Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
42/13.6GCMBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: IN DUBIO PRO REO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 02/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (INSTÂNCIA LOCAL DE MOIMENTA DA BEIRA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 374.º E 410.º, DO CPP
Sumário: I - A apreciação pelo Tribunal da Relação da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto, isto é, deve ser da análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, seguindo o processo decisório, evidenciado pela análise da motivação da convicção, se se chegar à conclusão que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido.

II - Há erro notório na apreciação da prova quando se dão factos como provados que, face às regras da experiência comum e à lógica normal da vida, não se poderiam ter verificado ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsidade.

III - Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, evidenciada pela simples leitura do texto da decisão, erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, pois as provas revelam um sentido e a decisão recorrida extrai ilação contrária, incluindo quanto à matéria de facto provada.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

No processo supra identificado, o arguido A... , trabalhador agrícola, viúvo, filho de (...) e de (...), nascido a 12/01/1940, natural da freguesia de (...), concelho de Sernancelhe, residente no (...) Ferreirim, foi julgado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1 do Cód. Penal.

O demandante Centro Hospitalar Tondela-Viseu, E.P.E. deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo a condenação deste no pagamento das despesas hospitalares originadas pela assistência médica prestada ao ofendido, no montante de €112,07 e juros legais desde a notificação.

Na qualidade de demandante, B... deduziu pedido de indemnização civil contra A......, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de €1.000,00 a título de danos não patrimoniais e a quantia de €80,87 a título de danos patrimoniais sofridos como consequência da prática do crime, este com juros legais a partir da notificação.

O tribunal julgou provada e procedente a acusação pública e o pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar Tondela-Viseu e parcialmente provado e procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo ofendido B... e, em consequência:

A) Condenou o arguido A... pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1 do Cód. Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros), o que perfaz o quantitativo global de €1.050,00 (mil e cinquenta euros), autorizando o pagamento da multa em 6 (seis) prestações mensais e sucessivas, no montante de €175,00 (cento e setenta e cinco euros), cada uma.

B) Condenou o demandado A... a pagar ao demandante Centro Hospitalar Tondela-Viseu, E.P.E. a quantia global de €112,07 (centro e doze euros e sete cêntimos), a título da assistência médica prestada ao ofendido em virtude da prática do crime.

C) Condenou o demandado A... a pagar ao demandante e ofendido B... a quantia global de €430,87 (quatrocentos e trinta euros e oitenta e sete cêntimos), sendo €350,00 (trezentos e cinquenta euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais e €80,87,00 (oitenta euros e oitenta e sete cêntimos) pelos danos patrimoniais sofridos com a prática do crime.


*

Da sentença interpôs recurso o arguido, alegando haver violação do direito de defesa do arguido; insuficiência para a decisão da matéria de facto; erro notório na apreciação da prova e falta de fundamentação. Questiona a medida da pena unitária e pugna pela suspensão da sua execução.

Formula as seguintes extensas conclusões:

1- Não resultou dos depoimentos prestados em sede de julgamento qualquer prova de que o ora Recorrente/arguido tenha agredido o ofendido;

2- Dos restantes elementos probatórios existentes nos autos também não resulta que o Recorrente tenha praticado qualquer crime, apenas resulta do relatório médico que o ofendido apresentava uma lesão na cabeça provocada por um instrumento de natureza corto-contundente;

3- Sucede que, em nenhum momento da produção de prova se afere que instrumento de natureza corto-contundente teria causado essa lesão plasmada nos relatórios médicos;

4- Todavia, o Tribunal valorou integralmente as declarações prestadas pelo ofendido e condenou o recorrente no ilícito em apreço apenas, exclusivamente, com base nelas;

5- Apesar de a própria testemunha do ofendido e sua mãe ter posto, expressamente, em causa as declarações deste e a sua credibilidade, e ter, em parte, confirmado as declarações do arguido.

6- Sintomático da fragilidade das próprias declarações do ofendido e da tese por si apresentada e, lamentavelmente, aceite pelo Tribunal a quo.

7 - Por conseguinte, salvo o devido respeito, tal espécie decisória é criticável.

8- Por outro lado, tal decisão é, ainda censurável, pelo arbítrio relativamente ao princípio da livre apreciação da prova que viola inexoravelmente o princípio da presunção da inocência (art. 32.°, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa).

