Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1703/14.8T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME CARLOS FERREIRA
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
REQUISITOS
PROCEDIMENTO CAUTELAR PARA ENTREGA JUDICIAL DE VEÍCULO
Data do Acordão: 01/23/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JC CÍVEL DE LEIRIA – J4
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 21º DO DEC. LEI Nº 149/95, DE 24/06, COM AS ALTERAÇÕES RESULTANTES DO DEC. LEI Nº 30/2008, DE 25/02; ARTº 281º, Nº1 DO NCPC.
Sumário: I – Como claramente resulta da norma do artº 281º, nº 1 do nCPC, a deserção da instância nela cominada só pode ser declarada judicialmente no caso de poder considerar-se negligente a falta de satisfação do ónus de impulso processual por parte daquele sobre quem tal ónus impende.

II - Mas essa dita negligência processual não pode presumir-se do simples facto de ter decorrido o aludido prazo de seis meses sem que alguma diligência tenha sido promovida por parte daquele que tem aquele ónus.

III - Com efeito, cumpre sempre que o tribunal diligencie, antes de declarar a deserção da instância, pelo apuramento do circunstancialismo factual que permita sustentar a afirmação do comportamento negligente que procura sancionar-se com a cominada deserção.

Decisão Texto Integral:          






   Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I

No Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juízo Central Cível de Leiria - Juiz 4, corre termos o presente procedimento cautelar para entrega judicial de veículo – nos termos do artº 21º do Dec. Lei nº 149/95, de 24/06, com as alterações resultantes do Dec. Lei nº 30/2008, de 25/02 - que o Banco B…, SA., com sede na …, instaurou contra a sociedade ‘T…, L.dª’, com  sede na …, relativo ao veículo automóvel matrícula …

Com data de 23/01/2015 foi proferida sentença a julgar o procedimento cautelar parcialmente procedente e a determinar que a sociedade requerida proceda à efectiva entrega desse veículo ao Requerente.

Nessa sequência, em 27/01/2015 foi requerido pelo A. que fosse oficiado à GNR no sentido de proceder à apreensão e à entrega ao A. do dito veículo, o que foi diligenciado fazer-se através de funcionário judicial, mas sem resultado, por não ter sido possível localizar a dita viatura, tendo, nessa sequência, a Requerida informado nos autos que o veículo se encontrava, à data, fora do país, numa obra sua em curso em França.

Entretanto, foi pela senhora administradora judicial provisória da dita sociedade requerido que fosse fixada dia e hora para se fazer a entrega da viatura ao Requerente – conforme fls. 183 -, tendo posteriormente a sociedade Requerida informado nos autos que no dia e hora acordados para esse efeito a Requerente não fez comparecer um seu representante a quem a viatura pudesse ser entregue – fls. 189.

Emitido novo mandato judicial para se fazer essa entrega, foi elaborado o auto de fls. 214, datado de 13/10/2015, do qual consta que o veículo em causa se encontrava, nessa data, em Espanha, a laborar ao serviço da Requerida.

Pela Requerida foi nessa mesma data requerido nos autos que essa entrega tivesse lugar em 30/10/2015 – fls. 218 -, tendo-se agendado diligência para o efeito, na qual a dita entrega também não ocorreu, conforme auto de fls. 233.

Em 15/01/2016 foi proferido despacho a mandar notificar a Requerida para informar qual a data de regresso a Portugal da viatura em causa, tendo esta requerido que essa entrega tivesse lugar em 10 de Agosto de 2016 – fls. 255.

Em 08/03/2016 e em 13/04/2016 foram proferidos despachos onde se determinou que fosse a Requerente a impulsionar a entrega coerciva do veículo – fls. 260 e fls. 264.

A Requerente requereu então que fosse oficiado à GNR e à PSP para se proceder à apreensão do veículo, ao que foi deferido, conforme fls. 267.

Porém, por ofícios de 27/05/2016 e de 31/10/2016 foram os autos informados de que era desconhecido o paradeiro da dita viatura, mas que se encontra inserido na base de dados dessas entidades o pedido de apreensão da dita viatura – fls. 268 e 273.

Em 21/11/2016 foi proferido novo despacho a convidar a Requerente a precisar qual a utilidade da pendência dos autos – fls. 277.  

