levar um miúdo que…bebé para um sitio daqueles, nem pensar…”
“Oh sôtor, posso ditar para a acta? A Assistente e testemunha diz que não se fez acompanhar por qualquer criança, designadamente o seu sobrinho KK de 3 anos de idade ao local daquele dia. Ocorre que, no concreto dia 9 de Abril de 2019, pouco mais de um ano após do acontecimento, declarou em Auto de Inquirição de testemunhas, junto da GNR, conforme consta de folhas, folhas não consigo dizer, é este auto desta data, que: “No dia 14 de Abril de 2018, pelas 10horas se encontrava no terreno sito no Lugar ..., no concelho ..., conjuntamente com o seu sobrinho KK com 3 anos de idade, com a Sra. LL, com o Sr. MM e o Sr. BB…” O que significa que há uma discrepância no que declara e demonstra claramente que a testemunha está a faltar à verdade…requer-se que sejam ouvidas as declarações da testemunha para que a mesma seja confrontada com a discrepância…”
Testemunha MM, ouvido no dia 23-11-2021, cujo depoimento se encontra gravado em sistema sonoro de 16:19:24 a 16:38:07.
“Tu aqui não tens nada seu cobarde, vai mas é embora..” E ele tinha um motosserra parado e o meu cunhado disse-lhe qualquer coisa e ele pegou no motosserra e pôs-lhe aqui “Vai embora seu gatuno senão corto-te mas é já a cabeça…”
“A cabeça? Ou pense lá bem se foi a cabeça…” (02:51-03:00)
“Ele pousou-la…eu estava ali a dois metros de distância e depois cheguei la e disse: “Então é preciso chegar a este ponto? Não há outro modo civil de resolver os problemas?””
“Isso com a sua cunhada foi por volta de que horas?” (05:51-06:06)
“Aquilo devia ter sido por volta das 10horas, porque foi quando elas foram para lá com os miúdos, por volta das 10h, 10h e poucos…”
“Nessa altura quem estava lá com a sua cunhada?” (06:30-06:39)
“Praticamente estava eu, a minha mulher, e o meu cunhado e estavam lá os miúdos…” “E o seu cunhado nessa altura estava lá ou ainda estava mais longe a tratar dos terrenos? (06:45-06:55)
“Não, o meu cunhado estava ali, foi quando andávamos perto…eu andava com uma roçadeira e ele andava com uma motosserrazita pequena também a limpar…”
“Sabe se ele ouviu alguma coisa? E viu esta parte da dona CC?” (06:58-07:04)
“Eu isso não sei…” Dr. NN:
“Você para desapertar os dois teve que fazer muita força?” (10:54-11:10)
“Cheguei lá primeiro votei as mãos ao Sr. AA e disse: “É preciso chegar a esse ponto?” Olhe quando lá chegaram, quando saiu do tractor para o terreno como iam limpar?”
(11:17-11:23)
“Então, levava uma roçadeira de costas, levávamos uma motosserra pequena…” “Quem levava a motosserra?”
(11:25-11:30)
“Era o OO…”
“Depois mais tarde, chegou a CC diz você?” (13:08-13:26)
“Sim por volta das 10h, 10h30, a CC e a minha mulher.. e iam os miúdos…O KK na altura tinha, isto foi à três anos, agora tem seis, tinha três anos…”
“O KK também estava lá?” (13:25-13:38)
“Estava...Tinha a minha mulher ao colo…sim estava ali…” “E o BB não veio para baixo também?”
13:55-14:03)
“Sim..ele até estava ali mais próximo…ele estava mais próximo de que estava eu…”
“Então ele também viu o que você diz que o Sr. AA mandou com a pá à CC? Ele também viu?”
(14:06-14:45)
“Penso que sim, se estava ali perto penso que sim…Viu viu…”
“A minha pergunta é: Na PP pegou numa pá e mandou contra um carvalho, e você viu isto? A pergunta é: O BB também viu isto?”
(14:53-15:02)
“Ele estava ali pertinho…viu…”
Testemunha JJ, ouvido no dia 23-11-2021, cujo depoimento se encontra gravado em sistema sonoro de 16:38:39 a
16:47:46.
“Foi aí dizendo que não se lembra muito bem das palavras, mas eu pedia-lhe para fazer um esforço já que foi assim uma coisa tão, com tanto impacto, para ver se esclarece aqui o Tribunal do seguinte: Quais foram efectivamente as palavras que você diz que ouviu do Sr. AA, para a sua cunhada quando lhe mandou com a pá?”
(06:33-07:31)
“Eu era a pessoa que estava perto dela…Nós chegamos a minha cunhada disse o que estava ali a fazer o AA e para ir para o terreno dele, para o terreno do sobrinho dele e pronto.. e ele disse: “Sai-me mas é tu daqui para fora porque senão termino já aqui que havia de ter feito a um tempo atras…”
“Tem a certeza que ouviu isso?” (07:31-07:48)
“Tenho. E depois ele disse “Avio-te já” E depois tinha a pá e mandou na direcção dela…tinha ali aqueles carvalhos, acertou nos carvalhos…”
“Outra coisa: Diz a senhora que depois aquilo acabou, depois até foram almoçar e tal…Diz a Sra. que o Sr. AA andou o resto do dia a provocar…Aquilo não ficou mais calmo? Voltaram a discutir?”
(08:33-09:01)
“Aquilo que eu assisti eu estou a declarar. Eu e a minha cunhada andávamos da parte de baixo porque aquele terreno, não sei se conhecem o terreno mas o terreno é muito elevado. Que eu visse, discussões, nós andávamos da parte de baixo, é só isto que eu vi….”
Dr. NN:
“Queria que fossem lidas as declarações prestadas pela testemunha na GNR no âmbito do presente processo e apenso, designadamente no dia 9 de Abril de 2019, na qual a testemunha apenas se referiu a uns nomes que terão sido chamados pelo arguido à sua cunhada, nunca ter referido as palavras que agora indica, e inquirição no âmbito deste processo no dia 17 de Junho de 2019, onde também não refere quaisquer palavras e em ambas as duas declarações a testemunha refere que após o episodio da pá as coisas acalmaram e não houve quaisquer
provocações entre a denunciado e denunciante, ou seja denunciante a testemunha CC e denunciado AA. São discrepância claras e atestam a imparcialidade.” Testemunha EE, ouvido no dia 19-01-2022, cujo depoimento se encontra gravado em sistema sonoro de 14:58:52 a 15:04:34.
“E o Sr. AA tinha alguma coisa na mão?” (01:40-01:50)
“Não…não tinha nada..naquela hora não tinha nada…” (04:38-04:48)
“Depois apareceram duas senhoras, trouxeram dois miúdos, e depois de tarde apareceram mais dois miúdos mais crescidos..Eles andaram lá todo o dia…”
“Com essas senhoras aconteceu alguma coisa?” (04:50-05:23)
“Não…aquilo dava bem para ver que andava lá mais gente…porque eles começaram a limpar da parte que diziam que era deles…”
“Quando chegaram lá as Senhoras o Sr. AA dirigiu-se a alguma delas?”~ (06:42)
“Não…”
Dr. DD:
“A Sra. quando chegou com os seus colegas de trabalho, quando chegou levavam as motosserras, deixou-a lá chegar, em baixo onde começaram a chegar?”
(15:06-15:26)
“O Sr. AA? Não tinha lá motosserra daquele lado…Tinhamos as foices, tínhamos cutelas, tínhamos sacholas que tivemos que trazer nós, nem isso tínhamos se não trouxéssemos…”
(16:04-16:25)
“O Sr. AA estava na direcção do tractor, naquela sozinha não estava muito longe...tinha ido ao tractor…”
“O que ele levava na mão?” (16:40-16:46)
“Nada…Eu não o vi com nada…”
“Olhe então a Sra. não sabe dizer aqui ao Tribunal onde o Sr. AA tinha a motosserra e a pá?”
(17:34-18:13)
“A pá? A pá estava ao pé das fogueiras..o material já tínhamos levado tudo…já estava tudo no terreno…”
“E relativamente a essas senhoras, aconteceu alguma coisa?” (27:30-27:35)
“Não…”
Testemunha FF, ouvido no dia 19-01-2022, cujo depoimento se encontra gravado em sistema sonoro de 16:10:28 a 16:53:54.
“Quem tinha a motosserra na mão?” (10:30-10:59)
“O Sr. mais alto…não sei o nome dele…dos que chegaram com os tractores…era uma motosserra das pequenas, um motosserrazito…a cor não reparei…”
(11:09-11:27)
“Vi-o com a motosserra, o peito encostado, peito a peito de frente a frente e o outro Sr. de trás com uma pá, que a pá era nossa com um cabo comprido, e ele pegou na pá que estava lá…que era para puxarmos as fogueiras….”
“E depois como acabou isso?” (11:39-12:10)
“E depois o Sr. AA foi mais para a frente para ao pé de nós e eles pegaram numa motosserra e cortaram os carvalhos todos diziam que aquilo era tudo deles…”
“Com o Sr. AA houve troca de palavras entre as senhoras que chegaram e ele?” (13:39-13:50)
“Não…com ele não…”
Testemunha GG, ouvido no dia 28-02-2022, cujo depoimento se encontra gravado em sistema sonoro de 14:32:38 a 14:45:26.
“Viu chegarem umas senhoras?” (06:50-07:33)
“Vi chegar duas senhoras e duas crianças…foi depois…meia hora, uma hora…não tenho a certeza, foi mais tarde…Elas andaram na mesma, deviam ser os supostos maridos..conforme nós íamos subindo, eles acompanhavam…Eles andavam a cortar…eles até acartavam a lenha para as nossas fogueiras, estavam a limpar a parte deles…quer elas quer eles…”
“Disse que o Sr. AA não tinha nada nas mãos?” (08:20-08:45)
“Nessa altura não…quando eles se aproximaram não tinha nada..que eu visse..Eu fui para lá para trabalhar, nem eu sabia se pertenciam ao casal de velhotes…”
Testemunha HH, ouvido no dia 28-02-2022, cujo depoimento se encontra gravado em sistema sonoro de 14:56:40 a 15:27:25.
(03:44-04:25)
“O confrontou foi o Sr. BB que confrontou o meu cunhado…disse-lhe que o matava e que lhe bebia o sangue…Ouvi sim…eu estava a uns metros..poucinhos…eu disse ao BB para sair de lá para fora que aquilo não era dele que era do meu filho, e ele respondeu-me “Quem não devia estar aqui era você”….Foi assim tal e qual…”
“O Sr. AA respondeu alguma coisa?” (04:34-04:40)
“Não..ficou quieto…”
“Algum deles tinha alguma coisa na mão? O seu cunhado tinha alguma coisa na mão?” (05:51-06:10)
“O Sr. BB tinha uma motosserra onde começou a cortar os carvalhos que o meu cunhado tinha limpo…Na hora tinha a motosserra na mão sim…”
(15:30-16:00)
“O Sr. BB sabia muito bem que esse terreno já tinha sido deliberado aqui no tribunal porque ele tinha-lhe deitado uma mata a baixo…é o mesmo terreno… não tenho dúvidas…”
“E o que comprou? Aqui no tribunal?” (16:01-16:14)
“Não era aquele..era o dele.. era o que eles andavam a limpar…sim senhor…” “Quando chegaram umas senhoras o que o seu cunhado fez à CC?”
(27:06-28:06)
“À CC? À CC não lhe fez nada…Não…O que fez à CC? Não lhe fez nada, ela que o diga…O que vi? Eu não lhe vi fazer nada…Nesse dia 14 só ocorreu isto que eu estou a contar…”
30. As testemunhas da acusação, arroladas pelos próprios assistentes não foram coincidentes, tendo sido tendenciosas e parciais, o que o Tribunal não viu, mas resulta claro e inequívoco da transcrição atrás referida, sendo evidente e grosseiro o erro de apreciação da matéria de facto.
31. Atente-se que o assistente BB refere que a mulher nada lhe disse quanto ao alegadamente sucedido entre si e o arguido mas a testemunha MM diz que o mesmo estava lá e ouviu tudo. O assistente BB refere que o arguido AA estava sozinho no terreno quando resultou amplamente provado que estavam lá todos os trabalhadores desde cedo em trabalhos de limpeza. O assistente BB numa primeira fase refere ter colocado a mão no motosserra para se defender em contra inquirição refere que não colocou a mão no motosserra.
A assistente CC refere que foi para o local apenas com a cunhada JJ (que não tinha levado o filho e o sobrinho) quando em sede de inquérito disse o contrário, o que foi infirmado pelas demais testemunhas inclusive pelo próprio MM (testemunha dos assistentes).
A testemunha MM refere que o arguido teria dito que cortava a cabeça quando instado pela senhora procuradora refere que se calhar era o pescoço e que quem levava uma motosserra era o BB (assistente) quando a versão dos assistentes era de que tem tinha a motosserra era o arguido.
A testemunha JJ viu lidas as suas declarações por estar e referir factos contrários aos que havia lido em sede de inquérito.
A testemunha QQ foi categórica em referir que os assistentes levaram as crianças, contrariamente ao que aqueles haviam dito e que o arguido não tinha nenhuma motosserra nas mãos, o que vem de encontro ao dito pela testemunha MM de que tem levava a motosserra era o próprio assistente BB.
A testemunha FF confirmou que quem tinha o motosserra era o assistente e que quem pegou na pá foi a testemunha MM.
A testemunha GG confirmou a presença das crianças, contrariamente ao referido pelos assistentes, e que o arguido não tinha qualquer motosserra nas mãos, contrariamente à versão dos assistentes. E, a testemunha HH confirmou também que quem tinha a motosserra nas mãos era o assistente BB e que o arguido não dirigiu a palavra à assistente CC nem respondeu ao assistente BB e que a verdade era a referida pelo arguido.
32. A decisão recorrida não se compagina assim com o cumprimento dos princípios mais elementares de defesa do arguido, como a certeza e a segurança jurídica, nem os assistentes nem as testemunhas em seu abono conseguiram imputar ao arguido a prática do referido crime, antes pelo contrário apenas foram consentâneas na defesa da versão do referido arguido – veja-se o alegado em B) já que apesar de imputarem ao arguido as ditas expressões foram consentâneos em referir que tais expressões em nada limitaram os trabalhos já que procederam à limpeza do prédio até ao final do dia
33. O Tribunal recorrido não deu credibilidade às testemunhas indicadas pelo arguido, quando estas, sim, foram consentâneas nos seus depoimentos e não tiveram dúvidas em esclarecer o Tribunal quanto a dois pontos determinantes contrários à versão dos assistentes: Os assistentes levaram as crianças para o local e o arguido AA não tinha qualquer motosserra nas mãos quem a tinha e portanto quem poderia ter praticado qualquer facto era o assistente BB, veja-se que até a própria testemunha MM refere que o seu cunhado trazia a dita motosserra e as demais testemunhas referem que o arguido não tinha qualquer motosserra nas mãos.
34. Pelo que, além do mais deve ser revogada a decisão proferida considerando-se que atentas as incongruências nos depoimentos das testemunhas arroladas pelos assistentes, tendenciosas e parciais, não poderiam ter sido dados como provados e nessa medida serem dados como não provados os factos 3. 4. 5. 6, 7 e 8 da sentença recorrida absolvendo-se assim os arguidos.
35. Da sentença proferida resulta que a condenação do arguido foi assente no depoimento único e exclusivo dos assistentes e das testemunhas por si arroladas que não se percebe terem sido considerados consentâneos quando como acima se alegou foi cada uma para cada lado e até acabaram por dar como parcialmente visível a versão do arguido que o tribunal a quo não acolheu; como negaram os assistentes a presença das crianças quando a testemunha por eles indicada MM o confirmou e as demais arrolada pelo arguido também o confirmaram; como não foi valorado o referido pelas testemunhas que o arguido AA não tinha qualquer motosserra nas mãos quando a testemunha do assistente MM refere que quem levava o motosserra era o próprio assistente?!
36. Os depoimentos daqueles (testemunhas da acusação e ofendidos) titubeantes e falíveis não poderiam ter sido considerados suficientes para convencer o Tribunal (só porque confirmaram o circunstancialismo), ficando o Tribunal apenas com a versão dos assistentes elas próprias falíveis e inconsistentes contrariamente à do arguido e testemunhas por si arroladas.
37. O normal do acontecer, como o Meritíssimo Juiz não considerou, é que as testemunhas indicadas pelo arguido não deixaram de ser credíveis porque não teriam ouvido mas sim por ser encontrarem num patamar superior por isso é normal não terem ouvido a conversa mas estavam capazes de ver que o arguido AA não tinha qualquer motosserra nas mãos e que quem o tinha era o próprio assistente, o que a testemunha MM disse.
38. A sentença proferida não convenceu nem poderia convencer o seu destinatário, pelo simples motivo que foi assente nos depoimentos das testemunhas da acusação (completamente dissonantes reitere-se) e dos assistentes completamente parciais e num depoimento contraditório e marcado por incongruências, portanto todos desprovidos de força probatória.
39. Note-se e ademais, que a primeira pessoa a trazer os factos do dia 4 de Abril a inquérito foi o arguido que, fez queixa crime logo após os factos, quando os assistentes fizeram-no já após seis meses e depois e terem conhecimento de que o arguido havia desistido das suas queixas.
40. E por todas estas razões entende o arguido que a decisão proferida deve ser revogada em última hipótese atento o “principio in dubio pro reo” que deverá estar sempre ao serviço do julgador – caso as circunstâncias do caso o imponham – e que neste caso foi completamente desconsiderado apesar de o caso em apreço o justificar clamorosamente.
41. Ainda que não se considere que a sentença recorrida padece dos vícios supra invocados, sempre se terá de considerar que, a mesma, peca na medida em que é exagerada e desproporcional face às circunstâncias do caso concreto.
42. Ora, sopesados todos os factos, entende o recorrente que a ser condenado, o que se não aceita, mas se coloca como possibilidade para efeitos de raciocínio, a pena e o montante indemnizatório é injusto e desproporcional.
43. A pena concretamente aplicada ao arguido viola assim os ditames da razoabilidade e proporcionalidade na escolha da medida concreta da pena já que não foi especialmente atenuada, nos termos do disposto nos artºs 72º e 73º do Código Penal.
44. Atendendo às circunstâncias concretas do caso em apreço, e caso não procedam os demais vícios alegados, bem como, a absolvição por falta de prova do cometimento dos crimes revela-se inteiramente proporcional, adequado e justo cominar o arguido/recorrentes em pena concreta não superior ao mínimo legal e ausência de condenação em pedido de indemnização ou fixar os seus limites próximo dos 0 euros.
45. Finalmente, ocorre que e quanto ao pedido de indemnização cível, que o mesmo não poderia ser considerado, uma vez que, houve desistência do mesmo.
46. De facto, como resulta do processo, os assistentes desistiram das suas queixas, de todas elas e em relação a todos os factos e crimes que imputavam ao arguido.
47. Logo, esta desistência de queixa só foi considerada inoperante face à natureza pública do crime de coacção e quanto a este, portanto, apenas em relação a este.
48. Porém, a desistência da queixa implica a imediata desistência do pedido cível, alias, tal é consequência necessária e imediata da declaração de desistência da queixa.
49. Tendo os assistentes desistido da sua queixa e face ao princípio da obrigatoriedade da adesão cível no processo penal, temos que, desistindo os assistentes da queixa, naturalmente que também desistiram dos seus pedidos de indemnização.
50. Esta intenção e declaração que foi expressa e mantém-se, pese embora a inoperância em relação ao crime de coacção (e, mesmo que tácita, convenhamos), tem de ser valorada, devendo por via da mesma declarar-se extinta a instância cível por desistência do pedido.
51. A sentença recorrida não convence e deve assim ser revogada.
*
NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito e de Justiça e com o sempre Mui Douto Suprimento de Vªs Exªs, deverá conceder-se integral provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, reformulando-a nos termos supra sugeridos».

