Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1545/19.4T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: CASO JULGADO
CAUSA DE PEDIR
FACTOS PRINCIPAIS
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 581.º, N.º 4, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I) Para efeitos da verificação de caso julgado e a propósito da delimitação de uma acção perante outra, o Código do Processo Civil usa um conceito restrito de causa de pedir que apenas compara os factos principais das duas causas.

II) Assim, a identidade e a individualidade da causa de pedir têm de apurar-se com base numa comparação entre o núcleo factual essencial de cada uma delas, não sendo afectada tal identidade por via da alteração da qualificação jurídica dos factos concretos em que se fundamenta a pretensão, nem por qualquer ampliação factual que não afecte o núcleo factual essencial da causa de pedir que suporta ambas as acções, nem ainda pela invocação na primeira acção de determinada factualidade que é perspectivada como meramente instrumental ou concretizadora de factos essenciais.

Decisão Texto Integral:





Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

A..., S.A., intenta a presente ação declarativa sob a forma de comum contra B..., S.A.,

Alegando, em síntese:

em 21.12.2000, a Ré celebrou com a aqui autora um contrato de distribuição, nos termos do qual autorizou a autora a “instalar na Marinha Grande um estabelecimento destinado a vender gás de petróleo liquefeito engarrafado”;

por carta datada de 22.07.2008, a Ré comunicou à autora a resolução de tal contrato, com base num alegado incumprimento, instando-a a pagar uma indemnização calculada nos termos da clausula 7ª do contrato, no montante de 777.163,03 €;

entretanto, a 05.08.2008, a Ré moveu à autora um arresto, decretado sem a prévia audição da requerida, para garantia do pagamento da quantia de 777.163,03 € correspondente à referida indemnização, devida por alegada violação do contrato por parte da autora e 299.598,26 €, correspondente ao valor do vasilhame que se encontraria na posse da A ..., depois de deduzido o valor caucionado pela autora.

decretado o arresto sem prévia audição da requerida, foram apreendidos todos os bens móveis existentes no estabelecimento comercial da autora, todos os bens móveis que utilizava no exercício do seu comércio, todas as mercadorias que a autora tinha em stock e destinadas a ser vendidas no exercício da sua atividade, e ainda todas as receitas geradas pelo estabelecimento, bem como os restantes créditos que constituam o seu ativo;

até 06.01.2009, data em que as partes celebraram uma transação nos termos da qual foi reduzido o numero de bens arrestados, a autora viu-se completamente impedida de prosseguir com a sua atividade, o que lhe causou inúmeros prejuízos;

na pendencia de tal arresto, veio a Ré a instaurar a correspondente ação declarativa principal, pela qual peticionava as quantias reclamadas no arresto, onde veio a ser proferida sentença, concluindo-se que “… não ficou provado que a Ré faltou culposamente ao cumprimento do contrato nem existe justa causa para a autora poder resolver validamente o contrato de concessão comercial que estabeleceu a com a 1ª Ré, o qual se extinguiu por inexecução mútua – por isso a resolução do contrato operada pela autora é inválida por carecer de fundamento legal,” , julgando improcedente o pedido indemnizatório formulado, condenando A ... a pagar-lhe unicamente a quantia correspondente à quantidade de vasilhame que detinha em seu poder, da marca ESSO, “depois de descontado o valor das cauções de 22.492,09 €, que vier a ser apurada em sede de liquidação de sentença”, considerando ilegal a resolução operada pela Ré, sentença que foi confirmada por acórdão da relação;

tendo a Ré ficado de liquidar este ultimo crédito, nunca o veio fazer, tendo vindo a ser declarada a caducidade do arresto por despacho de 23.08.2017;

o arresto revelou-se perfeitamente injustificado, sendo que, ao intentá-lo a Ré não agiu com a prudência normal a que alude o art. 374º do CPC, arresto que veio a causar a ruína do negócio da autora;

os três meses durante os quais se encontrou impedida de comercializar gás, acarretaram a perda de toda a clientela, privando-a das inerentes receitas resultantes das vendas de gás

mercê do arresto injustificado a autora viu-se privada, até 2017, da quantia de 404.762,90 € relativa a lucros cessantes que se encontrou impedida de gerar com a sua atividade com o decretado arresto.

das 529 garrafas arrestadas, 319 estavam cheias de gás, em cuja aquisição a autora havia despendido a quantia de 6.120,00 €, tendo direito a reaver o respetivo valor;

deve ainda a ré ser condenada a restituir à autora a quantia de 22.402,09 €, relativo ao valor que recebeu em depósito, pelas garrafas de gás que ao longo da execução do contrato lhe confiou para comercializar o gás, garrafas estas que entraram na posse da Ré;

o decretado arresto causou-lhe um dano reputacional, pelo qual reclama uma indemnização de valor não inferior a 25.000,00 €;

na sequência do arresto, a Ré acionou a garantia bancária, em busca do recebimento da indemnização reclamada, junto do Banco C ..., em 22.10.2008, tendo a autora sido posteriormente obrigada a pagar ao Banco C ... todo o capital garantido, no valor de 24.939,89 €.