9- Desde logo, porque uma consequência desse princípio é exactamente a que impõe que nenhum arguido está onerado com a obrigação de demonstrar a respectiva inocência.

10- Por outro lado, esse princípio também se mostra violado numa sua outra indiscutível perspectiva, enquanto princípio probatório traduzido na ideia do in dubio pro reo, na medida em que a prova produzida na audiência de julgamento não permitiu descortinar o contexto em que os factos ocorreram, pairando assim uma dúvida insanável razoável e objectável sobre a prática dos factos;

11- Este princípio impunha que a escassez probatória demonstrada nos autos, relativamente à existência das ofensas à integridade física, fosse valorada a favor da posição processual do arguido, ora recorrente;

12- Pois mais vale absolver um culpado do que condenar um inocente;

13-. Nessa sequência nunca poderia o tribunal a quo considerar procedentes os pedidos de indemnização civil formulados;

14- A decisão recorrida ao não ter decidido assim violou os artigos 483.°, 496.°, 562.° e seguintes do Código Civil.


*

Respondeu o Ministério Público na 1.ª instância ao recurso interposto, nos termos do art. 413.º, do CPP, pugnando pelo não conhecimento do recurso, sem previamente convidar o requerente aperfeiçoar as conclusões, de forma a indicar as passagens da prova gravada em que funda a sua convicção.

Por outro lado sustenta que o tribunal a quo fez uso adequado dos princípios da livre apreciação da prova e das regras da experiência comum, apreciando de forma crítica os elementos probatórios que soube valorar e consequentemente julgar o arguido como autor do crime que lhe era imputado.

Conclui pela improcedência do recurso, mantendo-se a decisão recorrida nos precisos termos.


*

Nesta instância, após vista do art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, a ilustre Procuradora-geral Adjunta, emitiu douto parecer no sentido que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se integralmente a sentença recorrida.

Em seu entender o tribunal recorrido soube apreciar e valorar a prova, dando credibilidade ao depoimento do ofendido, que soube conjugar com as declarações do próprio arguido e das testemunhas e com o relatório pericial do IML  

A diferente valoração que o recorrente faz da prova não se traduz na violação do princípio in dúbio pro reo, a que faz referência.

Também não há erro notório na apreciação da prova, vício que deve resultar do texto da própria sentença. 


*

Vejamos pois a factualidade que consta dos autos e respectiva motivação.

Factos provados:

1. No dia 24 de Junho de 2013, pelas 14:30 horas, o arguido A... e o ofendido B..., seu afilhado, encontravam-se na Rua da Escola, n.º 20, Ferreirim, Sernancelhe, sendo o arguido num prédio rústico de que são comproprietários.

2. A dada altura, e após uma troca de palavras a propósito de um rego, o ofendido atirou com um número de pedras não concretamente apurado na direcção do arguido.

3. De seguida, encontrando-se num terreno contíguo ao prédio referido em 1. e num plano inferior relativamente ao mesmo, o ofendido começou a galgar o muro com altura não inferior a 1,20 metros que separava ambos os prédios, com vista a ir ao encontro do arguido e a tirar satisfações com o mesmo a propósito do dito rego.

4. Quando alcançou a parte superior do muro, o arguido desferiu-lhe uma pancada na nuca, com uma sachola que trazia consigo.

5. Em consequência directa e necessária dessa pancada, o ofendido sofreu dores e uma lesão no crânio, na região occipital esquerda, com 4,5 cm de maior eixo, suturada com 5 pontos.

6. Tal lesão determinou 10 dias para a sua consolidação, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.

7. Ao agir da forma descrita, o arguido sabia que molestava fisicamente o ofendido, atingindo-o no seu corpo e na sua saúde, propósito que quis e logrou concretizar.

8. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.

9. O arguido esteve emigrado 38 anos em França, onde trabalhou como operário da construção civil.

10. Encontra-se actualmente reformado, auferindo uma pensão global mensal não inferior a €700,00.

11. Toma as suas refeições e pernoita no (...), pagando a prestação mensal de €415,00, como contrapartida dos serviços de que usufrui.

12. Não sabe ler, nem escrever.

13. É uma pessoa educada.

14. Não tem antecedentes criminais.

15. Na sequência do referido em 4., o ofendido sofreu ferimentos que demandaram tratamento hospitalar no Centro Hospitalar Tondela - Viseu, E.P.E..