            3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que o recurso não merece provimento, defendendo o sentenciado em 1ª instância.

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta defendeu a improcedência do recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante, CPP), foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso

Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113].
Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso.
Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.
Mas também é grave quando o recorrente apresenta fundamentação nas conclusões que não tratou de modo nenhum na motivação.
Estas conclusões (deduzidas por artigos, nas palavras da lei) não devem trazer nada de novo; os fundamentos têm de estar no corpo motivador e são aqueles e só aqueles que são resumidos nas conclusões.
Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, são estas as questões a decidir por este Tribunal:
1.  A legitimidade do Ministério Público para a promoção dos autos (caracterizada como «nulidade» pela defesa) – a questão da extemporaneidade da queixa;
2.  Nulidades de sentença;
3.  Vícios do artigo 410º, n.º 2 do CPP;
4.  Erro de julgamento (factos 3 a 8);
5.  Violação do princípio constitucional do «in dubio por reo»;
6.  Qualificação jurídica dos factos;
7.  Medida da pena aplicada ao arguido.

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA

            2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição):

«1. No dia 14 de abril de 2018, pelas 08h00, no prédio rústico, sito ao RR, freguesia ..., em ..., o arguido encontrava-se a efetuar serviços de limpeza.
2. Quando chegou o assistente BB, este apercebeu-se que o arguido estava no seu terreno e disse-lhe para ir limpar o terreno do seu sobrinho.
3. Sem que nada fizesse prever, o arguido, munido de uma motosserra, aproximou a lâmina junto ao pescoço do assistente BB e disse-lhe “sai daqui senão corto-te o pescoço”.
4. Após, o arguido continuou a limpar o prédio, propriedade do assistente.
5. Nas mesmas circunstâncias de local, mas um pouco mais tarde, por volta das 10h00, do referido dia, a assistente CC também ali se deslocou.
6. Ao ver o arguido a limpar o terreno, nomeadamente a cortar o mato, propriedade do seu marido, dirigiu-se àquele e disse-lhe para ir limpar o terreno do sobrinho e deixasse o prédio dos outros.
7. Aí, o arguido atirou à assistente CC uma pá, que só não lhe acertou por motivos alheios ao arguido, ao mesmo tempo que lhe dizia “sai daqui se não termino o que devia ter feito dias, desta vez avio-te com a ”.
8. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito não conseguido, por motivos alheios à sua vontade de, ao proferir tais palavras, conseguir que os assistentes saíssem daquele terreno, utilizando uma expressão que pretendia limitá-los na sua liberdade de determinação pessoal.
9. O arguido sabia que a sua conduta era punida e proibida por lei criminal.
(…)
10. As palavras proferidas pelo arguido/demandado e o comportamento por si adotado, nos termos descritos nos factos provados 3 e 7, provocaram nos assistentes/demandantes receio pela integridade física e pela vida e vergonha.
Mais se provou, quanto às condições pessoais dos arguidos:
11. O arguido é reformado, auferindo, mensalmente, uma pensão de reforma de € 430.00.
12. Vive em casa própria, com a esposa e cunhada.
13. Completou o 9.º ano de escolaridade básico.
14. Não são conhecidos quaisquer antecedentes criminais ao arguido».

2.2. Como FACTO NÃO PROVADO elencou o seguinte:

«1. O arguido, munido de uma motosserra, encostou a lâmina ao pescoço do assistente BB.
Para além dos factos descritos, não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a boa decisão da causa, nem foram tidos em consideração as meras alegações, factos inócuos ou irrelevantes».