Pelo que, conclui, pedindo:

a condenação da Ré a pagar à autora:

a) a quantia de 404.762,90 €, relativa a lucros cessantes, de que se viu privada em consequência direta do injustificado arresto realizado a pedido da Ré.

b) acrescida de juros de ora à taxa máxima legal das operações comerciais, a contar desde a citação;

c) a quantia de Eur 24.939,89, relativa à garantia bancária paga pela Autora ao banco Banco C ....

d) a que acrescem juros moratórios, à taxa máxima legal relativa a operações comerciais, os quais, contabilizados até hoje, desde a data de realização do pagamento da garantia, ascendem a Eur 19.260,77.

e) a quantia de Eur 22.402,09, relativa à caução constituída pela Autora junto da Ré, como garantia do valor das garrafas de gás que a mesma Ré lhe confiava em depósito, para comercialização do gás encerrado no seu interior.

f) a que acrescem juros de mora até hoje vencidos, a calcular à taxa máxima legal, aplicável às operações comerciais, no valor de Eur 17.921,22, conforme alegado em 184. desta p. i..

g) a quantia de Eur 6.120,00, relativa ao valor de aquisição do gás encerrado no interior das garrafas de gás arrestadas.

h) a que acrescem juros de mora até hoje vencidos, a calcular à taxa máxima legal, aplicável às operações comerciais, no valor de Eur 4.895,88.

i) a quantia de Eur 25.000,00, relativa à indemnização devida pelos danos não patrimoniais nela infligidos pela Ré, através do injustificado arresto.

j) a que acrescem juros de mora, à taxa máxima legal, para as operações comerciais, a contar da citação e até efetivo e integral pagamento.

A Ré/ B ... apresenta contestação, defendendo-se mediante a invocação, entre outros, da exceção de caso julgado:

na referida ação em que a Ré pedia a condenação da aqui autora no pagamento da quantia de 1.073.761,32 €, sendo que 777.163,00 € eram devidos a titulo de indemnização por incumprimento e o restante como forma de compensação pela não entrega de vasilhame propriedade da ré, a aqui autora veio deduzir reconvenção pedindo a condenação da aqui ré no pagamento da quantia global de 744.000,00 € a título de indemnização por conta de prejuízos causados pela resolução ilícita do contrato, reconvenção esta que veio a ser julgada totalmente improcedente;

com a presente ação, veio a aqui autora propor uma nova ação de forma a obter o mesmo resultado que lhe fora negado em sede de pedido reconvencional no referido processo;

embora elegendo como causa de pedir a falta de justificação e/ou caducidade da providência de arresto, os pedidos indemnizatórios são sustentados na resolução ilícita do contrato.

Conclui que na procedência da exceção deve ser decretada a sua absolvição da instancia.

A autora responde no sentido da improcedência da exceção de caso julgado, alegando, em síntese:

a causa de pedir é distinta – a ilegalidade do arresto que, se prolongou durante quase três meses e, dada a dimensão com que foi decretado, ficou a autora completamente impedida de continuar a exercer a sua atividade, o que deu causa à perda de toda a clientela, vendo cair de forma abruta as suas receitas; em todo o restante alegado enuncia as razões pelas quais se deverá concluir pela ausência de fundamento do arresto;

quanto ao pedido de condenação da Ré na quantia de que se apropriou indevidamente, ao acionar sem fundamento a garantia bancária, porquanto, neste caso o que temos é o incumprimento do próprio contrato de garantia, sendo que no primeiro processo não foi reconhecido à Ré o direito garantido;

para além de assentar em distinta causa de pedir, este pedido indemnizatório não foi por si formulado no âmbito da reconvenção por si deduzida na 1ª ação;

o mesmo se diga relativamente ao pedido de condenação da Ré a pagar à autora o valor do gás encerrado nas garrafas arrestadas, danos que nada têm a ver com a ação anterior;

o mesmo se diga quanto aos danos não patrimoniais causados pelo injustificado decretamento do arresto.

