Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
180/07.1TBTCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: PROPRIEDADE
MURO
MEAÇÃO
COMUNHÃO FORÇADA
Data do Acordão: 03/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.1305, 1370 CC
Sumário: 1. O art.1370 nº1 do CC confere ao proprietário do prédio confinante o direito potestativo de obter a aquisição, mediante a correspondente contrapartida económica, da compropriedade de muro ou parede que separe o seu prédio do prédio vizinho, impondo ao proprietário deste a sujeição a essa transferência.
2. A aquisição da comunhão pode ser parcial quanto à extensão e quanto à altura, mas não quanto à espessura; pelo que respeita à altura deve entender-se que esta conta-se sempre das respectivas fundações.

3. A ratio do instituto da comunhão forçada, consagrado no art. 1370º, nº1 do CC, é evitar a proliferação de construções inúteis e desnecessárias e promover um aproveitamento mais racional do espaço.

4. O art. 1370º, nº1 do CC não contempla a possibilidade de aquisição da comunhão forçada de um muro divisório quando um dos proprietários confinantes já antes construiu, em propriedade exclusiva, uma parede paralela a esse muro, ainda que essa parede faça parte da edificação de um prédio urbano.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I.RELATÓRIO

1. A (…) e M (…), residentes em ..., ...propuseram acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra J (…) e M (…) residentes no ..., ..., ..., pedindo que estes sejam condenados:

- a reconhecer que os AA. são os legítimos proprietários do prédio urbano inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ... da freguesia de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ...sob o n.º .../080188, incluindo o quintal do logradouro e fazendo parte integrante deste o muro de pedra a sul, confinante com a parede norte da casa dos RR.;

- a reconhecer que a implantação do beirado e caleira dos RR. viola o espaço aéreo dos AA.;

- a retirar imediatamente a caleira e o beirado, de forma a que nenhuma saliência permaneça sobre o muro do quintal dos AA.;

- a pagar € 750 de danos não patrimoniais e ainda os danos patrimoniais correspondentes às despesas provocadas com o presente processo e que se liquidarem em execução de sentença.

Para tanto, alegaram, em síntese, que são donos e legítimos proprietários do prédio urbano supra identificado, o qual confina do norte com o prédio urbano pertencente aos RR., sendo que, há uns tempos, estes colocaram na sua parede um beirado e uma caleira que violam o espaço aéreo dos AA.

Os RR. apresentaram contestação, na qual alegaram que, tendo o beirado e a caleira sido construídos sobre o muro que delimita a propriedade dos AA., os RR. sempre teriam direito a adquirir o terreno sobre o qual incide tal prolongamento mediante o pagamento do respectivo preço, nos termos do artigo 1343.º do Código Civil, para além de que, mesmo que assim não se entendesse, os mesmos teriam ainda direito a adquirir comunhão no muro confinante, nos termos do artigo 1370.º do mesmo Código. Concluem, pois, deduzindo reconvenção, na qual peticionam que sejam os AA. condenados a reconhecer aos RR. o direito à acessão industrial, transmitindo a propriedade do terreno ocupado com a construção do beirado e colocação da caleira na parede sul do prédio, e a reconhecer aos RR. a qualidade de proprietários da referida parcela ou, subsidiariamente, a transmitir aos RR. a compropriedade do muro e do solo sobre o qual estão construídos o beirado e a caleira, que delimita o prédio dos AA. e que é contíguo ao prédio dos RR., contra o pagamento de metade do seu valor, e a reconhecer os RR. como comproprietários do muro e do solo sobre que está construído.

Os AA. apresentaram resposta à contestação, na qual defenderam que os RR. não se encontravam de boa fé na obra que realizaram e que não se encontram reunidos os pressupostos da comunhão forçada previstos no artigo 1370.º do Código Civil.

Teve lugar a audiência de julgamento, sendo proferida decisão sobre a matéria de facto, que não sofreu reclamação.