Em 13/12/2016 foi proferido novo despacho a determinar que os autos aguardassem por mais 30 dias eventual informação a ser prestada pelas autoridades policiais.

Em 23/01/2017 novo despacho foi proferido a determinar que os autos aguardassem o que de útil fosse requerido ou informado, sem prejuízo do disposto no artº 281º, nº 1 do CPC, do que foi o Requerente notificado – fls. 289. 

            Como nada de novo surgiu ou foi requerido, em 10/10/2017 foi proferido o seguinte despacho:

               ‘No âmbito dos presentes autos, por despacho proferido em 23.01.2017, cuja notificação foi inserta no citius nessa mesma data, foi determinado que os autos continuassem a aguardar o que de útil viesse a ser requerido com vista à concretização da providência, sem prejuízo do decurso do prazo a que alude o artigo 281º, nº1, do Código de Processo Civil.

Dispõe esse artigo 281º, nº1, que se considera deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontrar a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

Tem sido entendimento comummente adotado que a assunção pelo demandante de uma conduta omissiva que, necessariamente, não permite o andamento do processo, estando a prática do ato omitido apenas dependente da sua vontade, é suficiente para caracterizar a sua negligência.

No caso dos autos, não tendo sido alegado e demonstrado que haja sido por causa imputável a terceiros que a requerente se viu impedida de praticar os atos que lhe eram exigidos, para viabilizar a concretização da providência, há que concluir pela verificação da sua negligência.

Nesta sede, perfilha-se o entendimento vertido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.09.2016, proferido no Processo nº1742/09.0TBBNV-H.E1.S1 (disponível no site da dgsi), no qual é dito:

«Deixando a Autora de impulsionar o processo, por mais de seis meses, através da dedução do processo incidental de habilitação de sucessores, nem tendo apresentado dentro desse período de tempo qualquer razão impeditiva da não promoção, estamos perante uma omissão de impulso a qualificar necessária e automaticamente como negligente, e que implica a deserção da instância.

(…) A negligência a que se refere o nº 1 do art. 281º do CPC não é uma negligência que tenha de ser aferida para além dos elementos que o processo revela, pelo contrário trata-se da negligência ali objetiva e imediatamente espelhada (negligência processual ou aparente).

(…) Tal negligência só deixa de estar constituída quando a parte onerada tenha mostrado atempadamente estar impossibilitada de dar impulso ao processo.

(…) Inexiste fundamento legal, nomeadamente à luz do princípio do contraditório, para a prévia audição das partes no contexto da deserção da instância com vista a aquilatar da negligência da parte a quem cabe o ónus do impulso processual.»

No mesmo sentido veja-se o Acórdão do mesmo Tribunal Superior proferido no processo nº105/14.0TVLSB.G1.S1, em 14.12.2016:

«O artigo 281.º do CPC/2013 prescreve:

Artigo 281.º

Deserção da instância e dos recursos

1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

2 - O recurso considera-se deserto quando, por negligência do recorrente, esteja a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

3 - Tendo surgido algum incidente com efeito suspensivo, a instância ou o recurso consideram-se desertos quando, por negligência das partes, o incidente se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

4 - A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator.

5 - No processo de execução, considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

(…) O aludido preceito não prescreve que a decisão a considerar deserta a instância seja proferida notificando-se previamente as partes para se pronunciarem sobre se estão efetivamente verificados os pressupostos que a determinam. Há efetivamente casos em que a lei prescreve que a decisão não seja proferida sem prévia audição das partes - decisão sobre agilização processual (artigo 6.º/1), decisão sobre o texto final da ata em caso de invocada desconformidade entre o teor do que foi ditado e o ocorrido (artigo 155.º/9), decisão sobre prazo mais longo ou mais curto para o cumprimento das cartas (artigo 176.º/3), decisão sobre a apensação de processos (artigo 267.º/4), decisão sobre a fixação da indemnização no caso de litigância de má fé quando não haja elementos para se fixar logo na sentença a importância da indemnização (artigo 543.º/3).

(…) Fora dos casos em que a lei impõe que o juiz ao proferir decisão ouça as partes independentemente de estas terem suscitado qualquer questão de facto ou de direito, o juiz deve proferir decisão fundamentada à luz das regras de direito aplicáveis, decisão que é sempre passível de impugnação nos termos da lei.