Seguidamente, pelo Juiz ao quo é proferido o Saneador/Sentença, de que agora se recorre, e pelo qual foi reconhecida a verificação da exceção dilatória de caso julgado, absolvendo, em consequência, a Ré da instância.


*

Não se conformando com tal decisão, a autora dela interpõe recurso de Apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

(…)


*
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo –, a questão levantada pela Apelante nas suas alegações de recurso é uma só:
1. Se se verifica a exceção de caso julgado formado pela ação reconvencional deduzida na 1ª ação decorrida entre as aqui autora e ré.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Se a ação reconvencional inserida na 1ª ação entre as partes faz caso julgado impeditivo da propositura da presente ação.

Para a apreciação da exceção de caso julgado formado pela ação reconvencional enxertada pela aqui autora na 1ª ação que correu entre as partes, o juiz a quo considerou resultarem dos autos essencialmente os seguintes factos (admitidos por acordo e documento):

1. No âmbito do processo n.º 2811/08.0TVLSB, a ora Autora apresentou reconvenção contra a ora Ré onde pediu a sua condenação a pagar-lhe a quantia global de €744.000,00, tendo posteriormente reduzido o pedido para a quantia de €100.000,00.

2. Nos presentes autos, a Autora pede a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia global de €525.302,75.

3. No âmbito do processo n.º 2811/08.0TVLSB, para fundamentar o seu pedido reconvencional contra a ora Ré, a ora Autora alegou, que, para além dos factos referidos a propósito da contestação propriamente dita e que os reproduz para efeitos da reconvenção (onde se destaca que a ora Autora aí alegou nos seus artigos 192.º, 193.º e 196.º que a ora Ré pretende destruir a ora Autora A ..., asfixiando-a comercial e financeiramente através do arresto), para além da ora Ré ter procedido à resolução injustificada do contrato, fê-lo numa altura em que deveria vigorar pelo menos até 21/12/2010, sendo ainda expectável que tal contrato vigorasse até 21/12/2020, por isso a reconvinte poderia ainda beneficiar do ganho líquido da revenda do gás até pelo menos 21/12/2020, em valor não inferir a €600.000,00 e juros de 2008 a 2020 no montante de €144.000,00.

4. No âmbito dos presentes autos, para fundamentar o seu pedido contra a Ré, a Autora alegou, muito sinteticamente, que a Ré resolveu injustificadamente o contrato em causa no outro processo e intentou o procedimento cautelar de arresto, o qual foi decretado e concretizado contra bens da ora Autora; que mais tarde, em 06.01.2009, depois de deduzida oposição ao decretado arresto, pela Autora, esta e a Ré, então nas qualidades respetivas de arrestada e arrestante, celebraram uma transação, nos termos da qual foi parcialmente reduzido o número de coisas arrestadas, como dela se vê, pese embora se tenham mantido arrestados o estabelecimento comercial de venda gás, e todos os bens do seu ativo imobilizado, bem como 529 garrafas de gás, das quais 319 estavam cheias de gás, encerrando todas elas 5.345 Kgs de gás, ficando sem efeito o arresto das receitas passadas e futuras da autora, bem como ficou sem efeito o arresto de todas as mercadorias que se encontravam na altura na posse da arrestada e que se destinavam a ser vendidas ou comercializadas no âmbito da sua actividade, tudo por forma a que a ora Autora pudesse, a partir de então, retomar a sua atividade; que assim a Autora ficou impedida de realizar a sua atividade de venda de gás durante 3 meses, invoca o decréscimo de vendas de gás de 2009 a 2017; que o arresto entretanto caducou e não tinha fundamento em virtude da ilícita resolução do contrato, que causou danos à ora Autora, tais como lucros cessantes até 2017, valor de garrafas de gás, garantia bancária acionada e dano reputacional.

Não sendo posta em causa a verificação da identidade de sujeitos entre a presente ação e a anterior ação reconvencional, a decisão recorrida veio a considerar verificarem-se igualmente os requisitos da identidade de pedido e de causa de pedir, com a seguinte fundamentação:

Quanto à identidade de pedido:

O pedido consiste no efeito jurídico ou a tutela jurisdicional que se pretende obter com determinada acção.

O pedido não tem de ser exactamente igual em ambas as acções, basta que sejam idênticos.

