Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
482/05.4TBAGN.P1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: INVENTÁRIO
DESPACHO DETERMINATIVO DA PARTILHA
RECURSO
LEGÍTIMA
DOAÇÃO
COLAÇÃO
PASSIVO
Data do Acordão: 01/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - ARGANIL - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 2104, 2108, 2114, 2162, 2168 CC, 1349 CPC
Sumário: 1. O despacho determinativo da forma à partilha só pode ser impugnado na apelação interposta da sentença homologatória da partilha, recurso este que abrangerá todos os despachos posteriores ao determinativo da forma à partilha, desde que com eles conexionados.

2. Existindo herdeiros legitimários, o valor dos bens doados tem de ser contabilizado para efeitos do cálculo da legítima.

3. Se a doação tiver sido feita a herdeiro, com “dispensa de colação”, o respetivo valor deverá ser imputado na quota disponível do de cuius e, se a não exceder, o respetivo valor não fará parte do “bolo” a distribuir pelos herdeiros legitimários.

4. O passivo aprovado por unanimidade ou reconhecido judicialmente deverá ser deduzido ao ativo na primeira parte das operações em que a partilha se desdobra, ou seja, para efeitos do montante global a partilhar.

5. Caso os interessados acordem em que o passivo seja pago por um dos interessados, o respetivo valor terá de ser deduzido ao valor dos bens que lhe vierem a ser adjudicados.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

Nos presentes autos de inventário a que se procede por óbito de F (…) e A (…), em que desempenha as funções de cabeça de casal FM (…),

Foi proferido despacho homologatório da partilha, do qual a interessada e cabeça de casal, M (…) dele vem interpor recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

1. A sentença objeto do presente recurso homologou o mapa de partilha, que enferma de lapsos e irregularidades evidentes, que viciam os pagamentos resultantes do mesmo.

2. As verbas 8 a 13B da Relação de Bens totalizam o valor de 219.158,00 e não 188.628,75 euros, conforme se fez consignar no mapa de partilha homologado pela decisão que se impugna através do presente recurso.

3. Nas Atas das conferências de 8/10/2012 e 27/06/2013, apenas se acordou, quanto ao desdobramento das verbas 12 e 13, com os valores patrimoniais resultantes da avaliação judicial e quanto ao valor do passivo, que se fixou em 48.255,00 euros, a pagar pela interessada M (…), uma vez que os credores não exigiam o seu pagamento imediato.

4. A avaliação judicial requerida pelos ora recorridos foi tida em consideração para a correção dos valores dos bens imóveis avaliados, designadamente, verbas 12A, 12B, 13A, 13B e do passivo relativo às benfeitorias no valor de 48.255,00 euros.

5. Nos bens da herança por óbito de A (…) relacionados a fls 254vº e 256vº, constam as verbas 27 e 28 no valor global de 17.579,63 euros, objeto de doação, através da escritura outorgada em 7/11/2002, que foram incluídos na Relação de Bens apenas para efeitos de cálculo da quota disponível da inventariada e averiguação da eventual inoficiosidade, conforme resulta do despacho judicial de 7/12/2006 (fls 228vº).

6. Tais verbas, seja com os valores iniciais de 17.579,63 euros, seja com os valores resultantes da avaliação judicial, não podem constar do total a partilhar, por terem sido objeto de doação, cuja inoficiosidade não foi reconhecida.

7. Ao incluírem-se no mapa de partilha, com o valor global de 17.579,63 euros, adulterou-se tal mapa, prejudicando-se a interessada M (...) , ora recorrente.

8. Aliás, sendo esta interessada apenas usufrutuária, mesmo que a inoficiosidade tivesse sido declarada, apenas se deveria considerar o valor correspondente ao usufruto, devendo no seu cálculo ter-se em consideração a sua já avançada idade.

9. Para além deste erro manifesto, não se compreende que o passivo que a interessada M (…) ficou de pagar aos credores (48.255,00 euros) não tenha sido abatido no total dos bens a partilhar.

10. A partilha e adjudicação só pode operar-se, após deduzido o passivo das heranças a partilhar.

11. Na operação de partilha, o total dos bens relacionados nas duas heranças é de 272.912,36 euros, incluindo-se nesse valor os já referidos 17.579,63 euros das verbas doadas e não se deduzindo o passivo de 48.255,00 euros.

12. Deduzindo estas duas verbas ao valor global de 272.912,36 euros, obtém-se o total de 207.077,73 euros, valor que devia ter figurado para efeitos de divisão dos dois quinhões hereditários.