No final, foi proferida sentença que:

a) Julgou a acção parcialmente procedente e condenou os RR.:

- a reconhecerem que os AA. são proprietários do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º .../080188, da freguesia de ..., e inscrito a favor dos AA. sob o artigo ..., do qual faz parte um logradouro e o muro de pedra a sul, confinante com a parede norte da casa dos RR.;

- a pagar aos AA. o montante de € 300 (trezentos euros), a título de danos não patrimoniais;

b) No mais, julgou a acção improcedente, absolvendo os RR. do restante pedido.

            c) Julgou a reconvenção parcialmente procedente, reconhecendo aos RR. o direito a adquirirem comunhão no muro identificado no ponto 7) dos fundamentos de facto em toda a sua extensão e altura, mediante o pagamento aos AA. de metade do valor do muro e de metade do valor do solo sobre que estiver construído, relegando-se a fixação do referido montante para liquidação, nos termos do artigo 47.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, condenando-se, desde já, no que vier a ser liquidado, nos termos do artigo 661.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

            d) No mais, julgou a reconvenção improcedente, absolvendo os AA. do restante pedido.

2. Por não se conformarem com tal decisão, dela interpuseram os Autores recurso de apelação para este Tribunal da Relação, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:

A) O pedido dos RR. formulado na Reconvenção jamais poderá ser considerado procedente.

B) A Reconvenção deduzida pelos RR. não emerge dos mesmos factos que constituem a causa de pedir e o objecto do processo. A reconvenção deduzida pelos RR é inadmissível por não se enquadrar em nenhum dos casos elencados no artigo 274°, nº 2, do CPC, sendo manifesto que não se verifica, no caso, nenhum dos factores de conexão entre o objecto da acção e o da reconvenção.

C) O pedido dos AA tem como causa de pedir a remoção da caleira e do beirado, não se questionando a propriedade do muro, o que, aliás, os próprios RR.. não questionam.

D) Não existe, em nosso entendimento, qualquer conexão entre a causa de pedir invocada pelos AA a que é invocada pelos RR como suporte do pedido reconvencional.

E) Sem prescindir, ainda que assim não se entendesse, é posição da doutrina e jurisprudência que a lei autoriza, mas não impõe a comunhão forçada no solo e no muro (artigo 1370 CC), pelo que não pode ser pedida reconvencionalmente pelo réu.

F) A pretensão dos AA. não deveria  e não poderia ter sido reconhecida pelo Tribunal a quo, dado que, como se referiu, não faz parte do objecto deste processo a discussão da propriedade de qualquer muro ou o seu prolongamento, nos termos do disposto nos artigos 1343° e 1370° do C. Civil, razão pela qual e, sempre com o devido respeito, a pretensão dos RR. se nos revela ininteligível e inepta, , face ao objecto dos presentes autos.

G) Dos elementos factuais existentes nos autos e da prova produzida, impõe-se uma decisão diferente da que foi tomada, violando-se o disposto no artigo 668°, nº1, al. d) do C. P. Civil.

H) Para haver comunhão forçada, é necessário que o adquirente de tal comunhão demonstre dela necessitar. No caso dos autos, os RR. não alegaram qualquer facto demonstrativo dessa necessidade, como dos autos resulta o contrário. Os RR. não tinham necessidade de ocupar o muro dos AA., nem, tão pouco de prolongar o seu beirado e a sua actuação não foi de boa fé.

I)Da inspecção ao local e da visualização do mesmo, resulta claro que os RR. sempre encaminharam as águas do seu telhado para a Rua ou para o colector público, sem necessidade de deitar o beirado para a propriedade dos AA.

J) A comunhão forçada no muro jamais lhe conferiria o direito de construir um beirado, ex novo, ocupando em 20cm de largura e 10 metros de cumprimento a propriedade dos AA. (o seu espaço aéreo), dado que nenhuma servidão de estilicídio existe a favor dos RR., onerando o prédios dos AA.