2.3. Motivou-se a matéria dada como provada e não provada da seguinte forma (transcrição):

«A factualidade dada como provada fundamenta-se numa apreciação lógica, crítica e moderada pelo princípio da imediação e da oralidade, de todos os elementos probatórios, essencialmente, das declarações prestadas pelo arguido e pelos assistentes, conjugadas com os testemunhos de II (cunhado do assistente), JJ (irmã do assistente), EE, FF, SS (GNR), GG, TT, UU, HH, autos de notícia/relatório final (de fls. 31-34 e 292), teor do certificado de registo criminal (refª 88734090), tudo conjugado e livremente apreciado, de acordo com as regras da experiência comum e do normal acontecer, enquanto raciocínios, juízos hipotéticos de conteúdo genérico, assentes na experiência comum, independentes dos casos individuais em que se alicerçam, com validade, muitas vezes, para além do caso a que respeitem, adquiridas, em parte, mediante observação do mundo exterior e da conduta humana, e, noutra parte, mediante investigação ou exercício científico de uma profissão ou indústria, permitindo fundar as presunções naturais, mas sem abdicar da explicitação de um processo cognitivo, lógico, sem espaços ocos e vazios, conduzindo à extração de facto desconhecido do facto conhecido, porque conformes à realidade reiterada, de verificação muito frequente e, por isso, verosímil (…) .
Quanto ao circunstancialismo espácio-temporal do facto provado n.º 2, e quanto às pessoas aí presentes, foi este confirmado, não só pelo teor do auto de notícia e relatório final, como também pelas declarações do arguido e dos assistentes e, ainda, pelos testemunhos ouvidos.
No que respeita à dinâmica do sucedido o Tribunal formou a sua convicção a partir das declarações dos assistentes, que se mostraram seguros, escorreitos e, nessa medida, credíveis, mas, sobretudo amparados pelos testemunhos de II e JJ, que, apesar da proximidade de parentesco (cunhado e irmã do assistente), revelaram uma versão similar, unívoca e, assim, credível. Com efeito, a versão evidenciada por estes traduziu uma relação de conflito vivida, à altura dos factos, entre os assistentes e o arguido, tendo como elemento essencial a disputa sobre a titularidade de um terreno – no caso, um daqueles em que as partes se encontraram a trabalhar (limpeza de terreno) no dia em causa, em 14.04.2018; e que foi esse conflito que motivou o confronto entre os assistentes e o arguido (de resto, admitido por todos, embora tendo os assistentes e o arguido divergido quanto à dinâmica), no referido dia, primeiro pelas 08h – entre o assistente e o arguido – e depois, pelas 10h – entre a assistente e o arguido –, através do qual o arguido forçou a saída dos assistentes do local, munido, no primeiro evento, de uma pequena motosserra, que utilizou para aproximar do pescoço do assistente – em rigor, afirmou o assistente que a motosserra foi aproximada do pescoço, mas não encostada –, enquanto dirigira a este a expressão “sai daqui senão corto-te o pescoço”, e no segundo evento, munido de uma pá, que utilizou para atirar em direção à assistente, enquanto lhe dirigia a expressão “sai daqui senão termino o que devia ter feito dias, desta vez avio-te com a ”, embora os assistentes não tenham abandonado o local, permanecendo aí, mas longe do arguido, a realizar tarefas de limpeza. Como se referiu, estas realidades foram confirmadas de forma essencialmente unívoca pelos assistentes e pelas testemunhas II – este encontrava-se junto dos assistentes em ambos os eventos, tendo assistido ou ouvido tudo – e JJ – que se encontrava junta da assistente no segundo evento, ao qual assistiu e ouviu tudo, tendo, de resto, chegado ao local acompanhado desta última – sendo que, como se confirmou dos demais testemunhos – e, com relevo, das próprias declarações do arguido – havia no local uma pequena motosserra (do arguido) e, ainda, uma pá (também do arguido), que, aliás, se encontraria pousada no chão, junto dos intervenientes do primeiro evento.
Porém, contra esta versão (dos assistentes) ergueu-se uma outra, sustentada pelo arguido, através da qual apenas confirmou o primeiro confronto (pelas 08h), sendo que terá sido o assistente que, querendo que aquele abandonasse o terreno, munido de uma pequena motosserra, a encostou ao seu pescoço e disse “eu mato-te; bebo-te o sangue todo”, não tendo o arguido dito alguma coisa e reagido de qualquer modo; e quanto ao segundo confronto, o arguido negou a sua existência, embora tivesse admitido a chegada da assistente ao local, a meio dessa manhã. Ora, importa referir que esta versão poderia ter resultado tão verosímil como a versão dos assistentes, não tivessem as testemunhas apresentadas pelo arguido, sobretudo aquelas que alegadamente teriam estado próximas das pessoas envolvidas, nos momentos em que os factos teriam ocorrido, apresentado versões contraditórias entre si. Com efeito, as únicas pessoas (testemunhas arroladas pelo arguido), além do arguido que alegaram ter visto o confronto com o assistente BB e ouvido parte das expressões proferidas por este último, foram as testemunhas FF e EE. Todavia, aquele primeiro apenas afirmou que o assistente e o VV chegaram ao local e dirigiram-se ao arguido, tendo o primeiro ameaçado este dizendo, por diversas vezes, “que lhe partia as patas”, e que se colocaram “peito a peito”, tendo o assistente dito algo mais junto do ouvido do arguido, mas que não conseguiu ouvir o quê; e, quanto ao segundo evento, apenas referiu que nada viu. Ora, a testemunha HH disse algo muito diferente, pois que afirmou que o assistente, acompanhado de VV, confrontou o arguido com uma motosserra apontada ao pescoço deste último e dizendo “eu mato-te e bebo-te o sangue”, ou seja, replicou a versão do arguido, mas que o arguido nada disse ou fez; e quanto ao segundo evento, negou a sua existência. Como se vê, resulta manifesta a contradição entre estes testemunhos, sobressaindo uma séria e relevante dúvida: se ambos estavam muito próximos (como os mesmos asseguraram) dos intervenientes (em relação ao primeiro evento), ao ponto de conseguirem ouvir as expressões proferidas e ver os atos praticados, como é possível terem assistido a uma realidade tão distinta? Aliás, a testemunha FF nem referiu a utilização de qualquer motosserra por parte do assistente, como sustentou o arguido; como afirmou não ter ouvido a expressão ouvida pela testemunha HH. É certo que esta expressão poderá ter sido dita “junto ao ouvido do arguido” – nos termos desenhados pelo FF –, mas se assim foi, então como poderia aquela ter ouvido? Além de que, mais nenhuma das testemunhas ouvidas (por parte do arguido) esclareceu, de forma inequívoca, esse evento. Em rigor, a testemunha GG (trabalhadora contratada pela HH para limpar o terreno no dia dos factos), que afirmou ter estado próxima do local (num plano superior aquele em que se encontravam o arguido e o assistente), apenas afirmou ter apercebido que os mesmos se confrontaram (sem qualquer motosserra ou qualquer outro instrumento/ferramenta, que conseguisse ter visto, pois só olhou uma vez e continuou a trabalhar), mas que nada conseguiu ouvir; de igual modo, a testemunha EE (trabalhadora contratada pela HH para limpar o terreno no dia dos factos) afirmou ter constatado o confronto em causa, mas nem se apercebeu muito bem do que se estaria a passar, nada tendo ouvido, nem visto, com relevo (e, assim, não viu qualquer gesto com motosserras). Ou seja, os testemunhos do arguido não só não apresentaram uma ilustração mais ou menos rigorosa do sucedido, como, de resto, aqueles que alegadamente assistiram e ouviram tudo de perto, acabaram por se contradizer de forma muito relevante, afastando, de forma irreversível, qualquer possibilidade de sustentação da versão do arguido, pois se aqueles que a tudo terão assistido de perto não conseguiram traduzir, de forma unívoca, o sucedido, então aqueles (como no caso, WW e EE) que estariam mais afastados e que apenas viram fugazmente o sucedido, até porque nem conheciam os intervenientes, certamente também não o conseguiram.
E, no que respeita ao segundo evento (ocorrido nesse dia, pelas 10h), estes testemunhos apenas afirmaram e reforçaram não terem assistido a nada entre o arguido e a assistente XX; porém, os mesmos confirmaram que tal confronto poderia ter ocorrido, até porque estavam a trabalhar na limpeza de terrenos, com exceção da testemunha FF, que assumiu ter estado sempre junto do arguido. Ora, se bem se notar, resulta normal admitir a possibilidade de ocorrência do confronto – ouvidos os testemunhos foi possível compreender que, na altura desse facto, havia a relação de conflito latente entre o arguido e a assistente, havia a situação de o arguido poder estar alegadamente em terreno dos assistentes e havia a pá (do arguido) no local, bem como carvalhos, acrescendo o facto de a GNR se ter deslocado ao local, no dia dos eventos (de fls. 31-34 e 292) – sendo que as pessoas contratadas para proceder à limpeza dos terrenos estariam previsivelmente dispersas, a realizar diversas e distintas tarefas (cortar arbustos, vegetação, apanhar lixo, preparar fogueira, etc.), ou seja, não andariam sempre e a todo o tempo (como pretendeu sustentar a testemunha FF) juntas a alguém, para todo o lado. E, nessa medida, perante as versões ouvidas pela assistente e pelas testemunhas II e JJ, acabou por se conhecer, de forma que se credibilizou – pois que era possível de ter sucedido, assim mostrando-se verosímil –, que após a assistente ter chegado ao local, pelas 10h, confrontou o arguido para deixar de limpar o terreno que era reclamou ser seu, ao que este, munido de uma pá, a atirou em sua direção (embora tivesse embatido num carvalho) enquanto dizia “sai daqui senão termino o que devia ter feito dias, desta vez avio-te com a ” (importa esclarecer que o facto de não ter sido devidamente esclarecida a eventual chegada e/ou presença de crianças, com a assistente, à altura desses factos, em nada abala a versão colhida e credibilizada, até porque nada conflituam com os factos imputados ao arguido).
Quanto aos testemunhos de SS, TT (testemunha abonatória) e UU (testemunha abonatória), não se atribuiu qualquer relevo probatório, pois a nada assistiram.
Concluindo-se, então, que, a realidade factual atrás descrita e credibilizada a partir das declarações dos assistentes e dos testemunhos de II e JJ, por se mostrarem mais conforme às regras da experiência comum e do normal acontecer, foi aquela que convenceu, em definitivo, o Tribunal, de ter ocorrido nos termos alegados, tendo daí resultado os factos provados n.ºs 1 a 7, não tendo sido esclarecido a quem pertencia o terreno que motivou o confronto.
Relativamente aos factos provados n.ºs 8 e 9, os mesmos inferem-se dos demais factos provados, assinalando-se, por parte do arguido, duas condutas intencionalmente praticadas, sendo que, quanto à respetiva consciência da ilicitude levada à matéria de facto, dir-se-á que, a mesma consiste numa consciência (numa perceção) ainda que genérica e difusa, de que a conduta é ilícita, por contrária à Ordem Jurídica, não sendo exigível – o que é unânime na Jurisprudência e na Doutrina – que o agente tenha um conhecimento exato e preciso das normas incriminadoras. Trata-se, assim, de um facto não suscetível de prova direta (é um facto imaterial, respeitante à mente ou ao intelecto), o que se aplica, no presente caso, ao arguido.
Quanto aos factos provados n.ºs 13 (condições socioeconómicas), o Tribunal relevou as declarações prestadas pelos arguidos, que se mostraram credíveis, não tendo sido infirmadas por qualquer outro meio de prova.
O facto provado n.º 14 resulta do teor dos respetivos certificados de registo criminal (refª 88734090)».


3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. DAS NULIDADES

3.1.1. Alega a defesa que deve ser declarado extinto o procedimento criminal contra o arguido devido ao facto de a queixa dos autos ter sido apresentada fora do prazo dos seis meses a que alude o artigo 115º, n.º 1 do Código Penal, doravante, CP).
É verdade que a queixa apresentada subsumiu os factos imputados ao arguido a crimes de natureza particular e semi-pública (injúrias e ameaças).
É verdade que a queixa foi apresentada um dia depois dos seis meses a que alude o artigo 115º, n.º 1 do CP.
É verdade que existe uma desistência de queixa do assistente BB a fls 181.
Mas também o é que o MP deduziu acusação pública, incriminando-o por delitos de natureza pública (o crime de coacção é crime público, ao contrário do crime de ameaça, não estando nós perante a situação do n.º 4 do artigo 154º do CP).
Se assim é, o que vincula os autos é a incriminação avançada pelo MP, titular da acção penal, reiterada depois na pronúncia do JIC, não estando o tribunal obrigado a seguir, como parece óbvio, a incriminação avançada numa queixa criminal, quantas vezes até subscrita por particulares e não por profissionais do foro.
Portanto, a queixa aqui é irrelevante, como o é a desistência de queixa apresentada nos autos, como bem decidiu o tribunal recorrido em questão prévia no seu sentenciado.
O que só pode ser por nós confirmado.
Tanto basta para fazer improceder esta pretensa nulidade.

3.1.2. Insinua o recorrente a existência de uma nulidade de sentença pelo facto de se ter dado erradamente como preenchido o tipo legal do crime de coacção do artigo 154º do CP.
Como é de elementar clareza, esta questão convoca uma possível errada qualificação jurídica dos factos provados e nunca uma nulidade, assente o elenco taxativo das nulidades no nosso CPP (cfr. artigo 118º, n.º 1).
Assim sendo, relegaremos a abordagem desta questão para o local adequado neste aresto – o segmento da decisão sobre a matéria de DIREITO.

3.1.3. Insinua ainda o recorrente a existência de uma nulidade de sentença pelo facto de existir uma contradição entre a factualidade dada como provada e a fundamentação inserta na decisão recorrida.
Esta questão não consubstancia qualquer nulidade de sentença mas apenas um possível vício do artigo 410º, n.º 2, alínea b) do CPP:
E se assim é, remeteremos a questão para o segmento seguinte do nosso acórdão.

3.2. IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

3.2.1. Vem o arguido impugnar a matéria de facto dada como provada.
O recorrente impugna a MATÉRIA DE FACTO dada como provada, tendo sido cumprido – mesmo que deficientemente quanto à formulação das conclusões - o determinado nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do CPP.
Não nos ancoraremos em argumentos formais e ouviremos a prova gravada quanto ao RECURSO.

3.2.2. É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto sob dois prismas:
· o  da impugnação alargada, se tiver sido suscitada (O NOSSO CASO);
· e dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do C.P.Penal.
Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.
Comecemos pela que primeiro[1] deve ser analisada pois a sua procedência pode levar ao reenvio do processo para a 1ª instância, ao abrigo do artigo 426º do CPP, se este tribunal não tiver condições para decidir a causa.

