Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1507/10.7TBPMS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: AVAL
RESPONSABILIDADE
AVALISTA
DENÚNCIA
Data do Acordão: 12/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE PORTO DE MÓS – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 32º, 48º, 49º E 78º LULL. ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (AUJ) Nº 4/2013.
Sumário: I – Sendo o subscritor da livrança responsável da mesma forma que o aceitante de uma letra (artº 78º da LEI UNIFORME RELATIVA A LETRAS E LIVRANÇAS), sobre aquele tem o portador inicial, no caso de falta de pagamento, um direito de acção resultante da livrança, em relação a tudo que pode ser exigido nos termos dos artigos 48.º e 49.º (artº 77 da LULL).

II - Tendo o aval uma função de garantia, inserida ao lado da obrigação de um certo subscritor cambiário, a cobri-la ou caucioná-la, o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada - art. 32º, nº 1, da LULL - o que significa que a medida da responsabilidade do avalista é a do avalizado.

III - Tendo o aval sido prestado de forma irrestrita e ilimitada, não é admissível a sua denúncia por parte do avalista, sócio de uma sociedade a favor de quem aquele foi prestado, em contrato em que a mesma é interessada, ainda que, entretanto, venha a ceder a sua participação social na sociedade avalizada.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório:

A) - 1) - O “BANCO A.., S.A.” intentou, no Tribunal Judicial de Porto de Mós, execução comum para pagamento de quantia certa, fundada em livrança subscrita pela firma “E..., Lda” e avalizada, entre outros, pelo também executado D..., residente na ...

2) - Em 23 de Março de 2012 veio o referido executado, D..., deduzir oposição à execução, pedindo a respectiva extinção, quanto a ele, por não ser responsável pelo pagamento peticionado.

Para o efeito, alegou, em síntese:

- Que renunciou a todos os cargos de administração da sociedade executada, bem como denunciou todos os avais dados à mesma sociedade;

- Ter havido preenchimento abusivo da referida livrança, por falta de pacto de preenchimento;

- Existir abuso do direito, por parte do exequente.

3) - O Banco exequente contestou, pugnando pela improcedência da oposição.

4) - No despacho saneador, proferido em 19/11/2013, entendendo estar já na posse de todos os elementos que a isso a habilitavam, a Mma. Juiz do Tribunal “a quo” julgou a oposição à execução totalmente improcedente.

5) - Desta decisão recorreu os Opoente, tendo o recurso sido admitido como Apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

B) - É esse recurso de Apelação que ora cumpre decidir, sendo que Recorrente, no termo da respectiva alegação, oferece as seguintes conclusões:

...

O Banco Apelado respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.

C) - Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho[1], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que o Tribunal pode ou não abordar, consoante a utilidade que veja nisso (Cfr., entre outros, no âmbito das normas correspondentes do direito processual pretérito, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça[2], de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e de 08/11/2007, proc. n.º 07B35863)[3].
Importa começar por dizer que, sendo o objecto de recurso delimitado pelas conclusões, que são um resumo, uma síntese, do que se expôs na alegação de recurso, assim como é destituída de relevância a questão que, embora haja sido suscitada nas alegações, não conste das conclusões, também irreleva a menção nestas de questão que não haja sido abordada no corpo alegatório.[4]
Ora, o Apelante, embora haja afirmado, na conclusão 18º, que a “tese de que o aval é irrevogável, convertendo-o assim em obrigação desprovida de limite de tempo” é vedada pela “al. j) do art. 18.º do D. L. n.º 446/85 (Lei das Cláusulas Contratuais Gerais) que expressamente proíbe em absoluto a existência de cláusulas com tal conteúdo”, o certo é que, no corpo alegatório, não abordou a matéria das cláusulas contratuais gerais - que, aliás, também não trouxe à colação na sua Oposição - e, em particular, a violação prevista na citada al. j) do art. 18º do DL nº 446/85.
Por outro lado, embora se tenha referido, no corpo da sua alegação, à violação do disposto no art. 10º da LULL, o Apelante não incluiu esta matéria nas respectivas conclusões.
Assim, para além da problemática do abuso do direito que se imputa ao Exequente, a questão essencial que importa solucionar no presente recurso, consiste em saber se o Opoente/Exequente, procedendo à denúncia do aval que prestara, se desvinculou, validamente, da sua responsabilidade de avalista da subscritora da livrança em causa.