16. Os custos com tratamento acima referido ascenderam à quantia de €112,07.

17. Em consequência do referido em 4., o demandante foi conduzido pelos Bombeiros Voluntários de Sernancelhe ao Centro Hospitalar Tondela-Viseu, onde realizou vários exames e foi tratado.

18. E pagou a quantia de €33,15 aos Bombeiros Voluntários pela deslocação.

19. Bem como a quantia de €20,60 ao aludido Centro Hospitalar, a título de taxa moderadora.

20. E ainda a quantia de €3,90 ao Centro de Saúde de Sernancelhe, a título de taxa moderadora.

21. Igualmente em consequência do referido em 4., o demandante deslocou-se ao Gabinete de Medicina Legal sito na cidade de Viseu em viatura própria, percorrendo cerca de 130 km e despendendo uma quantia aproximada de €23,22 em combustível.

Factos não provados:

A) O demandante sofreu vexame, humilhação e sentiu-se consternado por lhe perguntarem o que lhe tinha sucedido na data dos factos.

Motivação:

A convicção do tribunal fundou-se na apreciação crítica de toda a prova produzida em audiência de julgamento, à luz das regras da experiência (art.º 127.º do C.P.P.), sendo que em sede documental foram tidos em consideração, designadamente, o auto de fls. 3, o relatório do INML de fls. 12 a 14 e do hospital São Teotónio, E.P.E. 37, os documentos de fls. 82, 88 e 89, 91, 92 a 94, 95 e 117.

Foram ainda tidas em consideração as declarações do arguido e do demandante B..... e os depoimentos das testemunhas, os quais se analisaram em função das razões de ciência, segurança e verosimilhança que resultaram dos mesmos.

Dito isto, concretizemos o processo de formação da convicção do tribunal.

Para dar como provados os factos atinentes à agressão perpetrada pelo arguido e ao circunstancialismo em que a mesma ocorreu (factos n.º 1 a 4), o tribunal valorou decisivamente as declarações do arguido e do demandante, conjugando-as com o teor dos relatórios médicos juntos aos autos e com os depoimentos das testemunhas C..... e D....., que não presenciaram os factos e apenas estiveram com o ofendido depois dos factos e antes de ele ser transportado de ambulância para o hospital.

As versões do arguido e do ofendido convergiram quanto ao facto de o arguido se encontrar no local e à hora descrita na acusação num terreno de que ambos são comproprietários a cortar as pontas das videiras quando o ofendido apareceu de tractor no prédio contíguo.

No mais, revelaram-se contraditórias:

- Por um lado, o arguido disse que logo que o ofendido chegou ao local onde se encontrava a trabalhar lhe atirou três pedras, sem que tivesse existido qualquer discussão entre ambos, que depois de lançar as pedras o mesmo tentou subir o muro (de 1,80 cm) que separava os dois terrenos enquanto dizia que lhe “fodia os cornos” e, finalmente, que quando ia a chegar ao cimo do muro caiu, não tendo visto se aquele se magoou ou não por não ter tido qualquer curiosidade em ver o estado em que o mesmo se encontrava e por ter abandonado imediatamente o local;

  - Por outro lado, o demandante referiu que iniciou uma discussão com o arguido por questões relacionadas com um rego existente no dito prédio, que nunca atirou pedras ao arguido e que após uma troca de palavras entre ambos tentou subir o muro (de 1,20 cm) que separava o prédio onde se encontrava do prédio onde se encontrava o arguido e quando ia a chegar ao cimo do muro se deparou com este a brandir a sachola (com que andava a enterrar as pontas das videiras) na sua direcção e apesar de ter tentado desviar-se, não conseguiu evitar o golpe por completo, acabando por ser atingido na nuca.

  A testemunha C....., cujo depoimento se revelou descomprometido e credível, referiu que estava a lavar uma roupa no tanque da freguesia quando viu chegar uma ambulância, disse que, quando chegou ao local onde a mesma parou, só viu o ofendido a segurar uma toalha contra a cabeça para estancar o sangue e mencionou que, quando questionou os circunstantes acerca do que tinha sucedido, lhe foi dito que “o A..... velho que deu com a sachola no B..... novo”.