3.2.3. Na realidade, estabelece o artigo 410º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
1. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
2. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
3. Erro notório na apreciação da prova.
            Tais vícios implicarão para o tribunal de recurso o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426.º do CPP.
Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
De facto, pressuposto comum à verificação de tais vícios é que os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – n.º 2 do artigo 410.º do CPP.
Ao determinar-se que tais vícios sejam cognoscíveis com base no texto da decisão, adoptou-se uma solução de recurso-remédio e não de reexame da causa.
Este último, numa tese inicialmente defendida, permitiria uma maior amplitude do recurso, pela também possibilidade de análise da prova registada, mas uma tal solução poria em causa o princípio da imediação com que havia sido apreciada a prova na primeira instância, princípio cujo cumprimento seria de muito difícil alcance pelo tribunal de recurso.
Daí a solução intermédia, chamada de revista alargada.
Tal sindicância não deixa de ser, em bom rigor, uma actividade puramente jurídica, pois basear-se-á apenas no texto da decisão recorrida e não em qualquer prova que exista fora dele, seja ela documental ou outra.

3.2.4. Quais os vícios previstos no artigo 410º, n.º 2 do CPP?
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito[2].
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão[3].
Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cfr. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).
O vício de erro notório ocorre, não só quando um erro é evidente, crasso, escancarado à luz dos olhos do cidadão comum, mas também à luz da análise feita por um tribunal de recurso ou de um jurista minimamente preparado, de molde a considerar-se, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada.
Segundo os Juízes Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, tal erro ocorrerá "quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”.
Consideram os mesmos autores que “existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos. Mas, quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro"[4].
Os conceitos podem confundir-se à primeira vista mas têm palco próprio e distinto entre si.
O erro de julgamento, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova ocorrem respectivamente quando:
a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado;
b)- os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz - artº 410º nº 2 a) CPP;
c)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida (cfr. Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740) ou quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.

3.2.5. Há na sentença recorrida algum vício do artigo 410º/2 do CPP?
O arguido invoca o aludido no n.º 2, alínea b), chamando-lhe, de forma inadequada, uma nulidade.
Sem qualquer razão.
O facto dado como provado sob o n.º 8 tem a seguinte redacção:
«8. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito não conseguido, por motivos alheios à sua vontade de, ao proferir tais palavras, conseguir que os assistentes saíssem daquele terreno, utilizando uma expressão que pretendia limitá-los na sua liberdade de determinação pessoal».

Este facto alude ao dolo directo do arguido e à sua real intenção – o de fazer os assistentes abandonar o terreno onde estavam.
Contudo, o tribunal não deu como provada a consumação dos delitos de coacção, entendendo que foram cometidos tais delitos sob a forma de tentativa (daí o «propósito não conseguido»).
Não se vislumbra, pois, qualquer contradição – o tribunal entendeu que o arguido cometeu dois crimes de coacção, na forma tentada, e explicou na fundamentação que, de facto, os assistentes, não obstante as frases proferidas pelo arguido, não abandonaram o terreno, aí permanecendo, não ocorrendo, assim, qualquer consumação dos delitos em causa mas apenas a tentativa deles.
*
Detectamos nós, contudo, um vício do artigo 410º, n.º 2, alínea a) – insuficiência para a decisão a matéria de facto provada.
Na verdade, o facto 8 apenas se refere ao elemento subjectivo dos delitos em causa.
Para o tribunal, o arguido cometeu dois crimes de coacção, na forma tentada – ora, a tentativa é apenas retirada desse facto 8, o que nos parece pouco.
Exigiria a boa técnica processual que a acusação – e a sentença - tivesse descrito em factos essa tentativa, ou seja, a circunstância de os assistentes não terem abandonado o terreno, não obstante as frases proferidas pelo arguido.
Assim sendo, é insuficiente para a decisão de condenação em dois crimes de coacção na forma tentada o aludido no facto 8, carecendo os autos de uma explicitação mais concretizada, na factualidade, do estádio de tentativa do comportamento do arguido, não configurando este aditamento qualquer alteração não substancial de factos que justifique a comunicação que alude o artigo 358º, n.º 1 do CPP[5].
Na verdade, a nosso ver, a alteração pontual introduzida agora por nós mais não é do que reafirmação ou a ilação explícita de factos que sinteticamente já se encontravam narrados na acusação e na pronúncia, embora só no segmento atinente ao elemento subjectivo do tipo de crime (facto 8), não carecendo, pois, de fazer funcionar a comunicação a que alude o n.º 1 do artigo 358º do CPP.
Este vício é facilmente por nós suprido, após audição dos testemunhos de todos os intervenientes em julgamento, não havendo necessidade de lançar mão do artigo 426º do CPP.
Pelo exposto, acrescentamos ao rol de factos provados o seguinte:
«Facto 7.A – Os assistentes não abandonaram o terreno em causa, continuando aí a laborar, embora noutro local mais longe do arguido».

Inexistindo mais vícios do artigo 410º, n.º 2, resta-nos decidir se ocorreu algum erro de julgamento.

3.2.6. Vejamos se existiu então algum erro de julgamento.
Este erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 do CPP - ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Como bem acentua o Juiz Desembargador Jorge Gonçalves nos seus acórdãos, quer em Coimbra, quer em Lisboa, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, cfr. os Acórdãos do STJ, de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www.dgsi.pt)».
E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, já aqui aludida, prevista no artigo 412.º, n.º 3, do CPP.
A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Nos termos do artº 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito, podendo modificar a decisão de facto quando a decisão tiver sido impugnada nos termos do artº 412º, nº 3 do mesmo diploma – tal não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas apenas um remédio jurídico votado a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicados pelo recorrente.
Já o deixámos escrito - o recurso, no que tange ao conhecimento da questão de facto, não é um segundo julgamento, em que a Relação, agora com base na audição de gravações, e anteriormente com base na leitura de transcrições, reaprecie a totalidade da prova.
E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.
           
3.2.7. Falemos de PROVA e de CONVICÇÃO.
O artigo 127.º do CPP consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.
Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios:
os dos artigos 124º, 125º e 126º do CPP (princípio geral da legalidade das provas);
A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável;
Não se procura uma verdade ontológica e absoluta mas apenas a verdade judicial e prática – não pode ser uma verdade obtida a qualquer preço mas apenas a que assenta em meios de prova que sejam legais;
A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhes a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso;
Não satisfaz a exigência de fundamentação da decisão sobre Matéria de Facto a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, importando fazer a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos que dos meios de prova relevaram ou que obtiveram credibilidade no espírito do julgador – não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto;
De acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, aprecia livremente a prova e não está inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária[6] ou indirecta;
Como é evidente, e socorrendo-me das palavras sábias do STJ – [cfr. Ac. STJ de 15/6/2000, in CJ(S), 2º/228, sobre a questão da livre convicção], «tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjectivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos».
A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência e, sobretudo, pela dimensão ética do acto de julgar.
Convém nesse jaez lembrar o que exemplarmente escreve Hermengarda do Valle-Frias, no artigo «A motivação ética da decisão judiciária - o (re)encontro entre o direito e a justiça», publicado na Revista do CEJ n.º 2016-II:
«A motivação da decisão judicial, sobretudo fundamental no processo penal, firmada sobre os princípios da independência do juiz e livre convicção, constitui a legitimação do judiciário em sentido próprio – o juiz recebe os factos, analisa-os, valora-os de acordo com cada um dos instrumentos de que dispôs (meios de prova) e subsume-os ao direito.
Apreciação da prova e a valoração da prova, no entanto, não se equivalem.
A primeira, implica a actividade intelectual de escrutínio e validação dos pressupostos, conteúdos e resultado combinado dos meios de obtenção de prova; a segunda, implica a actividade intelectual de determinar o valor concreto de cada meio de prova, do conjunto da prova e das suas consequências em termos de convencerem, ou não, sobre a culpabilidade do arguido.
Num sistema de prova assente na livre convicção, a motivação constitui a persuasão racional do julgador no convencimento da culpabilidade, ou não, do arguido ou, quando da prova se extraia a necessidade de aplicar o princípio da presunção de inocência, a argumentação essencial à justificação dessa aplicação.
Para conseguir persuadir os destinatários da justeza da sua decisão, o juiz envolve-se num processo técnico de aplicação de conhecimentos jurídicos, não podendo descartar-se dos sentidos humano e social que resultam da sua própria formação pessoal, da forma como aceita os comportamentos humanos no contexto social em que se integra e na forma como se auto-impõe os limites decorrentes da sua própria condição profissional. Querendo com isto dizer-se que, em última instância, deve procurar superar-se a si mesmo para atingir a máxima perfeição de que é capaz enquanto decide, aí sim, não em seu nome, mas em nome da Sociedade e do bem social que constitui, em última instância, o limite dos seus próprios poderes decisórios.
Este, que não é um circuito fechado em rotação constante sobre si mesmo, tem de ser um percurso com uma dinâmica evolutiva.
O juiz é e deve ser um homem do seu tempo, atento aos humores sociais, culturais, políticos e económicos, porque é neste conjunto que se justifica o fundamento do acto decisório. Aplicando a lei ou criando a norma (com a devida ressalva do direito penal substantivo), o decisor está sempre vinculado ao compromisso ético inerente à sua função.
Decidir, nesta perspectiva, é determinar a forma de resolução de um litígio com vista a atingir a pacificação social, a reposição do tempo do homem no tempo social de que se destacou. Ao condenar no processo penal, a decisão restaura tendencialmente a ordem comportamental que é assegurada pela Lei em cada momento histórico, implicando isto entender a sanção como censura social, mas também como investimento no Futuro.
Por isso, a pena tem também um fundamento ético importante – vincular o infractor às responsabilidades inerentes à quebra dos laços afectivos com o todo social e, ao mesmo tempo, vincular a sociedade à responsabilidade de recuperação do infractor para que volte a integrar-se nela. Ou, melhor, para que não chegue a desintegrar-se dela.
Cabe ao juiz, pois, garantir o equilíbrio entre estes dois interesses. E esse desiderato, consegue-o através de uma motivação tecnicamente adequada, humanamente ponderada e culturalmente aceitável».

