Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
34/14.8PECBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PERDA DE OBJECTOS A FAVOR DO ESTADO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
Data do Acordão: 01/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (3.º JUÍZO CRIMINAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 35.º DO DL N.º 15/93, DE 22-01 (REDACÇÃO DA LEI N.º 45/96, DE 03-09)
Sumário: I - A declaração de perda de objectos a favor do Estado, nos termos do disposto no artigo 35.º do DL n.º 15/93, de 22-01 (redacção da Lei n.º 45/96, de 03-09), exige a verificação do requisito “essencialidade”, traduzido na circunstância de o bem em causa ser necessário ao surgimento do ilícito penal ou, pelo menos, à sua manifestação de determinado modo.

II - Não está preenchido aquele pressuposto nos casos em que, sem o concurso de viatura automóvel, o crime de tráfico de estupefacientes também teria ocorrido, embora num circunstancialismo fáctico diverso, p. ex., movendo-se o agente pelo “seu pé”.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

            Nos autos de processo sumário que, sob o nº 34/14.8PECBR, correram termos pelo extinto 3º Juízo Criminal de Coimbra, o arguido A... foi submetido a julgamento, sendo a final condenado nos seguintes termos:

«pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelos art.ºs 21.º, n.º 1, 25.º, al. a), e Tabelas Anexas I-A e I-B, do Dec.-Lei 15/93, de 22/01, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão.

Vistas as circunstâncias acima mencionadas e relativas ao arguido, nos termos dos art.ºs 50.º, n.ºs 1 e 2, 52.º, n.ºs 2, als. a), d) e f), 53.º e 54.º, do Cód.Penal, o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada ao arguido pelo período de 1 (um) ano e 8 (oito) meses, com regime de prova, assente em plano de reinserção social, a elaborar e executar pelos serviços de reinserção social, com vista a consciencializar o arguido dos malefícios sociais da toxicodependência, e mediante a imposição dos seguintes deveres e regras de conduta:

1. Deveres:

a) Responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social;

b) Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência;

c) Informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a 8 dias e sobre a data do previsível regresso;

d) Obter autorização prévia do magistrado responsável pela execução para se deslocar ao estrangeiro.

2. Regras de conduta:

a) Proibição da frequência de todos e quaisquer lugares usualmente conotados com a venda e o consumo de estupefacientes;

b) Obrigação de não acompanhar, de não alojar e de não receber, em sua casa ou de terceiros, consumidores de produtos estupefacientes;

c) Proibição de trazer consigo quaisquer produtos estupefacientes e seja em que quantidades.

Nos termos do disposto nos art.ºs 35.º, n.ºs 1 e 2, e 62.º, n.ºs 4, 5, e 6, do Dec.-Lei 15/93, de 22/01, declaro perdida a favor do Estado a substância estupefaciente apreendida nos autos e supra identificada e determino a sua destruição, lavrando-se o respectivo auto e remetendo-se cópia do mesmo a estes autos.

Visto o preceituado nos art.ºs 109.º, n.º 1, e 111.º, n. º2, do Código Penal, declaro perdidos a favor do Estado:

a) Veículo automóvel com a marca “Kia FB SHUMA” e a matrícula (...) QV;

b) Telemóveis descritos no auto de apreensão de fls. 7;

c) Quantia monetária descrita no auto de apreensão de fls. 7;

d) Telemóveis, cartões e chips descritos no auto de apreensão de fls.64.»

Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso que motivou, concluindo nos seguintes termos:

a) Foi o ora arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade p. e p. artigo 25.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

b) Contudo, não pode o arguido conformar-se com tal decisão, entendendo o arguido que foi feita uma errada valoração da prova produzida em sede de Julgamento, ao não considerar que os estupefaciente na posse dos arguidos eram para consumo.

c) Entendeu o Tribunal a quo que as quantidades detidas eram demasiado elevadas para se destinarem apenas ao consumo, e que assim sendo trariam quantidades mais pequenas, deixando o remanescente em casa.

d) Ademais, o facto de o arguido se encontrar na posse de dinheiro, e ter em sua casa vários telemóveis, indiciavam também a prática de um crime de tráfico.