II - Fundamentação:

1) - Os factos.
...

2) - O direito.
Sendo o subscritor da livrança responsável da mesma forma que o aceitante de uma letra (artº 78º da LEI UNIFORME RELATIVA A LETRAS E LIVRANÇAS), sobre aquele tem o portador inicial, no caso de falta de pagamento, um direito de acção resultante da livrança, em relação a tudo que pode ser exigido nos termos dos artigos 48.º e 49.º (artº 77 da LULL).
O aval, que é o acto pelo qual um terceiro ou um signatário da letra ou de uma livrança garante o seu pagamento por parte de um dos subscritores - art. 30 da LULL - sendo uma garantia bancária, embora com natureza jurídica semelhante à da fiança, não pode confundir-se com esta. Assim, ao aval somente são aplicáveis os princípios da fiança que não contradigam o seu carácter cambiário.
Tendo, pois, o aval, uma função de garantia, inserida ao lado da obrigação de um certo subscritor cambiário, a cobri-la ou caucioná-la, o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada - art. 32, nº1, da LULL - o que significa que a medida da responsabilidade do avalista é a do avalizado.
Como se diz no Acórdão do STJ de 13/03/2007 (Revista n.º 07A202): «A livrança em branco, cuja admissibilidade resulta dos arts 10 e 77 da LULL, destina-se normalmente a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior, sendo a sua entrega acompanhada de poderes para o seu preenchimento, de acordo com o denominado “pacto ou acordo de preenchimento”.
O contrato de preenchimento é o acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, o lugar do pagamento, a estipulação de juros, etc.
Tal acordo pode ser expresso ou tácito, consoante as partes estipulem certos termos em concreto, ou apenas se encontrem implícitos nas cláusulas subjacentes à emissão do título.
Estamos em presença de execução cujo título executivo é uma livrança “em branco”, em que o executado se obrigou, assinando-a como avalista da firma subscritora.
Subjacente à livrança em causa, esteve um contrato de financiamento, firmado em 2007 entre a firma subscritora e o Banco ora exequente.
O ora executado responsabilizou-se, através do aval prestado em livrança “em branco” – mais ficando autorizado o seu futuro preenchimento pelo Banco ora Exequente com “uma data de vencimento posterior ao vencimento de qualquer obrigação garantida e por uma quantia que o cliente lhe deva” -, pelo pagamento das quantias que fossem devidas pela subscritor/beneficiária do financiamento em causa.
Sustenta o Executado/Opoente que o seu aval não o pode já responsabilizar porque, por cartas datadas de 20-03-2009, 27-08-2009 (reiteradas por outras, de 30-04-2010 e 06-07-2010), o denunciou ao Banco Exequente antes de este denunciar o contrato firmado com a subscritora e lhe exigir o valor da livrança (em 16-04-2010, para produzir efeitos em 10-06-2010), sendo que renunciou a todos os cargos de administração que desempenhava nas empresas do grupo A..., entre as quais, na sociedade subscritora da livrança.
A questão que em particular se referiu importar aqui ser decidida passa por saber se é possível o avalista desvincular-se da sua responsabilidade enquanto tal, denunciando o aval.
A essa questão respondeu já este Colectivo de Juízes em Acórdão de 20/12/2011, proferido nos autos de Apelação nº 1101/10.2T2OVR-A.C1[5], onde se concluiu “não ser de acolher, salvo o devido respeito por quem o segue[…], o entendimento de que o aval possa ser objecto de denúncia, perfilhando-se, assim, a doutrina seguida no acórdão do STJ de 10 de Maio de 2011 (Revista nº 5903/09.34TVLSB.L1.S1)”.
Posteriormente, sancionando este entendimento, que então seguimos, veio a ser proferido, pelo STJ, em 11 de Dezembro de 2012, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) n.º 4/2013[6],que estabeleceu: «Tendo o aval sido prestado de forma irrestrita e ilimitada, não é admissível a sua denúncia por parte do avalista, sócio de uma sociedade a favor de quem aquele foi prestado, em contrato em que a mesma é interessada, ainda que, entretanto, venha a ceder a sua participação social na sociedade avalizada.».
