Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
296/10.0TBPBL-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: INEXISTÊNCIA DE TÍTULO EXECUTIVO
CONVOLAÇÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
Data do Acordão: 04/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ANSIÃO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 2.º, 193º, N.º 3, 726.º, N.º 2, E 734.º, N.º 1, TODOS DO CPC, E ARTIGO 20.º, N.ºS 1 E 4 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
Sumário: Tendo sido deduzida oposição à penhora com fundamento na inexistência de título executivo, o n.º 3 do artigo 193.º do CPC e o direito do executado a um processo equitativo, conjugados com a circunstância de a inexistência do título executivo ser questão de conhecimento oficioso, impõem ao juiz o dever de convolar a oposição para incidente de arguição de nulidade/inexistência do título executivo e conhecer de tal questão.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de COIMBRA


RELATÓRIO

Intentada execução em 10/02/2010, por AA contra L..., LDA, BB e CC, pelo montante de € 33.828,95, foi apresentado como título executivo, documento particular, datado de 09/02/2009 com os seguintes dizeres:

L..., LDA (…) representada pelos seus sócios gerentes BB e CC, declara que após escritura efectuada dos lotes ...7 e ...8 sito em ..., freguesia ..., concelho ..., que pertencia anteriormente a (…) se encontra por liquidar um valor ao sócio AA (…) no valor de €33.828,35, a qual assumimos liquidar o montante em dívida até ao mês de Maio de 2009, não sendo possível liquidar até essa data, passaremos a pagar juros sobre o montante em dívida

No referido documento mostra-se aposto um carimbo por baixo da expressão “A gerência” e duas assinaturas apostas sobre este carimbo.


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Prosseguindo os autos com realização de penhoras, notificado/citado o executado em 20/05/2010, para pagar ou deduzir oposição, veio o executado em 24/01/22, juntar requerimento à execução, que denominou de “oposição à penhora”, invocando a inexistência de título executivo.

Por requerimento de 25/01/22 veio o exequente responder alegando que “o Documento Particular que serviu de base à execução, encontra-se assinado por ambos os executados, contém duas assinaturas e o carimbo da executada L..., LDA (…) No referido Documento está bem explícito que, L..., LDA, CC e BB – Assumem o pagamento da dívida no valor de 33.828,95€, hoje, 65.282,09€.”


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Nos autos de execução de que este é apenso, foi proferido despacho com data de 01/02/22, nos seguintes termos: “Requerimento que antecede: nada a ordenar em face do despacho liminar proferido no apenso de oposição à penhora.

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Ainda em 24/01/22, o executado viera deduzir, por apenso à execução, oposição à penhora alegando que o “título dado à execução, o mesmo constitui um documento particular. (…) Porém, o mesmo não se encontra assinado pelo executado CC, mas tão só pela sociedade executada L..., LDA”, pelo que sendo “A nulidade que ora se invoca (…) de conhecimento oficioso e pode ser arguida a todo o tempo. (…) Aliás, por ser de conhecimento oficioso, a nulidade do título executivo quanto ao ora oponente há muito deveria ter sido apreciada. (…) Assim, por não existir título executivo válido contra o executado CC, deverá proceder-se à extinção da penhora do crédito que o executado detém à ordem do processo judicial n.º 2391/15.....


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Nestes autos, em 01/02/22, foi proferido despacho no qual se decidiu indeferir liminarmente o incidente de oposição à penhora, por se considerar que tendo em conta os “fundamentos alegados no articulado de oposição à penhora, os mesmos não se inserem no âmbito do objecto da oposição à penhora, constituindo, antes, fundamentos a invocar em sede de embargos de executado, na medida em que aí se põe em crise a validade do título executivo, e a exigibilidade da obrigação exequenda (cfr. art.º 729.º, al. e) e 731.º do CPC).