K) Nos termos do disposto no artigo 712°, nº 1, al a) e b) do C. P. Civil, a decisão do ‘Tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto, pode ser alterada quando do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão e os mesmos impuserem uma decisão diversa. Ora, no caso dos presentes autos, os elementos de prova que foram produzidos e que serviram de base à decisão sobre a matéria de facto, impõem uma decisão diversa.

 L) Os RR. ao realizaram a obra em causa nos autos, violaram o direito de propriedade dos AA., assistindo a estes o direito de exigirem que a caleira e o beirado sejam retirados de imediato, de modo a que seja reposta a situação existente anteriormente à referida violação. A própria sentença, na sua fundamentação, confirma tal circunstância. (cfr. Pag 5 da Sentença).

M) A sentença recorrida viola as normas constantes dos artigos 1370º do C.Civil, artigos 264°, 274° e 668, nº1. al.d). do C. P. Civil.

Findam as suas alegações, pedindo a revogação da sentença recorrida, e a sua substituição “em conformidade com os termos e com os fundamentos acima enunciados”.

 Os apelados contra-alegaram, pugnando pela confirmação da decisão impugnada.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2].

2. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, no caso dos autos cumprirá apreciar fundamentalmente:

- nulidade da sentença;

- admissibilidade da reconvenção;

- se da matéria provada resultam ou não reunidos os pressupostos para a procedência do pedido reconvencional.

III. FUNDAMENTO DE FACTO

Pela primeira instância foram julgados provados os seguintes factos:

1.Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º .../080188, da freguesia de ..., e ali inscrito a favor dos AA. sob o artigo ..., o prédio urbano, composto de casa de 1.º andar, lojas, fábrica de moagem e quintal, a confrontar de nascente e poente com a rua, norte com AL... e sul com AG....

2.Desde 1993 que o prédio referido em 1) está constituído em propriedade horizontal, pelas fracções A e B.

3.A fracção B compõe-se de cave, rés-do-chão direito, 1.º andar, sótão e ainda logradouro destinado a parque de estacionamento.

4.O logradouro referido em 3) tem cerca de 1.100m2 e acesso a partir da zona do edifício e da rua.

5. Encontra-se inscrito a favor dos RR. sob o artigo 905 o prédio urbano, composto de casa de rés - do - chão e dois andares, tendo o rés-do-chão uma garagem, no primeiro andar cinco divisões, cozinha e casa de banho e no segundo andar cinco divisões, cozinha e casa de banho.

6. O prédio referido em 1), mais concretamente o referido logradouro, confina do lado norte com o prédio referido em 5).

7. O logradouro referido em 4) encontra-se separado do prédio referido em 5) por um muro de pedras soltas, com cerca de 60cm de espessura e 10 metros de comprimento, o qual desde sempre foi utilizado exclusivamente pelos AA., que o limparam, repararam e nele apoiaram materiais.

8. Os RR. procederam à construção na parte sul do prédio referido em 5) de um beirado, com cerca de 20cm, e à colocação de uma caleira para condução das águas pluviais.

9. Há uns tempos a esta parte R..., construtor civil que efectuou a obra referida em 8), solicitou autorização por conta dos RR. aos AA. para colocar andaimes no muro referido em 7).

10. Os RR. aproveitaram a colocação de andaimes para efectuar a obra referida em 8).

11. O beirado e a caleira referidos em 8) têm cerca de 10 metros de comprimento.

12.  O beirado e a caleira referidos em 8) encontram-se paralelas ao muro dos AA. referido em 7) e a uma distância, em altura, de cerca de oito metros.

13. Antes da situação referida em 8), a água proveniente do telhado dos RR. escoava para uma caleira colocada sobre a sua parede que dava directamente para a rua.