Posteriormente a ter sido publicado esse AUJ, o ora Relator integrou, como 2º Adjunto, o Colectivo que proferiu o Acórdão de 25/02/2014 desta Relação de Coimbra (Apelação nº 989/12.7TBPMS-A.C1)[7], Acórdão este que perfilhou a doutrina assim fixada pelo STJ e de onde, pela semelhança dos argumentos utilizados pelo aí recorrente - que era o aqui Apelante -, com os que aqui são esgrimidos na sua alegação de recurso, se transcreve o seguinte trecho:
«…Carolina Cunha, quanto à específica questão das consequências da cessão da participação social do sócio cambiariamente vinculado como garante, argumenta como Januário Gomes que a cessão de quotas por parte de um sócio não pode conduzir à caducidade da fiança, se e quando “à luz das regras de interpretação dos negócios jurídicos, pensar que os mesmos sócios que aceitaram subscrever termos de fiança preparados pelo Banco, quiseram manter-se vinculados mesmos depois de cederem a terceiros as respectivas participações sociais - mesmo depois de deixarem de ter interesses na empresa ou sequer contactos com a mesma.”[[8]] E mais refere, ser “[razoável] admitir que em certas circunstâncias possa vir a ser reconhecida uma faculdade de desvinculação unilateral do acordo de preenchimento ao sócio garante que cede a sua quota, faculdade que a jurisprudência tende a construir como denúncia (com que circunscreve aos contratos de duração indeterminada) mas que alguma doutrina qualifica como resolução por justa causa, fundada na inexigibilidade de o garante permanecer vinculado por uma relação duradoura”, para de seguida, e depois de afirmar que “[o] sócio permanece responsável pelas dividas constituídas até à extinção da garantia” concluir que o reconhecimento de semelhante faculdade implica “[uma] ponderação da interface que, através do acordo de preenchimento, se estabelece com a relação jurídica pela sociedade. Nos financiamentos bancários típicos, como a abertura de crédito simples ou em conta corrente, o fluxo financeiro que determina a divida cambiariamente garantida depende das solicitações feitas pela sociedade em cada momento - o que confere pleno sentido à tese segundo a qual a cessação da qualidade de sócio implica uma inexigibilidade de permanecer vinculado como garante.”[[9]]
Fundando o recorrente o essencial das suas alegações precisamente neste inciso da lição de Carolina Cunha, para desenvolver que a jurisprudência uniformizadora citada não se referia a um caso como o dos autos, a verdade é que nesse mesmo acórdão uniformizador (de 21/03/2013), a questão que se decidia era estruturalmente a mesma que agora aqui se decide, ou seja, a da possibilidade de alguém que deixa de ter participação numa sociedade pode denunciar com base nesse facto o aval que deu a essa sociedade em várias livranças.
E em face da interpretação normativa adiantada pelo recorrente a respeito da possibilidade da denúncia, firmada nas palavras de Carolina Cunha, o acórdão uniformizador procede à sua crítica concluindo que“(…) o aval, como garantia que se destina a garantir o pagamento do valor patrimonial inserto no título de crédito não pode ter o mesmo tratamento que a garantia fidejussória ou a fiança. Na verdade o avalista, contrariamente ao que acontece ao obrigado fidejussório, não responde perante o credor nos mesmos termos que este mas sim, e tão só, cria um direito de regresso perante o sacado correspondente ao que haja pago ao tomador do título pelo incumprimento pelo sacado da obrigação inscrita no título.
Por outro lado, ainda segundo a argumentação do acórdão uniformizador “o aval pode ser quantitativamente limitado caso em que o avalista se compromete a pagar só uma parte do crédito avalizado. Só que, como é doutrina unânime esta limitação tem que ficar expressa no momento em que o aval é prestado. Não tendo o avalista limitado quantitativamente a importância por que se comprometia a prestar o aval, afigura-se-nos de difícil conciliação com a própria natureza do aval e da obrigação cambiária constituída perante o tomador do título de crédito. Acresce que, sendo o aval uma garantia autónoma e incondicional não se vê como se poderia fazê-la retroagir a um momento anterior àquele que consta a data do vencimento ou consensuada no acordo de preenchimento.