Assim, relativamente ao acervo de alegação plasmado no articulado de oposição à penhora, haverá que indeferir-se liminarmente o requerimento, na medida em que os fundamentos invocados não se ajustam aos fundamentos legalmente admissíveis no âmbito do incidente de oposição à penhora e acima referidos”


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Inconformado com o despacho que indeferiu liminarmente o incidente de oposição à penhora, veio o executado dele recorrer, tendo concluído da seguinte forma:

“1) Conforme resulta de fls., por apenso ao processo executivo o Recorrente deduziu Oposição à Penhora, alegando o acima reproduzido;

2) O Exequente apresentou resposta à oposição à penhora, nos termos que constam do requerimento de fls., com a referência 41108333;

3) Por Sentença de fls., com a referência 99217316, proferida em 01-02-2022, a Meritíssima Juiz do Tribubal a quo decidiu o seguinte: “… Assim atentos os fundamentos acima explanados, decido indeferir liminarmente o incidente de oposição à penhora deduzido. …”;
4) Salvo o devido respeito, que é muito, não podemos aceitar tal decisão;
5) Conforme resulta da oposição à penhora, foi invocada a inexequibilidade/nulidade do título executivo, com base no qual foi efetuada a penhora do crédito que o executado CC detem à ordem do processo judicial n.º 2391/15...., a correr termos no Juiz ... do Juízo de Execução ..., do Tribunal Judicial ...;
6) A Meritíssima Juiz a quo não se pronunciou sobre a invocada inexequibilidade/nulidade do título executivo;
7) A nulidade do título executivo é de conhecimento oficioso pelo próprio Tribunal e pode também ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado;
8) Pelo que a nulidade do título executivo, fundamento da execução, afeta necessariamente todos os termos posteriores no qual se baseiam;
9) O ora recorrente invocou, ainda a inexequibilidade do título executivo, em relação ao executado, uma vez que do mesmo, que constitui documento particular, não consta o Executado como devedor, nem a sua assinatura;
10) Para se apreciar a exequibilidade do título é necessário verificar se a obrigação a executar se contem ou não no título executivo;
11) São elementos constitutivos da obrigação os sujeitos, o objeto e o vínculo;
12) Tanto a pessoa do credor como a pessoa do devedor têm de estar determinadas no próprio título executivo, uma vez que não se trata de título ao portador em que credor é quem possua o título;
13) Do documento particular, que constitui o título executivo, não consta o Executado como devedor da obrigação nele constante (liquidar ao sócio AA o valor em dívida de 33.828,95 € até ao mês de Maio de 2009), correspondente ao vínculo entre o devedor e o credor, ora Exequente;
14) Quem consta no documento particular como devedor do sócio DD (Exequente) é a sociedade L..., LDA, a qual foi representada nesse ato pelos seus sócios gerentes BB e CC (recorrente);
15) O documento particular que serve de título executivo à presente execução, não é título exequível contra o ora Executado CC, mas apenas e tão só contra a sociedade executada L..., LDA;
16) A inexequibilidade/nulidade do título executivo invocados pelo Executado, contrariamente ao que é dito pela Meritísima Juiz a quo constituem fundamentos de oposição à penhora;
17) Para que possa haver penhora de algum bem do executado, como é o crédito do executado, é necessário que a execução seja baseada num título executivo válido e eficaz contra a pessoa que no título figure como devedor, o que manifestamente não acontece;
18) Tal como consta do artigo 784º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) “Sendo penhorados bens pertencentes ao executado, pode este opor-se à penhora com algum dos seguintes fundamentos: a) Inadmissibilidade da penhora dos bens concretamente apreendidos …”;
19) Pelo que se não houve indeferimento liminar da execução contra o Executado, como deveria ter acontecido, deveria a Meritíssima Juiz a quo na oposição que foi feita pelo Executado conhecer dos vícios por este invocados, para além de serem de conhecimento oficioso;
20) Consta do artigo 615º, do Código de Processo Civil, designadamente o seguinte: 1 – É nula a sentença quando: a) (…);
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões
de que não podia tomar conhecimento;
e) (…);
21) Pelo acima exposto, verifica-se que a sentença é nula, uma vez que a Meritíssima Juiz não se pronunciou sobre questões que devia apreciar, como sejam as invocadas nulidade e inexequibilidade do título executivo;
22) Nulidade e inexequibilidade do título executivo que afetava necessariamente os termos posteriores da execução, e em particular a penhora efetuada do crédito do executado;
