Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1906/10.4T2AVR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO
Data do Acordão: 03/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTºS 239º, Nº 3, 241º E 245º DO CIRE
Sumário: I – O CIRE veio introduzir uma nova medida de protecção do devedor que seja uma pessoa singular, ao permitir que, caso este não satisfaça integralmente os créditos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerra­mento, venha a ser exonerado do pagamento desses mesmos créditos, desde que satisfaça as condi­ções fixadas no incidente de exoneração do passivo restante destinadas a assegurar a efectiva obtenção de rendimentos para cessão aos credores.

II - Não havendo razões para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, o juiz proferirá despacho inicial, determinando que durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, o fiduciário, para pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida, reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas, ao pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efectuadas e, por fim, distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência, conforme dispõe o art.º 241º do CIRE.

III - No final do período da cessão será proferida decisão sobre a concessão ou não da exoneração e sendo esta concedida ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados – art.º 241º, n.º 1 e 245º, ambos do C.I.R.E.

IV - De acordo com o disposto pelo art.º 239º, n.º 3 do CIRE, o rendimento disponível do devedor objecto da cessão ao fiduciário é integrado por todos os rendimentos que ao devedor advenham, a qualquer título, no referido período, com exclusão:

a) Dos créditos a que se refere o art.º 115º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;

b) Do que seja razoavelmente necessário para:

i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;

ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;

iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.

V - Quanto ao valor mínimo que se deve considerar como mínimo garantido, o mesmo resultará das necessidades que em concreto o Insolvente apresentar, tendo como referência o disposto no art.º 824º do C. P. Civil, que não permite a penhora, quando o executado não tenha outro rendimento, de montante equivalente ao salário mínimo nacional, entendido este como a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o mínimo dos mínimos não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo.

VI - Tendo presente o acima exposto; considerando como sustento minimamente digno um valor igual ao do SMN, valor este que em 2011 – ano em que foi proferida a decisão recorrida – foi fixado em € 485,00; considerando ainda que o Requerente tem como único rendimento uma pensão de reforma no valor mensal de € 1.159,71 e a Requerente tem como único rendimento uma pensão de reforma no valor mensal de € 441,39; decide-se fixar o valor equivalente ao do salário mínimo para o Requerente, e para a Requerida o da totalidade da sua pensão de reforma.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

Os Insolventes formularam pedido de exoneração do passivo restante, alegando em síntese:

- preenchem todos os requisitos de que o mesmo depende;

- comprometem-se a observar todas as condições exigidas para que essa nova oportunidade lhes possa vir a ser concedida;

- os créditos contraídos e que os levaram à situação de insolvência foram aplicados em sociedades que identificam;

- são casados entre si segundo o regime de comunhão geral de bens;

- auferem cada um deles, mensal e respectivamente, pensão de reforma no valor de € 1.159,71 e € 411,39, único rendimento de que dispõem, incidindo sobre as mesmas penhoras no montante de € 386,57.

- são os únicos membros do seu agregado familiar.

Sobre tal pedido e após audição dos credores, veio a ser proferido o seguinte despacho:

Pelo exposto, admito liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.

Em consequência, determino que durante os cinco anos subsequentes ao trânsito em julgado desta decisão o rendimento disponível dos insolventes se considera cedido ao fiduciário, com exclusão dos créditos indicados nas als. a) e b) do art. 239.º/3 do CIRE, fixando-se o sustento mensal minimamente digno dos insolventes no valor correspondente a 1,90 salários mínimos nacionais, sendo o restante o rendimento disponível para cessão.

Como fiduciário, fica designado o administrador da insolvência.

 

Inconformados com a decisão proferida os Insolventes interpuseram recurso, formulando as seguintes conclusões:

Não foi apresentada resposta.

 

1. Do objecto do recurso

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­gações dos recorrentes cumpre apreciar a seguinte questão:

O valor mensal minimamente digno dos insolventes devem ser fixado em três SMN?

2. Dos factos

Os factos a considerar para a decisão são os seguintes:

1 – O Requerente nasceu em 5.10.1930.

2 – A Requerente nasceu em 26.11.1935.

3 – O Requerente tem como único rendimento uma pensão de reforma no valor mensal de € 1.159,71.

4 – A Requerente tem como único rendimento uma pensão de reforma no valor mensal de € 441,39.