Tendo sido acordado que o aval era outorgado para garantir o montante que viesse a ser apurado, caso não fosse pago e houvesse que preencher a livrança, ao limitar temporalmente a um momento anterior aquele em que o acordo de preenchimento estabelecia, estar-se-ia a frustrar o carácter incondicional e intemporal do aval, dado que quanto ao primeiro requisito far-se-ia condicionar a garantia pessoal outorgada pelo avalista à sua condição, não de garante pessoal, mas de garante enquanto sócio da sociedade avalizada, postergando, deste modo, uma das características do aval, e ao segundo, estar-se-ia a fazer retroagir o momento temporal do aval a uma data aleatória e dependente de uma vicissitude ou factor indeterminável e fortuito.
A ser possível a desvinculação unilateral dos sócios, mediante declaração dirigida ao tomador do título, não sobreviveria confiança numa relação jurídica estabelecida entre este e aquele a quem o aval é pedido”.
Assim, no momento em que presta o aval, sabendo a identidade do crédito, a sua determinação ou determinabilidade e por quanto tempo se obriga, o avalista, maxime sócio de uma empresa que o preste a esta, deve ter a noção clara de que se está a responsabilizar, pessoal e cambiariamente, pelo pagamento do direito de crédito que se comprometeram a satisfazer no caso de o avalizado o não fazer. E por assim ser, está-lhe vedada a possibilidade de se poder desvincular, por denúncia, da obrigação cambiária que assumiu.
Tendo presente que a denúncia é juridicamente um acto unilateral de declaração da vontade (receptício) emitido com a intenção de pôr fim a um contrato que antes se estabelecera e que perduraria no tempo, e sabendo-se as características do aval, apontadas anteriormente, bem como a sua natureza e finalidades, resulta desde logo importante a referência a que aquele (o aval) não é um contrato celebrado entre o avalista e o avalizado, ou o tomador do título cambiário, mas antes esse outro acto unilateral, um vínculo independente, do qual não poderá desligar-se[[10]], quando foi prestado de forma irrestrita e ilimitada, ainda que, na arguição de ter cedido a sua participação social na empresa avalizada.
No concreto das conclusões de recurso, como já observámos, julgamos não assistir razão ao recorrente quando sustenta que a sentença recorrida se limitou a aplicar a doutrina do acórdão uniformizador e que a previsão desse acórdão não se aplica à situação em exame, que envolve uma ponderação especial de circunstâncias concretas e que admitem o reconhecimento de tal faculdade de desvinculação unilateral.
Conforme fizemos notar, à semelhança da decisão do tribunal recorrido, também para nós, estruturalmente, a questão decidida no acórdão uniformizador é em tudo semelhante à que aqui se discute e que se resume em saber da possibilidade de o avalista denunciar o aval que deu em livranças à empresa de que fazia parte, depois de ter deixado de ter participação nela. E adiante-se desde já, também, que nos reconhecemos integralmente na decisão contida nesse acórdão uniformizador, seja qual seja o valor impositivo que se queira ou não reconhecer-lhe.».
Como se observa no Acórdão desta Relação de 02/03/2010 (Apelação nº 682/07.2YXLSB.C1) «…sem terem força vinculativa, os acórdãos uniformizadores de jurisprudência criam uma jurisprudência qualificada, mais persuasiva e, portanto, merecedora de uma maior ponderação, constituindo precedentes judiciais qualificados que, emanados do nosso mais alto Tribunal, tirados em julgamento ampliado de revista, conduzem à observância pelos demais tribunais da doutrina neles fixada.».
Diremos, como o Exmo. Sr. Conselheiro Abrantes Geraldes, que “…mesmo sem valor vinculativo a jurisprudência uniformizadora deve ou não ser acatada pelos tribunais inferiores e até pelo próprio STJ em recursos posteriores, enquanto se mantiverem os pressupostos que a ela conduziram em determinado contexto histórico.”[11].
Entendemos que, sem ser em circunstâncias fácticas muito especiais que nos levem a um enquadramento jurídico que não se molde ou se adeqúe à fundamentação do aresto onde foi tirado o referido AUJ (proferido, acentue-se, sem um único voto de vencido[12]) a denúncia do aval, por parte do avalista, ainda que motivada pela circunstância de este ter renunciado à gerência/administração da firma subscritora e/ou de ter deixado de deter qualquer participação social, não deve ser admitida.