14. A situação referida em 10) tem acarretado incómodos para os AA., retirando-lhes sossego e tranquilidade.

15. A obra referida em 8) teve início em Dezembro de 2006, tendo ficado concluída em Janeiro de 2007.

16. Os RR. procederam à substituição de uma caleira que já existia.

           

            IV. FUNDAMENTO DE DIREITO

            Embora os recorrentes apelem ao disposto no artigo 712º, nº1, a) e b) do Código de Processo Civil, os mesmos não impugnaram a decisão de facto, não observaram as exigências do artigo 690º-A do mesmo diploma, e não se vislumbra razão para modificar tal decisão.

            Assim, o objecto do recurso pressupõe somente as questões de direito nele suscitadas.

1. Nulidades da sentença

(…)

2. Admissibilidade do pedido reconvencional

(…)

3- Do mérito do julgado

Os ora apelantes propuseram acção declarativa de condenação contra os apelados pretendendo, para além do mais, que sejam estes condenados a retirar de imediato a caleira e o beirado que deitam sobre o muro daqueles, numa extensão de cerca de 10 metros, de forma a que nenhuma saliência permaneça sobre esse muro, por considerarem que a implantação dos referidos beirado e caleira viola o seu espaço aéreo.

Insurgem-se agora, por via do presente recurso, contra a decisão que não condenou os Réus a retirarem o beirado e a caleira, proclamando que a obra em causa viola o seu direito de propriedade, e que, em vez disso, acolheu a pretensão dos Réus, reconhecendo-lhes o direito à comunhão em relação ao muro sobre qual deitam a caleira e o beirado.

Em causa estão dois prédios entre si confinantes: o logradouro, parte integrante da fracção B que, por sua vez, é também parte integrante do prédio dos apelantes, que confina do lado norte com o prédio urbano dos apelados, sendo separados por um muro de pedras soltas, pertencente aos recorrentes.

Resulta ainda do elenco factual provado que os apelados implantaram no seu prédio um beirado, com cerca de 20 cm, e colocaram uma caleira para condução das águas pluviais, ambos numa extensão de cerca de 10 metros de comprimento, paralelos ao muro dos apelantes, a uma distância, em altura, de cerca de oito metros.

Segundo o artigo 1305º do Código Civil, “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”.

Uma das manifestações do reconhecimento desse direito encontra-se plasmada no nº1 artigo 1356º do mesmo diploma legal quando estabelece: “o proprietário deve edificar de modo que a beira do telhado ou outra cobertura não goteje sobre o prédio vizinho, deixando um intervalo mínimo de cinco decímetros entre o prédio e a beira, se de outro modo não puder evitá-lo”.

Como esclarecem Pires de Lima e Antunes Varela[3], “o espaço de cinco decímetros fixado por lei foi o que se considerou necessário para conciliar os interesses conflituantes dos proprietários vizinhos: caindo as águas directamente no prédio superior, elas infiltram-se no respectivo terreno ou espraiam-se por toda a sua superfície e, por virtude disso, quando atingem os prédios inferiores não lhes causam já os mesmos prejuízos que originariam, se aí caíssem directamente.

Esta obrigação legal de suportar o escoamento das águas fluviais só existe quando elas caiam gota a gota nos prédios superiores. Se aqui forem reunidas por acção do homem (através, por ex., de caleiras e tubos de descarga) o seu escoamento para os prédios inferiores não poderá fazer-se sem o consentimento dos respectivos proprietários”.

E adiantam os mesmos Autores: “a doutrina estabelecida, paralela à orientação consagrada agora em matéria de emissões, é a de que o proprietário tem obrigação de construir de modo a que as águas pluviais caídas do seu prédio urbano não vão, através da sua infiltração, prejudicar o prédio vizinho. É, por conseguinte, uma limitação do direito daquele proprietário, e não uma servidão sobre o prédio do outro, que aqui está fundamentalmente em causa. (…)

Na prática, há outros processos de evitar que a cobertura do prédio goteje sobre o prédio vizinho, sem necessidade de guardar o intervalo legal. Um dos mais vulgares é o de conduzir a água por meio de algerozes, ao longo do prédio, até a lançar na via pública ou em algum colector geral”.[4]

No caso em apreço, não é, contudo, contra o gotejamento abusivo sobre o seu prédio que os apelantes pretendem reagir com a acção interposta, mas antes contra o facto de a construção dos apelados - beirado e caleira para condução das águas pluviais - ter sido erigida por sobre o muro daqueles, numa extensão de cerca de dez metros, ofendendo o correspondente espaço aéreo.

