Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
312/19.0T8CNT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
AUDIÇÃO DO BENEFICIÁRIO
Data do Acordão: 05/19/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - CANTANHEDE - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 138, 139 CC, 897 Nº2 CPC, LEI Nº 48/2018 DE 14/8
Sumário: 1. As palavras da lei são às vezes tão explícitas e categóricas que não podem exprimir mais do que um pensamento - sem prejuízo do eventual contributo de outros elementos interpretativos (v. g., o racional-teleológico e o histórico-evolutivo), em tais situações, o significado linguístico absolutamente nítido e preciso do texto da lei apenas consente uma única interpretação.

2. A interpretação literal/elemento linguístico ou gramatical do art.º 897º, n.º 2 do CPC (poderes instrutórios no processo especial de acompanhamento de maiores) mostra que o legislador pretende que o beneficiário seja sempre ouvido pelo juiz, no sentido de verificar a situação real e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas (art.º 898º, n.º 1 do CPC), o que apenas pode ser feito na sua presença - o juiz procede à audição “pessoal e direta” e fá-lo “sempre”, “em qualquer caso”.

3. Mostrando-se impossível a audição pessoal do beneficiário em virtude da sua incapacidade de entendimento, far-se-á constar em acta, realizando-se o relatório pericial e aplicando-se as medidas em conformidade com a (in)capacidade de entendimento apurada.

4. A audição do beneficiário pelo juiz só não ocorrerá (não sendo marcada) se se revelar totalmente impossível (por exemplo, beneficiário que permanece em coma).

Decisão Texto Integral:

Apelação 312/19.0T8CNT-A.C1
Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Alberto Ruço
                  Vítor Amaral

                                                                   *
                               
               Sumário do acórdão:       

1. As palavras da lei são às vezes tão explícitas e categóricas que não podem exprimir mais do que um pensamento - sem prejuízo do eventual contributo de outros elementos interpretativos (v. g., o racional-teleológico e o histórico-evolutivo), em tais situações, o significado linguístico absolutamente nítido e preciso do texto da lei apenas consente uma única interpretação.

2. A interpretação literal/elemento linguístico ou gramatical do art.º 897º, n.º 2 do CPC (poderes instrutórios no processo especial de acompanhamento de maiores) mostra que o legislador pretende que o beneficiário seja sempre ouvido pelo juiz, no sentido de verificar a situação real e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas (art.º 898º, n.º 1 do CPC), o que apenas pode ser feito na sua presença - o juiz procede à audição “pessoal e direta” e fá-lo “sempre”, “em qualquer caso”.

3. Mostrando-se impossível a audição pessoal do beneficiário em virtude da sua incapacidade de entendimento, far-se-á constar em acta, realizando-se o relatório pericial e aplicando-se as medidas em conformidade com a (in)capacidade de entendimento apurada.

4. A audição do beneficiário pelo juiz só não ocorrerá (não sendo marcada) se se revelar totalmente impossível (por exemplo, beneficiário que permanece em coma).


*

                
              

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:       

I. Em 09.4.2019, o M.º Público instaurou a presente acção especial de acompanhamento de M (…), nascida a 25.5.1943, viúva, residente na Associação de (…),  (…), pedindo que seja decretado o acompanhamento, por razões de saúde da requerida (“demência irreversível”).

            Junto o relatório da perícia médico-legal (psiquiátrica) - no qual se concluiu que a examinada evidencia síndrome demencial irreversível (demência na doença de Alzheimer sem especificar) e não tem capacidade para compreender o alcance da sua audição pessoal pelo Tribunal e responder a questões nesse âmbito -, a Mm.ª Juíza a quo, ao abrigo do disposto nos art.ºs 6º, n.º 1, 130º e 987º do Código de Processo Civil (CPC), decidiu dispensar a “audição pessoal e directa” da requerida, referindo:

«De acordo com o disposto no art.º 891º, n.º 1, 2ª parte do CPC, são aplicáveis ao processo especial de acompanhamento, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do Juiz. Nestes processos, e em conformidade com o disposto no art.º 987º do CPC, o Tribunal, nas diligências a tomar, não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna, sendo que só são admitidas as provas que o Juiz considere necessárias (art.º 986º, n.º 2 do CPC).