3.2.8. Vejamos, então, se houve ou não erro de julgamento nestes autos.
Invoca o recorrente que foi erroneamente dada como provada a factualidade constante dos factos 3 a 8.
Há duas versões sobre os dois eventos dos autos (um em que o alvo da coacção foi o assistente BB e outro em que foi alvo a sua mulher, assistente CC):
· A da acusação, da pronúncia e do tribunal de julgamento (mais crentes na versão apresentada pelos assistentes BB e CC, corroborada pelos testemunhos de II e JJ, respectivamente, cunhado e irmã do assistente BB);
· A do arguido, mais crente na versão segundo a qual foi ele o ameaçado, apoiado que está, de alguma forma, nos depoimentos de FF e HH.
Ouvidos os depoimentos gravados do arguido, dos assistentes e das testemunhas visadas no recurso, chegamos à mesma conclusão a que chegou o tribunal recorrido, não tendo este tribunal de recurso razões suficientes para infirmar o juízo de convicção criado pelo Juiz de ..., o qual teve uma imediação com a prova que nós nunca chegaremos a ter.
Na sua alegação de recurso, o arguido opina acerca de contradições existentes nos depoimentos que seguem a tese acusatória e da pronúncia:
· “O assistente BB refere que a mulher nada lhe disse quanto ao alegadamente sucedido entre si e o arguido, mas a testemunha MM diz que, a mesma estava lá e ouviu tudo” – ora, alguém ter assistido a algo não significa que se tenha confidenciado ao marido o que se passou, justificando este tal atitude da mulher «por causa de não haver mais problemas»;
· O assistente BB refere que o arguido AA estava sozinho no terreno, quando resultou amplamente provado que estavam lá todos os trabalhadores, desde cedo, em trabalhos de limpeza” – o assistente diz, de facto, que na zona onde estava o arguido não havia mais ninguém mas que havia mais gente a limpar a parte superior do monte, não se descortinando que, ao dizer isto, estivesse ele a mentir e a tornar o seu depoimento menos convincente;
·  “O assistente BB numa primeira fase refere ter colocado a mão na motosserra para se defender, em contra inquirição, refere que não colocou a mão no motosserra” – são pormenores sem qualquer relevância (já que o arguido não está a ser acusado de um crime contra a integridade física), assente que da audição que se fez do seu depoimento retiramos que o assistente, para se defender da motoserra que estava parada, levou a mão à mão do arguido que empunhava a dita máquina;
· “A assistente CC refere que foi para o local apenas com a cunhada JJ (que não tinha levado o filho e o sobrinho) quando em sede de inquérito disse o contrário, o que foi infirmado pelas demais testemunhas, inclusive pelo próprio MM (testemunha dos assistentes)” – saber se havia por ali crianças é irrelevante, sendo mais do que normal que, 3 anos após a eclosão dos factos narrados nos autos, as memórias das testemunhas sejam mais falíveis e menos frescas, adiantando nós que esse pormenor não é de molde a turbar a convicção que foi criada pela audição do testemunho vivo e sofrido, logo convincente, da dita assistente;
· A testemunha MM refere que o arguido teria dito que cortava a cabeça, quando instado pela senhora procuradora, refere que se calhar era o pescoço e que quem levava uma motosserra era o BB (assistente) quando a versão dos assistentes era de que quem tinha a motosserra era o arguido” – já se percebeu que haveria por ali mais do que uma motosserra, uma do arguido e outra do assistente, o que é normal face ao teor do trabalho agrícola que ali se fazia, adiantando-se ainda que ficámos convencido de que o arguido empunhou, de facto, a motoserra na direcção do pescoço do assistente, não nos merecendo descrédito o testemunho de II pelo facto de, em vez de «pescoço» ter referido que teria antes ouvido «cabeça», tendo ele referido expressamente, a instância do MP, que não tinha muito presente a palavra exacta, admitindo assim que pudesse ter sido «pescoço» como aduz o assistente BB;
· “A testemunha JJ viu lidas as suas declarações por estar e referir factos contrários aos que havia dito em sede de inquérito, confirmando-se as incongruências do seu depoimento” – não nos apercebemos de quaisquer relevantes incongruências, sendo certo que é a própria a dizer que «não se lembra muito bem das palavras», assente ainda que releva para este efeito o que foi dito pela testemunha em audiência e não em anteriores depoimentos nos autos.
Pelo seu lado:
· “A testemunha QQ, foi categórica em referir que os assistentes levaram as crianças, contrariamente ao que aqueles haviam dito e que o arguido não tinha nenhuma motosserra nas mãos, o que vem de encontro ao dito pela testemunha MM, de que, quem levava a motosserra era o próprio assistente BB” – voltamos ao pormenor das crianças que não traz nada de novo aos autos, e somos categóricos em afirmar que não nos convenceu a versão desta testemunha quando afirma que não viu nenhuma motosserra nas mãos do arguido;
· “A testemunha FF confirmou que quem tinha a motosserra era o assistente e, que quem pegou na pá, foi a testemunha MM” – haveria mais do que uma motosserra por ali, não nos merecendo qualquer crédito esta versão, completamente em espelho com a versão da pronúncia, demasiado artificial para parecer verdadeira (colocar os mesmos imputados comportamentos do arguido agora na autoria do assistente é pouco credível);
· “A testemunha GG confirmou a presença das crianças, contrariamente ao referido pelos assistentes, e que o arguido não tinha qualquer motosserra nas mãos, contrariamente à versão dos assistentes” – voltamos às crianças e à pouca credibilidade dada a esta versão;
· “A testemunha HH, confirmou também que quem tinha a motosserra nas mãos era o assistente BB e que o arguido não dirigiu a palavra à assistente CC, nem respondeu ao assistente BB e, que a verdade era a referida pelo arguido” – voltamos ao mesmo pois para se acreditar numa versão tem de não se acreditar na outra (no caso, esta versão do arguido não mereceu credibilidade, tendo o tribunal bem justificado a sua opção).
Note-se que o tribunal descredibiliza a versão do arguido pelo facto de ter detectado flagrantes contradições nos depoimentos das testemunhas FF e EE.
Disserta assim sabiamente o tribunal:
«Ora, importa referir que esta versão poderia ter resultado tão verosímil como a versão dos assistentes, não tivessem as testemunhas apresentadas pelo arguido, sobretudo aquelas que alegadamente teriam estado próximas das pessoas envolvidas, nos momentos em que os factos teriam ocorrido, apresentado versões contraditórias entre si.
Com efeito, as únicas pessoas (testemunhas arroladas pelo arguido), além do arguido que alegaram ter visto o confronto com o assistente BB e ouvido parte das expressões proferidas por este último, foram as testemunhas FF e EE.
Todavia, aquele primeiro apenas afirmou que o assistente e o VV chegaram ao local e dirigiram-se ao arguido, tendo o primeiro ameaçado este dizendo, por diversas vezes, “que lhe partia as patas”, e que se colocaram “peito a peito”, tendo o assistente dito algo mais junto do ouvido do arguido, mas que não conseguiu ouvir o quê; e, quanto ao segundo evento, apenas referiu que nada viu.
Ora, a testemunha HH disse algo muito diferente, pois que afirmou que o assistente, acompanhado de VV, confrontou o arguido com uma motosserra apontada ao pescoço deste último e dizendo “eu mato-te e bebo-te o sangue”, ou seja, replicou a versão do arguido, mas que o arguido nada disse ou fez; e quanto ao segundo evento, negou a sua existência.
Como se vê, resulta manifesta a contradição entre estes testemunhos, sobressaindo uma séria e relevante dúvida: se ambos estavam muito próximos (como os mesmos asseguraram) dos intervenientes (em relação ao primeiro evento), ao ponto de conseguirem ouvir as expressões proferidas e ver os atos praticados, como é possível terem assistido a uma realidade tão distinta?
Aliás, a testemunha FF nem referiu a utilização de qualquer motosserra por parte do assistente, como sustentou o arguido; como afirmou não ter ouvido a expressão ouvida pela testemunha HH. É certo que esta expressão poderá ter sido dita “junto ao ouvido do arguido” – nos termos desenhados pelo FF –, mas se assim foi, então como poderia aquela ter ouvido?
Além de que, mais nenhuma das testemunhas ouvidas (por parte do arguido) esclareceu, de forma inequívoca, esse evento.
Em rigor, a testemunha GG (trabalhadora contratada pela HH para limpar o terreno no dia dos factos), que afirmou ter estado próxima do local (num plano superior aquele em que se encontravam o arguido e o assistente), apenas afirmou ter apercebido que os mesmos se confrontaram (sem qualquer motosserra ou qualquer outro instrumento/ferramenta, que conseguisse ter visto, pois só olhou uma vez e continuou a trabalhar), mas que nada conseguiu ouvir.
De igual modo, a testemunha EE (trabalhadora contratada pela HH para limpar o terreno no dia dos factos) afirmou ter constatado o confronto em causa, mas nem se apercebeu muito bem do que se estaria a passar, nada tendo ouvido, nem visto, com relevo (e, assim, não viu qualquer gesto com motosserras).
Ou seja, os testemunhos do arguido não só não apresentaram uma ilustração mais ou menos rigorosa do sucedido, como, de resto, aqueles que alegadamente assistiram e ouviram tudo de perto, acabaram por se contradizer de forma muito relevante, afastando, de forma irreversível, qualquer possibilidade de sustentação da versão do arguido, pois se aqueles que a tudo terão assistido de perto não conseguiram traduzir, de forma unívoca, o sucedido, então aqueles (como no caso, WW e EE) que estariam mais afastados e que apenas viram fugazmente o sucedido, até porque nem conheciam os intervenientes, certamente também não o conseguiram.
E, no que respeita ao segundo evento (ocorrido nesse dia, pelas 10h), estes testemunhos apenas afirmaram e reforçaram não terem assistido a nada entre o arguido e a assistente XX; porém, os mesmos confirmaram que tal confronto poderia ter ocorrido, até porque estavam a trabalhar na limpeza de terrenos, com exceção da testemunha FF, que assumiu ter estado sempre junto do arguido. Ora, se bem se notar, resulta normal admitir a possibilidade de ocorrência do confronto – ouvidos os testemunhos foi possível compreender que, na altura desse facto, havia a relação de conflito latente entre o arguido e a assistente, havia a situação de o arguido poder estar alegadamente em terreno dos assistentes e havia a pá (do arguido) no local, bem como carvalhos, acrescendo o facto de a GNR se ter deslocado ao local, no dia dos eventos (de fls. 31-34 e 292) – sendo que as pessoas contratadas para proceder à limpeza dos terrenos estariam previsivelmente dispersas, a realizar diversas e distintas tarefas (cortar arbustos, vegetação, apanhar lixo, preparar fogueira, etc.), ou seja, não andariam sempre e a todo o tempo (como pretendeu sustentar a testemunha FF) juntas a alguém, para todo o lado.
E, nessa medida, perante as versões ouvidas pela assistente e pelas testemunhas II e JJ, acabou por se conhecer, de forma que se credibilizou – pois que era possível de ter sucedido, assim mostrando-se verosímil –, que após a assistente ter chegado ao local, pelas 10h, confrontou o arguido para deixar de limpar o terreno que era reclamou ser seu, ao que este, munido de uma pá, a atirou em sua direção (embora tivesse embatido num carvalho) enquanto dizia “sai daqui senão termino o que devia ter feito dias, desta vez avio-te com a ” (importa esclarecer que o facto de não ter sido devidamente esclarecida a eventual chegada e/ou presença de crianças, com a assistente, à altura desses factos, em nada abala a versão colhida e credibilizada, até porque nada conflituam com os factos imputados ao arguido)».

Corroboramos em absoluto esta leitura da prova feita tribunal, ouvidos os depoimentos em causa.
O tribunal explicou-se de forma muito fundamentada, descredibilizando esta versão simplista do arguido.
Ouvidos os depoimentos em audiência, não vislumbramos qualquer dado contrário a esta leitura da prova feita pelo tribunal, tendo o tribunal decidido não acreditar na versão do arguido, apoiado em certas testemunhas de defesa, algumas das quais também seus familiares, o que está no seu direito, como no nosso.
Ora, o tribunal explicou a razão pela qual chegou à culpabilidade do arguido com base em métodos de prova directa, legais e admissíveis legalmente.
Convenhamos que o tribunal está no seu direito de não acreditar na versão de um arguido, como o sabemos.
Aqui não se acreditou na versão do arguido, e explicou-se porquê.
Como já aqui se disse, ouvimos[7] a gravação do depoimento do arguido e da demais prova pessoal produzida (assistentes e testemunhas) – e as provas indicadas no recurso não impõem decisão diversa ou a formação de convicção contrária à que foi criado pelo tribunal recorrido.
O recurso perde-se em afirmações conclusivas sem que, na maioria das vezes, tenha especificado quaisquer provas concretas.
Razão pela qual não há que alterar a matéria de facto quanto aos pontos sindicados no recurso, não se vislumbrado qualquer erro de julgamento.

3.2.9. Uma palavra sobre o princípio do «in dubio pro reo», tido por violado pelo arguido na sentença recorrida.          
No fundo, o que o recorrente pretende, nos termos em que formula a sua impugnação, é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ele próprio entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida.
O recorrente limita-se a divulgar a sua interpretação e valoração pessoal das declarações e depoimentos prestados e da credibilidade que devem merecer uns e outros, exercício que, no entanto, é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido valorou a prova.
Não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo, que fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso -, o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir, eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância, não se procurando encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso.
Decidiu-se, no douto Acórdão da Relação do Porto de 9/9/2009 (Pº 564/07.8PAVCD.P1) o seguinte:
«Acresce que vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois que teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados, já que no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais”, razão pela qual quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum».
Na realidade, ao tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar.
«Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” (Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253).
Portanto, a prova produzida foi coerentemente valorada.
Se há duas versões dos factos (mesmo que uma delas tenha dois veículos), não é uma maioria matemática que faz escolher a versão verdadeira.
O facto de haver duas afirmações opostas, não conduz necessariamente a uma “dúvida inequívoca”, por força do princípio in dubio pro reo.
Não está em causa a igual valoração de declarações ou depoimentos, mas a valoração de cada um dos meios de prova em função da especial credibilidade que mereçam.
As declarações e depoimentos produzidos em audiência são livremente valoráveis pelo tribunal, não tendo outra limitação, em sede de prova, que não seja a credibilidade que mereçam.
Voltamos ao Acórdão de 9/9/2009:
«Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal. Contudo no caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação da sentença, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando clara e coerentemente as razões que fundaram a convicção do tribunal».
Sabemos que o julgador deve manter-se atento à comunicação verbal mas também à comunicação não verbal.
Se a primeira ainda é susceptível de ser escrutinada pelo tribunal de recurso mediante a audição do gravado (e foi o que se fez nesta sede de recurso), fica impossibilitado de aceder à segunda para complementar e interpretar aquela.
Deste modo, quando a opção do julgador se centra em prova oral, o tribunal de recurso só estará em condições de a sindicar se esta for contrária às regras da experiência, da lógica, dos conhecimentos científicos, ou não tiver qualquer suporte directo ou indirecto nas declarações ou depoimentos prestados.
E repetimos: o juiz pode formar a sua convicção com base em apenas um testemunho (ou numa só declaração), desde que se convença que nele reside a verdade do ocorrido.
Não basta que o recorrente diga que determinados factos estão mal julgados.
É necessário constatar-se esse mal julgado face às provas que especifica e a que o julgador injustificadamente retirou credibilidade.
Atente-se que o art.º 412/3 alínea b) do CPP fala em provas que imponham decisão diversa.
Por isso entendemos que a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela, não devendo ser alterada quando perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente.
Ao reapreciar-se a prova por declarações, o tribunal de recurso deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido desde que o seu juízo seja compatível com os critérios de apreciação devidos.
Quer isto significar que não vemos que deva ser alterada a decisão de facto.
Decorre do princípio «in dubio pro reo» que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados.
Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, «será dado como não provado se desfavorável ao arguido, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa».
O princípio só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação dos factos decidir por uma apreciação desfavorável à posição do arguido.
Não ficou o Tribunal ... em estado de dúvida.
E este tribunal de recurso também não, assente que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar - SJ200401070032133).
Por tal razão, não faz sentido fazer aqui valer e funcionar o princípio constitucional in dubio pro reo.