No âmbito do processo n.º 2811/08.0TVLSB, a ora Autora apresentou reconvenção contra a ora Ré onde pediu a sua condenação a pagar-lhe a quantia global de €744.000,00, tendo posteriormente reduzido o pedido para a quantia de €100.000,00.

Nos presentes autos, a Autora pede a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia global de €525.302,75.

A circunstância de na presente acção o pedido ter sido restringido a um valor mais reduzido não significa que seja diferente, é patente que o pedido é o mesmo – indemnização decorrente das consequências da resolução injustificada do contrato.

Deste modo, existe identidade de pedido entre a presente acção e o já mencionado processo.

Quanto à identidade da causa de pedir:

A causa de pedir consiste na alegação da relação material de onde o autor faz derivar o correspondente direito.

Sendo a causa de pedir um facto jurídico concreto, simples ou complexo, do qual emerge a pretensão deduzida, haverá que procurá-la na questão fundamental levantada nas duas ações (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 3435/16.3T8VIS-A.C1, relatado pelo Senhor Desembargador Isaías Pádua, www.dgsi.pt). Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça entende-se que não é apenas a conclusão ou dispositivo da sentença que tem força de caso julgado, aceitando-se como mais equilibrado um critério ecléctico, que, sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença, reconhece, todavia, essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, em homenagem à economia processual, ao prestígio das instituições judiciárias quanto à coerência das decisões que proferem e, finalmente, à estabilidade e certeza das relações jurídicas (os acórdãos deste Supremo, de 10.07.97 – CJ/STJ – 2.º/165; de 27.04.04 – Proc. 04A1060.dgsi.Net; de 20.05.04 – Proc. 04B281.dgsi.Net; de 13.01.05 – Proc. 04B4365.dgsi.Net; de 05.07.05 – Proc. 05ª008.dgsi.Net; e de 08.03.07 – CJ/STJ – 1-º/98).

Vejamos se a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.

No âmbito do processo n.º 2811/08.0TVLSB, para fundamentar o seu pedido reconvencional contra a ora Ré, a ora Autora alegou, que, para além dos factos referidos a propósito da contestação propriamente dita e que os reproduz para efeitos da reconvenção (onde se destaca que a ora Autora aí alegou nos seus artigos 192.º, 193.º e 196.º que a ora Ré pretende destruir a ora Autora A ..., asfixiando-a comercial e financeiramente através do arresto), para além da ora Ré ter procedido à resolução injustificada do contrato, fê-lo numa altura em que deveria vigorar pelo menos até 21/12/2010, sendo ainda expectável que tal contrato vigorasse até 21/12/2020, por isso a reconvinte poderia ainda beneficiar do ganho líquido da revenda do gás até pelo menos 21/12/2020, em valor não inferir a €600.000,00 e juros de 2008 a 2020 no montante de €144.000,00.

No âmbito dos presentes autos, para fundamentar o seu pedido contra a Ré, a Autora alegou, muito sinteticamente, que a Ré resolveu injustificadamente o contrato em causa no outro processo e intentou o procedimento cautelar de arresto, o qual foi decretado e concretizado contra bens da ora Autora; que mais tarde, em 06.01.2009, depois de deduzida oposição ao decretado arresto, pela Autora, esta e a Ré, então nas qualidades respectivas de arrestada e arrestante, celebraram uma transacção, nos termos da qual foi parcialmente reduzido o número de coisas arrestadas, como dela se vê, pese embora se tenham mantido arrestados o estabelecimento comercial de venda gás, e todos os bens do seu activo imobilizado, bem como 529 garrafas de gás, das quais 319 estavam cheias de gás, encerrando todas elas 5.345 Kgs de gás, ficando sem efeito o arresto das receitas passadas e futuras da autora, bem como ficou sem efeito o arresto de todas as mercadorias que se encontravam na altura na posse da arrestada e que se destinavam a ser vendidas ou comercializadas no âmbito da sua actividade, tudo por forma a que a ora Autora pudesse, a partir de então, retomar a sua actividade; que assim a Autora ficou impedida de realizar a sua actividade de venda de gás durante 3 meses, invoca o decréscimo de vendas de gás de 2009 a 2017; que o arresto entretanto caducou e não tinha fundamento em virtude da ilícita resolução do contrato, que causou danos à ora Autora, tais como lucros cessantes até 2017, valor de garrafas de gás, garantia bancária acionada e dano reputacional.