A audição pessoal e directa do requerido, prevista no art.º 898º do CPC, destina-se a averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas, pressupondo uma afecção que ainda permita uma comunicação eficaz entre o Juiz e o beneficiário.

Considerando o teor do relatório pericial, designadamente quando atesta a absoluta incapacidade de comunicação e debilidade física da requerida, que não há divergências entre as partes quanto à situação real em se encontra a beneficiária (extensão da incapacidade e grau de dependência a suprir), regime de acompanhamento a aplicar, e acompanhante a nomear, afigura-se-me, com devido respeito por entendimento contrário, que a diligência da sua audição pelo Tribunal prevista no art.º 898º do CPC consubstancia uma diligência inexequível, inútil e desnecessária e, nessa medida, atentatória da integridade pessoal e do direito à reserva da intimidade da vida privada da requerida.»

Inconformado, o M.º Público apelou formulando as seguintes conclusões:

1ª - O tribunal não pode dispensar a audição directa e pessoal da beneficiária, sob pena de incorrer numa nulidade processual, por violação expressa de uma norma legal - art.ºs 195º, n.º 1 e 897º, n.º 2 do CPC e 139º do Código Civil (CC).

- A letra da lei é clara ao determinar que o juiz deve proceder, “em qualquer caso” e “sempre”, à audição pessoal e direta do beneficiário.

3ª - Se o legislador quisesse admitir excepções, tê-lo-ia feito.

4ª - O objectivo desta diligência não é apenas “ouvir” o beneficiário, mas sim averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas.

5ª - Tendo, a Mma. Juíza, dispensado a audição pessoal e directa do beneficiário, tal configura uma nulidade processual, nos termos do disposto no art.º 195º, n.º 1, do CPC, por violação expressa das normas contidas nos art.ºs 897º, n.º 2, do CPC e 139º, n.º 1 do CC, devendo o despacho ser declarado nulo e substituído por outro que designe data para audição directa e pessoal da beneficiária.

Não houve resposta.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, a única questão a decidir é a de saber se podia ser dispensada a audição da requerida/beneficiária (ou se é obrigatória), prevista no n.º 2 do art.º 897º do CPC (redacção da Lei n.º 48/2018 de 14.8).  


*

            II. 1. Para a decisão do recurso releva a o que consta do ponto I., supra.

            2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão, antolhando-se evidente, salvo o devido respeito por opinião em contrário, que o actual quadro legal não permite dispensar a audição da requerida.

O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas nesta Código (art.º 138º do CC, na redacção introduzida pela Lei n.º 49/2018, de 14.8[1]).

O acompanhamento é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário, e ponderadas as provas (art.º 139º, n.º 1 do CC).

O processo de acompanhamento de maior tem carácter urgente, aplicando-se-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes (art.º 891º, n.º 1[2]).

Findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos (art.º 897º, n.º 1). Em qualquer caso, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre (n.º 2).

A audição pessoal e direta do beneficiário visa averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas (art.º 898º, n.º 1). As questões são colocadas pelo juiz, com a assistência do requerente, dos representantes do beneficiário e do perito ou peritos, quando nomeados, podendo qualquer dos presentes sugerir a formulação de perguntas (n.º 2). O juiz pode determinar que parte da audição decorra apenas na presença do beneficiário (n.º 3).

A prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa (art.º 195º, n.º 1). Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes (n.º 2).

3. As palavras da lei são às vezes tão explícitas e categóricas que não podem exprimir, nem sequer de modo imperfeito ou constrangido, mais do que um pensamento.

Assim, sem prejuízo do eventual contributo, complementar, de outros elementos interpretativos (sobretudo o racional/teleológico, mas podendo relevar outros elementos, como o histórico-evolutivo), em tais situações, o significado linguístico absolutamente nítido e preciso do texto da lei apenas consente uma única interpretação - o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara a inequivocamente demonstrada através do texto legal.[3]

4. Esta, cremos, a orientação a seguir na interpretação dos art.º 139º, n.º 1 do CC e 897º, n.º 2 e 898º, n.º 1 do CPC - dada a evidência/clareza do aí estatuído -, e que vemos acolhida na doutrina e jurisprudência.