13. O quinhão de cada uma das cabeças é de 103.538,86 euros, sendo que um deles é subdividido pelos recorridos F (…) e I (…) recebendo cada um 51.769,43 euros.

14. Em conformidade com o mapa de partilha homologado pela sentença impugnada, cada um desses interessados recebe 16.458,66 euros a mais do que lhe é devido.

15. Em resultado destes manifestos lapsos, o mapa de pagamentos está errado, sendo certo que os interessados F (…) e I (…) não têm a haver tornas, existindo sim um pequeno diferencial a esse título de 679,99 euros, a favor do ora recorrente.

16. A douta sentença recorrida ao homologar a partilha constante de fls.787 a 791, adjudicando aos interessados os quinhões, de acordo com os valores ali consignados, sendo manifesto a existência de lapsos de cálculo e irregularidades, violou o disposto nos artigos 1373º, 1374º, 1375º, 1379º e 1382º do Código de Processo Civil em vigor à data da instauração do presente inventário e aplicado ao presente processo.

Conclui pela revogação da sentença recorrida, substituindo-se por outra que determine a correção dos erros e irregularidades constantes do mapa de partilha invocados no presente recurso,


*

Pelos interessados F (…) e I (…) foram apresentadas contra-alegações no sentido da improcedência do recurso.

Cumpridos que foram os vistos legais, ao abrigo do art. 657º, nº2, in fine, do CPC, há que decidir.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artºs. 684º, nº3 e 685º-A, do Novo Código de Processo Civil[1], as questões a decidir são as seguintes:

1. Questão prévia – “estabilização” do mapa de partilha.

2. Se o valor dos bens imóveis relacionados sob as verbas 8, 9 e 11, deverá corresponder ao valor resultante da avaliação efetuada nos autos.

3. Se o valor dos bens doados deverá ser excluído do montante dos bens a partilhar.

4. Se o passivo deverá ser abatido ao valor global dos bens a partilhar, bem como no quinhão da interessada M (...) .

III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Dos elementos constantes dos autos, são os seguintes os factos a atender, para a decisão das questões em apreço:

1. Os inventariados F (…) e A (…) casados que foram sob o regime de separação de bens, faleceram, respetivamente, a 11 de fevereiro de 2002 e a 31 de março de 2005;

2. Tiveram dois filhos, M (…) e F (…) , este pré-falecido, deixando dois filhos, que dos inventariados são netos I (…) e F (…).

3. A inventariada A (…), por escritura pública de 7 de novembro de 2002, doou com dispensa de colação, o usufruto de dois imóveis (relacionados sob as verbas ns. 27 e 28 da relação de bens) à sua filha I(…), doando a nua propriedade de tais prédios a F (…) (filho da I(   ) e neto da inventariada).

4. A requerimento de todos os interessados, procedeu-se à avaliação de todos os imóveis relacionados.

5. Na sessão da Conferência de Interessados que teve lugar no dia 08.10.2012, pelos interessados foi declarado encontrarem-se de acordo em eliminar as verbas ns. 11 e 12, desdobrando os imóveis que as compunham nas verbas 12-A e 12-B (frações A e B, respeitantes ao artigo 1915º), e 13-A e 13-B (frações A e B, respeitantes ao artigo 1916º), atribuindo a cada uma um valor proporcional à sua superfície.

6. Na Conferência de Interessados que teve lugar no dia 27.06.2013, os interessados requereram a retificação da verba nº15 do passivo, da relação de bens por óbito de F (…), que passaria a ter o valor de 48.255,00 €, passivo que “foi aprovado por acordo”, “devendo ser pago pela interessada M (…), visto os credores não exigirem o seu pagamento imediato”.

7. Nessa mesma conferência, tendo os interessados acordado no modo de adjudicação dos bens relacionados, declararam que “todas as adjudicações foram feitas pelos valores constantes das relações de bens, tendo em conta as alterações agora acordadas”.


*

1. Questão prévia – estabilização do mapa da partilha, pelos sucessivos pedidos de retificação e despachos sobre eles incidentes.

Visando-se com a apresente apelação – interposta da sentença que homologou o mapa da partilha –, a retificação de vários lapsos e irregularidades alegadamente evidenciadas naquele mapa, os Apelados, na suas contra-alegações de recurso, opõem-se ao conhecimento de tal pretensão com a seguinte argumentação: face às várias reclamações ao mapa da partilha, deduzidas quer pelos apelantes, quer pelos apelados, e aos despachos que sobre elas incidiram, o referido mapa já se encontraria “estabilizado”; por outro lado, tendo, no seu requerimento de 23.03.2015, alegado que a patilha tinha sido realizada no pressuposto de que não haveria tornas, constitui abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium vir agora defender, em sede de alegações de recurso, que “existe um diferencial a seu favor de 679,99 €”.