23) Nulidade da sentença que aqui se invoca com todas as consequências legais daí resultantes;
24) Devendo, por isso, a Sentença ser revogada, com todas as consequências legais daí resultantes;
25) Mesmo que assim se não entenda, a Sentença recorrida tem de ser revogada por outro motivo;
26) A Sentença recorrida não está fundamentada, tanto de facto como de direito, além de fazer uma errada interpretação das normas legais que enumera, tendo em conta o disposto no n.º 1 do artigo 154º do CPC: “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”;
27) E, nos termos do n.º 2 da mesma norma legal/processual: “A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição”;
28) Neste caso em concreto, a Meritíssima Juiz não fundamentou de facto e de direito a sua decisão;
29) Cometeu pois uma nulidade;
30) Daí que, tenha se ser REVOGADA a Sentença recorrida;
31) Verifica-se assim, que na Sentença recorrida não se procedeu a uma correta interpretação dos elementos constantes dos autos, dos documentos juntos, bem como se efetuou uma incorreta interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis ao caso em concreto;
32) Sofrendo a Sentença recorrida de nulidade por violação do disposto nas al. b), c) e d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC;
33) Nulidade que aqui se invoca com todos os efeitos legais;
34) Julgamos, que esse Venerando Tribunal irá Revogar tal Sentença, nos termos em que se deixou requerido;
35) Do mesmo modo que não foi efetuada a mais correta interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis ao caso em concreto;
36) Lendo, atentamente, a decisão recorrida, verifica-se que não se indica nela um único facto concreto suscetível de revelar, informar, e fundamentar, a real e efetiva situação, do verdadeiro motivo do não deferimento da pretensão do Recorrente;
37) Acresce que, a decisão recorrida, viola o disposto no artigo 205º da Constituição da República Portuguesa (CRP), uma vez que segundo esta disposição Constitucional, “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na Lei”;
38) A decisão recorrida não é de mero expediente, daí ter de ser suficientemente fundamentada;
39) E, a decisão recorrida, viola o disposto no artigo 204º da CRP, uma vez que esta norma é tão abrangente, que nem é necessário que os Tribunais apliquem normas que infrinjam a Constituição, basta apenas e tão só, que violem “os princípios nela consignados”;
40) Na verdade a decisão recorrida viola os princípios consignados na CRP, nomeadamente consignados nos artigos 13º (princípio da igualdade) e 20º (acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva);
41) O artigo 13º da CRP dispõe:
“… 1 - Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. …”;
42) Enquanto o artigo 20º da CRP dispõe designadamente:
“1 - A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (…)
4 - Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
5 - Para defesa dos direitos liberdades e garantias pessoais a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter a tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.”;
43) A sentença recorrida não assegurou no presente caso o acesso ao direito e a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos do Recorrente;
44) E, a decisão recorrida viola o disposto no artigo 202º da C.R.P., nomeadamente o n.º 2, uma vez que: “Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos... e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”;
45) Neste caso essa circunstância não se verifica;
46) O Tribunal com a decisão recorrida não assegurou a defesa dos direitos do Recorrente, ao indeferir liminarmente a oposição à penhora, e nem sequer aplicar as normas legais aplicáveis ao caso em concreto;
47) A Meritíssima Juiz limitou-se apenas e tão só, a emitir uma Sentença “economicista”, isto é, uma decisão onde apenas de uma forma simples e sintética foram apreciadas algumas das questões sem ter em conta: Os elementos constantes no processo; Os documentos juntos aos autos; Etc.;
48) Deixando a Meritíssima Juiz de se pronunciar sobre algumas questões que são essenciais à boa decisão da causa, nomeadamente as acima expostas;
49) Cometeu pois uma nulidade, pelo que deve a sentença ser REVOGADA;
50) A Meritíssima Juiz do Tribunal a quo violou designadamente o seguinte:
a) Artigos 45º, e 46º do velho CPC, e artigos 154º, 195º, 196º, 200º, 615º, n.º 1, alíneas b), c) e d), 784º, n.º 1, alínea a), do novo Código de Processo Civil;
b) Os artigos 13º, 20º, 202º, 204º e 205º da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que se requer a V. Exas., a REVOGAÇÃO da Sentença recorrida, com todas as consequências daí resultantes, por ser de LEI, DIREITO e JUSTIÇA.”