É claro que o exame do caso tem de demonstrar que o mesmo se enquadra no âmbito de previsão do referido AUJ, tendo sido essa a conclusão que se tirou na sentença e que merece a nossa concordância.
No entender do Apelante a argumentação exposta no referido Acórdão nº 4/2013 não é “subsumível à presente factualidade”, referindo a seguir, para justificar essa sua conclusão, que, conforme o que expusera supra, entendia “…ter ocorrido uma denúncia eficaz do aval”. Esta conclusão traduz, no entanto, o “quod erat demonstrandum”, diremos nós, sendo que o Apelante não fez a demonstração em causa.
Sendo certo que o ora Apelante não defende ter procedido à revogação do pacto de preenchimento da livrança, antes pretendendo que se aceite como válida a denúncia do aval, não se vê que circunstancialismo aqui presente introduza notas distintivas, relativamente às situações versadas no aludido AUJ, idóneas a demarcar-se destas e a eximir o caso à jurisprudência aí fixada, já que a situação “sub judice”, respeitou ao aval dado numa livrança “em branco”, que o “A.., S.A.” ficou “autorizado pelo cliente e pelo(s) avalista(s), caso existam, a preencher a livrança com uma data de vencimento posterior ao vencimento de qualquer obrigação garantida e por uma quantia que o cliente lhe deva ao abrigo do Contrato",  aval esse que se destinava a “…garantir o bom pagamento de todas as responsabilidades que advêm para o cliente do não cumprimento pontual e integral de qualquer obrigação resultante do contrato bem como de suas alterações, prorrogações, aditamentos ou reestruturações, nomeadamente, e entre outras, o reembolso de capital, o pagamento de juros remuneratórios e moratórios, despesas judiciais ou extrajudiciais, honorários de advogados, solicitadores e custas, bem como saldos devedores de quaisquer contas bancárias de que o cliente seja titular ou co-titular que tenham como origem obrigações resultantes do contrato. (...)”.
Ora, no aresto em que foi tirado o mencionado AUJ, uma das situações em confronto, foi, precisamente, à semelhança daquilo que ocorre nos presentes autos, um caso em que «Para garantia do efectivo e integral cumprimento de todas as responsabilidades que adviessem para a sociedade do não cumprimento de qualquer obrigação resultante de cada um dos acima identificados contratos, AA e outros, entregaram ao banco A.. duas livranças em branco avalizadas, que o banco ficou desde logo autorizado a preencher, pelas quantias que se mostrassem devidas.”, pedindo os AA, nessa acção “…a liberação da garantia prestada no âmbito dos identificados contratos e bem assim a condenação do Banco A.. no pagamento da quantia de € 25.000,00 a título de danos morais - uma vez que em 03 de Janeiro de 2008, o ora recorrido havia enviado um fax ao A, no qual informava que, em virtude de ter cedido a sua participação na sociedade "I..., Lda", pretendia ser liberado da sua qualidade de avalista nas indicadas livranças».
Não se olvide, por outro lado, até porque que foca situação muito semelhante àquela de que ora se trata, o que, muito anteriormente ao aludido AUJ, se havia entendido no Acórdão do STJ de 07-10-2003, (Revista n.º 2492/03- 1.ª Secção) e que assim foi sumariado: «I - A figura da "conta corrente caucionada" através de livrança-caução verifica-se quando é contratada a abertura de crédito a favor de sociedade comercial ou um descoberto de conta à ordem da sociedade, com recurso a livranças subscritas pela sociedade e avalizadas pelos sócios ou por terceiros, que oferecem, assim, uma garantia de ordem pessoal.
II - Estando provado que tal garantia pessoal foi dada pelo ora recorrente mediante a aposição da sua assinatura, como avalista, em livrança em branco, livrança que ficou na posse do Banco exequente, que, por sua vez, ficou com a faculdade de a preencher pelo valor do saldo a descoberto da conta, estamos perante uma livrança-caução, no âmbito do aval cambiário, isto é, perante uma garantia pessoal reportada à dívida cambiária.
III - O preenchimento do título tem de considerar-se, em princípio, legítimo, dele decorrendo a perfeição da obrigação cambiária incorporada na livrança e a correspondente exigibilidade.