Analisemos, assim, tal questão prévia da “estabilização” do mapa da partilha, levantada pelos Apelados nas suas contra-alegações, e que a dar razão aos apelados, levaria a considerar prejudicadas a apreciação das irregularidades invocadas pela Apelante.

Cumprido o disposto no nº5 do artigo 1349º do CPC, os interessados F (…) e I (…) vieram dar forma à partilha, forma esta a que o juiz a quo aderiu sem quaisquer reparos, determinando que se procedesse à partilha de harmonia com a mesma.

Elaborado o mapa da partilha pela secretaria e posto em reclamação, vieram:

a) os interessados F (…) e I (…) reclamar de determinados lapsos de escrita de que padeceria tal mapa;

b) a interessada M (…) (aqui Apelante), apresentar reclamação, requerendo a retificação do valor das verbas ns. 8, 9 e 11, aqui em discussão, bem como a exclusão do valor dos bens doados do total a partilhar e o abatimento do passivo.

Foi proferido despacho a determinar a retificação do mapa, em conformidade com a informação dada pela secretaria, na qual são reconhecidos os lapsos de escrita apontados pelos interessados F (…) e I (…), mas não os erros apontados pela interessada M (…), esclarecendo quanto a esta que, posteriormente à avaliação, “foi pelos reclamantes apresentada desistência, não tendo havido qualquer despacho a fixar os valores da avaliação aos bens indicados, motivo porque não foram levados em conta na partilha, pois não constam da relação de bens. No mais, a partilha foi levada a efeito tendo em conta o determinado na conferência de interessados e requerimento de forma à partilha”.

O despacho determinativo da forma à partilha – que deveria determinar com rigor a distribuição dos bens da herança pelos interessados e resolver todas as questões que possam influir na divisão – só pode ser impugnado na apelação interposta da sentença da partilha, conforme dita expressamente o nº3 do artigo 1373º do CPC, na redação anterior à Lei nº 23/2013, de 5 de março que aprovou o regime jurídico do processo de inventário[2].

Quanto aos despachos que se seguem ao determinativo da partilha, se estão diretamente relacionados com ele e são dele consequência necessária, o recurso interposto da sentença homologatória da partilha, a todos compreenderá[3].

Quanto ao alegado abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium resultante da contradição existente entre a posição assumida pela apelante no seu requerimento de 23 de março de 2015, de reclamação ao mapa de partilha, e a posição por si assumida nas suas alegações de recurso, não tem qualquer razão de ser. Não existe, de todo, qualquer contradição. As pretensões que faz valer nas suas alegações de recurso, e os respetivos fundamentos, são a exata reprodução do por si alegado no requerimento de 23 de março de 2015, no qual se conclui exatamente com a afirmação de que “existe um diferencial de 679,99 €, entre o que devia receber e o quinhão recebido”.

Assim sendo, nada obsta a que a apelante suscite de novo tais questões em sede de recurso do despacho homologatório da patilha, sendo mesmo este o meio adequado ao efeito.

Analisemos, assim, cada uma das reclamações da Apelante contra o mapa da partilha.

2. Se as verbas ns. 8, 9 e 11, devem ser relacionadas pelo valor constante da relação de bens ou pelo resultante da avaliação efetuada nos autos.

Segundo a Apelante M (…), tendo os imóveis relacionados sob verbas 8, 9 e 11, sido objeto de avaliação, pela qual lhes foi atribuído os valores de 900,00 €, 27,244 € e 3.600 €, respetivamente, as verbas 8 a 13B totalizam 219,158 €, e não o valor de 188.628,75 € consignado no mapa de partilha.

Já no entender dos Apelados, o mapa não conteria qualquer lapso, porquanto, na Conferência de Interessados de 27.06.2013, se acordou expressamente que todas as adjudicações foram feitas pelos valores constantes das relações de bens, tendo em conta as alterações então acordadas, sendo certo que estas alterações não abrangeram os bens em causa.

Da análise dos autos, resulta ter-se procedido a avaliação dos bens imóveis relacionados, a requerimento da totalidade dos interessados – avaliação que, dada a fase em que foi requerida[4], se enquadrará no “arbitramento” previsto no nº3 do artigo 1353º, do CPC, destinado a possibilitar a repartição igualitária e equitativa dos bens pelos interessados.