Dispõe, com efeito, o nº1 do artigo 1344º do Código Civil que “a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico”.

Não contrariam os apelados a factualidade invocada pelos apelantes, admitindo ter efectuado a construção nos moldes por estes apontados.

Argumentam, todavia, que o fizeram de boa fé, que não pretenderam prejudicar ninguém e, com base nisso e no facto de os apelantes não se terem oposto às obras no prazo legal, peticionam, por via reconvencional, que lhes seja reconhecido o direito à acessão industrial, com transmissão para os mesmos da propriedade do terreno ocupado com a construção do beirado e colocação da caleira, nos termos do artigo 1343º do Código Civil.

Tal pedido - principal - foi julgado improcedente (e acertadamente) na decisão recorrida, que considerou não estarem preenchidos os necessários pressupostos.

Como foi entendido na decisão impugnada, a pretensão dos apelados teria, desde logo, de sucumbir, pois a obra realizada por estes, ou a mando destes, não consubstancia nenhuma construção de edifício, como previsto pelo nº 1 do artigo 1343º do Código Civil, tratando-se antes da colocação de um beirado e de uma caleira, sem implantação estável no solo, num edifício pré-existente. Ou seja, a acessão industrial pressupõe o prolongamento da construção de um edifício por terreno alheio, não a violação do espaço aéreo desse terreno[5].

Para além disso, como também salienta a mesma decisão, não se mostra preenchido o requisito da boa fé exigido para aquela forma aquisitiva de propriedade. Os apelados sabiam que pertencia aos apelantes o muro sobre o qual erigiram a caleira e o beirado, e deles não obtiveram autorização para concretizarem a referida construção[6].

Resta, assim, analisar a pretensão subsidiária formulada pelos Réus/Apelados em sede de reconvenção, ou seja, a transmissão da compropriedade do muro que delimita o prédio dos apelantes do seu e sobre o qual erigiram a obra objecto de litígio, mediante pagamento de metade do seu valor, e o reconhecimento consequente da sua qualidade de comproprietários do muro e do solo sobre o qual está construído.

Na formulação de tal pretensão apoiam-se os Réus no nº1 do artigo 1370º do Código Civil, que determina: “o proprietário de prédio confinante com parede ou muro alheio pode adquirir nele comunhão, no todo ou em parte, quer quanto à sua extensão, quer quanto à sua altura, pagando metade do seu valor e metade do valor do solo sobre que estiver construído”.

Contempla o preceito em causa, tal como se reconhece na decisão impugnada, uma forma coactiva ou coerciva de transferência de propriedade: o proprietário confinante pode exigir a comunhão forçada, no todo em parte, de parede ou muro divisório alheio, suportando metade do preço, quer do muro ou parede em causa, quer do solo sobre o qual estão construídos.

Traduz, simultaneamente, (tal como ocorre nas servidões legais, com a imposição do encargo ao prédio serviente) um limite ao direito de propriedade do dono da parede ou muro, pela introdução das restrições próprias da compropriedade, que lhe é imposta.

Significa que o direito de propriedade nem sempre tem natureza absoluta, podendo sofrer as limitações necessárias para assegurar a tutela de direitos sociais, ou mesmo de natureza particular que com ele possam conflituar.

Como elucida Carvalho Fernandes[7], “as limitações ao conteúdo dos direitos reais decorrentes da contemplação de interesses particulares, numa sua primeira modalidade, estão relacionadas com a maneira de ser de certas categorias de coisas sobre que os direitos reais incidem.