IV - Destinando-se a livrança a caucionar o valor do saldo dos contratos de crédito à exportação e descoberto da conta à ordem, justifica-se que o preenchimento e a fixação da data do vencimento só tenham lugar quando, efectivamente, o Banco se proponha cobrar judicialmente a dívida.
V - O aval em questão não pode considerar-se como tendo sido prestado pelo recorrente apenas enquanto sócio gerente da sociedade subscritora da livrança (cfr. art.º 30, n.º 2, da LULL).
VI - O silêncio do Banco, após lhe ter sido comunicado pelo embargante a cessão da sua quota, não se apresenta como gerador de uma base de confiança digna de tutela ao ponto de permitir a inferência, convocando os princípios da boa fé, de que o Banco se estava a comportar em termos tais que renunciaria ao direito de exigir do embargante as responsabilidades vencidas.
VII - Pelo contrário, mantendo-se os avales, que não foram riscados, o recorrente devia contar, a qualquer momento, com o exercício do direito de cobrança coerciva do crédito vencido, designadamente pela via da acção cambiária, não sendo possível julgar paralisado, por abusivo, o exercício desse direito (art.º 334, do CC).».
Posteriormente ao AUJ, precisamente para refutar o entendimento da inaplicabilidade da jurisprudência uniformizada aí fixada, seguido no Acórdão da Relação aí versado, disse o STJ no seu Acórdão de 11/09/2014 (Revista nº 3871/12.4 TBVFR-A.P1.S1): «Estando aqui em causa a eventual aplicação de jurisprudência uniformizada, cabe, antes do mais, saber se a hipótese dos autos é factualmente idêntica à do AUJ nº 4/2013. A resposta só pode ser afirmativa. Trata-se do sócio que avalizou a sociedade subscritora de livrança e que denunciou esse aval por, entretanto, ter deixado de ser sócio. Saber se se pode distinguir entre aval em livrança em branco e o aval a livrança totalmente preenchida é questão jurídica a apreciar posteriormente. O segmento uniformizador em questão não distingue, pelo que é forçoso entender que estamos neste processo no âmbito daquele acórdão uniformizador.
(…)
Entende o mesmo acórdão que não existe falta de respeito pela jurisprudência uniformizada, porque são utlizados novos argumentos não considerados no respectivo acórdão. Como atrás considerámos, não basta os argumentos serem diferentes. Assim, qualquer AUJ poderia ser ultrapassado. Pelo que atrás referimos, é necessário também que sejam doutrinalmente inovadores. E aqui trata-se de argumentos que já poderiam ter sido considerados aquando da prolação do acórdão uniformizador. No fundo, apenas se continua a polémica que a uniformização de jurisprudência pretendeu ultrapassar. Ainda que seja para não acatar o AUJ é sempre da sua posição que se deve partir, contrapondo-lhe uma nova realidade e não criticando apenas a sua formulação. Citando novamente Abrantes Geraldes - Recursos no Novo Código de Processo Civil, 379 -:“Ou seja, a divergência (com a jurisprudência uniformizada) não se justifica por si mesma, antes devendo ser encarada como um objectivo cujo alcance exige um percurso que, sem hiatos, tenha como ponto de partida a letra da lei e percorra todas as etapas intermédias.
Em suma, para contrariar a doutrina uniformizada pelo Supremo devem valer fortes razões ou outras especiais circunstâncias que porventura ainda não tenham sido suficientemente ponderadas.”
Tal percurso apontado por aquele ilustre magistrado para que possa haver a rejeição da jurisprudência unificada não está, salvo o devido respeito, enunciado na decisão em causa, quando apenas funda a sua divergência na existência de um pacto implícito, decorrente dos princípios da boa fé e da vontade conjectural das partes, do qual resultaria que o avalista só o seria enquanto fosse sócio. Até porque esta questão foi implicitamente versada no AUJ, ao referir que o avalista não pode fazer retroagir a garantia a um momento anterior àquele que consta da data do vencimento.».