Tendo o resultado de tal arbitramento sido notificado aos interessados sem que contra ele tenha sido levantada qualquer reclamação, será este o valor atualizado a atender para os bens que dela foram objeto[5], a não ser que o mesmo venha a ser objeto de alteração pelos mecanismos processuais ao dispor dos interessados:

a) reclamações deduzidas ao valor dos bens relacionados (por defeito ou por excesso), previstas nos artigos 1353º, nº4, al. a), 1362º, ambos do CPC;

b) avaliação de bens legados ou doados, prevista nos arts. 1365º a 1367º, CPC;

c) licitações, previstas nos arts. 1370º e ss., do CPC.

d) acordo unânime dos interessados nos termos do art. 1353º, nº1, al. a), do CPC.

O que significa que, embora o resultado da avaliação seja vinculativo para as partes e para o tribunal (depois de estabilizado pela via das reclamações), este pode não ser o valor pelos quais os bens venham ser adjudicados. Tal valor pode vir a ser objeto de alterações, quer por via de licitações, quer por unanimidade na conferência de interessados, podendo os interessados acordar na adjudicação por valor superior ou inferior.

Na ausência de qualquer reclamação ou avaliação posterior, e não tendo havido lugar a licitações, o valor resultante da avaliação só poderá mostrar-se afastado no caso de acordo unânime dos interessados.

Na Ata da sessão de 27.06.2013, da Conferência de Interessados fez-se constar que as partes terão declarado que “Todas as adjudicações foram feitas pelos valores constantes das relações de bens, tendo em conta as alterações agora acordadas”. Ora, em tal sessão, apenas foi retificado o valor da verba nº 15 do passivo, e na sessão de 08.10.2012, acordara-se tão-só no desdobramento das verbas ns. 12 e 13, e no valor a atribuir a cada uma delas (valor este que, ao contrário do defendido pela Apelante, embora se aproxime dos valores constantes da avaliação, não é com eles coincidente[6]).

Ou seja, não só da Ata se fez constar que todas as adjudicações foram feitas “pelo valor constante da relação de bens” – sem que algum dos interessados alegue que tal ata contenha algum lapso ou que o que nela se fez constar não corresponda às declarações então prestadas pelos interessados – como, nos casos em que dele se afastaram, não se limitaram a remeter para os valores contantes da avaliação, declarando expressamente qual o valor que atribuíam a cada uma das verbas, valor esse que só coincidiu com o da avaliação relativamente no caso da verba nº15 da relação de bens (valor do passivo, correspondente às benfeitorias levadas a cabo no prédio que constituía a verba nº13).

Assim sendo, e apesar de se considerar que nos autos não houve lugar a qualquer desistência da avaliação (tendo ocorrido, tão só, na sessão de 15 de maio de 2008, uma “desistência dos restantes pontos da reclamação” à relação de bens apresentada pelos interessados F (...) e M (...) ), concluir-se-á que, ressalvado valor do passivo que as partes fizeram coincidir com o resultante da avaliação, as partes terão querido afastar os valores resultantes de tal avaliação para efeitos de partilha e de composição dos quinhões.

Improcede, assim, a pretensão da Apelante à retificação do valor das verbas ns. 8, 9, e 11, em conformidade com o resultado da avaliação efetuada nos autos.

2. Se o valor dos bens doados deve ser excluído do montante dos bens a partilhar.

Defende a Apelante I (…) que, não havendo inoficiosidade, o valor dos bens doados não deveria ser contabilizado; de qualquer modo, e ainda que se confirmasse a inoficiosidade, jamais aqueles valores poderiam ser tomados em consideração, pois ali contempla-se o valor da propriedade plena dos imóveis e a dita interessada é apenas titular do usufruto.

Segundo os apelados, a questão da inoficiosidade teria sido tacitamente resolvida/acordada na conferência de interessados realizada a 27.06.2013, uma vez que os móveis objeto de doação, foram expressamente adjudicados à interessada M (...) , pelo que, devem tais bens manter-se “contabilizados e somados para efeitos de mapa da partilha”.

Em regra, o valor da herança a partilhar é calculado por referência aos bens existentes no património do de cuius à data da sua morte (relictum).

Importando as doações a transferência imediata dos bens do património do doador para o património do donatário, os bens que tenham sido doados em vida do falecido, em princípio, não pertencem à massa hereditária.

Contudo, havendo presuntivos herdeiros legitimários, não só doações não poderão exceder o valor da quota disponível do doador, como, no caso de a doação ter por destinatário um descendente presumido herdeiro legitimário, e presumindo a lei que tal doação constituiu um adiantamento da sua legítima, o donatário terá de conferir o respetivo valor caso pretenda entrar na partilha (artigo 2104º, nº1, CC).