Nesta sequência, a questão fundamental levantada tanto na presente acção como no processo n.º 2811/08.0TVLSB consiste precisamente nas consequências danosas da resolução injustificada do contrato que havia sido celebrado entre as partes e o período temporal do pedido formulado na outra acção vai até ao ano de 2020 enquanto na presente acção vai até ao ano de 2017.

Ou seja, sempre com o devido respeito por diverso entendimento, o pedido de indemnização formulado em ambas as acções estriba-se sempre na resolução injustificada do contrato, tendo a ora Autora em ambas as acções pedido o ressarcimento de danos.

Por sua vez, se a Autora veio agora na presente acção concretizar melhor alguns dos danos causados com a resolução injustificada do contrato pela Ré, estes estão sempre abrangidos pelo processo n.º 2811/08.0TVLSB, atento o seu montante e natureza.

Importa referir que, tal como alegado pela ora Autora, as partes reduziram o número de bens arrestados, por transação.

Contudo, como já vimos, o arresto de garrafas de gás ou de outros bens já fora alegado no âmbito do referido processo n.º 2811/08.0TVLSB e de igual modo como aí alegado, destinava-se a asfixiar comercial e financeiramente a ora Autora, precisamente através do arresto aí decretado, por isso esta ali deduziu pedido reconvencional.

Ou dito de outro modo, todos os danos invocados na presente acção estão contidos nos danos invocados no outro processo, incluindo o período temporal – impossibilidade da ora Autora exercer devidamente a sua actividade com repercussões até ao ano de 2020, como consequência da resolução injustificada do contrato.

Deste modo, existe identidade de causa de pedir.”

Insurge-se a Apelante contra o decidido, com os seguintes argumentos:

a) as causas de pedir são completamente distintas:

- o pedido reconvencional emergiu única e exclusivamente da responsabilidade civil contratual da ré, na sequência da rutura contratual por si concretizada ao resolver o contrato celebrado em 21.12.2000,

- enquanto o pedido de indemnização formulado na presente ação resulta única e exclusivamente na responsabilidade civil extracontratual da Ré, decorrentes de atos ilícitos por si praticados no exercício ao peticionar em tribunal uma tutela cautelar manifestamente excessiva e infundada para um crédito que, a final não se veio a revelar completamente inexistente, como ainda se provou ter sido reclamado de forma leviana, porquanto o incumprimento da ora autora afinal se havia traduzido em factos para os quais a própria requerente do arresto havia contribuído decisivamente.

b) inexiste qualquer identidade substancial entre o pedido formulado na reconvenção e o pedido formulado nos presentes autos, porquanto, o primeiro consubstancia uma indemnização devida por incumprimento contratual, enquanto que na presente ação, o pedido consubstancia a indemnização devida por uma violação ilícita dos direitos da autora, ao ver serem-lhe arrestados todos os seus bens, presentes e futuros, impedindo-a de exercer por uma qualquer forma, a sua atividade.

Temos de dar razão à Apelante quando sustenta encontrarmo-nos perante pedidos e causas de pedir substancialmente distintas.

Relativamente ao pedido, a decisão recorrida considerou existir identidade de pedido. porquanto, independentemente de os montantes indemnizatórios não coincidirem, o pedido é o mesmo – indemnização decorrente das consequências da resolução injustificada do contrato.

Desde logo, temos de discordar com a análise a tal respeito constante da decisão recorrida: o pedido formulado na presente ação, não consiste numa indemnização pelos prejuízos sofridos pela autora com a resolução injustificada do contrato por parte da Ré.

Vejamos, então, como se mostram configuradas as duas ações, afastando-nos da apreciação que delas é feita na sentença recorrida.

Na anterior ação reconvencional, a aqui autora e aí Ré/reconvinte,

alegando:

ter sido a B ... quem, com o seu comportamento – recusando-se a receber, em troca das garrafas cheias de gás ESSO, as quantidades de taras de outras marcas –, impediu a aqui autora de atingir os valores mínimos de compra previsto no contrato de concessão celebrado entre ambas, tornando ilegítima e injustificada a resolução do contrato por esta operada com base num alegado incumprimento do contrato por parte da autora;

que, não fora a resolução ilícita do contrato por parte da B ..., este ter-se-ia mantido em vigor pelo menos até 21 de dezembro de 2020, data contratualmente acordada para o seu termo, pelo que, sofreu prejuízos correspondentes ao ganho líquido resultante da revenda de gás da marca ESSO por mais cerca de 12 anos e meio;

assim como, caso tivesse fornecido à reconvinte as garrafas de gás de que esta necessitava recebendo para o efeito em troca as garrafas de outras marcas, jamais as vendas da reconvinte sofreriam qualquer redução,

pelo que com a quebra contratual levada a cabo pela B ..., a reconvinte sofreu um prejuízo global, relativo a lucros cessantes, não inferior a 600.000,00 €, correspondendo ao valor do lucro liquido anual que deixou de beneficiar durante o período que iria até 21 de dezembro de 2020;

sofreu ainda o prejuízo correspondente aos juros do capital que deixou de auferir, que estima em 144.000,00 €.