D1) Desvalorizando, por completo o depoimento do arguido que se encontra gravado no ficheiro 20140225145735 116687 64313 minutos 9,44 a 10,10, que só por si jusificaria decisão diversa.       

e) Ora a própria Lei despenaliza a posse para consumo até 10 doses, o que é inferior à quantidade detida pelo arguido.

f) No que tange à argumentação no sentido de que, estando o arguido desempregado este não teria dinheiro para a aquisição dos estupefacientes, esta não procede.

g) Com efeito, o valor do produto apreendido era inferior a 100€, portanto um valor diminuto, sendo que, os consumidores, não raras vezes, têm a aquisição de estupefacientes como sua primeira prioridade. Além do mais, o arguido tinha a ajuda dos pais e da esposa, para fazer face às suas despesas.

h) O depoimento prestado pelos agentes inquiridos na qualidade de testemunhas, gravado no ficheiro 20140225145735 116687 64313 minutos 12,57 a 13,37, não revelam factos que estes conheçam, mas apenas meras opiniões ou convicções pessoais, não podendo garantir se o arguido era ou não consumidor, pelo que não deveria ter sido valorada pelo Tribunal a quo.

i) O facto de o arguido ter uma tão pequena dose em sua casa, revela um padrão de consumidor. Se o arguido apenas vendesse, e não consumisse, não teria uma única dose de cocaína em sua casa.

j) Na busca domiciliária efectuada à casa do arguido não foi encontrado qualquer artefacto geralmente associado ao tráfico.

l) A existência de telemóveis, velhos, e inutilizados, ainda que em número relativamente elevado, também não permite retirar qualquer ilação que permita servir de base à imputação ao arguido de um crime de tráfico.

m) Resulta das fotos juntas aos autos e do depoimento de testemunhas que o arguido vive numa habitação modesta, com mobiliário humilde, sem plasmas ou portáteis, faz-se movimentar num carro de baixa gama e antigo, com diminuto valor comercial.

M1) Com efeito, no depoimento do agente C..., gravado no ficheiro 20140225153628 64313, minuto 12,23 a 13,21, este confirma que o arguido habitava uma casa modesta, facto que não foi devidamente relevado pelo tribunal.

M2) O arguido esteve sobre vigilância da polícia pelo menos 6 meses, como resulta do depoimento gravado no ficheiro 20140225153628 64313 minuto 13,30 a 14,27, pelo que sendo este traficante certamente que a investigação poderia facilmente recolher provas sólidas da prática de um crime.

n) O arguido esteve sobre vigilância da policia desde há pelo menos 6 meses, pelo que, sendo este traficante certamente que a investigação poderia facilmente recolher provas sólidas da prática de um crime.

o) Não obstante, os agentes da autoridade, não carrearam qualquer prova para o processo, para além da droga apreendida, quando cruzando-se, por acaso, com o arguido, o mandaram parar.

p) Fosse o arguido um verdadeiro traficante, e certamente que os agentes da PSP, cuja competência é absolutamente inquestionável, reuniriam com facilidade prova mais do que suficiente para fundamentar a prática de pelo menos um crime de tráfico.

q) Toda a prova que serviu de base à fundamentação do Tribunal é meramente indiciária, não servindo, mesmo com recurso às regras da experiência ou da normalidade para negar que o arguido detinha as substâncias apenas para o seu consumo.

r) Não foi assim feita qualquer prova, que indicasse que o arguido não fosse consumidor e ao invés se dedicasse ao tráfico.

s) Por outro lado, do depoimento do recorrente, gravado no ficheiro 2014025145735 116687 64313, resulta que este era apenas consumidor, num depoimento que se revelou seguro, coerente e credível, devendo como tal ser valorado.

t) O Recorrente vive num ambiente familiar estável, mas humilde, sem quaisquer sinais exteriores de riqueza, modo de vida nada característico de alguém que se dedique ao tráfico.

u) Em todo o caso, atenta a escassez da prova produzida, deverá mobilizado o principio do in dubeo pro reo, absolvendo-se o arguido.