Assim, na sucessão legitimária, para determinados efeitos relacionados com a proteção dos herdeiros legitimários – cálculo da legítima, redução por inoficiosidade e colação –, haverá que encontrar o valor da herança para efeitos da calculo da legítima, de harmonia com os critérios constantes do artigo 2162º CC – atendendo-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, deduzido do valor das dívidas da herança, adicionado das despesas sujeitas a colação e do valor dos bens doados[7].

O produto final assim encontrado constituirá, então, o valor global da herança para efeitos do cálculo da legítima.

Como salienta Pereira Coelho[8], este adicionar do valor dos bens doados, consiste numa mera restituição fictícia à massa da herança, uma mera operação de cálculo e que não importa um efetivo aumento da massa hereditária.

Haverá assim que distinguir claramente a contabilização dos bens doados para o cálculo da legítima (com vista à averiguação de uma eventual inoficiosidade) e a sua contabilização para efeitos de colação.

Visando o cálculo da legítima a averiguação de uma eventual inoficiosidade – apurar se as doações excederam a quota disponível do inventariado – abrange toda e qualquer liberalidade, efetuada a herdeiros ou a terceiros.

Já a colação, visando a igualação entre todos os herdeiros, apenas abrange as doações feitas a descendentes que seja presuntivos herdeiros legitimários à data da doação. Assentando na presunção de que, com a doação ao presuntivo herdeiro legitimário, o de cuius não o quis beneficiar – constituindo um mero adiantamento da sua quota hereditária –, caso queira entrar na sucessão, e a fim de assegurar a igualação na partilha, terá de trazer à massa da herança os bens ou valores que lhe foram doados por aquele (artigo 2108º, CC). Deste modo, os bens ou valores recebidos devem “regressar” à massa da herança, para, após esta operação, se proceder à partilha da mesma. Como salienta Jorge Leite[9], através deste instituto procura-se fazer coincidir o resultado da partilha com aquele a que se chegaria se não tivera tido lugar a doação.

Assim, enquanto a reunião fictícia, para o cálculo da legítima, é puramente ideal, não importando qualquer regresso dos bens ou valores à massa da herança (salvo se se verificar inoficiosidade), a colação implica uma “restituição” dos bens recebidos com efeitos práticos próximos dos da revogação ou da renúncia das doações[10].

No caso em apreço, a doação do usufruto dos imóveis (relacionados sob as verbas ns. 27 e 28, da herança por óbito da inventariada América), à herdeira legitimária M (…), foi-o “com dispensa de colação[11]” (quanto à doação da nua propriedade ao filho desta, não sendo presumível herdeiro legitimário à data da doação, não se coloca a questão da sua sujeição a conferência.).

Como salienta Álvaro Laborinho Lúcio[12], pela dispensa, fica o donatário herdeiro em situação idêntica à de qualquer donatário estranho, fazendo seus, de um modo definitivo, os bens doados, sobre os quais os restantes co-herdeiros não virão a exercer direitos alguns.

Nesta hipótese, o herdeiro donatário não é obrigado a conferir nada do que recebeu, ficando a doação sujeita unicamente a eventual redução por inoficiosidade, se for caso disso.

As doações dispensadas de colação por vontade do de cuius ou por força de lei vão integrar a quota disponível do autor da sucessão (artigo 2114º, nº1, CC), só podendo ser atacadas no caso de inoficiosidade (arts. 2168º e ss., do CC).

A doação do usufruto dos dois bens imóveis à herdeira legitimária M (…) seria (assim) de imputar na quota disponível do de cuius.

Sendo a legítima, no caso em apreço, de 2/3 da herança (nº2 do artigo 2159º CC), a tomar-se em consideração os valores resultantes da avaliação para todos os imóveis relacionados, a doação dos direitos sobre os dois bens imóveis, mostrar-se-ia afetada por inoficiosidade[13], situação que já não se verificaria se tomássemos em conta unicamente os valores resultantes da relação de bens, assim como, se não verifica face aos valores que foram tidos em consideração no mapa de partilha[14] e que aqui foram confirmados (valores atribuídos na relação de bens, com as retificações e desdobramento de verbas acordadas nas duas sessões da Conferência de interessados).

Poderá levantar-se a dúvida sobre se os interessados terão posto de parte a questão da inoficiosidade, ou, o facto de terem adjudicado os bens imóveis doados à interessada M (…) terá sido precisamente um modo de resolverem a questão.