Na verdade, a contiguidade e a proximidade que frequentemente existe entre os prédios, sejam rústicos, sejam urbanos, faz com que o exercício de direitos reais sobre um deles se projecte sobre prédios vizinhos ou, com mais rigor, sobre o interesse de quem sobre eles detém direitos. Por isso se fala, com propriedade, de limitações impostas por relações de vizinhança”.

Neste contexto, reconhece o artigo 1370º, nº1 do Código Civil o direito potestativo ao proprietário do prédio confinante de obter a aquisição, mediante a correspondente contrapartida económica, da compropriedade de muro ou parede que separe o seu prédio do prédio vizinho, impondo ao proprietário deste a sujeição a essa transferência.

Escreve, a propósito do instituto em debate, Rodrigues Bastos[8]: “a natureza do direito à comunhão forçada do muro era fundada, pela doutrina tradicional, nos princípios da expropriação ou nos da venda; mais recentemente tem-se defendido que tal relação deve entender-se compreendida na figura da transferência coactiva.

São pressupostos legais da aquisição da comunhão forçada: um muro erigido sobre prédio vizinho; a contiguidade do prédio com o muro, entendida esta em sentido rigoroso e literal.

A aquisição da comunhão pode ser parcial quanto à extensão e quanto à altura, mas não quanto à espessura; pelo que respeita à altura deve entender-se que esta conta-se sempre das respectivas fundações.

 Esta comunhão forçada atribui ao proprietário confinante «vantagens que de outro modo não conseguiria. «Se quisesse, por exemplo, construir uma edificação, teria de construir um muro ou parede paralela, uma vez que não podia apoiar a construção no muro divisório. Foi precisamente para evitar estas construções, inúteis, perdas de terreno e defeitos nas edificações que a lei facultou o direito de meação no muro ou parede vizinha, dispensando assim a construção inútil de outra parede paralela»”.

Como é reconhecido na decisão nº 2010-60 QPC de 12 de Novembro de 2010, do Conseil Constitutionnel francês, a propósito da análise da constitucionalidade do artigo 661º do Código Civil francês, equivalente ao artigo 1370º, nº1 do Código Civil português, o regime da compropriedade dos muros divisórios é determinada por razões de natureza económica na construção ou edificação e pela necessidade da utilização racional do espaço; o acesso forçado à compropriedade previsto na lei constitui um elemento necessário desse regime, respondendo a um motivo de interesse geral, que constitui o objectivo prosseguido pelo legislador[9].

Essa também foi certamente a ratio que o legislador nacional teve em mente ao criar o instituto da comunhão forçada consagrado no artigo 1370º, nº1 do Código Civil: evitar a proliferação de construções inúteis e desnecessárias e promover um aproveitamento mais racional do espaço.

No caso vertente, o prédio urbano dos apelados confina, por um dos lados, com um muro de pedras soltas, que se encaixa no conceito de muro exigido pela norma em causa, pertencente aos apelantes, o qual separa aquele prédio urbano do logradouro que integra o prédio destes.

Para a construção do seu prédio urbano, os réus/apelados não reclamaram a comunhão forçada do muro dos autores/apelantes, sendo certo que o nº1 do citado artigo 1370º do Código Civil lhes reconhecia aquele faculdade.

Preferiram, antes, na edificação do imóvel, construir uma parede paralela ao mencionado muro, passando a com ele confinar.

E só posteriormente a essa construção e depois da colocação do beirado e da caleira com as características descritas na matéria factual demonstrada, e perante a reacção dos apelantes que, por via da acção proposta, pretendem a retirada quer da caleira, quer do beirado, por violação do seu direito de propriedade, os apelados formularam pretensão de adquirir forçadamente comunhão no muro pertencente àqueles, através do mecanismo do artigo 1370º, nº1 do Código Civil.