3.2.10. Em CONCLUSÃO, da análise da prova produzida, pela audição dos depoimentos gravados, tudo confrontado com a motivação da decisão de facto, sem esquecer que o recurso é um remédio e não um segundo julgamento, conclui-se que inexistem quaisquer razões para alterar o juízo probatório constante da sentença recorrida, mantendo-se, em consequência, toda a matéria de facto dada como provada e não provada na decisão a quo, com apenas o aditamento do novo facto 7.A.
Como tal, só pode improceder a argumentação deste recurso, em sede factual, tendo-se por assentes, em consequência, todo o acervo factual constante da sentença de ..., apenas com o aditamento do facto 7.A.

3.3. DO DIREITO

3.3.1. Praticou o arguido dois crimes de coacção na forma tentada?
A defesa entende que não pois os assistentes ao não abandonaram o terreno mostraram que tiveram medio das ameaças proferidas pelo arguido.
Vejamos.
O Ministério Público, o JIC e o tribunal da condenação qualificaram os factos como consubstanciando a prática de dois crimes de coacção, na forma tentada, previsto e punido pelo artigo 154º, nºs 1 e 2, do CP, que contém a seguinte redacção:
«1. Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.
3. O facto não é punível:
a) Se a utilização do meio para atingir o fim visado não for censurável; ou
b) Se visar evitar suicídio ou a prática de facto ilícito típico.
4. Se o facto tiver lugar entre cônjuges, ascendentes e descendentes, adoptantes e adoptados, ou entre pessoas, de outro ou do mesmo sexo, que vivam em situação análoga à dos cônjuges, o procedimento criminal depende de queixa».
Não estamos perante o caso dos n.ºs 3 e 4 mas dos n.ºs 1 e 2 (aqui se punindo expressamente a tentativa).
Nos crimes contra a liberdade, nomeadamente nos crimes de ameaça e de coacção, está subjacente uma certa tensão entre o interesse na salvaguarda da liberdade de decisão e de acção e o interesse em não limitar excessivamente a liberdade social de acção de terceiros.
O tipo legal em causa tem como bem jurídico protegido a liberdade de auto determinação e distingue-se da ameaça por o mesmo ter como elemento típico o constranger alguém a uma acção ou omissão, ou seja, o anúncio do mal futuro depende de uma acção ou missão que deverá ser realizada pela vítima ou outrem.
O tipo objectivo de ilícito da coacção consiste em constranger outra pessoa a adoptar um determinado comportamento: praticar uma acção, omitir determinada acção ou suportar uma acção – cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 354.
Quanto à violência, esta pode implicar o emprego da força física, mas também a pressão moral ou intimação, não se exigindo que a intimação ou a força física sejam irresistíveis: basta que tenham potencialidade causal para compelir a pessoa contra quem se empregam à prática do acto ou à omissão ou a suportar a actividade.
Quanto à ameaça com um mal importante, atende-se apenas à actividade social susceptível de causar um mal importante, ou seja, um mal que tenha acentuado relevo, um mal que a comunidade repele e censura pelo dano relevante que pode causar. (Cfr. Código Penal Português - Maia Gonçalves, 1996, anotação ao artigo 154º do Código Penal), entendendo-se também que aqui bastará quer essa ameaça com mal importante tenha a potencialidade de compelir a pessoa contra quem se emprega, mesmo que o sujeito passivo da coacção não tenha afinal cedido às exigências comportamentais do coactor.
Quanto ao elemento subjectivo, exige-se o dolo, em qualquer das suas modalidades previstas no artigo 14° do CP - não é necessário que a acção do agente vise, especificamente, humilhar ou constranger o coagido (dolo específico), bastando que o agente, sejam quais foram as suas motivações, tenha consciência de que a violência que exerce ou a ameaça que faz é susceptível de constranger e com tal se conforme.
O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do homem comum); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das sub-capacidades do ameaçado).
O tipo subjectivo requer o dolo que exige (mas basta-se) com a consciência (representação e conformação) da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado.
No caso vertente, face à factualidade dada como provada, resultam inequívocas as expressões ameaçadoras por parte do arguido dirigidas aos dois assistentes e documentadas nos factos 3 e 7, as quais, no quadro das circunstâncias em que são proferidas, o arguido sabia serem aptas e adequadas a provocar medo nos dois assistentes, seus vizinhos e com quem tinha inúmeros conflitos dominiais, com o propósito de estes abandonaram o terreno onde estavam.
É verdade que os assistentes não se retiraram do terreno em causa pois continuaram por ali a trabalhar, embora longe do arguido – contudo, não deixaram de se sentir receosos relativamente à possível violência do comportamento do arguido (ouça-se o depoimento do BB).
Por tal motivo, não é correcto dizer que não se tenham sentido receosos – tanto se sentiram que foram laborar para locais do terreno mais longínquos relativamente à posição do arguido [poder-se-ia até ter como consumados estes delitos pelo facto de os assistentes não se terem mais aproximado do arguido, a partir daquelas ameaças, entendendo-se o «sai daqui» como sendo «sai de ao pé de mim» (e não propriamente «sai do terreno»), o que eles de facto fizeram].
Para a prática do crime de coacção sob a forma tentada, basta que a conduta do arguido, quer por meio de violência, quer através de ameaça com um mal importante, seja objectivamente capaz de obrigar outrem a praticar um acto, a omiti-lo, ou, ou a suportar uma determinada actividade [artº 22, nºs 1 e 2, al. b) do CP].
Assim:
Encontrando-se imputada ao arguido a prática de dois crimes de coacção na forma tentada, não assiste razão à defesa quanto à alegação de errada qualificação jurídica dos factos já que, para a prática do crime de coacção sob a forma tentada, basta que a conduta do arguido, quer sob a forma de violência, quer sob a forma de ameaça com um mal importante, seja objectivamente capaz de obrigar outrem a praticar um acto, a omiti-lo, ou a suportar uma determinada actividade e já não que efectivamente obrigue.
Na realidade, as condutas adoptadas pelo arguido que foram dadas como provadas pela tribunal a quo, a saber, que “o arguido, munido de uma moto-serra, aproximou a lâmina junto ao pescoço do assistente BB e disse-lhe “sai daqui senão corto-te o pescoço” e atirou à assistente CC uma pá, que só não lhe acertou por motivos alheios ao arguido, ao mesmo tempo que lhe dizia “sai daqui se não termino o que devia ter feito há dias, desta vez avio-te com a pá”, foram, e são, objectivamente aptas a forçar os Assistentes a abandonar o local, o que estes apenas não fizeram por factores externos à vontade do próprio arguido.
As expressões supra transcritas, acompanhadas pelos comportamentos referidos, no contexto descrito, traduzem, inequivocamente, a intenção de provocar medo e receio nos Assistentes, por forma a levá-los a abandonar o terreno em questão.
Resulta claro que as expressões proferidas pelo arguido (“sai daqui senão corto-te o pescoço” e “sai daqui se não termino o que devia ter feito há dias, desta vez avio-te com a pá”), acompanhadas, respectivamente, do empunhamento de uma motosserra junto do pescoço do Assistente e da remessa de uma pá na direcção da Assistente, consubstanciam, uma ameaça de um mal importante, mal esse que se encontrava na dependência da vontade doarguido, e foramporeleproferidas comintenção de intimidar e criar receio por forma a constranger os Assistentes a abandonar o terreno.
Para a consumação deste delito teríamos de ter a adequação da acção (no caso, a ameaça com mal importante), a adopção, por parte do destinatário da coacção, do comportamento conforme à imposição do coactor e a existência de uma relação de efectiva causalidade entre o comportamento do coagido e a acção de coacção.
No nosso caso, o comportamento do arguido preencheu, por duas vezes, os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime ínsito ao n.º 1 do artigo 154º, n.º 1, na forma tentada (na medida em que os destinatários da coacção afinal não abandonaram o terreno em causa, mas por motivos alheiros à vontade do arguido), percebendo-se a razão pela qual o MP e o JIC decidiram não qualificar os delitos por apelo à norma típica do artigo 155º, n.º 1, alínea a) do CP, por falta de elementos fácticos que façam imediato apelo a uma clara intenção homicida do arguido e à circunstância de a motosserra estar parada e não a funcionar.
Vejamos, de seguida, se foi condenado na justa e adequada medida.