Da leitura das próprias alegações de recurso, constata-se que nenhuma das partes pretende discutir a questão da inoficiosidade, donde se conclui que, implicitamente, tal questão terá sido tida em consideração e englobada no acordo a que os interessados chegaram quanto à composição dos quinhões.

Inclinamo-nos francamente para esta solução, sendo que, de qualquer modo, sempre os valores respeitantes aos imóveis teriam de ser tidos em consideração – ou seja, quer as doações se encontrassem, ou não, afetadas de inoficiosidade, total ou parcial.

Contudo, sob pena de subverter por completo a vontade da inventariada, o respetivo valor terá necessariamente de ser imputado na quota disponível da inventariada. As operações de partilha tal como se mostram efetuadas no mapa elaborado nos autos (em conformidade com a forma de partilha proposta pelos interessados F (…) e I (…), e à qual o juiz a quo aderiu acriticamente), ignoram por completo o facto de os bens relacionados sob as verbas ns. 27 e 28, respeitarem a verbas doadas pela inventariada América com dispensa de colação: somam o respetivo valor à massa hereditária, dividindo o total assim obtido por dois (por serem dois os filhos do inventariado), procedendo à igualação da partilha, como se tais doações estivessem sujeitas a colação, e não estão.

Não se encontrando a interessada M (…) obrigada a conferir o direito objeto de doação para efeitos de igualação na partilha (2113º, nº1) – e não excedendo as doações o valor de que a inventariada poderia dispor – não havendo lugar a redução por inoficiosidade –, o respetivo valor será de imputar na quota disponível.

Como tal, relativamente à herança por óbito da inventariada América, apenas o restante valor da herança (deduzido do valor das doações), será de dividir em partes iguais por cada um dos filhos (sendo a do filho pré-falecido, a subdividir em dois, a adjudicar a cada um dos seus filhos, FM (...) e M (...) :

Atingindo a massa hereditária por óbito da inventariada Améria, para efeitos de cálculo da legítima, o valor de 131.074,86 € [66.605,98 + 98,00 + 17.579,63 € (valor dos bens doados) + 46.791,25 € (quinhão hereditário do marido 1/3 de 140.373,75 € = 46.791,25 €)], e sendo de imputar o valor dos bens doados na quota disponível[15], apenas haverá que proceder à distribuição do restante valor de 113.495,23 €: assim, a I(…) receberá 17.579,63 € por conta da quota disponível + 56.747,61 €; os restantes 56.747,61 € serão a subdividir por cada um dos herdeiros F (…) e M (…)

Passamos, agora, à última pretensão deduzida pela apelante nas suas alegações de recurso.

3. Se o passivo deve ser deduzido ao valor do ativo a partilhar.

Segundo a apelante, ao valor global dos bens relacionados por óbito de F (…)e de A (…) deverá ser abatido o passivo no valor de 48.255,00 €, valor este que deverá igualmente ser deduzido ao quinhão hereditário que lhe é atribuído.

Opõem-se os apelados a tal pretensão, defendendo que tal passivo foi atendido no mapa de partilha.

Da análise do mapa de partilha resulta que, efetivamente, na primeira página, ao valor total dos bens a partilhar é aí abatido o valor do passivo, no montante de 48.255,00 €.

Contudo, e desde logo, o primeiro erro resulta de tal passivo ter sido abatido ao valor global da soma dos bens das heranças de ambos os inventariados, e não ao valor dos bens a partilhar por óbito do inventariado Francisco, quando tal passivo fazia parte desta herança[16]. O segundo erro resulta do facto de, apesar de num primeiro momento se ter procedido à dedução do passivo ao valor total do ativo, num segundo momento, ao proceder-se à distribuição do valor da herança, retoma-se aí o valor total do ativo sem consideração do abatimento do passivo anteriormente efetuado.

Terceiro erro, ao atribuir o quinhão à interessada M (…) e embora aí se refira que esta ficou com o encargo de pagamento do passivo, o valor do passivo não foi descontado ao valor dos bens por si recebidos, supondo-se ser a omissão desta dedução que a Apelante põe em causa.

Tendo tal dívida obtido a aprovação unanime dos herdeiros, deverá considerar-se judicialmente reconhecida, devendo a sentença que julgue a partilha condenar no seu pagamento (artigo 1354º, nº1 do CC). Tendo sido aprovado por unanimidade ou tendo sido reconhecido judicialmente, o passivo deverá ser deduzido ao ativo na primeira parte das operações em que a partilha se desdobra[17].