(…) Nos casos apontados, a audição das partes visa evitar decisões oficiosas que implicam um fator de surpresa para as próprias partes, o que não sucede no caso de deserção pelo decurso do prazo de seis meses, pois é certo que, neste caso, é a própria lei que fixa um prazo, advertindo que ele constitui condição sine qua non de deserção da instância. Da lei resulta que, decorrido esse prazo, sem que nada seja requerido nos autos, o Tribunal não pode deixar de considerar verificada ipso facto uma situação de negligência e isto porque o Tribunal, para proferir a decisão, apenas se pode socorrer dos elementos que estão nos autos (quod non est in actis non est in mundo) e não dos elementos que os interessados podiam ter apresentado no processo que pudessem então viabilizar ao juiz considerar que, não obstante o decurso do prazo de seis meses, não ocorria situação de negligência.

(…) Perante os termos da lei e notificada a suspensão da instância, não pode deixar de se considerar que a inércia do interessado que nenhuma informação traga ao Tribunal levará necessariamente, decorrido o aludido prazo, à deserção da instância.

(…) Não se vê que este entendimento não seja razoável ou que seja desproporcionado ou que o prazo não seja suficientemente amplo para viabilizar aos interessados o conhecimento de que os autos estão suspensos para poderem levar ao tribunal o conhecimento de situações que justifiquem manter-se a suspensão da instância para além do aludido prazo. Acresce que se a lei aqui não cuidou de impor a prévia audição das partes foi porque considerou que a fixação perentória da deserção da instância nos termos assinalados a impor, no caso de inércia, a prolação de decisão leva a que esta não possa considerar-se inesperada ou surpreendente.

(…) O princípio do contraditório tem em vista questões de facto ou de direito que sejam suscitadas no processo, impondo-se ao Tribunal decidi-las, não tem em vista, o que é completamente diferente, impor ao Tribunal, no âmbito de um incidente inominado que não está previsto na lei, convidar os interessados que no aludido período de seis meses optaram por não juntar aos autos nenhum documento nem suscitar qualquer questão, explicar o seu comportamento ou apresentar os documentos ou suscitar as questões que podiam ter suscitado e não suscitaram.

(…) Cumpre in casu às partes ou aos interessados decidir no seu critério se efetivamente pretendem ou não sujeitar certas questões ao Tribunal, situando-nos, como se salientou no acórdão recorrido, no âmbito do princípio da autoresponsabilização das partes.

(…) O vocábulo "automatismo" envolve, a nosso ver, alguma ambiguidade. O juiz obviamente não tem automaticamente de decidir, decorrido o prazo de seis meses, que a instância está deserta, pois, dispondo nos autos de elementos, pode considerar que, não obstante o decurso do prazo, não houve negligência.

(…) Do exposto decorre que o regime processual fixado no sentido de ope judicis, ou seja, por ato do juiz se impor a extinção da instância por deserção decorrido o assinalado prazo de seis meses em caso de inércia da parte que tem o ónus de, antes desse prazo decorrer, proporcionar ao Tribunal o conhecimento das ocorrências que justificam que a deserção não seja decretada por não haver negligência, não se afigura o regime legal fixado nem desproporcionado nem excessivo, sabendo-se que, não obstante a deserção da instância, o direito de ação fica intacto e sabendo-se ainda que a parte ou o seu mandatário pode invocar justo impedimento demonstrativo de que esteve impossibilitada de exercer a sua atividade por caso de força maior ou por evento que não lhes é imputável (artigo 140.º do CPC/2013).

(…) O Supremo Tribunal já se pronunciou sobre esta questão nos Acs de 10-9-2015 com sumário infra transcrito (que relatámos) Incidente n.º 955/10.7TBVVD.G1.S1 - 7.ª Secção[1] e de 20-9-2016 (rel José Rainho), revista 1742/09.0TBBNV-H.E1.S1[2] que podem ser consultados em www.stj.pt e www.dgsi.pt

Concluindo:

I - Suspensa a instância por óbito do autor e decorrido o prazo de seis meses em que o processo se encontra a aguardar impulso processual, o Tribunal deve proferir despacho a julgar deserta a instância (artigo 281.º do CPC/2013), não impondo a lei que o Tribunal, antes de proferir a decisão, ouça as partes ou qualquer dos sucessores tendo em vista determinar as razões da sua inércia.