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Notificado, nos termos e para os efeitos dos artºs 641º nº 7, e artº 785º, nº 1 do CPC, o exequente não apresentou contra-alegações.

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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.

Tendo este preceito em mente, o thema decidendum consiste em apurar:

-se a decisão que indeferiu liminarmente os embargos é nula nos termos previstos no artº 615, nº1, alíneas b), c) e d) do C.P.C.;

-se pode ser invocada a nulidade/inexistência do título pelo executado CC, em sede de articulado de oposição à penhora e se ao juiz se impunha que conhecesse desta questão;

-se a decisão do tribunal a quo, viola o disposto nos artºs 13º, 20º, 202º, 204º e 205º da Constituição da República Portuguesa, ao não ter apreciado a concreta questão que lhe foi colocada.


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MATÉRIA DE FACTO

A matéria de facto a considerar, é a que consta do relatório elaborado.


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DO DIREITO

Por via do presente recurso, pretende o executado que seja declarada a nulidade da sentença em apreço, por falta de pronúncia sobre a concreta questão colocada à apreciação do tribunal e, por outro lado, que seja declarada extinta a execução, por o título executivo particular se não enquadrar no elenco de títulos executivos previsto no artº 46 c) do C.P.C., no que se reporta ao executado.
Por último, alega que a decisão em apreço viola os princípios contidos na Constituição, de igualdade, de acesso a um processo equitativo e justo e de fundamentação das decisões judiciais.

A primeira questão colocada à nossa apreciação incide sobre a possibilidade de arguição de nulidade/inexistência de título executivo como fundamento de oposição à penhora, questão a que o tribunal a quo deu resposta negativa.

Efectivamente, os fundamentos de oposição à penhora respeitam aos limites materiais e objectivos da penhora realizada, conforme resulta à saciedade do disposto no artº784 do C.P.C. e não sobre o próprio título, conforme considerou a decisão recorrida.

Decorre do estabelecido no artº 784 do C.-P.C. quem não podem ser atingidos pela penhora bens que não sejam do devedor, bens total ou parcialmente impenhoráveis (artº 736 a 739, 743 nº1, 744 nº1 do C.P.C.), bens que só subsidiariamente respondam pela divida exequenda (artº 745 do C.P.C.) e bens que, nos termos da lei substantiva, não respondam pela dívida exequenda.

O incidente de oposição à penhora constitui, assim, um meio de oposição à penhora dos bens por ela atingidos ou contra a extensão com que ela foi realizada, mas sem atacar os fundamentos do título executivo, estes invocáveis em sede de embargos de executado, previstos nos artºs 729 e segs do C.P.C.

Constituindo o título executivo um documento particular, alegadamente com os requisitos exigidos pelo artº 46 c) do C.P.C. (na redacção em vigor à data da entrada em juízo do requerimento executivo), estes fundamentos incluem todos os que pudessem ter sido invocados no processo de declaração (artº 731 do C.P.C).

Ora, tendo o executado sido citado para a execução em 2010, extinguiu-se há muito o direito de deduzir embargos à execução, conforme decorre expressamente do disposto no artº 728 nº1 do C.C. O que não quer dizer, no entanto, que não possa vir invocar, ainda que por simples requerimento ao processo de execução, aquelas questões que, por serem de conhecimento oficioso, o juiz da causa devesse delas conhecer e que ainda possam ser invocadas e conhecidas, por não sanadas. O que nos conduz à segunda questão colocada: estava vedado ao juiz tomar conhecimento da invocada inexistência de título contra os executados, pessoas singulares ou, pelo contrário, impunha-se-lhe que dela conhecesse por constituir questão de conhecimento oficioso?

A resposta a esta questão, depende da consideração do concreto vício invocado como integrando vício de conhecimento oficioso, por via do disposto no artº 734 nº1 do C.P.C.

Dispõe o artº 734 nº1 do C.P.C. que “O juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726.º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo.”

Nestes termos, decorre deste preceito que, caso não tenha sido objecto de apreciação qualquer questão que pudesse ter conduzido ao indeferimento liminar ou ao aperfeiçoamento do requerimento executivo, podem estas questões ser apreciadas até ao primeiro acto de transmissão de bens, oficiosamente, ou seja, independentemente de arguição pela parte interessada. E, por maioria de razão podem e devem ser conhecidas se a parte interessada a suscitar expressamente perante o juiz da causa, ainda que por simples requerimento aos autos de execução. 

Assim sendo, porque sempre se imporia o seu conhecimento oficioso pelo juiz da causa, não está vedado aos executados suscitar a apreciação daquelas questões que deveriam ter determinado o indeferimento total ou parcial do requerimento executivo, nomeadamente as constantes do artº 726 nº2 do C.P.C., ou seja:

-a manifesta falta ou insuficiência do título, ou seja, a que resulte do próprio título, sem necessidade de produção de prova;

-excepções dilatórias, não supríveis, de conhecimento oficioso;

-fundando-se a execução em título negocial, a inexistência de factos constitutivos ou a existência de factos impeditivos ou extintivos da obrigação exequenda que sejam de conhecimento oficioso e que, igualmente dispensem a produção de prova.