Tendo ainda sido acordado que o passivo da herança seria pago pela interessada M (...) , o respetivo valor terá igualmente de ser abatido ao valor dos bens que lhe são adjudicados (aliás, não o tendo sido feito, no mapa da partilha verifica-se uma discrepância entre o valor da herança a partilhar – ao qual foi abatido o passivo – e o valor dos quinhões a distribuir – superior ao da herança a partilhar, precisamente, porque nesta sede não foi considerado o valor do passivo).

Face às retificações aqui introduzidas, deverá proceder-se à partilha pela seguinte forma[18]:

1. Massa hereditária por óbito de F (…)

- ativo 188.628,75 €, deduzido do passivo no valor de 48.255,00€ =140.373,75 €;

O valor a partilhar, no montante de 140.373,75 € é dividido por 3, adjudicando-se o valor de 46.791,25 € à M (…), e o valor de 23.395,62 € a cada um dos filhos do filho pré-falecido (interessados F (…) e I (…)); a parte de 46.791,25 € que caberia à inventariada A (…), irá integrar a massa de bens a partilhar por virtude do seu óbito.

2. Massa hereditária por óbito de A (…)

- ativo no valor de valor de 131.074,86 € [66.605,98 + 98,00 + 17.579,63 € (valor dos bens doados) + 46.791,25 € (quinhão hereditário do marido)].

À M (…) serão pagos 17.579,63 €, por conta da quota disponível, mais 56.747,61 €.

Os restantes 56.747,61 € serão a subdividir por cada um dos herdeiros F (…) e M (…)

Os quinhões serão preenchidos em conformidade com o acordado na conferência de interessados quanto à composição dos quinhões, abatendo-se ao valor dos bens a receber pela interessada M (…) o valor do passivo por si assumido no valor de 48.255,00 €.

Ou seja, a M (…) recebe bens no valor total de 168.693,50 €, ao qual haverá que abater o passivo de 48.255 €, atingindo-se o valor de 120.438,50 €.

Ascendendo os seus quinhões hereditários ao valor global de 122.118 (46.791, 25 €, da herança do inventariado F (…) mais 75.327,24 €, da herança da inventariada A (…)), terá a mesma de receber a título de tornas a quantia de 1.679,50 €.

A Apelação será de proceder parcialmente.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, e determinando-se a retificação do mapa da partilha, nos seguintes termos:

- o valor dos bens doados deverá ser atribuído à interessada M (…), por conta da quota disponível;

- o valor do passivo por si assumido terá de ser deduzido, não só ao valor da herança a partilhar por óbito do inventariado F (…) mas igualmente ao valor dos bens que lhe são adjudicados e que integram o seu quinhão.

Custas da apelação pelos apelados.                 

Porto, 12 de janeiro de 2016

Maria João Areias ( Relatora )

Fernanda Ventura

Fernando Monteiro

V – Sumário elaborado nos termos do art. 713º, nº7, do CPC.

1. O despacho determinativo da forma à partilha só pode ser impugnado na apelação interposta da sentença homologatória da partilha, recurso este que abrangerá todos os despachos posteriores ao determinativo da forma à partilha, desde que com eles conexionados.

2. Existindo herdeiros legitimários, o valor dos bens doados tem de ser contabilizado para efeitos do cálculo da legítima.

3. Se a doação tiver sido feita a herdeiro, com “dispensa de colação”, o respetivo valor deverá ser imputado na quota disponível do de cuius e, se a não exceder, o respetivo valor não fará parte do “bolo” a distribuir pelos herdeiros legitimários.

4. O passivo aprovado por unanimidade ou reconhecido judicialmente deverá ser deduzido ao ativo na primeira parte das operações em que a partilha se desdobra, ou seja, para efeitos do montante global a partilhar.

5. Caso os interessados acordem em que o passivo seja pago por um dos interessados, o respetivo valor terá de ser deduzido ao valor dos bens que lhe vierem a ser adjudicados.

[1] Tratando-se de decisão proferida após a entrada em vigor do novo código, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em ação instaurada antes de 1 de Janeiro de 2008, aplicar-se-á o regime de recursos constante do novo código, com exceção das alterações por ele introduzidas ao nº3 do artigo 671º do CPC, de acordo com o artigo 7º, nº1 do citado diploma.

[2] Regime que se não aplica aos processos pendentes, em conformidade com o disposto no artigo 7º da citada Lei.

[3] Neste sentido, João António Lopes Cardoso, “Partilhas Judiciais”, Vol. II, Almedina 1990, pág. 398.

[4] Em momento anterior à marcação de Conferência de Interessados, e no decurso de uma sessão designada para a inquirição das testemunhas indicadas pelas partes no incidente das reclamações deduzidas à relação de bens.