5. Um dos princípios orientadores do processo especial de acompanhamento de maiores é o da imediação na avaliação da situação física ou psíquica do beneficiário, não só para se poder conhecer a real situação deste, mas também para se poder ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas à situação (art.º 898º, n.º 1 do CPC). Para este efeito, há sempre uma audição pessoal e directa do beneficiário, mesmo que, para isso, o juiz tenha de se deslocar onde se encontre esse beneficiário (art.ºs 897º, n.º 2 do CPC e 139º, n.º 1 do CC), com as seguintes particularidades: as questões são colocadas pelo juiz, com a assistência do requerente, dos representantes do beneficiário e dos peritos (art.º 898º, n.º 2); o juiz pode determinar que parte da audição decorra apenas na presença do beneficiário (n.º 3) para que o beneficiário se sinta livre de quaisquer constrangimentos, nomeadamente porque pode querer falar da sua vida privada.

O processo de acompanhamento de maiores comporta assim uma prova atípica: a audição pessoal e directa do beneficiário (art.ºs 897º, n.º 2 e 898º, n.º 1). Trata-se de um meio de prova que é obrigatório em qualquer processo de acompanhamento de maiores (art.ºs 139º, n.º 1, do CC e 897º, n.º 2 do CPC), dado que, por razões facilmente compreensíveis, se pretende assegurar que o juiz tem conhecimento efectivo da real situação em que se encontra o beneficiário. Isto não impede, no entanto, que, se estiver comprovado no processo que essa audição pessoal e directa não é possível (porque, por exemplo, o beneficiário se encontra em coma), o juiz, fazendo uso dos seus poderes de gestão processual (art.º 6º, n.º 1) e de adequação formal (art.º 547º), deva dispensar, por manifesta impossibilidade, a realização dessa mesma audição.[4]

6. A interpretação literal/elemento linguístico ou gramatical (do art.º 897º, n.º 2) mostra que o legislador pretende que o beneficiário seja sempre ouvido pelo juiz; não deixa quaisquer dúvidas quanto à vontade do legislador - o juiz procede à audição “pessoal e direta” e fá-lo “sempre” (obrigatoriedade), “em qualquer caso”.[5]

Da letra da lei resulta, inequivocamente, que o objectivo do legislador é que se proceda sempre à audição pessoal, independentemente das circunstâncias concretas do caso e da dedução ou não de contestação, situação que existia já no âmbito do CPC de 1961 (até à redacção conferida pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12), onde se previa a existência obrigatória de exame e interrogatório[6], resultando a solução ora preconizada quer da prática e da experiência comum, quer da lógica e do bom senso que devem pautar as decisões judiciais e as condutas de todos os intervenientes processuais.[7]

Esta audição destina-se a “ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas”, após rigorosa e completa observação/demonstração da situação real em que se encontra o beneficiário (elemento racional) (art.º 898º, n.º 1)[8], evitando-se, outrossim, que terceiros ousem submeter uma pessoa à medida de acompanhamento sem que dela careça (visando, por exemplo, apropriar-se dos bens ou rendimentos produzidos pelos bens do requerido).[9]

E na impossibilidade de efectuar a audição pessoal do beneficiário, em virtude da sua incapacidade de entendimento, far-se-á constar em acta, realizando-se o relatório pericial e aplicando-se as medidas em conformidade com a (in)capacidade de entendimento apurada.[10]

7. Assim, dúvidas não restam sobre a obrigatoriedade e a importância da audição pessoal e directa do beneficiário - a audição do beneficiário pelo juiz, no âmbito do processo especial de acompanhamento de maiores, determinada no n.º 2 do art.º 897º (poderes instrutórios), deve ocorrer sempre, a não ser que se revele de todo em todo impossível/manifesta impossibilidade [porque, por exemplo, o beneficiário se encontra em coma (cf. II. 4., supra)[11]].[12]

8. In casu, essa manifesta impossibilidade não se verifica, pese embora o que se fez constar do relatório pericial (insuficiente para a dispensa da audição - cf. ponto I., supra -, até porque a doença de Alzheimer evolui de forma única em cada pessoa[13], que poderá ter momentos de lucidez, inclusive, na fase terminal da doença).

9. O despacho recorrido conduziu à prática de uma nulidade processual, ou seja, à mencionada omissão da audição do arguido (art.ºs 195º, n.º 1 e 897º, n.º 2).

Mas não é essa omissão que aqui está directamente em causa, mas sim o despacho que a ela conduziu.