II - Impendendo sobre as partes que sobreviveram ou qualquer dos sucessores o ónus do impulso processual, cumpre-lhes levar ao processo as circunstâncias que levam o Tribunal a considerar que ocorre situação justificativa de que não se considere verificada inércia negligente.

III - Ainda assim, e no caso de deserção da instância por não ter sido levado ao conhecimento do Tribunal nenhuma circunstância que afaste o juízo de negligência, a parte ou o seu mandatário podem invocar justo impedimento nos termos do artigo 140.º do CPC/2013.

IV - Considerando que a deserção da instância per se não implica a perda do direito de ação, considerando que o prazo de seis meses é um prazo suficientemente amplo para que os interessados possam ter conhecimento da ação suspensa e exercer, querendo, os seus direitos processuais, considerando ainda que, mesmo em caso de inércia a impor decisão que declare a deserção da instância, salvo fica sempre o justo impedimento, não se justifica interpretação corretiva da lei no sentido de impor a audição das partes, decorrido o prazo de seis meses e antes de ser proferida decisão a julgar deserta a instância.»

No seguimento desse entendimento do nosso Supremo Tribunal de Justiça, com o qual se concorda, na íntegra, há que concluir que, no caso dos autos, o mero silêncio das partes – mais precisamente da requerente -, na sequência do referido despacho, é demonstrativo da sua injustificada negligência em impulsionar o processo.

Acresce que, pese embora tenha de ser judicialmente declarada, a deserção da instância dá-se por mero efeito do decurso do tempo, preenchida que esteja a hipótese da citada norma – ou seja, perfilha-se a tese do efeito declarativo da deserção e constitutivo “ex tunc” sobre o processo.

Como defendido por Paulo Ramos de Faria, in ‘O julgamento da deserção da instância declarativa – Breve roteiro jurisprudencial, Revista Julgar, 2015’:

«A circunstância de a lei estabelecer que determinado facto deve ser judicialmente declarado, isto é, julgado verificado, não converte este julgamento na causa dos efeitos que, na verdade, são produzidos pelo facto declarado (…). Ou seja, concretizando na deserção da instância, o julgamento desta, isto é, o seu reconhecimento não é, óbvia e logicamente, um seu pressuposto. Os pressupostos da deserção são a paragem do processo, por inércia das partes, e o decurso do tempo; o seu efeito (não o efeito do seu julgamento) é a extinção da instância (artigo 277º, alínea c)).

O julgamento da deserção traduz-se no reconhecimento judicial da verificação do seu primeiro requisito – paragem do processo por inércia das partes – por seis meses e um dia. É aqui que ocorre a deserção; é aqui que os seus pressupostos constitutivos se reúnem. O juízo exigido pela norma contida no nº4 do artigo 281º é, neste sentido, meramente declarativo (…). O facto jurídico processual extintivo da instância não é interpretado (praticado) pelo juiz, ao contrário do que ocorre com o julgamento (artigo 277.º, al. a)), resultando tal extinção, sim, diretamente da deserção declarada pelo tribunal – isto é, da deserção julgada verificada, por verificados estarem os seus pressupostos de facto. Confrontando os enunciados das alíneas a) e c) do artigo 277º, nota-se que a lei não estabelece que a instância se extingue por força do julgamento da deserção, embora ele seja necessário para que esta tenha repercussões processuais. Desta asserção, que, em boa verdade, nos parece apodítica, retira-se que, após a ocorrência da deserção e antes de ser ela judicialmente reconhecida, os atos putativamente processuais espontaneamente praticados pelas partes são potencialmente desprovidos do seu efeito jurídico processual típico (…). Tais atos não são idóneos a impedir o julgamento de deserção da instância (…) . A ideia de que o demandante ainda pode praticar um ato redentor após a deserção, mas antes de ela ser declarada, assim impedindo o seu conhecimento, tem cabimento num sistema que, ao contrário do que ocorre com o nosso, tenha um fundamento subjetivo, apoiando-se na renúncia presumida à lide (vontade de abandono) – presunção esta que é serodiamente ilidida com o referido ato (…) . Dizemos “potencialmente” pois, sendo a lei clara na exigência do reconhecimento judicial da deserção, esta só terá efeitos no processo se o tribunal a declarar (..). A declaração da ocorrência deste facto jurídico involuntário tem, pois, efeitos constitutivos ex tunc sobre o processo, reportando-se à data da ocorrência do facto jurídico extintivo, isto é, da deserção declarada. O conhecimento oficioso da deserção é coerente com esta conclusão, revelando tal oficiosidade que não está na disponibilidade das partes aceitar a sobrevivência da instância (réu) ou, por paridade, praticar atos após a ocorrência da deserção (autor).»