Conclui pedindo, em reconvenção, a condenação da Autora/reconvinda no pagamento da quantia de 744.000,00 €.

Na referida ação, em que a B ... formulara pedido de indemnização civil contra a 1ª Ré/reconvinte, foi proferida sentença que:

- considerou que, não tendo a autora/ B ... exercido validamente a resolução do contrato, porque não tinha justa causa para o fazer, extinguindo-se o contrato por inexecução mútua, não tinha a autora direito a qualquer indemnização com esse fundamento, absolvendo a Ré do pedido formulado a tal respeito;

- e que, tendo-se o contrato extinguido por inexecução mútua, também a Ré não tinha direito a receber qualquer indemnização, pelo incumprimento do contrato por parte da autora, absolvendo a autora do pedido reconvencional contra si formulado.

Na presente ação, são formulados quatro pedidos completamente distintos entre si:

a) uma indemnização na quantia de 404.762 €, relativa aos lucros cessantes que a autora deixou de obter pelo facto de o injustificado arresto – um dos créditos em que se baseava veio a ser julgado inexistente e relativamente ao outro a credora nunca procedeu à sua liquidação, deixando caducar o arresto –, na sequência do qual se viu, durante cerca de 3 meses, completamente impedida de exercer a sua atividade, ter tido como consequência a ruína do negócio da autora, com a consequente perda de lucros que poderia ter obtido.

b) restituição do valor de 22.402,09 €, relativo à quantia que a Ré recebeu em depósito pelas garrafas que confiou à autora para comercialização do gás e que já se encontram de novo na posse da Ré;

c) a quantia de 24.938,98 € relativa à garantia bancária associada ao contrato e acionada pela Ré e paga pela autora ao Banco C ...;

d) a quantia de 6.120,00 € correspondente ao valor de aquisição do gás encerrado no interior das garrafas arrestadas;

e) a quantia de 25.000,00 €, relativa à indemnização pelos danos não patrimoniais infligidos à autora através do injustificado arresto.

Ora, com exceção da constante da al. b), nenhuma destas pretensões foi deduzida na ação reconvencional ou objeto de apreciação na sentença que conheceu ação principal e do pedido indemnizatório aí formulado pela Ré a título reconvencional.

Comecemos pela análise dos pedidos indemnizatórios formulados na presente ação aqui identificados sob as alíneas a) e e): a) indemnização no valor de 404.762 €, relativa aos lucros cessantes que a autora deixou de obter pelo facto na sequencia do injustificado arresto e que a Ré deixou caducar; quantia de 25.000,00 €, relativa à indemnização pelos danos não patrimoniais infligidos à autora através do injustificado arresto.

Na 1ª ação que correu entre as partes – na dependência do qual foi requerido e decretado o arresto de bens da aí ré e aqui autora –, em que a B ... formulara pedido de condenação da A ..., numa indemnização pelo incumprimento do contrato no montante de 777.163,03 € e, ainda, no pagamento da quantia de 296.598,26 €, correspondente ao valor do vasilhame propriedade da autora e que a ré se encontrava obrigada a devolver, após desconto do valor das cauções,

concluindo a sentença, aí proferida, pela ilicitude da resolução do contrato levada a cabo pela Ré e que o contrato se extinguiu por inexecução mútua, veio a absolver a Ré do pedido indemnizatório respeitante aos prejuízos decorrentes do incumprimento do contrato, condenando, tão só, a ré no pagamento da quantia correspondente ao valor do vasilhame que ainda detenha em seu poder, descontado o valor das cauções (22.402,09).