v) Deverá assim, ser revogado o douto acórdão proferido pelo Tribunal a quo, reconhecendo-se que o recorrente é consumidor, e que não se encontrava a vender produto estupefaciente, absolvendo-se, em consequência, o arguido do crime de que vem condenado.

x) Sem prescindir, a pena aplicada é demasiado gravosa, atenta toda a factualidade que constante dos presentes autos.

z) O arguido trazia consigo quantidades de produto estupefaciente muito baixas, inferior ao consumo médio para dez dias, o arguido é primário, nunca tendo praticado qualquer crime da mesma natureza, encontra-se bem inserido na comunidade, contando com um bom suporte familiar, não obstante a sua situação de desemprego.

aa) Assim, a pena aplicada nunca poderia ir além dos mínimos legais.

bb) A aplicação de um regime de prova ao arguido revela-se desnecessária, atento o facto de este ser primário, os deveres inerentes à suspensão da pena de prisão, são suficientes para garantia as finalidades das penas.

cc) Sem prescindir de tudo o que fica dito, a viatura apreendida nos presentes autos, era apenas para transporte pessoal do arguido.

dd) Na descrição dos factos não é feita qualquer referência à utilização da viatura para a prática do crime em que o arguido foi condenado nem os estupefacientes foram encontrados no carro.

ee) A quantidade apreendida era suficientemente pequena para ser trazida no bolso do casaco do arguido, pelo que teremos de concluir que a viatura não era utilizada para transportar a droga, mas apenas o arguido.

ff) Assim, nunca poderia a viatura ter sido apreendida, deve como tal, ser a neste particular revogada a sentença, não se declarando a viatura perdida a favor do estado.

Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. mui superiormente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente por provado e, em consequência:

a)Ser o recorrente absolvido da prática de um crime de tráfico de menor gravidade p e p pelo artigo 25.º alínea a) do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro.

Assim não se entendendo,

b) Ser a pena aplicada reduzida ao seu mínimo legal, sem a aplicação de qualquer regime de prova.

c) Ser revogada a sentença, na parte em que ordena a perda a favor do estado da viatura apreendida, por não ter cabimento legal.

Respondeu o MP em primeira instância, concluindo nos seguintes termos:

1. O tribunal fez uma rigorosa e precisa apreciação da prova.

2. E efectuou uma correcta subsunção jurídico-penal dos factos.

3. A pena de 1 ano e 8 meses de prisão, suspensa por igual período de tempo com regime de prova e mediante sujeição do arguido a deveres e regras de conduta, traduz uma equilibrada e adequada aplicação dos critérios estabelecidos nos artºs 40º, 41º, 51º, 52º, 53º, 70º e 71º do Código Penal.

4. O veículo automóvel de matrícula (...) QV foi um instrumento preponderante da prática do crime e oferece sérios riscos de ser utilizado no cometimento de novo facto ilícito.

5. E, por isso, verificando-se os pressupostos dos artºs 109º, 1 do CP e 35º do DL 15/93, de 22/1, foi declarado perdido a favor do Estado.

6. Da sentença não resulta a violação de qualquer norma legal, nomeadamente dos artºs 127º do CPP, 40º, 41º, 51º a 53º, 70º, 71º e 109º do CP e 21º, 25º, 1, a) e 35º do DL 15/93.

            Convidado a apresentar novas conclusões de recurso, o recorrente fê-lo, acrescentando aquelas assinaladas a negrito.

Nesta Relação, o Ex.mo PGA emitiu douto parecer, concluindo pelo não provimento do recurso, acompanhando, aliás, a resposta do MP em primeira instância.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

FACTOS ASSENTES:

1 – No dia 06 de Fevereiro de 2014, cerca das 15H00, o arguido, utilizando o veículo automóvel com a marca “Kia FB SHUMA” e a matrícula (...) QV, dirigiu-se à Av. Cidade Aeminium, junto ao rio Mondego, em Coimbra;

2 – Este local é, habitualmente, frequentado por toxicodependentes;

3 – O arguido tinha em vista proceder à venda de produto estupefaciente;