O Apelante - que é reincidente nos argumentos de que lança mão, pois que já os utilizou “mutatis mutandis” nos referidos autos nºs 989/12.7TBPMS-A.C1, provindos do T.J. de Porto de Mós, aí os tendo invocado, também contra o “Banco A.., S.A.”, a propósito de situação idêntica à dos presentes autos -, vem invocar a questão do abuso do direito por parte do Exequente, abuso esse que, em síntese, se traduziria no facto de o Exequente, na sequência das cartas de denúncia do aval que lhe enviou (a primeira das quais enviada com a data de 20.03.2009) se ter remetido ao silêncio, o que, diz, gerou nele, ora Apelante, a legítima expectativa de que fora aceite a sua desvinculação do aval, sendo certo que o Exequente, posteriormente, veio a adoptar conduta contraditória com aquele comportamento, accionando o aval.
A resposta a esta questão, além do que acima se reproduziu reportando-nos ao Acórdão do STJ de 07/10/2003, não pode deixar de ser aquela que se comunicou ao Apelante através do Acórdão proferido nos referidos autos nºs 989/12.7TBPMS-A.C1.
Aí se escreveu: «…no que se refere à arguição pelo recorrente de existir por parte do recorrido abuso de direito uma vez que, em face da comunicação de denúncia do aval a não resposta do tomador do título ter gerado no avalista uma situação de confiança segundo a qual ele, para si mesmo, confirmou a desvinculação, julgamos que ao termos decidido que a denúncia não foi operante por não ser admissível, nenhuma obrigação cumpria ao recorrido no sentido de ter de responder mesmo para negar os efeitos de uma denúncia que não era admissível.
Acresce que, os limites de definição do abuso de direito, que decorrem do próprio preceito previsor (o art. 334 do CC), estabelecem que o exercício de um direito para ser ilegítimo terá de exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito”.
No caso vertente não cremos que se verifique qualquer abuso porquanto, em face do sobredito, o recorrido nunca libertou o recorrente da obrigação e esta estava destinada a existir pelo prazo e quanto ao montante que o avalista garantiu, não tendo sido desrespeitados estes limites.
Não cremos que a violação de uma pretensa situação de confiança se gere com a comunicação de uma vontade de denúncia por parte do recorrente a que o recorrido não dá reposta, nem mesmo quando este tenha acedido a ter contactos com aquele para eventuais negociações, quando se sabe que o tomador do título nunca aceitou a desvinculação do garante.
E é esta evidência de não ser a denúncia admissível por ter o avalista deixado de ter participação na sociedade avalizada e por não ter o tomador do título aceite a qualquer título a desvinculação do garante, nem observado um comportamento segundo o qual tivesse deixado sequer interpretável como tácita essa aceitação de desvinculação, que não tem, quanto a nós, sentido falar-se de uma criação no avalista de uma situação de confiança que pudesse sustentar qualquer abuso de direito.
A razoabilidade de admitir que em certas circunstâncias possa ser reconhecida a faculdade de desvinculação unilateral do acordo de preenchimento a quem tenha deixado de ter participação na sociedade, respaldando esta possibilidade na ponderação da denominada “interface que através do acordo de preenchimento se estabelece com a relação jurídica da sociedade” exigiria sempre, ainda que tal razoabilidade se admitisse como solução jurídica, que ficassem evidentes as razões, perante esse interface, as razões de não exigibilidade de o avalista permanecer vinculado como garante.
E com os factos que servem a decisão não vemos verdadeiramente quaisquer razões para que a desvinculação do recorrente seja aceite, mesmo sabendo como adverte Carolina Cunha que “nos financiamentos bancários típicos (…) o fluxo financeiro que determina a divida cambiariamente garantida depende das solicitações feitas pela sociedade em cada momento”».
No que respeita à putativa violação do n.º 2 do art. 280.º do Código Civil, trata-se, afinal, de argumento contra a doutrina que foi fixada no AUJ n.º 4/2013, argumento esse que no aresto em que assim se decidiu, foi abordado e refutado.
Afigurando-se ser caso em que esta Relação se poderia ter limitado a julgar de forma sumária (artº 656º do NCPC), cuida-se que assim se deu uma resposta mais cabal à pretensão do Apelante que, em face do exposto, não pode deixar de ser a da improcedência do recurso, com manutenção da decisão da 1ª instância.