  Pese embora a testemunha D..... (mãe do ofendido) não tenha tido um depoimento absolutamente isento, não deixou de contribuir para o apuramento da verdade material quando confirmou ao tribunal que o filho lhe contou que o tio A..... lhe desferiu uma pancada com a sachola na cabeça e ainda lhe confidenciou que atirara umas “pedrinhas” ao tio antes da agressão com a sachola.

  Finalmente, extrai-se dos relatórios médicos juntos aos autos de fls. 12 a 14 e a fls. 37 que quando o ofendido deu entrada no hospital apresentava uma ferida de 4,5 cm, suturada com 5 pontos e provocada por um instrumento de natureza corto-contundente, lesão que se mostrava compatível com a descrição do ofendido, no sentido de que tinha sido agredido na cabeça com uma sachola.

  Mediante a concatenação dos elementos probatórios que antecedem, é patente que as versões de cada um dos intervenientes na agressão foram corroboradas por elementos circunstanciais, tendo sido justamente essa corroboração que contribuiu para dissipar as dúvidas decorrentes da frontal contradição existente as versões apresentadas. No que tange especificamente ao facto de o arguido ter agredido o ofendido com uma sachola, para além de a lesão apresentada por este ser compatível com o tipo de agressão descrita, também se observou que logo a seguir aos factos o ofendido disse às pessoas que o abordaram que tinha sido atingido com uma sachola na cabeça pelo seu tio, sendo normal que alguém relate com genuinidade os factos quando acaba de sofrer uma lesão e se desloca para o hospital para ser tratado; finalmente, não é compatível com as regras da experiência que alguém caia num terreno agrícola e apresente uma lesão aparentemente desferida com instrumento corto-contundente (e não meramente contundente), nem tão-pouco que alguém veja outrem a cair de um muro para um terreno situado num plano inferior e não vá ver o que sucedeu à pessoa acidentada, designadamente quando têm relações familiares, como era o caso.

  Para dar como provados os factos n.º 5 e 6, o tribunal estribou decisivamente a sua convicção no teor do relatório do instituto de medicina legal junto aos autos a fls. 12 a 14, sendo que o comprometimento com a situação dos autos e a circunstância de o ofendido e da sua mãe não terem sido absolutamente espontâneos e genuínos no decurso dos seus depoimentos levou a que não se desse como provado que aquele sofreu uma afectação da sua capacidade de trabalho, como aqueles referiram.

  Para dar como provado o facto n.º 7 e 8, o tribunal valorou a factualidade objectiva acima referida, apreciando-a à luz das regras da experiência comum.

  No que concerne à situação pessoal e económica do arguido (factos n.º 9 a 13), tomaram-se em consideração as declarações que o próprio prestou em audiência, conjugadas com os depoimentos das testemunhas abonatórias (Rita Santos e Teresa Pinto), que apenas transmitiram ao Tribunal uma fundada convicção de que o arguido é uma pessoa educada.

  A prova de ausência de antecedentes criminais do arguido (facto n.º 14) resultou do CRC do mesmo, que se encontra junto aos autos a fls. 117.

  Para dar como provados os factos n.º 15 a 21, o tribunal concatenou as declarações prestadas por B..... e os depoimentos prestados por C..... e D....., com os documentos de fls. 82 (factura hospital no montante de €112,07), fls. 88 e 89 (recibo dos bombeiros voluntários no montante de €33,15), fls. 91 (recibo do centro de saúde de Sernancelhe no montante de €20,60), fls. 92 a 94 (recibos no montante de €3,90) e de fls. 95 (recibo de combustível no montante de €23,22).

  Finalmente, não se deu como provado que o demandante se sentiu vexado, humilhado e consternado por lhe perguntarem o que lhe tinha sucedido na data dos factos (facto A)), na medida em que nem aquele nem as testemunhas C..... e D..... o comentaram e não decorre das regras da experiência comum que alguém se sinta afectado da forma descrita quando é agredido por outrem, tanto mais que a agressão nem sequer foi presenciada por ninguém.

Atenta a agressão perpetrada pelo arguido e as dores e lesão que resultaram da mesma, é forçoso concluir pelo preenchimento do tipo objectivo do crime de ofensa à integridade física, nas modalidades de ofensa no corpo e na saúde do ofendido.

Por outro lado, foi dado como provado que o arguido agiu da forma descrita com o propósito de causar no corpo e na saúde do ofendido as lesões verificadas, apesar de saber a sua conduta proibida e punida por lei penal (factos n.º 7 e 8), pelo que também não restam dúvidas acerca do tipo subjectivo do crime supra aludido, na modalidade de dolo directo.