Assim, face a este entendimento qualquer acto que viesse agora a ser praticado pelas partes, decorrido que está o aludido prazo de seis meses, não seria idóneo a obstar à declaração da deserção da instância.

Na decorrência de todo o exposto e ao abrigo do normativo legal citado julga-se extinta a instância respeitante à concretização da providência decretada nos autos, por deserção.

Notifique.’.


II

            Deste despacho interpôs recurso o Requerente, em cujas alegações formula a seguinte conclusão:

‘Em conclusão, por violação do disposto no artigo 2º, nº 1, do Código de Processo Civil, e igualmente por violação do disposto nos números 1 e 5 do artigo 281º do referido normativo legal, deve o presente recurso ser julgado procedente e provado e, em consequência, revogar-se a sentença recorrida e substituir-se a mesma por Acórdão que ordene o normal e regular prosseguimento da presente providência, com vista à apreensão e restituição ao recorrente do veículo a que os autos se reportam, desta forma se fazendo correcta e exacta interpretação e aplicação da lei.’.


III

            Não foram apresentadas contra-alegações e o dito recurso foi admitido em 1ª instância, como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, tendo como tal sido aceite nesta Relação.    

            Nada obsta a que se conheça do seu objecto, o qual se traduz na reapreciação do dito despacho recorrido, que decidiu pela deserção da presente instância, contra o que se revela o Recorrente.

Prescreve o art. 281º/1 do NCPC que “Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.”.

Como claramente resulta da citada norma, a deserção da instância nela cominada só pode ser declarada judicialmente no caso de poder considerar-se negligente a falta de satisfação do ónus de impulso processual por parte daquele sobre quem tal ónus impende.

Mas essa dita negligência processual não pode presumir-se do simples facto de ter decorrido o aludido prazo de seis meses sem que alguma diligência tenha sido promovida por parte daquele que tem aquele ónus.

Com efeito, cumpre sempre que o tribunal diligencie, antes de declarar a deserção da instância, pelo apuramento do circunstancialismo factual que permita sustentar a afirmação do comportamento negligente que procura sancionar-se com a cominada deserção.

No caso dos presentes autos, pese embora o Tribunal tenha por mais de uma vez notificado o Requerente para diligenciar no sentido de requerer o que tivesse por conveniente, designadamente com citação do artº 281º do nCPC (que foi notificado ao Requerente), como sucedeu pelos despachos de 21/11/2016 – fls. 277 – de 13/12/2016 – fls. 230 - e de 23/01/2017 – fls. 281 -, o certo é que o Requerente requereu que fosse oficiado à GNR e à PSP para se proceder à apreensão do veículo, ao que foi deferido, conforme fls. 267.

E pelos ofícios de 27/05/2016 e de 31/10/2016 foram os autos informados de que era desconhecido o paradeiro da dita viatura, mas que se encontra inserido na base de dados dessas entidades o pedido de apreensão da dita viatura – fls. 268 e 273.

E em 21/11/2016 o Requerente informou nos autos que continua a aguardar que as autoridades policiais procedam à requerida e ordenada apreensão da viatura, revelando-se contra eventual despacho de extinção da instância, conforme fls. 278vº. 

Assim sendo, afigura-se-nos que fica sem qualquer suporte factual a decisão de sancionar o Apelante com a decisão de deserção da instância – o que pressupõe uma omissão negligente que não pode seguramente imputar-se-lhe -, tanto mais que o Tribunal não pediu qualquer outra informação às entidades policiais acerca da apreensão pretendida e ordenada, como também não solicitou à senhora administradora judicial provisória da Requerida informação actual sobre a situação da empresa e se de facto está a laborar no estrangeiro, bem como sobre o paradeiro da viatura em causa, o que claramente parece fazer sentido e até se impor que seja feito, face a factualidade supra relatada relativa às diligências encetadas com vista à efectiva entrega da viatura ao Requerente, como foi determinado nos autos, por sentença transitada em julgado.