Tendo o referido arresto sido instaurado, por apenso àquela 1ª ação, para garantia dos créditos aí reclamados pela aí autora B ..., ambos os pedidos indemnizatórios aqui formulados e referidos nas als. a) e e), têm por objeto os prejuízos alegadamente sofridos pela A ... com o decretado arresto, que esta considera injustificado, precisamente pelo facto de parte do crédito que visava garantir ter vindo a ser julgado improcedente na ação principal, e de, na parte em que visava garantir o crédito respeitante ao valor do vasilhame (credito este aí reconhecido), ter vindo a caducar pelo facto de a credora não ter instaurado a respetiva ação executiva nos termos do artigo 373º do CPC. Ou seja, a autora faz assentar o fundamento de tais pedidos indemnizatórios na previsão do artigo 374º do CPC, “segundo o qual se a providencia for considerada injustificada ou vier a caducar por facto imputável ao requerente, responde pelos danos culposamente causados.

A presente ação começa, em parte, por assim dizer, onde a 1ª ação fez caso julgado entre as partes[1] – ao decidir-se em tal ação que, havendo inexecução mútua do contrato por ambas partes, nenhuma delas tem direito a reclamar qualquer indemnização derivada do incumprimento culposo atribuído à outra parte –, a autora assentar a sua causa de pedir nessa decisão (constituindo um dos seus elementos) para daí retirar que o arresto instaurado na sua dependência se mostrou injustificado: o reclamado crédito de 777.163,03 € veio a ser julgado inexistente na ação principal, vindo a ser declarada a caducidade do arresto, relativamente ao segundo crédito por não ter atempadamente promovido a sua posterior liquidação e cobrança. Mas, envolvendo tal responsabilidade uma causa de pedir complexa, a inexistência desse 1º crédito e a caducidade da providência constituem, apenas, alguns de entre os vários factos em que a autora faz assentar tal responsabilidade, envolvendo ainda a alegação de factos suscetíveis de integrar a culpa do arrestante e a ocorrência dos prejuízo e proveitos que que este deixou de obter em razão do decretamento e execução da providencia.

Com os pedidos a que se reportam as alíneas a) e e), pretende a autora exercitar a responsabilidade da B ... enquanto requerente de um arresto, ao abrigo do disposto no artigo 374º do CPC, relativamente ao qual um dos créditos que se destinava a garantir, veio a ser declarado inexistente, e na parte em que tal crédito veio a ser reconhecido, o arresto veio a caducar por inércia da requerente.

O facto constitutivo da obrigação de indemnizar fundada no artigo 374º, nº1 do CPC é a própria providência cautelar decretada, quer tenha sido ou não executada, sendo esta ilícita por violar os direitos e interesses legalmente protegidos, na medida em que resulta do uso indevido e abusivo da providência cautelar[2].

Na primeira ação, a Reconvinte pretendeu responsabilizar a aí B ... pelos prejuízos decorrentes do incumprimento do contrato celebrado entre ambas (derivados quer da recusa no recebimento do vasilhame de outras marcas, seja da resolução ilícita operada pela autora), movendo-se no âmbito da responsabilidade contratual. Na presente ação, a A ... faz assentar os pedidos reconvencionais que identificamos sob as als. a) e e), nos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais, para si derivados do injustificado arresto conta si intentado e que veio a caducar por facto imputável ao requerente, ou seja, tratando-se de uma responsabilidade civil do foro extracontratual[3] e baseada em pressupostos distintos.

O facto constitutivo da obrigação de indemnizar é, assim, completamente distinto, numa e noutra ações – na primeira reside no incumprimento contratual por parte da B ..., e nesta no decretado arresto –, assim como distintos são os pedidos numa e noutra formulados – embora em ambas as ações seja peticionada uma indemnização por danos emergentes, na ação reconvencional reportam-se aos lucros que estimava obter até ao termo contratualmente acordado e que deixou de obter pela resolução antecipada do contrato (restringindo-se à perda dos lucros originados unicamente do contrato celebrado entre as partes), na presente ação, o pedido de indemnização respeita aos lucros que deixou de obter, na sequência do arresto (pelo facto de ter ficado impedida de exercer a sua atividade durante 3 meses, o que levou à ruina do seu negócio) e até 2017, bem como aos danos não patrimoniais causados à sua reputação, prejuízos estes reportados agora à totalidade do seu negócio (que abrangia o fornecimento de gás de outras marcas).

Concluindo, relativamente aos pedidos indemnizatórios formulados nas als. a) e d), não se verifica a identidade de pedidos nem de causa de pedir[4], se verificando a exceção de caso julgado.