No entanto, é de aplicar ao caso a regra do n.º 2 do art.º 195º - a revogação do despacho implica que seja produzido outro a determinar a audição (pessoal e direta) da requerida/beneficiária (se necessário, com deslocação ao local onde esta se encontre), anulando-se a sentença caso já tenha sido proferida.[14]

10. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


*

III. Pelo exposto, revoga-se o despacho que dispensou a audição do beneficiário, com a consequência referida em II. 9., supra.

Sem custas.


*

19.5.2020


               Fonte Ramos ( Relator)
            Alberto Ruço
            Vítor Amaral

[1] Diploma que criou o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação, previstos no Código Civil de 1966, e introduzindo alterações a diversos diplomas legais, entre os quais, os Códigos Civil e de Processo Civil (art.ºs 1º, 2º e 3º); entrou em vigor em 10.02.2019 (art.º 25º, n.º 1).
[2] A que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[3] Vide Manuel de Andrade, Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, Arménio Amado – Editor Sucessor, Coimbra, 1987, págs. 28 (e nota 3) e 65 e Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 58.
[4] Vide Miguel Teixeira de Sousa, O Regime do Acompanhamento de Maiores: Alguns Aspetos Processuais /Cadernos do CEJ/Formação Contínua, O Novo Regime do Maior Acompanhado - http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf.
   Em idêntico sentido, vide Margarida Paz, O Ministério Público e o Novo Regime do Maior Acompanhado, na mesma publicação, quando refere: «Uma das principais novidades do novo regime do maior acompanhado é a reintrodução da audição pessoal e direta do beneficiário, apelidada de interrogatório no CPC de 2013, e com longa tradição jurídico-processual no nosso ordenamento jurídico.// Desaparece, pois, a regra, introduzida pelo CPC 2013, que permitia o decretamento da interdição/inabilitação sem o interrogatório do requerido. (…)».

[5] Acerca da audição do beneficiário, corporizando de algum modo o elemento histórico/trabalhos preparatórios, o Conselho Superior de Magistratura no parecer que emitiu aquando da preparação da futura Lei n.º 48/2018, de 14.8, referiu: «A obrigatoriedade de audição do visado vem consagrar a revogação do criticado regime actual, no sentido da dependência do contacto pelo juiz (interrogatório judicial) da circunstância de ter havido contestação./ Aplaude-se a nova inversão do paradigma, consagrando-se a necessidade de contacto directo entre o juiz e o putativo beneficiário de acompanhamento./ Tratando-se de norma processual, será explicitada no respectivo regime./ De qualquer forma e para que dúvidas não restem e como forma de sublinhar a importância estrutural desse contacto directo, o Executivo aceitou a sugestão do CSM de aditamento da expressão “pessoal e directa” após “audição”, afastando a possibilidade de redução dessa mesma audição ao chamamento (ou convocação) aos autos e subsequente resposta do requerido - pois também com esta formalidade ele é ouvido.» - Vide Parecer do CSM sobre a proposta de Lei n.º 110/XIII/3.ª (GOV) relativa ao regime do maior acompanhado, em substituição dos institutos da interdição e da inabilitação, emitido em 04.3.2018 e remetido à Assembleia da República, ao Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.

   Posição similar foi assumida no parecer da Ordem dos Advogados, datado de 07.5.2018, sobre a mesma proposta de Lei: «Terceira nota tem a ver com o mecanismo procedimental pelo qual se decreta judicialmente o regime do acompanhamento, porquanto (i) não só a audição “pessoal e directa” prevista no artigo 139º deve ser obrigatória (ii) como ainda obrigatória deve ser [o que não resulta dos artigos 897º e 899º da proposta] a prova pericial para apoio à decisão…».
[6] Vide, nomeadamente, Emídio Santos, Das Interdições e Inabilitações, Quid Juris – Sociedade Editora, 2011, págs. 67 e seguinte, defendendo, à luz do regime instituído pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12, que “O interrogatório constitui uma diligência de prova obrigatória cuja finalidade é fornecer ao juiz, através de um contacto directo e pessoal, elementos sobre a capacidade do requerido.”.