3.3.2. SOBRE A MEDIDA DA PENA
A pena aplicada foi a mesma para os dois crimes – a de pena de multa de 90 dias, à taxa diária de € 6.
Em cúmulo, a pena foi a de 140 dias de multa à mesma taxa diária.
Entende o arguido que a pena aplicada foi excessiva, pugnando pela sua redução, embora com uma argumentação muito frágil e incipiente, rodando o enunciativo.
Pergunta-se, então: foi bem doseada a pena de MULTA aplicada ao arguido?
Assim se justificou o tribunal recorrido neste particular:
«No caso vertente, considerando, de forma determinante, que não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido, que se encontra aquele social e familiarmente integrado, pelo que, entende o Tribunal optar pela aplicação de uma pena de multa, por se mostrar adequada e suficiente a cumprir as finalidades da respetiva punição.
      *
Feita a escolha da pena a aplicar, cumpre determinar a medida concreta da mesma, nos termos do disposto nos artigos 40.º e 71.º, n.º 1, do Código Penal, dispondo este último preceito que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.
Acrescendo o disposto no n.º 2, do referido normativo, o qual elenca o conjunto de circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, sirvam para depor a favor do agente ou contra ele.
Como se retira dos normativos convocados, as exigências de prevenção geral são, então, neste plano, determinantes para a fixação da medida da pena, as quais visam reafirmar a validade das normas violadas e, consequentemente, garantir a defesa do ordenamento jurídico e a segurança da comunidade.
Contudo, devem essas exigências conjugar-se com as de prevenção especial, procurando, por um lado, evitar que o agente reincida e, por outro, que este volte a respeitar os valores da comunidade.
No que ao caso concreto respeita, a moldura penal abstratamente aplicável é de 10 a 240 (atento o regime previsto no artigo 73.º, do Código Penal).
Ademais, quanto à culpa, entende o Tribunal que o mesmo agiu com dolo direto e com a consciência da ilicitude das suas condutas.
As exigências de prevenção geral são, neste caso, consideráveis, atendendo, por um lado, à verificação frequente de confrontos físicos motivados, motivados por desejos de aplicar a justiça pelas próprias mãos, e por outro, à colocação em perigo de bens jurídicos eminentemente pessoais, sendo que, neste caso, as consequências não foram significativas.
Em relação às exigências de prevenção especial, reputa o Tribunal de baixas, relevando, para tanto, o facto não serem conhecidos, ao arguido, quaisquer antecedentes criminais, e de estar social e familiarmente integrado.
Em suma, considerando os mencionados critérios dosimétricos previstos no artigo 71.º, do Código Penal, contará em desfavor do arguido:
  • As exigências de prevenção geral positiva, reputadas de relevantes, porquanto dirigidas a salvaguardar a tutela de bens jurídicos eminentemente pessoais, especialmente relacionada com a errada vontade de recorrer à aplicação da justiça pelas próprias mãos.
  • No plano da prevenção especial positiva, as exigências são muito baixas, atento o desconhecimento de antecedentes criminais.
o A ilicitude e a culpa são medianas, grau de ilicitude é relevante, a culpa é relevante, sendo de considerar o modo de tentativa dos crimes, os instrumentos utilizados e os males anunciados e, assim também, as circunstâncias despropositadas em que foram as expressões pronunciadas (em rigor, não se confirmou a quem pertencia a propriedade do terreno).
o No que respeita à conduta, revela-se uma atuação dolosa, de nível intenso, porquanto realizada no seu grau direto.
E, em favor do arguido:
§ Não são conhecidos quaisquer antecedentes criminais.
§ O arguido encontra-se social e familiarmente integrado.
Em suma, ponderados as referidas circunstâncias (similares quanto ao modo) e o hiato temporal que dista entre a prática dos dois crimes (cerca de duas horas), afigura-se adequado fixar, para cada um dos crimes, uma pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros) – valor significativamente baixo, atentos os rendimentos declarados pelo arguido, mas adequado, ainda assim, a realizar a finalidade da punição aqui exigida –, perfazendo o montante global de € 540,00 (quinhentos e quarenta euros).
*
Cúmulo jurídico das penas de multa
Nos termos do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal, “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única”.
À punição do concurso procede-se através de uma operação de cúmulo jurídico, partindo de todas as condenações singulares, daí prosseguindo para a determinação de uma moldura penal do concurso, dentro dos limites da qual se encontrará, finalmente, em função das exigências gerais da culpa e de prevenção e tendo em consideração os factos e a personalidade do agente globalmente apreciados, a medida da pena conjunta concretamente aplicável.
Para a determinação da medida da pena importa considerar, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, fatores a que já se fez referência a propósito da determinação da medida concreta da pena, mas agora ponderados numa outra perspetiva.
Importa, nesse excurso alcançar uma ponderação global dos referidos factos, pesados à luz dos critérios gerais enunciados no artigo 71.º, do Código Penal (aos quais se recorreu já para determinação das penas singulares), sem que tal importe uma violação do princípio da proibição da dupla valoração no momento da determinação da medida concreta no concurso de crimes, pois como ensina Figueiredo Dias “aquilo que à primeira vista poderá parecer o mesmo facto concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: neste medida não haverá que invocar a proibição da dupla incriminação” e “na avaliação da personalidade – unitária – do agente revelará, entretanto, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante da moldura penal conjunta” (in “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 291), entendimento que igualmente se firma na jurisprudência superior, ressaltando a propósito o Acórdão STJ, P.07P2576, de 03.10.2007, R. Raul Borges: “o que releva e interessa considerar é, sobretudo, a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz uma personalidade propensa ao crime ou é, antes, a expressão de uma pluriocasionalidade, que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido.”
Nos termos do artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal “A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar (…) os 900 dias de multa (…); e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”
Numa visão global dos comportamentos do arguido, nos termos atrás referidos, em sede de aplicação da medida concreta da pena, julga-se adequado fixar e aplicar a pena única de multa de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o montante global de € 840 (oitocentos e quarenta euros)».
*
Analisemos então a causa neste segmento.
O artigo 71º, n.º 1 do CP estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
O n.º 2 desse normativo estatui que, na determinação da pena, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor e contra ele.
            Na determinação da medida concreta da pena, dispõe o artigo 71.º, n.º 1 do CP que ela é feita, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, designadamente de entre as que constam do elenco do n.º 2, da mesma norma legal.
A medida concreta da pena há-de ser, assim, o quantum que é encontrado, de forma intelectual pelo julgador, através do racional e ponderado funcionamento dos conceitos de «culpa» e «prevenção, sendo a culpa o limite inultrapassável da punição concreta e casuística.
Dentro dos limites da moldura penal, há-de ser a culpa que fixa o limite máximo da pena que no caso será aplicada – a finalidade de prevenção geral de integração ou positiva orienta a determinação concreta da pena abaixo do limite máximo indicado pela culpa, aparentando-se mais com a prevenção especial de socialização, sendo esta a determinar, em última instância, a medida final da pena.
A determinação da pena dentro dos limites da moldura penal é um acto de discricionariedade judicial, mas não uma discricionariedade livre como a da autoridade administrativa quando esta tem de eleger, de acordo com critérios de utilidade, entre várias decisões juridicamente equivalentes, mas antes de uma discricionariedade juridicamente vinculada.
O exercício dessa discricionariedade pelo juiz na individualização da pena depende de princípios individualizadores em parte não escritos, que se inferem dos fins das penas em relação com os dados da individualização - trata-se da aplicação do DIREITO e, como acontece com qualquer outra operação nesse domínio, “mesclam-se a discricionariedade e vinculação, com recurso a regras de direito escritas e não escritas, elementos descritivos e normativos, actos cognitivos e puras valorações” (SIMAS SANTOS).
Neste domínio, o julgador tem de traduzir numa certa quantidade (exacta) de pena os critérios jurídicos de determinação dessa mesma pena.
            Sublinhe-se que estes constituem os princípios regulativos que deverão estar subjacentes à determinação de qualquer pena, funcionando a culpa como fundamento da punição em obediência ao princípio “nulla poena sine culpa” e limite máximo inultrapassável da pena, atendendo à dignidade da pessoa humana.
A prevenção, na sua vertente positiva ou de integração, mostra-se ligada às necessidades comunitárias da punição do caso concreto, e irá fixar os limites dentro dos quais a prevenção especial de socialização irá determinar, em última instância, a medida concreta da pena.
Na verdade, só se justificará a aplicação de uma pena se ela for necessária e na exacta medida da sua necessidade, ainda que sempre subordinada a uma incondicionável proibição de excesso, conquanto, ainda que necessária, a pena que ultrapasse o juízo de censura que o agente mereça é injusta e dessa forma inadmissível.
            Ora, aqui chegados, e com este pano de fundo, há que considerar que a pena final foi justa e equitativa.
            São, na realidade, prementes as exigências de prevenção geral.
Assim, em concreto, atender-se-á:
· à culpa, sendo certo que o arguido actuou com dolo directo, dando um especial envolvimento à sua actuação, desculpabilizante e nunca arrependida, preferindo arranjar desculpas infundamentadas e inverosímeis, negando os factos;
· às exigências de prevenção geral, as quais se nos afiguram particularmente acentuadas dada a frequência deste tipo de crime e alarme que provoca na comunidade, assente que se mata e fere outrem por razões dominais vezes demais;
· às exigências de prevenção especial, as quais revertem a seu favor, na medida em que é delinquente primário, com bom comportamento anterior.
Como tal, e recordando que a moldura penal abstracta do crime em apreço – atenta a tentativa - é a de 10 dias a 240 dias de multa OU 30 dias a 2 anos de prisão (artigo 73º do CP), tendo sido justa a opção pela multa, ao abrigo do artigo 70º do CP, ajuiza-se que não é excessiva a pena de multa aplicada (quer as parciais quer a pena de cúmulo).
A pena não pode ser reduzida, portanto.
O seu quase limpo passado criminal não permite efectuar um juízo de prognose favorável, atenta a sua personalidade e a forma como se portou em julgamento, negando sempre os factos.
Uma pena inferior à aplicada revelar-se-ia manifestamente insuficiente face às necessidades de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir.
Não deixaremos ainda de considerar, como o faz o acórdão desta Relação, datado de 16/2/2022 (Pº 226/18.0GAPMS.C1):
«Acresce que “o tribunal de recurso deve intervir na alteração da pena concreta, apenas quando se justifique uma alteração minimamente substancial, isto é, quando se torne evidente que foi aplicada sem fundamento, com desvios aos citérios legalmente apontados” – cfr. Ac. da RC de 18.3.2015, in www.dgsi.pt.
Como se pode ler também no Ac. da RG de 5.3.2018, in www.dgsi.pt, “quanto aos limites de controlabilidade da determinação da pena em sede de recurso - entendemos ser de seguir o entendimento da doutrina e da jurisprudência no sentido de que é suscetível de revista a correção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de fatores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação, mas a determinação do quantum exato de pena só pode ser objeto de alteração perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efetuada”.
Posição jurisprudencial que se acompanha».
E nós também.
Como tal, a multa aplicada não revela qualquer desproporção, não devendo ser alterada.
Por tudo isto, não foi excessiva a pena aplicada, vendo-se este tribunal obrigado a secundá-la (bem como ao quantitativo diário da multa, atento o teor dos factos provados nºs 11 a 13).
Falece, assim, também nesta parte, a argumentação do arguido.

3.3.3. Quanto ao pedido de indemnização cível, diremos apenas:
Prescreve o artigo 400.º n.º 2 do CPP que o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada e estabelece o artigo 44.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário) que em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30 000,00 e a dos tribunais de primeira instância é de (euro) 5 000,00.
Salvo melhor entendimento, elementar critério de razoabilidade deve conduzir ao entendimento que o limite que estabelece a alçada em matéria cível, havendo diversos lesados e pedidos distintos, se tem de referir a cada uma das acções cíveis enxertadas e a cada um dos valores fixados pelo tribunal em caso de arbitramento oficioso de indemnização.
Nestes autos, o valor do pedido civil é inferior a tal alçada (€ pedido de € 1000 para cada um dos demandantes) e a quantia fixada na sentença recorrida em termos de indemnização é de € 500 para cada um, logo, em medida não superior a metade dessa referida alçada, razão pela qual a decisão contida na sentença e relativa a essa indemnização cível se tem de considerar como irrecorrível, a não ser que se decrete uma absolvição criminal que terá como consequência a absolvição do pedido cível (o que não é o caso).
Diremos ainda que estamos muito longe de secundar a ideia da defesa de que, tendo os assistentes desistido da queixa, naturalmente que desistiram do pedido cível.
Para desistirem de um pedido cível teriam de expressamente o declarar nos autos, o que nunca fizeram, tanto mais que, no caso, a desistência de queixa foi apenas apresentada pelo assistente/demandante BB (fls 181), tendo sido apresentado o PIC após tal declaração de desistência de queixa (fls 195-197) e após a acusação pelo MP relativamente ao crime público em causa.

3.4. Improcede, assim, todo o recurso, só restando a este tribunal validar a bem elaborada sentença condenatória exarada nos autos.

3.5. Em sumário:
1. É insuficiente para a decisão de condenação de um arguido em crimes de coacção na forma tentada a alusão, no rol de factos provados, de que o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito não conseguido, por motivos alheios à sua vontade de, ao proferir tais palavras, conseguir que os assistentes saíssem daquele terreno, utilizando uma expressão que pretendia limitá-los na sua liberdade de determinação pessoal, o que configura um vício do artigo 410º, n.º 2, alínea a) do CPP.
2. Carecem os autos de uma explicitação mais concretizada, na factualidade, do estádio de tentativa na acção do arguido, devendo também dar-se como provado que os destinatários da coacção não acataram comportamento conforme à imposição do coactor, não configurando este aditamento qualquer alteração não substancial de factos que justifique a comunicação que alude o artigo 358º, n.º 1 do CPP, na medida em que tal aditamento mais não é do que a reafirmação ou a ilação explícita de factos que sinteticamente já se encontravam narrados na acusação e na pronúncia, embora só no segmento atinente ao elemento subjectivo do tipo de crime em causa.

                                                           *
                       
            III – DISPOSITIVO
           
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:
· aditar ao rol de factos provados o seguinte:
            7-A: Os assistentes não abandonaram o terreno em causa, continuando aí a laborar, embora noutro local mais longe do arguido.
· julgar improcedente o recurso intentado por AA, mantendo a condenação de 1ª instância nos seus exactos termos.

            Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UCs [artigos 513.º, n.o 1, do CPP e 8.º, n.º 9 do RCP e Tabela III anexa], sem prejuízo do apoio judiciário de que eventualmente beneficie.

Coimbra, 9 de Novembro de 2022
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro  – artigo 94.º, n.º 2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do art.º 19.º da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria n.º 267/2018, de 20/09)

 Paulo Guerra (Relator)

Alcina da Costa Ribeiro (Adjunta)

Cristina Branco (Adjunta)




[1] Podendo, em alguns casos, ser preferível começar pela impugnação alargada se for previsível que a sua análise e decisão sobre ela acabar por suprir algum vício existente do artigo 410º, n.º 2 do CPP.
[2] «Pressuposto do que seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é desde logo uma noção minimamente exata do que seja o objeto do processo: conjunto de factos ou de questões, cuja determinação é dada em primeira linha pela acusação ou pronúncia, peças processuais a partir das quais se vai estabelecer a vinculação temática do tribunal, mas também pela contestação ou pela defesa, ou ainda pela discussão da causa.
Determinando-se desse modo os poderes de cognição do juiz, para assim também se poder afirmar que aquilo que o tribunal investigou ou os factos sobre os quais fez incidir o seu poder/dever de decisão eram, no fundo, os que constituíam ou formavam o objeto do seu julgamento, ou da audiência de julgamento, nos termos do artigo 339.º, n.º 4, do CPP, e que fora deste não ficou nenhum facto que importasse conhecer, dando-os como provados ou não provados, tanto faz. Só se existir algum desses factos, que não tenha sido objeto de apreciação pelo tribunal, é que poderemos concluir pela insuficiência da decisão sobre a matéria de facto provada (ou não provada) e com ela de violação do princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, porquanto o tribunal não investigou, como lhe competia, toda a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa.
Em suma, existe insuficiência da matéria de facto quando da análise do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, faltam factos, cuja realidade devia ter sido indagada pelo tribunal, desde logo por imposição do artigo 340.º do CPP, porque os mesmos se consideram necessários à prolação de uma decisão cabalmente fundamentada e justa sobre o caso, seja ela de condenação ou de absolvição» (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019).
[3] «Teremos uma contradição da fundamentação, impeditiva da função que a esta cabe, se no respetivo texto verificarmos existir uma incompatibilidade entre duas ou mais proposições, cuja conjugação não permita chegar uma conclusão logicamente coerente. Será o caso, por exemplo, de se afirmar que, “nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, “A é B” e que “A não é B”, pois as duas afirmações não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras. Ou dar-se como provado que, nas mesmas circunstâncias descritas na acusação, e na sequência de uma discussão entre Alberto, Bernardo e Daniel, Alberto desferiu uma bofetada no rosto de Bernardo, e de seguida, na mesma decisão, dar-se como não provado que Alberto tivesse dado uma bofetada no rosto de Bernardo. Ou que, para motivar a primeira proposição, o Tribunal considerasse unicamente o depoimento da testemunha Carlos, referindo quanto à razão de ciência desta testemunha que ela se encontrava junto a Alberto e Bernardo, mas na mesma motivação da decisão de facto, de seguida, se acrescentasse que, precisamente, por se encontrar junto de Alberto e Carlos, viu presencialmente Daniel a desferir a bofetada no rosto de Bernardo. Sendo a estrutura interna da própria lógica que aqui é posta em causa, na medida em que esta exige como uma das suas regras fundamentais a inexistência de contradição entre enunciados, assim como exige que a sequência desses mesmos enunciados, no raciocínio lógico, obedeça a “uma ordem do fundamento e da consequência”, com o sentido de que o raciocínio, através do qual se obtém a ilação ou inferência, por via indutiva ou dedutiva, não utiliza os enunciados ou proposições de forma arbitrária ou casual.
Podendo dizer-se que as possibilidades de vir a ser posta em causa a fundamentação e a relação entre esta e a decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, são essencialmente reconduzíveis à violação da relação lógica que deve existir entre enunciados ou proposições, por violação do princípio da não contradição (contradição da fundamentação) e à violação do princípio do fundamento ou da ordem do fundamento e da consequência (contradição entre a fundamentação e a decisão). Nesta última hipótese caberá o seguinte exemplo: o tribunal dá como provados factos constitutivos do crime de furto, crime pelo qual vinha o arguido acusado, mas na fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica entende que, dado o arguido não ter restituído a coisa furtada, os factos integram também o crime de abuso de confiança, mas na decisão final, julgando procedente a acusação do Ministério Público, acaba por condenar o arguido apenas pelo crime de furto». (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019).