O direito potestativo à aquisição da compropriedade nos moldes definidos pelo preceito em causa tem por escopo objectivos bem distintos daqueles que os apelados visam atingir. Estes, com efeito, apenas pretendem, por via da aquisição que só agora reclamam, conferir licitude a uma actuação que, de outro modo, dela está arredada. Ou seja, construído o beirado e a caleira em clara afronta ao direito de propriedade dos apelantes, porque colocados paralelamente sobre o muro exclusivamente pertencente a estes, visam, com a obtenção da comunhão forçada do muro, “branquear” a ilicitude da obra em causa.

Não se enquadra nesta previsão o fundamento teleológico prosseguido pelo citado normativo que, tendo por base uma relação de vizinhança, visa acautelar interesses bem mais amplos e gerais, como já se adiantou.

O artigo 1370º, nº1 do Código Civil, não contempla a possibilidade de aquisição da comunhão forçada de um muro divisório quando um dos proprietários confinantes já antes construiu, em propriedade exclusiva, uma parede paralela a esse muro, ainda que essa parede faça parte da edificação de um prédio urbano.

No caso em apreço, construída pelos apelados a parede da sua casa que, por um dos lados, confina com o muro dos apelantes e que separa o prédio de ambos, constituindo a linha divisória dos mesmos, não lhes assiste posteriormente o direito de adquirirem meação no referido muro; e ainda que essa possibilidade não fosse afastada pelo fim prosseguido pelo artigo 1370º do Código Civil, sempre se teria de classificar de abusivo o exercício do direito que os apelados pretendem fazer valer.

                                             *

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, e, revogando a sentença recorrida na parte sob recurso, condenam os apelados a retirarem, de imediato, o beirado e a caleira que construíram sobre o muro dos apelantes, aos quais o mesmo pertence em exclusivo, julgando improcedente a reconvenção contra eles deduzida, absolvendo-os do respectivo pedido.

Custas: primeira instância (acção e reconvenção) e segunda instância: pelos apelados.


Judite Pires ( Relatora)
Carlos Gil
Fonte Ramos


[1] Artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C., na redacção anterior à introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.
[2] Artigo 664º do mesmo diploma.
[3] “Código Civil Anotado”, vol. III, 2ª ed., pág. 228.
[4] Cfr., no mesmo sentido, Carvalho Fernandes, “Lições de Direitos Reais”, 6ª ed., pág. 223.
[5] Cfr. acórdão do STJ, 11.10.2005, processo nº 05B2493, www.dgsi.pt.
[6] Cfr. acórdãos do STJ, 08.06.99, processo nº 99A350, de 01.03.2007, processo nº 07ª107, da Relação do Porto, 12.06.97, processo nº 9730105, da Relação de Coimbra, 22.06.2010, processo nº 4/08.5TBFVN.C1, todos em www.dgsi.pt.

[7] “Ob. cit.”, págs. 216, 217.
[8] “Notas ao Código Civil”, vol. V, pág. 126.

[9] Retira-se do artigo 6º da referida decisão: “Considérant, en second lieu, que le régime de la mitoyenneté des murs servant de séparation détermine un mode économique de clôture et de construction des immeubles ainsi que d'utilisation rationnelle de l'espace, tout en répartissant les droits des voisins sur les limites de leurs fonds ; que l'accès forcé à la mitoyenneté prévu par la loi constitue un élément nécessaire de ce régime et répond ainsi à un motif d'intérêt général; qu'il est proportionné à l'objectif visé par le législateur ; qu'il est réservé au propriétaire du fonds joignant le mur et subordonné au remboursement à son propriétaire initial de la moitié de la dépense qu'a coûté le mur ou la portion qu'il veut rendre mitoyenne et la moitié de la valeur du sol sur lequel le mur est bâti ; qu'à défaut d'accord des parties, ces conditionsde fond doivent être constatées par la juridiction judiciaire qui fixe le montant du remboursement ; que, compte tenu de ces garanties de fond et de procédure, la restriction portée au droit de propriété par la disposition en cause n'a pás un caractère de gravité tel qu'elle dénature le sens et la portée de ce droit”.