Esta possibilidade concedida ao juiz de proferir despacho liminar, ainda que oficiosamente, até ao momento temporal previsto no artº 734 do C.P.C. decorre de nas execuções sumárias não estar previsto o despacho liminar, iniciando-se a execução com a penhora de bens, a que acresce o facto de, neste modelo de execução seguido após a reforma de 2008 (D.L. 226/2008 de 20 de Novembro), todos os actos na acção executiva, não expressamente cometidos ao Juiz, serem praticados pelo Agente de Execução.

Em consequência desta opção do legislador, a intervenção do Juiz para efeito de apreciação de questões que determinariam, se conhecidas, o indeferimento liminar da execução, ou que impõem o seu aperfeiçoamento, só teria lugar, em regra, nos casos em que esta intervenção seja requerida, quer pelo Agente de Execução, conforme o impõe o artº 855 nº2, alínea b) do C.P.C., quer pelo executado, ainda que não tenha deduzido oposição à execução por embargos, mediante requerimento apresentado nos próprios autos de execução.

Neste caso, como refere Lebre de Freitas[1]Tratando-se de vícios cuja demonstração não carece de alegação de factos novos nem de prova, o meio da oposição à execução seria demasiado pesado, pelo que basta um requerimento do executado em que este suscite a questão no próprio processo executivo.”, limitado no entanto, às questões de conhecimento oficioso (e.g. a nulidade decorrente de o juiz não ter determinado o aperfeiçoamento do r.i., ou a correcção do meio processual utilizado indevidamente pelo exequente, nos termos previstos no artº 193 do C.P.C., a inexistência ou nulidade do título, a ilegitimidade de exequente ou executado face ao título apresentado, etc.).

Nestes casos, prevê-se que o juiz possa determinar o aperfeiçoamento do requerimento executivo, se necessário, e conhecer oficiosamente das questões que poderiam ter determinado o indeferimento liminar, até ao momento temporal referido no artº 734 do C.P.C.[2]

Ora esta possibilidade subsiste mesmo que tenha sido proferido despacho a determinar a citação do executado, sem que o tribunal tivesse então atentado no vício que poderia determinar o indeferimento liminar da execução, ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo e sem que esta possibilidade de proferir despacho de indeferimento liminar ou despacho de aperfeiçoamento, esteja limitada ou condicionada pelo facto de os executados, citados, não terem deduzido oposição à execução, não se considerando assim sanados os vícios, pela ausência de oposição.[3]

Conforme se refere no Ac. da relação de 17/05/17[4]o art. 734º-1 do CPC/2013, aliás com redacção similar às duas outras anteriores versões do CPC, dispõe com muita clareza que o juiz, antes do primeiro acto de transmissão de bens penhorados pode rejeitar a execução conhecendo oficiosamente das questões que poderiam ter determinado o indeferimento liminar. O que significa que tal despacho, naturalmente, nem sequer é um despacho de indeferimento liminar. Como explica mesmo o Prof. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3º, Coimbra Editora, ed. 2003, a pag. 335, em anotação ao então correspondente art. 820º do CPC, “Até esse momento, o juiz deve rejeitar oficiosamente a execução, logo que se aperceba da ocorrência de alguma das situações susceptíveis de fundar o indeferimento liminar, quer não tenha havido despacho liminar proferido (art. 324-5), quer só posteriormente se tenha revelado no processo executivo ou, mesmo, no processo declarativo de oposição à execução.”…”A expressa consagração, desde o DL 329-A/95, da possibilidade de conhecimento oficioso superveniente dos fundamentos de indeferimento liminar harmoniza-se com esta possibilidade de fazer valer no processo executivo razões de que o juiz só se dá conta no processo de oposição…”.[5]

Quer isto dizer que os executados que citados, não deduziram oposição à execução, poderiam ainda assim, invocar todas as questões que, por serem de conhecimento oficioso, deveriam ter sido conhecidas pelo juiz da causa, nos termos do artº 726 do C.P.C. e desde que observado o prazo previsto no artº 734 do C.P.C.