Não obstante também se tenha provado que antes desta agressão o ofendido tinha atirado um número não apurado de pedras ao arguido e se encontrava a galgar o muro para ir ao encontro deste quando lhe foi desferida a pancada, não se provou que o arguido se estivesse a defender de uma nova agressão por parte do ofendido, nem tal defesa se poderia considerar proporcional e adequada a repelir uma putativa agressão ou sequer causada por medo irracional do arguido, já que se provou que o arguido se encontrava num plano superior àquele em que se encontrava o ofendido e podia tê-lo empurrado ou ter-lhe desferido um pancada numa outra parte do corpo que não a cabeça, com o cabo de madeira e não com a sachola propriamente dita.


*

O Direito

Apenas o arguido recorreu da sentença, centrando a motivação na credibilidade que o tribunal deu às declarações do ofendido, em oposição à versão do arguido, pelo que fazendo apelo ao princípio in dubio pro reo devia ter sido absolvido.

As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso.

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, as quais deve conhecer e decidir sempre que os autos reúnam os elementos necessários para tal.

Antes de mais importa sublinhar que é patente a confusão do arguido quanto aos fundamentos em que pretende alicerçar o recurso.

Não estamos perante recurso da matéria de facto, como também parece confundir a Ex.ma Procuradora-adjunta na 1.ª instância, pois o arguido não atacou a decisão, com base em erro de julgamento, ao abrigo do art. 412.º, n.º 3, do CPP, mas sim com base na violação do princípio in dúbio pro reo e erro notório na apreciação da prova, por em seu entender, não devia a senhora juíza ter dado credibilidade aos elementos probatórios em que alicerçou a decisão para condenar o arguido.

Questão a decidir:

Apreciar se foi violado o princípio in dúbio pro reo e se a decisão recorrida sofre do vício de erro notório na apreciação da prova.

O recorrente confunde a diferente valoração que o tribunal fez da prova, relativamente à versão do arguido, com violação do princípio in dubio pro reo.

Sustenta o arguido, que as declarações do ofendido, em seu entender deveriam ter sido valoradas de forma diferente, isto é, perante duas versões contraditórias, o tribunal, por respeito àquele princípio de presunção de inocência, deveria ter absolvido o arguido.

Importa apreciar se tem de ser assim mesmo.

Nos termos do art. 32.º, n.º 2, da CRP todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado.

Este princípio de inocência in dubio pro reo, deve estar sempre presente na mente do julgador, mas este, em cada caso concreto, designadamente quando está em causa a mediação e oralidade da prova, pautado princípio da livre apreciação da prova, cabe-lhe a apreciação crítica que fez dos vários elementos probatórios e em que termos os conjugou, valorando e credibilizando uns em detrimento de outros.

Ora, de acordo com o disposto no art. 127.º, do CPP, o princípio da livre apreciação da prova, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.

Porém, o julgador, obedecendo a estas regras, não aprecia a prova de forma arbitrária, pois os factos dados como provados e não provados, com base neste princípio, devem ter fundamentação suficiente com apoio na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção, como um dos requisitos da sentença, exigidos pelo art. 374.º, nº 2, do CPP.

A apreciação pelo Tribunal da Relação da eventual violação do princípio in dúbio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto, designadamente erro notório na apreciação da prova, isto é, deve ser da análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, seguindo o processo decisório, evidenciado pela análise da motivação da convicção, se se chegar à conclusão que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido.

Há erro notório na apreciação da prova quando se dão factos como provados que, face às regras da experiência comum e a lógica normal da vida, não se poderiam ter verificado ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsidade: trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, evidenciada pela simples leitura do texto da decisão, erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, pois as provas revelam um sentido e a decisão recorrida extrai ilação contrária, incluindo quanto à matéria de facto provada.

No caso dos autos o arguido e ofendido têm versões contraditórias.

Mas tal será bastante para se concluir pela ofensa do princípio in dúbio pro reo?

Necessariamente que não.

Isso seria negar a função do julgador.

O juiz deve procurar a verdade material, que tem de ponderar, de forma sensata com a observância daquele princípio constitucional.