5 – Os Requerentes atribuíram ao seu património imobiliário o valor de € 132.300,00.

6 – Os Requerentes identificaram dívidas no calor total de € 834.568,15.

3. O direito aplicável

Vem o presente recurso interposto da decisão que fixou o sustento mensal minimamente digno dos insolventes em 1,9 SMN.

O CIRE veio introduzir uma nova medida de protecção do devedor que seja uma pessoa singular, ao permitir que, caso este não satisfaça integralmente os créditos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerra­mento, venha a ser exonerado do pagamento desses mesmos créditos, desde que satisfaça as condi­ções fixadas no incidente de exoneração do passivo restante destinadas a assegurar a efectiva obtenção de rendimentos para cessão aos credores.

Este incidente é uma solução que não tem correspondência na legislação falimentar anterior e que se inspirou no chamado modelo de fresh start, nos termos do qual o devedor pessoa singular tem a possibilidade de se libertar do peso do passivo e recomeçar a sua vida económica de novo, não obstante ter sido declarado insolvente.[1]

É indiscutível que se não ocorresse a declaração de insolvência o devedor teria de pagar a totalidade das suas dívidas sem prejuízo da eventual prescrição, a qual pode atingir o prazo de 20 anos segundo a lei civil portuguesa.[2] 

O procedimento em questão tem dois momentos fundamentais: o despa­cho inicial e o despacho de exoneração.

A libertação definitiva do devedor quanto ao passivo restante não é concedida – nem podia ser – logo no início do procedimento, quando é proferido o despacho inicial a que alude o n.º 1 do art.º 239º do CIRE.

Neste contexto, o CIRE veio estabelecer fundamentos que justificam a não concessão liminar da possibilidade de exoneração do passivo restante, os quais se traduzem em compor­tamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuí­ram ou a agravaram[3].

Não havendo razões para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, o juiz proferirá despacho inicial, determinando que, durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, o fiduciário, para pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida, reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas, ao pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efectuadas e, por fim, distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência, conforme dispõe o art.º 241º do CIRE.

No final do período da cessão será proferida decisão sobre a concessão ou não da exoneração e sendo esta concedida ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados – art.º 241º, n.º 1 e 245º, ambos do C.I.R.E.

De acordo com o disposto pelo art.º 239º, n.º 3 do CIRE, o rendimento disponível do devedor objecto da cessão ao fiduciário é integrado por todos os rendimentos que ao devedor advenham, a qualquer título, no referido período, com exclusão:

a) Dos créditos a que se refere o art.º 115º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;

b) Do que seja razoavelmente necessário para:

i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;

ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;

iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.

A primeira questão que nos surge é a de determinar o que deve ser entendido como sustento minimamente digno.

Para uns[4], o legislador terá adoptado um critério objectivo na sua determinação, coincidindo este com o valor correspondente ao triplo do salário mínimo nacional, valor esse que só pode ser aumentado por decisão fundamentada do juiz.

A jurisprudência[5] tem, contudo, vindo a entender que o triplo do SMN corresponde somente ao tecto máximo imposto pelo legislador para o valor do sustento minimamente digno, solução com a qual concordamos, uma vez que a ponderação a fazer daquilo que seja o razoavelmente necessário rejeita imediatamente a ideia de um valor fixo, impondo antes que seja fixado o montante que o juiz entenda adequado, tendo em conta aquele parâmetro ou excedendo-o nos casos em que fundadamente tal se justifique.

Quanto ao valor mínimo que se deve considerar como mínimo garantido, o mesmo resultará das necessidades que em concreto o Insolvente apresentar, tendo como referência o disposto no art.º 824º do C. P. Civil, que não permite a penhora, quando o executado não tenha outro rendimento, de montante equivalente ao salário mínimo nacional, entendido este como a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o mínimo dos mínimos não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo.[6]

Pretendem os Recorrentes que a decisão recorrida seja alterada, justificando a sua pretensão no facto de, na fixação do montante destinado ao sustento mensal minimamente digno dos insolventes, não terem sido consideradas despesas que, necessariamente, determinam a sua alteração para o valor de três salários mínimos nacionais, tais como:

- a sua idade;

- que tendo a sua casa de morada de família, sita na Rua …, sido apreendida para a massa insolvente, terão de suportar o custo do arrendamento de uma habitação minimamente condigna:

- a eventualidade de necessidade de internamento num lar de idosos.