Assim sendo, embora não constituindo formalmente fundamentos de oposição à penhora, impunha-se ao magistrado de primeira instância concreta pronúncia sobre esta questão respeitante ao cumprimento dos requisitos exigidos por via do disposto no artº 46, alínea c) do C.P.C., para a formação do título executivo contra os executados, pessoas singulares, que nele outorgaram em alegada representação da sociedade.

Nestes termos, a impropriedade do meio empregue não pode servir como pretexto para o não conhecimento desta questão, tendo em conta que, como decorre do disposto no artº 193 nº3 do C.P.C., “o erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os meios processuais adequados.” [6]

Estava assim vedado ao juiz, sendo o invocado vício de conhecimento oficioso, abster-se de conhecer do mesmo com fundamento na impropriedade do meio, impondo-se-lhe a convolação do meio utilizado, para o meio processual adequado, de acordo com os princípios constitucionais previstos nos artºs 20 nº1 e 4 da Constituição e 2 do C.P.C.

Os direitos de defesa dos executados não podem ser preteridos, por questões meramente formais, por irregularidades processuais praticadas nos autos ou por eventual incumprimento do dever do juiz a quo de apreciação da existência de título executivo.

Por essa razão, se prevê que a concreta utilização de meio processual que não o expressamente previsto na lei, tem a consequência prevista no artº 193 nº3 do C.P.C. Refere-se este preceito já não ao erro na forma do processo, mas antes ao erro no meio processual utilizado. Como refere Lebre de Freitas[7]Autor e Réu têm ao seu alcance, ao longo do processo, meios de atuação que a lei processual lhes disponibiliza para veicularem e fazerem vingar as suas pretensões ou oposições, quer no plano do mérito, quer no das questões processuais (…). O nº3 cuida do erro da parte na utilização de um desses meios, determinando o aproveitamento daquele que a parte haja inadequadamente qualificado, mas cujo conteúdo (…) se adeque ao meio que devia ter sido utilizado; o juiz, oficiosamente, observado o princípio do contraditório, corrige oerro e manda proceder à tramitação própria deste ultimo.

Constitui este preceito um corolário do princípio da cooperação e da adequação processual previsto nos artºs 6 e 7 do C.P.C. e do princípio da tutela jurisdicional efectiva, previsto no artº 2 do C.P.C. e consagrado como direito fundamental no artº 20 da nossa Constituição.  

Nestes termos, por via destes preceitos, impõe-se ao magistrado que corrija oficiosamente o meio processual utilizado, determinando que se sigam os meios processuais adequados para o conhecimento da questão colocada à sua apreciação.

Está-lhe vedado, com base em argumentos estritamente formais, recusar a apreciação da nulidade ou inexistência de título executivo, pois que a tal obsta o disposto nos artºs 2 do C.P.C, 20 e 202 nº2 da Constituição, preceitos que consagram o princípio da tutela jurisdicional efectiva, que tem em si implícito o direito de acesso aos tribunais. Conforme definido pela nossa jurisprudência constitucional, mormente no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 259/2000 (DR, II série, de 7 de Novembro de 2000) que pela sua pertinência se transcreve: “O direito de acesso aos tribunais é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada das partes poder aduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e o resultado de umas e outras”.

Este direito de acesso aos tribunais não pressupõe a efectiva titularidade do direito ou interesse lesado ou ameaçado, mas “estando em causa o direito dos interessados a que o tribunal se pronuncie sobre a sua pretensão material, o princípio pro actione impede que simples obstáculos formais sejam transformados em pretextos para recusar uma resposta efectiva à pretensão formulada.[8]

O direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva é assim, em si mesmo, um direito fundamental e a garantia imprescindível da protecção de outros direitos fundamentais como referem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira[9], “O direito de acesso aos tribunais (nº1) inclui, desde logo, no seu âmbito normativo, o direito de acção, isto é, o direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional, (….) com o consequente dever (direito ao processo) do mesmo órgão de sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada.”

Significa isto que ao juiz está vedada a não pronúncia sobre questões que lhe são colocadas, com fundamento no facto de a parte não ter utilizado o meio processual próprio, quando verificados os requisitos previstos no artº 193 nº3 do C.P.C., porque, neste caso, se lhe impõe que convole o meio utilizado para o meio processual adequado.

Assim deveria o Sr. Juiz de primeira instância ter ordenado a convolação da requerida nulidade do título para requerimento de arguição de nulidade/inexistência do título em sede de execução[10], uma vez que o recorrente se apresentava em prazo para arguir esta nulidade/inexistência do título e dela conhecer.