A existência de duas versões contraditórias (a do ofendido, acolhida pelo tribunal a quo que conjugou com outros elementos de prova e a versão do arguido que negou ter sido o autor da lesão) não implica necessariamente a aplicação do princípio in dúbio pro reo, dando como não provada a autoria do crime imputado ao arguido.

Tal tem de resultar de um juízo positivo de dúvida resultante de um impasse probatório.

Em conclusão diremos que a violação do in dúbio pro reo se traduz em erro notório na apreciação da prova.

No seguimento das conclusões a que chegámos para enquadrar a motivação de recurso do arguido se pronunciou a seguinte jurisprudência: Ac. do STJ, de 12/03/2009 – Proc. 07P1769, in http://www.dgsi.pt; Ac. do STJ, de 3/04/2003 – Proc. 975/03, in http://www.pgdlisboa.pt/iure/stj; Ac. do TRC de 30/09/2009 – Proc. 195/07.2GBCNT.C1 e de 6/09/2009 – Proc. 363/08.00GACB.1, in http//www.trc.pt.

Do texto da sentença constas como provado, designadamente o seguinte:

«1. No dia 24 de Junho de 2013, pelas 14:30 horas, o arguido A... e o ofendido B..., seu afilhado, encontravam-se na Rua da Escola, n.º 20, Ferreirim, Sernancelhe, sendo o arguido num prédio rústico de que são comproprietários.

2. A dada altura, e após uma troca de palavras a propósito de um rego, o ofendido atirou com um número de pedras não concretamente apurado na direcção do arguido.

3. De seguida, encontrando-se num terreno contíguo ao prédio referido em 1. e num plano inferior relativamente ao mesmo, o ofendido começou a galgar o muro com altura não inferior a 1,20 metros que separava ambos os prédios, com vista a ir ao encontro do arguido e a tirar satisfações com o mesmo a propósito do dito rego.

4. Quando alcançou a parte superior do muro, o arguido desferiu-lhe uma pancada na nuca, com uma sachola que trazia consigo.

5. Em consequência directa e necessária dessa pancada, o ofendido sofreu dores e uma lesão no crânio, na região occipital esquerda, com 4,5 cm de maior eixo, suturada com 5 pontos».

Fundamentou a senhora juíza a sua convicção para dar como provada aquela matéria de facto que importa considerar, designadamente com a conjugação dos seguintes elementos probatórios:

Foram tidas em consideração as declarações do arguido e do demandante B..... e os depoimentos das duas testemunhas, confirmando a desavença havida naquele dia, hora e local entre arguido e ofendido.

Para dar como provados os factos constantes dos pontos 1 a 4, da matéria de facto, o tribunal valorou decisivamente as declarações do demandante, complementadas pelas declarações do próprio arguido que confirmou que se envolveram em acesa discussão, por causa de um rego de água.

Estas declarações foram corroboradas pelos depoimentos das testemunhas C..... e D....., que não presenciaram os factos, mas estiveram com o ofendido logo depois dos factos e antes de ele ser transportado de ambulância para o hospital.

A testemunha C....., foi tido pelo tribunal descomprometido e credível, a qual se encontrava a roupa no tanque da freguesia quando viu chegar uma ambulância, pois viu o ofendido com uma toalha na cabeça para estancar o sangue e mencionou que, quando questionou os circunstantes acerca do que tinha sucedido, lhe foi dito logo naquela hora que “o A..... velho que deu com a sachola no B..... novo”.

As versões do arguido e do ofendido convergiram quanto ao facto de o arguido se encontrar no local e à hora descrita na acusação quando o ofendido apareceu de tractor no prédio contíguo.

Depois divergem apenas quanto à autoria e nexo causal das lesões apresentadas pelo ofendido.

Eis as duas versões contraditórias constantes da motivação da convicção do tribunal:

1.ª -«Por um lado, o arguido disse que logo que o ofendido chegou ao local onde se encontrava a trabalhar lhe atirou três pedras, sem que tivesse existido qualquer discussão entre ambos, que depois de lançar as pedras o mesmo tentou subir o muro (de 1,80 cm) que separava os dois terrenos enquanto dizia que lhe “fodia os cornos” e, finalmente, que quando ia a chegar ao cimo do muro caiu, não tendo visto se aquele se magoou ou não por não ter tido qualquer curiosidade em ver o estado em que o mesmo se encontrava e por ter abandonado imediatamente o local».