Logo por aqui se verifica que a decisão recorrida não pode subsistir, pois que não se afigura que se possa considerar como negligente o comportamento do Requerente.

O sentido exposto parece-nos ser aquele que vem sendo seguido de forma unânime pela jurisprudência acerca da interpretação a dar ao artº 281º do nCPC, como por exemplo resulta dos seguintes arestos, todos disponíveis em www.dgsi.pt/jtr...:

- Ac. Rel. Coimbra de 20/09/2016, Procº nº 1215/14.0TBPBL-B.C1, de cujo sumário consta:    

I) A deserção da instância cominada no art. 281º/1 do NCPC só deve ser declarada se os autos permitirem dar por demonstrado um circunstancialismo fáctico evidenciador de um incumprimento negligente do dever de impulso processual.

            - Ac. Rel. Coimbra de 14/06/2016, Proc.º nº 4386/14.1T8CBR.C1;

            - Ac. Rel. Coimbra de 04/04/2017, Proc.º nº 407/09.8TBNZR-A.C1;

            - Ac. Rel. Coimbra de 18/05/2016, Proc.º nº 127/12.6TBVLF.C1;

            - Ac. Rel. Lisboa de 12/05/2015, Proc.º nº 309/14.6YXLSB.L1-7;

            - Ac. Rel. Lisboa de 26/02/2015, Proc.º nº 2254/10.5TBABF.L1-2;

            - Ac. Rel. Lisboa de 29/11/2016, Proc.º nº 737/10-6TBPDL-A.L1-7;

            - Ac. Rel. Lisboa de 16/11/2017, Proc.º nº 267/12.1TBVFX.L1-2.

            Em tais arestos se vem entendendo que o prazo curto de 6 meses agora consagrado nos nºs 1, 3 e 5 do artº 281º do nCPC, face às consequências gravosas - para o Autor/Exequente, em regra - da deserção da instância, bem assim da necessidade de verificação segura de que a ausência de impulso processual há mais de seis meses se deve a negligência das partes, impõem que o Tribunal, antes de proferir uma tal decisão e na concretização do dever de cooperação e do cumprimento do contraditório, dê às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre essa matéria (artºs 3º, nº 3 e 7º, nº 1, do NCPC).

            No caso presente tal oportunidade foi dada ao Requerente e este requereu que os autos aguardassem as diligências a levar a cabo pelas forças policiais, pois que pouco mais do que isso parece poder fazer, tanto mais que desconhece o paradeiro efectivo da viatura em questão, que alegadamente se encontrará em obra da Requerida em Espanha ou em França, mas sem conhecimento real dessa situação, no que compete ao tribunal também diligenciar saber, nos termos dos artºs 2º, 6º e 7º do nCPC. 

O que sucedeu, no caso “sub judice”, é que apenas se constatou que o processo estava a aguardar impulso processual há mais de seis meses e imputou-se, por presunção, essa falta de impulso, ao Requerente.

Ora, a deserção da instância não dispensa que se apure, concretamente, que a falta de impulso processual dos autos se deve a negligência das partes, sendo que, no caso, não se apurou essa negligência relativamente ao Requerente.

Face ao que se nos afigura que tem o Recorrente razão na suas alegações recursivas, revelando-se contra o despacho recorrido, no sentido de que caberá ao Tribunal também diligenciar no sentido da efectiva apreensão da viatura ou do conhecimento dessa impossibilidade, nos termos supra referidos, sem o que não se pode julgar como negligente o comportamento do Requerente, pelo que se entende dever proceder o presente recurso e dever ser revogado o despacho recorrido, o que se decide.


IV

            Decisão:

            Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o presente recurso, revogando-se o despacho recorrido, a fim de que pelo Tribunal recorrido possam pelo menos ser levadas a cabo as diligências supra referidas ou sugeridas, posto que só então se poderá avaliar acerca do eventual comportamento negligente (ou não) do Requerente.

            Custas pela Requerida – artº 527º, nºs 1 e 2 do nCPC.

                                               Tribunal da Relação de Coimbra, em 23/01/2018


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