4 – Nessa ocasião, o arguido trazia consigo uma bolsa em napa cor preta, que continha, no seu interior, 3 (três) pacotes de cocaína e 3 (três) pacotes de heroína, como os pesos líquidos respectivos de 1,379 gr. e de 2,082 gr.;

5 – Apercebendo-se da presença da PSP, o arguido deitou aquela bolsa para os arbustos existentes junto ao rio;

6 – O arguido destinava aqueles produtos estupefacientes à venda a terceiros, conforme havia ocorrido já nesse dia;

7 – O arguido não exerce actividade profissional remunerada;

8 – Na referida ocasião, o arguido trazia consigo 3 (três) telemóveis, que utilizava, designadamente, para efectuar contactos com consumidores de estupefacientes;

9 – E tinha consigo € 340,00 (trezentos e quarenta euros) em notas do BCE;

10 – Quantia proveniente da actividade de venda de produtos estupefacientes;

11 – No dia 17 de Fevereiro de 2014, na residência do arguido, sita na Rua (...), Coimbra, o arguido tinha, nasala/escritório, 1 (um) pacote em plástico incolor, contendo heroína, com o peso líquido de 0,971 gr.;

12 – Nesse local, o arguido tinha 13 (treze) telemóveis e respectivos cartões, identificados no auto de apreensão a fls. 60 dos autos e cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido;

13 – Estes telemóveis eram utilizados pelo arguido, designadamente, no contacto/venda de produtos estupefacientes;

14 – O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com conhecimento das características e natureza dos produtos que tinha na sua posse, sabia que os não podia deter, trazer consigo e/ou vender, como queria;

15 – O arguido sabia ser o seu comportamento proibido e punido por lei;

16 – O arguido encontra-se desempregado há mais de 2 (dois) anos;

17 – Vive com uma companheira e uma filha de ambos com 6 anos deidade;

18 – Habitam casa tomada de arrendamento, em cuja renda mensal despendem o montante de € 150,00;

19 – A companheira do arguido trabalha como cozinheira no estabelecimento prisional, auferindo o salário mensal de cerca de € 600,00;

20 – O arguido tem, ainda, dois outros filhos, com 15 e 13 anos de idade, que vivem na companhia dos avós paternos;

21 – O arguido é reputado, no seu círculo de convívio, como pessoa de bom relacionamento;

22 – O arguido não tem averbada ao seu registo criminal qualquer condenação.

*

B) DOS FACTOS NÃO PROVADOS:

Inexistem factos não provados.

DECIDINDO:

            Analisadas as extensas conclusões formuladas pelo recorrente verificamos que, não obstante, são limitadas a três as questões que coloca à nossa apreciação:

I – Impugnação da matéria de facto, aliada ao princípio in dubio pro reo, que impõe, diz, a sua absolvição;

Subsidiariamente,

II – Deve a pena ser reduzida ao mínimo legal, sem a aplicação do regime de prova; e

III – Deve ser revogada a sentença, na parte em que ordena a perda a favor do Estado da viatura apreendida, por não ter cabimento legal.

I - Impugnação da matéria de facto, designadamente no que concerne à circunstância alegada de não existir prova suficiente que justifique a condenação

            Impugnando a matéria de facto, o recorrente insurge-se, essencialmente, contra a circunstância de se terem dado como assentes os pontos da factualidade que se prendem com a integração dos elementos típicos do crime de tráfico de droga; pretende assim, que não existem elementos probatórios seguros que permitam a fixação da conclusão de que as substâncias estupefacientes por si detidas eram destinadas à venda.
            Dispõe, a propósito, o artº 127º do CPP que «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.»
            Consagrando esta norma o princípio da livre apreciação da prova, desde já devemos acrescentar que o poder/dever que daí resulta não é discricionário mas, antes, vinculado a um fim que é o do processo penal, ou seja, a descoberta da verdade. Por isso, mostrando-se devidamente fundamentado, o exercício desse princípio torna-se insindicável, desde que não se mostre inadmissível, face às regras da experiência comum.
            Não pode o recorrente vir analisar desgarradamente o depoimento de cada uma das testemunhas ouvidas em audiência, sem os conjugar entre si, pois que só essa prova vale (artº 355º, 1, CPP).
            Da motivação relativa à matéria de facto assente, que podemos considerar desde já completa, exaustiva e seguindo uma sequência lógico-dedutiva, consta:

«Os factos dados como provados foram assim considerados tendo em atenção a prova produzida e analisada em audiência de julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do tribunal (art.ºs 127.º e 355.º do Cód. de Proc. Penal), mas também tendo em atenção o valor conferido pela lei à prova pericial (art.º 163.º do Cód. de Proc. Penal).