[4] Francisco Mota Ribeiro é suficientemente eloquente e exemplificativo ao escrever no e-book já aqui assinalado: «Existirá um erro de tal magnitude quando, por exemplo, se se dá como provado facto, cuja possibilidade de verificação viole as leis da natureza (física mecânica) ou as leis da lógica.
Tal vício é oficiosamente cognoscível e tem de resultar do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Poderá suceder um tal erro, como vimos supra, quando na motivação da decisão de facto se invoca facto constante de documento com força probatória plena, que minimamente se reproduza na decisão recorrida, dando-se como provado facto contrário àquele, sem que tal documento tenha sido arguido de falso.
Também haverá erro notório na apreciação da prova quando se declare ou não a realidade de um facto, quando é do domínio público que o mesmo não haja ou haja ocorrido.
Há erro notório na apreciação da prova se o tribunal dá como provado que o arguido apenas havia bebido um ou dois copos de vinho, quando resulta provado que a esse mesmo arguido lhe havia sido detetada uma TAS de 2,05g/l.
Presumindo-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo técnico, científico ou artístico, inerente à prova pericial (n.º 1 do artigo 163.º do CPP), constitui erro notório na apreciação da prova [alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º] divergir--se dele sem fundamentação – Ac. do STJ, de 15/10/97, Pº 97P1494.
No âmbito da apreciação da prova indireta, quando o tribunal infere de um facto (a entrada frequente de indivíduos numa casa com volumes) aquele outro facto (de, dentro da casa, uns indivíduos irem adquirir estupefacientes), sem uma base racional sólida que tenha deixado expressa na decisão, está a cometer um erro notório na apreciação da prova, que vicia o acórdão e não permite ao STJ conhecer de fundo – Ac. do STJ, de 04/01/1996, Pº 048666.
Na aplicação do princípio in dubio pro reo, quando da decisão recorrida resultar que, tendo chegado a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos, o tribunal a quo decidiu em desfavor do arguido ou quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar, no entanto, evidente do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo assim de concluir que a dúvida só não foi reconhecida, no sentido de fazer operar aquele princípio, em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP – Ac. do STJ, de 22/05/98, Pº 98P930».
[5] Quando os factos novos não tenham como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, mas sejam relevantes para a decisão, a alteração deverá ser considerada não substancial e o seu conhecimento pressupõe, por isso, o recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º, n.º1, do CPP.
Diga-se ainda que a lei fulmina com nulidade a sentença que condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e condições previstos nos arts. 358º e 359º do CPP [art. 379º, nº 1, b), do mesmo código].
Ora, no nosso caso, não há qualquer alteração substancial de factos pois o crime não é diverso e a moldura penal abstracta permanece a mesma.
E opinamos que será uma alteração não substancial.
Contudo, importa distinguir, em função dos casos concretos, aquelas situações em que a omissão da comunicação impede a possibilidade de defesa eficaz do arguido, daquelas outras em que tal omissão não tem qualquer impacto negativo na estratégia de defesa do arguido.
Como se afere no Acórdão da Relação do Porto de 12/1/2011, «há uma razão lógica e substantiva para o legislador impor a comunicação da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia e a alteração da qualificação jurídica dos mesmos: está em causa, fundamentalmente, assegurar elementares direitos de defesa do arguido, evitando que ele seja surpreendido com uma condenação por factos que não constavam da acusação (ou pronúncia) ou suportada por uma qualificação jurídica distinta da que nela constava.
A própria Lei ressalva que a comunicação só tem lugar se a alteração tiver “relevo para a decisão da causa” e se não tiver “derivado de factos alegados pela defesa” [n.º 1 e 2 do citado art.]. Compreende-se: tanto num caso como no outro, a alteração (dos factos ou da sua qualificação jurídica) não tem uma repercussão negativa na estratégia de defesa do arguido».
É esse interesse de salvaguarda dos direitos de defesa do arguido que justifica a imposição da comunicação, não sendo algo de formal ou automático.
Como já alguém rezou, «na constante procura do equilíbrio entre o interesse público da aplicação do direito criminal – mediante a eficaz perseguição dos delitos cometidos – e o direito impostergável do arguido a um processo penal que assegure todas as garantias de defesa vinga a leitura atenta e racional da Lei que dê sentido útil à afirmação dos direitos consagrados e eficácia ao sistema processual implantado».
Deste modo, há que ser razoável na leitura dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal - como se concluiu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 674/99: “(…) erige-se assim em critério orientador a defesa eficaz do arguido, permitindo que ele tome conhecimento das alterações de factos que sejam relevantes do ponto de vista daquela defesa (...)”.
Tem a jurisprudência e a doutrina apontado alguns casos em que se dá conta da irrelevância negativa de certas alterações para os direitos de defesa do arguido – falamos das situações em que a alteração resulta da imputação de um crime simples, ou «menos agravado», quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime mas em forma mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravativo inicialmente imputado [Ac.STJ de 7.11.2002]: entende-se que não há qualquer alteração relevante para o efeito em causa, uma vez que o arguido se defendeu em relação a todos os factos, embora venha a ser condenado por diferente crime (mas consumido pela acusação ou pronúncia).
Tem-se, de facto, entendido, com alguma margem de consenso, que a comunicação do artigo 358º/3 do CPP, apenas se efectuará quando se tratar de uma modificação relevante, o que sucede quando essa modificação divirja do que se encontra descrito na acusação ou na pronúncia e a subsequente comunicação se mostre útil à defesa [Ac. T. C. n.º 330/97 (DR II 1997/Jul./03), 387/2005, (DR II 2005/Out./19); Ac. STJ de 1991/Abr./03, 1992/Nov./11, 1995/Out./16, 2006/Abr./06 (BMJ 406/287, 421/309, www.dgsi.pt, CJ II(S), 161)].
Seguimos de perto a nossa jurisprudência que tem defendido que:
· não existe uma alteração dos factos integradora do artigo 358.º do CPP, quando a factualidade dada como provada na sentença consiste numa mera redução daquela que foi indicada na acusação ou da pronúncia, por não se terem dado como assentes todos os factos aí descritos [cf. Ac. TC n.º 330/97, in DR II, 1997/Jul./03];
· Não tal existe também quando apenas existam alterações de factos relativos a aspectos não essenciais, manifestamente irrelevantes para a verificação da factualidade típica ou da ocorrência de circunstâncias agravantes [cf. Ac. STJ de 1991//Abr./03, de 1992/Nov./11 e de 1995/Out./16, in BMJ n.º 406/287, n.º 421/309 e em www.dgsi.pt];
· Também tal não ocorrerá quando se tratar de uma simples descrição do contexto temporal e do ambiente físico em que a ação do arguido se desencadeou, quando o mesmo não é mais do que a reafirmação ou a ilação explícita de factos que sinteticamente já se encontravam narrados na acusação ou na pronúncia [Ac. TC n.º 387/2005, de 2005/Jul./13, in DR II, 2005/Out./19];
· Da mesma forma, não se poderá falar de alteração dos factos com relevo para a decisão, quando a decisão condenatória se sustenta «exclusivamente nos factos constantes da acusação e da contestação e o recorrente não foi surpreendido com os factos, dadas as considerações que precedem [cf. o Ac. STJ de 23/06/2005, processo n.º 1301/05, CJ, Tomo 2/2005);
· Daí que se possa dizer, que "só constitui alteração substancial dos factos a modificação que se reporte a factos constitutivos do crime e a factos que tenham o efeito de imputação de um crime punível com uma pena abstrata mais grave.
· A modificação dos restantes factos que constem da acusação ou da pronúncia constitui alteração não substancial dos factos, desde que sejam relevantes para a decisão da causa" e que "(... ) não há crime diverso em face da mera alteração das circunstâncias da execução do crime (incluindo o dia, hora, local, modo de execução e instrumento do crime), desde que essas circunstâncias não constituam elementos do tipo legal, nem constituam um outro facto histórico unitário" [Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Lisboa, 2007, pp. 41].
Dito de outra forma: a “alteração substancial” dos factos pressupõe uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Já a “alteração não substancial” constitui uma divergência ou diferença de identidade que não transformem o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal; a alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa.
No nosso caso, e repetindo, a alteração pontual introduzida agora por nós mais não é do que reafirmação ou a ilação explícita de factos que sinteticamente já se encontravam narrados na acusação e na pronúncia, embora só no segmento atinente ao elemento subjectivo do tipo de crime (facto 8), não carecendo, pois, de fazer funcionar a comunicação a que alude o n.º 1 do artigo 358º do CPP.

[6] Conforme refere Germano Marques da Silva, «é clássica a distinção entre prova directa e prova indiciária. Aquela refere-se aos factos probandos, ao tema da prova, enquanto a prova indirecta ou indiciária se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova.
O indício não tem uma relação necessária com o facto probando, pois pode ter várias causas ou efeitos, e, por isso, o seu valor probatório é extremamente variável.
Na prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervém a inteligência e a lógica da entidade que a afere. Porém, qualquer um daqueles elementos intervém em momentos distintos.
Em primeiro lugar é a inteligência que associa o facto indício a uma máxima da experiência ou uma regra da ciência; em segundo lugar intervém a lógica através da qual, na valoração do facto, outorgaremos a inferência feita maior ou menor eficácia probatória».
[7] E a voz ouvida tem uma importância capital. Mas não é tudo, como é bem de ver...
Como opina o Acórdão da Relação de Évora, datado de 18/3/2010 (Pº 22/07.0GACUB.E1):
«1. Na tarefa da valoração da prova exige-se ao julgador uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, nas da lógica e da ciência, sem descurar a percepção – que a imediação potencia – da personalidade do depoente.
2. A voz não é o único canal comunicativo, sendo normalmente apreciado, pelo destinatário de qualquer mensagem, como um dos elementos da mesma, mas considerado numa avaliação global de toda a comunicação estabelecida. A voz é o canal mais informativo em qualquer comunicação, mas há que coaduná-la com elementos como expressões faciais, gestuais e corporais.
3. Em primeira instância, na apreciação do depoimento dá-se relevância aos aspectos verbais, mas também se considera a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, o tom de voz, as alterações na frequência vocal, as hesitações, o período de silêncio entre a pergunta e a resposta, os silêncios, a frequência dos períodos de silêncio no decurso do discurso, durante o discurso, os olhares para os advogados e as partes, antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos corporais etc. Releva-se, ainda, a preocupação que a testemunha revela com o efeito do deu depoimento, em cada uma das partes, nos advogados, no Tribunal, a feitura ou não de alterações no tipo de discurso, e toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo de áudio. Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores até da mentira.
4. Consequentemente, a prática de registo da voz das testemunhas, em sistema áudio, e a sua reapreciação pelo Tribunal de 2.ª instância, é insatisfatória e está longe de conduzir aos melhores resultados. Por isso, quando o julgador da primeira instância atribui, ou não, credibilidade a uma fonte de prova - testemunhal ou por declarações - porque a opção tomada se funda na oralidade e na imediação, o Tribunal de recurso, em princípio, só a deverá censurar quando for feita a demonstração de que a opção tomada carece de razoabilidade, violando as regras da experiência comum».