Assim se conclui que, se a arguição e a decisão de questões de natureza declarativa insertas na acção executiva, apenas pode ocorrer nos momentos e nas formas processais previstas, excepcionam-se apenas as que sejam de conhecimento oficioso e que, portanto, não careçam nem de arguição, nem de prova. Nesse caso, deverá o juiz delas conhecer, ainda que adequando o meio processual ao devido.


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DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, pelo que:
-revogam o despacho recorrido na parte em que indeferiu o conhecimento da nulidade/inexistência do título dado à execução;
-determinam a convolação do meio utilizado, para requerimento de arguição de nulidade/inexistência do título, a ser processado e conhecido no âmbito da execução;


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Custas pelo exequente, que se fixam em 1 U.C. (artº 527 nº1 do C.P.C. e 7 nº4 do RCP).

                                               Coimbra 26 de Abril de 2022




[1] LEBRE DE FREITAS, José, A Ação Executiva, à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 6ª edição, Coimbra editora, pág. 211.

[2] Considerando-se, no entanto, cfr. defendemos no nosso Ac. proferido no TRL em 05/12/2019, proferido no proc. nº Nº2750/16.0T8OER-A.L1, que neste preceito se visa a protecção do terceiro adquirente e não do exequente, não relevando os pagamentos ou transmissão de bens ao próprio exequente.   
[3] Veja-se no mesmo sentido, Ac. do TRL de 28/04/16, relator Nuno Sampaio, proc. nº 7262-13.1TBOER.L1-6, disponível in www.dgsi.pt.
[4] Proferido no proc. nº 2638/07.6TTLSB.1.L1-4, disponível in www.dgsi.pt.

[5] É esta aliás jurisprudência assente cfr. decorre dos Acs. do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-03-2015, processo n.º 28802/09.5T2SNT.L1-2; de 30-11-2010, processo n.º 5170/07.4TMSNT-A.L1-7, de 27/10/2016, processo nº. 4960/10.5TCLRS.L1-6 e de 24/10/19,processo nº  2218/14.0T8SNT-A.L1.L1-2; do TRP de 18/12/18, proc. nº 31688/15.7T8PRT-B.P1; do STJ de 30-11-2006 (revista n.º 3813/06 da 7.ª Secção), de 09-03-2004 (revista n.º 4109/03 da 7.ª Secção), e de 21-11-2011 (agravo n.º 2510/00 da 1.ª Secção).

[6] Neste sentido, vide ainda Lebre de Freitas, José, ALEXANDRE, Isabel, Código de Processo Civil Anotado, 4ª ed., 2018, pág. 397, 398. 
[7] LEBRE DE FREITAS, José, ALEXANDRE, Isabel, ob.cit., págs.397, 398.
[8] MIRANDA, Jorge, MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, Universidade Católica Editora, 2017, pág. 321.
[9] Constituição da República Portuguesa Anotada, págs. 162/163.
[10] Neste sentido para além do Acórdão citado pelo recorrente vide os seguintes, todos disponíveis no sítio www.dgsi.pt : Ac. do TRP de 05/03/2015, proc. nº 3788/13.5YYPRT-A.P1 (relator Pedro Martins), com o seguinte sumário: “Se o executado deduz embargos de executado, mas o que invoca é uma nulidade processual – falta de citação – os embargos devem ser convolados numa reclamação por nulidade (art. 193.º, nº. 3, do CPC), se os embargos tiverem sido intentados no prazo da reclamação.”: No mesmo sentido vide ainda Ac. desta Relação de 11/12/19, proferido no Proc. nº 17751.05.6YYLSB-B-2 (relatora Gabriela Cunha Rodrigues), em cuja sumário se fez constar que “Verificando-se que o ato foi praticado dentro do prazo legal, com o necessário oferecimento de prova no requerimento de embargos, a convolação para o incidente de reclamação da nulidade deve ser admitida, ainda em que se cumulem outros fundamentos de embargos de executado.” e Ac. do TRP de 18/12/18, proferido no Proc. nº 736/18.0T8PRT-B.P1 (relatora Ana Lucinda Amaral), de cujo sumário resulta que “Devendo a nulidade da citação ser arguida no prazo para a dedução dos embargos de executado, estes deverão ser convolados em reclamação da nulidade de citação.”