Designadamente:

No tocante às circunstâncias de tempo, modo e local e desenrolar dos eventos, o Tribunal atendeu à conjugação das declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento, em articulação com os depoimentos prestados pelas testemunhas B..., C..., D... e E..., agentes da PSP, bem como atendendo aos autos de apreensão e registos fotográficos e ao teor dos relatórios dos exames laboratoriais toxicológicos levados a efeito pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária. Assim, o arguido admitiu a detenção dos estupefacientes (qualificados como tal atendendo ao resultado dos exames periciais levados a efeito) nas circunstâncias descritas, acrescentando, porém, que os destinava, exclusivamente, ao seu consumo próprio, afirmando, singelamente, ser consumidor.

Porém, tal versão surge destituída de verosimilhança, bem como a explicação dada pelo arguido para a quantia monetária transportada.

Com efeito, o arguido disse encontrar-se desempregado há mais de 2 anos, sendo pouco explicativo quanto aos biscates que afirmou fazer, e referiu que a essencial fonte do rendimento do agregado familiar é a sua mulher, cozinheira no estabelecimento prisional.

Ora, quem se encontra em uma situação de desemprego há tanto tempo não transporta consigo € 340,00 de uma forma tão displicente como a que consta do auto de apreensão (cfr. fotos de fls. 11), tornando-se óbvia a proveniência do dinheiro, composto por notas e moedas de baixo valor, recebido em contactos rápidos e colocado logo ali na porta do veículo, aquando da venda do estupefaciente (que o arguido tinha dividido em “doses” diversas de cocaína e de heroína). Pretender fazer crer, como o arguido, que o dinheiro (em notas) pertencia à sua mãe e se destinava à compra de uma máquina de secar, ou que as moedas eram da filha e seriam para “destrocar” [sic] raia a infantilidade, pois que, se assim fosse, jamais o arguido sairia com as moedas, substituindo-as, mais fácil e convenientemente, pelas notas que a mãe lhe entregara.

Acresce que não obstante o arguido afirmar-se consumidor, quedou-se em tal afirmação, não explicando como, por quê e quando iniciou tais consumos, e as pessoas que trouxe para depor em audiência de julgamento, suas amigas, nunca o viram consumir, além de que os inquiridos agentes da PSP observaram-no diversas vezes em locais usualmente frequentados por toxicodependentes e não o têm “referenciado” como consumidor, nem o mesmo tal aparenta.

A somar, existe toda a panóplia de telemóveis apreendida, nulo crédito merecendo a alusão do arguido ao seu particular gosto por assimilar tais aparelhos, por proveniente da parte de quem há mais de 2 anos não tem fonte lícita de rendimento.

E como se tudo isto não bastasse para se inferir o propósito do arguido, temos que a explicação da detenção para consumo naufraga perante a asserção do arguido quanto à recente aquisição do estupefaciente que trazia consigo no veículo: se tinha estupefaciente em casa, para consumir, inexistem razões para aquisição de mais quantidade sem prévio consumo da primeira.

Por fim, sempre se dirá que o próprio arguido acabou por reconhecer que o estupefaciente não era só para si, mas, também, para “partilhar” com os seus amigos.

De tudo isto se conclui, necessariamente, que: a venda era o destino do estupefaciente; o dinheiro provinha de tal actividade; o veículo automóvel e os telemóveis apreendidos eram utilizados nessa actividade.

A subjectividade presente no arguido decorre dos próprios eventos e sendo certo que a punibilidade deste tipo de comportamentos é do geral conhecimento dos cidadãos, não se afigurando, pois, crível que o arguido disso não soubesse.