 

Consta da decisão recorrida, no que respeita à fixação do valor minimamente digno dos Requerentes:

… tomar-se-á em consideração o valor das suas reformas, a inexistência de encargos relevantes que suportem, o montante elevadíssimo das dívidas, mas igualmente o património apreendido afecto ao pagamento das mesmas.

Ora, compulsados os autos não resulta que os Requerentes tenham quaisquer outras despesas para além daquelas que, normalmente, têm pessoas da sua idade, não tendo pelos mesmos sido alegados quaisquer factos que permitam concluir pela sua verificação. Assim, deve presumir-se que o seu estado de saúde e necessidades são iguais aos de qualquer cidadão na sua circunstância de idade.

Os insolventes não podem pretender continuar a usufruir das mesmas condições que mantinham antes de se encontrarem em estado de insolvência, tendo que ter presentes os interesses dos credores bem como os sacrifícios que deste seu estado lhe advirão para satisfazer as suas obrigações, sendo que o legislador concedeu um período limitado para esses sacrifícios – 5 anos, após o encerramento do processo.

É, fazendo apelo a critérios de razoabilidade, na ausência da prova do valor exacto que os Insolvente terão que despender, que temos, neste momento, de aferir da bondade da consideração daquele montante como o adequado ao seu sustento com o mínimo de dignidade.

Não é do facto da sua casa de morada de família ter sido apreendida que resulta, sem mais, a verificação da necessidade dos Requerentes de um valor para custear uma renda, bem como do facto da sua idade também não decorre a necessidade de medicação que importe despesas de saúde acrescidas.

Fixar, como pretendem os Requerentes, o valor do sustento mensal em três salários mínimos reconduziria a que os mesmos passassem a ter a disponibilidade de um rendimento de valor superior àquele que dispunham antes da sua declaração de insolvência, pois sobre as suas reformas incidia uma penhora que as reduzia em € 386,57, dispondo então de € 1.184,53, o que, indubitavelmente não pode acontecer, considerando a sua situação e necessidades.

Cumpre ainda dizer que a fixação do sustento minimamente digno não deve ser efectuada em globo para todos aqueles que tenham sido declarados insolventes no mesmo processo, pois o direito à exoneração do passivo restante só é possível em relação a pessoas singulares, sendo um direito de cada insolvente e não do casal, razão pela qual deve ser fixado separadamente para cada um dos devedores.

Tendo presente o acima exposto; considerando como sustento minimamente digno um valor igual ao do SMN, valor este que em 2011 – ano em que foi proferida a decisão recorrida – foi fixado em € 485,00[7]; considerando ainda que o Requerente tem como único rendimento uma pensão de reforma no valor mensal de € 1.159,71 e a Requerente tem como único rendimento uma pensão de reforma no valor mensal de € 441,39, decide-se fixar o valor equivalente ao do salário mínimo para o Requerente, e para a Requerida o da totalidade da sua pensão de reforma.

Acresce que quaisquer outras eventualidades que venham a surgir na vida dos Insolventes estarão a coberto da previsão do art.º 239º, n.º 3, b), iii do CIRE, a seu requerimento.

Assim, julgando parcialmente[8] procedente o recurso, fixa-se o sustento mensal minimamente digno do Requerente no valor do SMN, e da Requerente no valor total da sua pensão.

Decisão

Nos termos expostos, julga-se parcialmente procedente o recurso e, em consequência, altera-se a decisão recorrida fixando-se o sustento minimamente digno do Requerente em valor igual ao SMN e o da Requerente no valor da totalidade da sua pensão de reforma.

Custas do recurso pelos Recorrentes na proporção do decaimento.

Sílvia Pires (Relatora)

Henrique Antunes

Regina Rosa

[1] Cfr. preâmbulo do DL 53/2004, de 18 de Março.

 

[2] ASSUNÇÃO CRISTAS, in Exoneração do devedor pelo passivo restante, Themis – Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Edi­ção especial, pág. 166-167.

 

[3] LUÍS CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 188-190, da ed. de 2005, da Quid Júris

 

[4] Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 238, ed. 2005, Quid Júris.