2.ª -«Por outro lado, o demandante referiu que iniciou uma discussão com o arguido por questões relacionadas com um rego existente no dito prédio, que nunca atirou pedras ao arguido e que após uma troca de palavras entre ambos tentou subir o muro (de 1,20 cm) que separava o prédio onde se encontrava do prédio onde se encontrava o arguido e quando ia a chegar ao cimo do muro se deparou com este a brandir a sachola (com que andava a enterrar as pontas das videiras) na sua direcção e apesar de ter tentado desviar-se, não conseguiu evitar o golpe por completo, acabando por ser atingido na nuca».

  Finalmente, conforme consta dos relatórios médicos juntos aos autos de fls. 12 a 14 (relatório do INML) e a fls. 37 (relatório do Hospital de São Teotónio), nos quais se apoia a motivação da convicção do tribunal, o ofendido apresentava uma ferida de 4,5 cm, situada no crânio, na região occipital esquerda, transversal, suturada com 5 pontos e provocada por um instrumento de natureza corto-contundente, lesão que se mostrava compatível com a descrição do ofendido, no sentido de que tinha sido agredido na cabeça com uma sachola.

A dúvida do tribunal foi dissipada, pois o tribunal interpretou e apreciou a bem prova com senso e ponderação, segundo as regras da experiência comum e da normalidade das circunstâncias, concluindo assim por imputar ao arguido a autoria das lesões apresentadas pelo ofendido, cuja versão mereceu credibilidade, por ter apoio lógico nos elementos probatórios, designadamente das testemunhas e dos elementos clínicos juntos aos autos, em detrimento da versão do arguido.

E nesta conformidade a senhora juíza, no dever de procurar a verdade material, removeu a dúvida perante duas versões, quanto ao nexo causal das lesões apresentadas pelo ofendido, formulando um juízo de certeza, cujo processo lógico a que chegou devidamente fundamentou.

Aliás, a este respeito, o tribunal teve o cuidado de justificar na motivação o seu raciocínio e a interpretação que fez crítica da corroboração dos restantes elementos circunstanciais de prova, tendo sido justamente essa corroboração que contribuiupara dissipar as dúvidas decorrentes da frontal contradição existente as versões apresentadas.

Aqui o recorrente, não pode questionar a matéria de facto com base na credibilidade que o tribunal deu à prova que em seu entender deveria ter sido valorada de forma diferente, pois o vício de erro notório na apreciação da prova, não tem a ver com a credibilidade que o tribunal a quo deu à prova em que baseou a decisão, não podendo deste modo, e por si só, pôr-se em causa a factualidade dada como assente.

Como já referimos a apreciação da prova pelo julgador é livre, embora a discricionariedade na apreciação da prova tenha o limite das regras da experiência comum, utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e de controlo, nos termos do art. 127. ° do CPP.

Neste sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional em Acórdão de 19-11-96, in BMJ, 461, 93.

Sendo o tribunal soberano na apreciação da prova, o vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, só pode servir de fundamento à motivação do recurso, desde que resulte do texto do acórdão recorrido, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.

Os contornos da figura jurídica do vício de erro notório na apreciação da prova aparecem recortados na jurisprudência dos tribunais superiores como sendo o erro segundo o qual na apreciação das provas se constata o mesmo de tal forma patente que não escapa à observação do homem de formação média, ao comum dos observadores, mas que tem de ser observado a partir do texto da sentença recorrida nos termos sobreditos.

Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica e é inadmissível face às regras da experiência comum.

A sentença recorrida está bem fundamentada quanto ao à apreciação crítica que fez da prova, credibilizando a versão do ofendido, apoiada noutros elementos probatórios circunstanciais, que soube apreciar e conjugar de forma lógica e coerente, de acordo com observância das regras da experiência e da livre convicção, dando como provada a factualidade imputada ao arguido, integradora da prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143.º, n.º, do CP, fundamento do recurso que nos incumbia sindicar.

Nesta conformidade, concluímos não se verificar o vício de erro notório da apreciação da prova, a que alude o art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP.


*

Decisão:

Pelo exposto, decidem os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra, negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pelo arguido, cuja taxa de justiça se fixa em 3 UCs de taxa de justiça.


*

Coimbra, 4 de Fevereiro de 2015



(Inácio Monteiro - relator)


 (Alice Santos - adjunta)