[5] Sem necessidade de existência de qualquer despacho do juiz a determinar que aos bens objeto de avaliação é fixado o valor que lhes foi atribuído pelo relatório de avaliação (ao contrário do que é defendido na informação prestada pela secretaria para esclarecer a adoção, para alguma das verbas, dos valores atribuídos na relação de bens).

[6] A avaliação atribuiu à verba 12ª o valor de 93.510 €, e às verbas 12-A e 12-B, em que se desdobrou, os interessados vieram a atribuir o valor global de 103.800,00 €. A verba nº 13 foi avaliada em 89.505 €, e às verbas 13A e 13-B, em que se desdobrou, as partes vieram a atribuir o valor global de 83.614,00 €.

[7] Para o efeito, deverão ser contabilizadas todas as doações feitas em vida do autor da sucessão, quer aos herdeiros legitimários (sujeitas ou não à colação), quer a quaisquer outras pessoas – Pereira Coelho, Direito das Sucessões, II, 1974, pág. 178.

[8] Obra citada, I, pág. 178 e II, págs. 178 e 285.

[9] “Algumas Notas sobre A Colação”, Coimbra – 1977, pág. 17.

[10] Jorge Leite, “Algumas Notas sobre A Colação”, Coimbra – 1977, pág. 11.

[11] Entendendo-se como colação a restituição à massa da herança, dos bens ou valores doados pelo de cuius aos descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente, para igualação na partilha (artigo 2014º do CC).

[12] “Do fundamento e da dispensa de colação”, 2ª ed., 1999, VISLIS Editores, pág. 97.

[13] Tendo-se em consideração o valor da herança do seu falecido marido (219.358 € de ativo, deduzido de 48.255 € de passivo = 172.163), o valor da herança da inventariada A (…), para efeitos de cálculo da legítima ascenderia a 196.973,64 € [66.605,98 + 98,00 + 72.886 (valor dos bens doados) + quinhão hereditário do marido (1/3 de 172.163,00 € = 57.3874,66 €)]. Sendo a quota disponível no valor de 65.657,88 € (1/3, nos termos do nº2 do artigo 2159º), a doação dos imóveis, avaliados no valor de 72.886, excederia em 7.228,12 € o valor da quota disponível.

[14] Tendo-se em consideração o valor da herança do seu falecido marido (188.628,75 € de ativo, deduzido do passivo, no valor de 48.255 € = 140.373,75 €), o valor da herança da inventaria A (…)ascenderia a 131.074,86 € [66.605,98 + 98,00 + 17.579,63 € (valor dos bens doados) + quinhão hereditário do marido (1/3 de 140.373,75 € = 46.791,25 €)]. Sendo a quota disponível da inventariada América no valor de 43.691,62 €, as doações sobre os imóveis, no valor global de 17.579,63 €, não se mostram afetadas de inoficiosidade, ficando aquém dos valores de que a inventariada poderia validamente dispor.

[15] Não se distingue aqui o valor do usufruto, do valor da nua propriedade, porquanto, estranhamente, na conferência de interessados acordou-se na adjudicação dos bens imóveis objeto de doação à interessada I (…), quando à mesma apenas lhe havia sido doado o respetivo usufruto. Ora, por um lado, a “adjudicação” de bens doados aos donatários só faz sentido quando se trate de doações sujeitas a colação, constituindo, não um modo de transferencial dominial, mas uma operação judicial de preenchimento de quinhões hereditários por incorporação de determinados valores – cf., Rabindranath Capelo de Sousa, “Lições de Direito das Sucessões, II, 2ª ed., pág. 252, nota 981. Por outro lado, na situação em apreço, não se atinge o sentido da adjudicação de tais bens, na íntegra, à M (…), quando a nua propriedade havia sido doada a um terceiro à herança.

[16] Já para não falar da prática, que se considera pouco correta, de se proceder à soma do valor das duas massas hereditárias, e a uma operação única de partilha, em vez de se proceder a uma operação de partilha autónoma para cada um das heranças, o que não será indiferente para o resultado final.

[17] Lopes Cardoso, “Partilhas Judiciais”, II Vol., pág. 460.

[18] Não cabendo no âmbito do presente recurso a concretização da partilha mediante a realização dos concretos cálculos matemáticos (discutindo-se tão só os princípios a que a mesma deve obedecer), eles vão aqui indicados a título meramente indicativo, como auxiliar da operação da partilha a realizar pela secretaria na sequência das decisões contidas no presente acórdão.