[7] Cf. o acórdão da RL de 10.9.2019-processo 14219/18.4T8LSB-A.L1-7 [com o seguinte sumário: «1. O objectivo da audição pessoal prevista no art.º 898º do CPC é apurar a situação concreta do beneficiário, nomeadamente a sua capacidade de entendimento e de reacção às perguntas que lhe sejam efectuadas por forma a que as medidas de acompanhamento aplicadas sejam as mais adequadas ao caso concreto. 2. Em situação de impossibilidade de se efectuar a audição pessoal do Requerido, em virtude da sua incapacidade de entendimento, far-se-á constar tal situação em acta, sendo efectuado o respectivo relatório pericial em conformidade com essa situação, sendo as medidas aplicadas em conformidade com a (in)capacidade de entendimento apurada e demais conclusões constantes do relatório perícia»], publicado no “site” da dgsi.

[8] Afigura-se, pois, correcta a seguinte asserção da alegação de recurso: «Diga-se, ainda, que o objetivo desta diligência não é apenas “ouvir” o beneficiário, mas sim averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas (cf. “conclusão 4ª”, ponto I., supra). Se apenas fosse ouvir o beneficiário, então sim, constando dos autos que o beneficiário não estabelece comunicação, tal diligência seria inútil. Mas não é assim, pois é dever do juiz escrutinar a situação real do beneficiário e isso apenas pode ser feito na sua presença

[9] Cf. sobre todo o ponto, de entre vários, os acórdãos da RC de 04.6.2019-processo 647/18.9T8ACB.C1 [subscrito pelos Exmos. Adjuntos, assim sumariado: «A audição (…) do beneficiário pelo juiz, no âmbito do processo especial de acompanhamento de maiores, determinada no n.º 2 do art.º 897º do Código de Processo Civil, na redação da Lei n.º 49/2018, de 14.8, deve ocorrer em todos os processos, sem exceção.»], da RE de 10.10.2019 [tendo-se concluído: «No âmbito do processo especial de acompanhamento de maior, deve o juiz proceder sempre à audição pessoal e direta do beneficiário, ato que lhe é imposto pelos art.ºs 139º, n.º 1, do CC, e 897º, n.º 2, do CPC.»] e da RL de 16.9.2019-processo 12596/17.3T8LSB-A.L1.L1-2, publicados no “site” da dgsi.
[10] Cf. o cit. acórdão da RL de 10.9.2019-processo 14219/18.4T8LSB-A.L1-7.

[11] Cf. o cit. acórdão da RL de 16.9.2019-processo 12596/17.3T8LSB-A.L1.L1-2, onde se pondera: «Por exemplo, se do relatório de exame pericial resultar que o Beneficiário não tem condições médicas para ser ouvido (v. g., por estar numa situação de coma), não se justificará obrigar o Juiz (e demais intervenientes processuais) a uma deslocação a um hospital apenas para constatar isso mesmo.», concluindo-se depois: «Apenas será de equacionar não o fazer numa situação em que comprovadamente tal diligência se não possa realizar (v. g. beneficiário em coma), pois não deixará de ter aqui aplicação o princípio da limitação dos atos, não sendo lícito realizar no processo atos inúteis (cf. art.º 130º do CPC)».

  A eventual reversão deverá motivar imediata revisão - art.º 155º do CC.

[12] Apesar da lei portuguesa (pretérita e actual) não conter qualquer norma semelhante ao art.º 432º do Código Civil Francês (onde não há lugar à audiência do interessado se esta audição for de natureza a causar prejuízo à sua saúde: “Le juge peut toutefois, par décision spécialement motivée et sur avis d'un médecin inscrit sur la liste mentionnée à l'article 431, décider qu'il n'y a pas lieu de procéder à l'audition de l'intéressé si celle-ci est de nature à porter atteinte à sa santé ou s'il est hors d'état d'exprimer sa volonté.”), Emídio Santos, no domínio de aplicação do CPC de 1961 (na redacção conferida pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12), considerava inequívoco que, caso haja indicações médicas de que o interrogatório pode causar prejuízo à saúde do requerido, o interrogatório não deverá ter lugar (ob. cit., pág. 68).
[13] Vide, nomeadamente, Principles and Practice of GERIATRIC PSYCHIATRICRY, Marc E. Agronin e Gabe J. Maletta, 2006, Lippincott Williams & Wilkins, Philadelphia, PA, USA, págs. 293 e seguintes.
[14] Cf. o cit. acórdão da RC de 04.6.2019-processo 647/18.9T8ACB.C1.