Quanto ao pedido de restituição do valor correspondente à quantia que a Ré recebeu em depósito pelas garrafas [pedido referido sob a alínea b)], foi já objeto de apreciação por parte do tribunal na primeira ação, onde se decidiu que tal crédito da reconvinte deveria ser objeto de compensação no crédito que aí foi reconhecido à autora, a liquidar em execução de sentença. Este sim, encontra-se abrangido pela exceção de caso julgado.

Quanto ao pedido formulado na presente ação e a que se reporta a al. c) – pagamento da quantia de 24.938,98 € relativa à garantia bancária associada ao contrato e acionada pela Ré, e paga pela autora ao Banco C ... – e pedido formulado sob a al. d) – a quantia de 6.120,00 € correspondente ao valor de aquisição do gás encerrado no interior das garrafas arrestadas –, nenhum deles havia antes sido objeto de formulação prévia, sendo que, a autora faz assentar o pedido de devolução da garantia bancária, no facto de o seu acionamento ter sido uma consequência do referido arresto, e quanto ao pedido correspondente à devolução do gás das garrafas, decorrerá da simples extinção do contrato e, não, da ilicitude da resolução que serviu de fundamento ao pedido reconvencional por si formulado na primeira ação.

É certo que alguns dos factos aqui alegados (nomeadamente os respeitantes ao incumprimento do contrato por parte da Locadora/ B ...) haviam já sido objeto de alegação na primeira ação/reconvenção (independentemente do juízo de (i)relevância que os mesmos possam ter para a presente ação).

Contudo, como salienta Rui Pinto[5], quando se trata da delimitação de uma ação perante outra, nomeadamente para efeitos da verificação de caso julgado, a lei usa no nº4 do artigo 581º, do CPC, um conceito restrito de causa de pedir que apenas compara os factos principais das duas causas.

Segundo o nº4 do artigo 581º, do CPC, repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, havendo identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico – nas ações reais a causa de pedir é facto jurídico concreto de que resulta o direito real concreto, nas ações constitutivas ou de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.

A identidade e a individualidade da causa de pedir têm de aferir-se em função de uma comparação entre o núcleo essencial de cada uma delas, não sendo afetada tal identidade, nem por via da alteração da qualificação jurídica dos factos concretos em que se fundamenta a pretensão, nem por qualquer ampliação fatual que não afete o núcleo essencial da causa de pedir que suporta ambas as ações, nem pela invocação na primeira ação de determinada factualidade, perspetivada como meramente instrumental ou concretizadora de factos essenciais[6].

Concluindo, apenas relativamente ao pedido formulado sob a alínea e), se reconhece a verificação da exceção de caso julgado, impeditiva do prosseguimento da presente ação para apreciação do mesmo.

A Apelação é de improceder.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando-se a decisão recorrida, reconhecendo-se a verificação da exceção de caso julgado unicamente quanto ao pedido formulado sob a al. e) – quantia de 22.402,09 €, relativa à caução que garantia o valor das garrafas confiadas em depósito à autora –, do qual a Ré vai absolvida da instância, determinando-se o prosseguimento da ação para conhecimento dos demais pedidos.

Custas a suportar pela Apelante e pela Apelada, na proporção do decaimento.

                                                                             Coimbra, 09 de novembro de 2021


[1] Pressupondo o caso julgado a repetição de uma causa, a identidade objetiva para efeitos de caso julgado é reportada, não ao objeto das pretensões deduzidas, mas antes ao “thema decisum”, ao objeto da sentença primeiramente proferida, que pode não coincidir necessariamente com o objeto da ação pretensão inicialmente formulada pelo autor – Francisco Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, Vol. II, 2ª ed., Almedina, p.710.
[2] Ana Carolina dos Santos Sequeira, “O Arresto como Meio de Conservação da Garantia Patrimonial”, Almedina, p. 546.
[3] Cfr. Marco Carvalho Gonçalves, “Providências Cautelares”, 2015, Almedina, p. 409.
[4] Não se pondo a hipótese de existência de causas de pedir concorrentes, cumulável ou não com a da 1º ação, o que pressuporia a identidade do pedido.
[5] Por contraponto ao conceito amplo de causa de pedir correspondente à função de sustentação fáctica adequada do impulso processual, concretizado nos ónus de substanciação e da prova, in “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Julgar Online; novembro 2018, p.9, e “Notas ao Código de Processo Civil”, Vol. I, 2ª ed. Coimbra Editora, anotação ao artigo 5º, pp.24-25.
[6] Cfr. Ac. do STJ de 14.12.2016, relatado por Lopes do Rego, disponível in www.dgsi.pt.