III - Decisão:

Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente e manter a sentença recorrida.

Custas pelo Apelante.

Coimbra, 09/12/2014


  (Luís José Falcão de Magalhães - Relator)

(Sílvia Maria Pereira Pires)

(Henrique Ataíde Rosa Antunes)



[1] Código que se continuará a referir como NCPC, para o distinguir do Código que o precedeu, que se identificará como CPC.
[2] Doravante designado com a sigla STJ.
[3] Consultáveis na Internet, através do endereço “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”, tal como todos os Acórdãos do STJ que adiante se citarem sem referência de publicação.
[4] Cfr. o Acórdão do STJ de 25/03/2004, Revista n.º 02B4702, onde se considerou que, consubstanciando as conclusões uma síntese da respectiva alegação de recurso, uma conclusão que verse matéria não tratada ou desenvolvida especificamente no corpo da alegação respectiva é de entender como inexistente e não escrita. 
[5] Acórdão que poderá, tal como os restantes acórdão desta Relação de Coimbra que vierem a ser citados sem referência de publicação, ser consultando na Internet, através do endereço “http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase”.
[6] Proferido nos autos de Revista nºs 5903/09.4TVLSB.L1.L1.S1 e publicado no DR, I SÉRIE, nº 14, de 21/01/2013, Pág. 433.
[7] Relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador Manuel Capelo.
[8] Carolina Cunha, “Letras e Livranças – Paradigma Actuais e Recompreensão de um Regime”,  págs. 610 a 619.
[9] Carolina Cunha, op. Cit pág. 613.
[10] Vd. França Pitão, in Letras e Livranças- Lei Uniforme sobre Letras e Livranças Anotada, p. 196 onde sublinha que a obrigação do avalista para lá de não ser subsidiária só imperfeitamente é uma obrigação acessória porquanto é uma relação materialmente autónoma, que se mantém até, por força da lei, quando a obrigação do avalizado seja nula por vício de forma.
[11] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, Coimbra, 2013, pág. 378.
[12] O Apelante refere como voto de vencido o do Exmo. Sr. Conselheiro Paulo Armínio de Oliveira e Sá, mas este, tal como o Exmo. Sr. Conselheiro Garcia Calejo, não votou vencido, emitindo, sim, uma declaração de voto, que é coisa diversa.