As condições pessoais do arguido determinaram-se com base nas declarações prestadas pelo próprio, conjugadas com o teor dos depoimentos das testemunhas F..., “namorada” de um amigo do arguido e com o mesmo convivente, pontualmente, há cerca de 4 anos, e G..., amigo de infância do arguido, ambas, pela sua proximidade, conhecedoras de alguns aspectos da sua vivência e que justificaram, de modo espontâneo e coerente, as respectivas razões de ciência.

No que respeita à ausência de antecedentes criminais, foi considerado o certificado de registo criminal junto aos autos.»
            Ou seja, deste extracto da sentença recorrida pode retirar-se que o silogismo probatório se mostra devidamente fundamentado, não se vislumbrando qualquer contradição literal ou lógica que importe agora rectificar.

            O princípio processual penal e constitucional do ‘in dubio pro reo’ tem como finalidade a salvaguarda dos direitos do arguido relativamente ao qual não existe prova suficiente de ser ele o autor dos factos acusados ou, de, pelo menos, estes não terem acontecido daquele concreto modo; todavia, no nosso caso, as provas produzidas, conjugadas com as regras da experiência e do senso comum apontam de forma inelidível, para a autoria dos factos pelo recorrente. Não se trata de relevar uma ou outra prova indirecta mas, antes pelo contrário, de conjugar entre si diversas provas objectivas e objectivadas como sejam as seguintes: a diversidade das substâncias apreendidas (heroína e cocaína), a sua repartição por diversos pacotes (três de cada qualidade no carro e mais um de heroína em casa do recorrente), a quantidade das substâncias apreendidas, que não é despicienda (1,379g. de cocaína e 3,053g de heroína), a circunstância de o arguido se encontrar desempregado há mais de 2 anos e, apesar de viver com dificuldades (vive com uma companheira, que aufere cerca de 600 euros mensais, tendo a cargo uma filha de ambos, de 6 anos de idade, tendo como encargos, pelo menos uma renda mensal de 150 euros e tendo ainda dois outros filhos menores, ainda que com ele não vivam) transportar consigo 340 euros em dinheiro, nas condições reportadas a fls. 11 dos autos. A tudo acresce a circunstância de ter sido interceptado num local habitualmente frequentado por toxicodependentes.

            A conjugação de todos estes elementos de prova pessoal com os demais elementos de prova documental e com o produto da apreensão, e tendo em consideração as aplicáveis regras de normalidade e de bom senso, permitem a retirada da conclusão de que a intenção do recorrente era vender as substâncias que consigo transportava.

            Que o arguido nega ser essa a sua intenção já o sabemos, pois que a própria sentença o noticia, acrescentando ainda as razões pelas quais desvalorizou o seu depoimento, nesse pormenor.

            Quanto aos depoimentos prestados pelos agentes da PSP ouvidos como testemunhas o certo é que já acompanhavam a situação do arguido (pelo menos alguns deles) e concluíram que ele se dedicava ao tráfico não só através desse conhecimento prévio como, também, dos elementos probatórios que recolheram aquando da intercepção do mesmo.

            A referência feita na conclusão M1 do recorrente torna-se desnecessária se atentarmos em que a própria sentença traça um retrato de dificuldades na vida do mesmo, bastando ler o que consta dos nºs 16 a 20 dos factos assentes.

            Como dissemos já, a operação de fixação da factualidade, resultante da prova produzida em julgamento, tem natureza complexa e nela se cruzam uma série de considerações que se prendem, por um lado, com o confronto crítico das provas, umas concordantes, outras discordantes entre si, e por outro, na sua conjugação com as regras da experiência, da normalidade do acontecer, tudo coado pelo bom senso, que é o senso comum, que deve presidir à análise lógica traduzida no raciocínio efectuado. E tudo deve ser transparente, por todos perceptível, como o é a fundamentação fáctica levada à sentença ora impugnada.

            E, ouvidos os depoimentos que o recorrente destaca, v.g. nas passagens que sublinha, não cremos que eles, só por si, ou conjugados com quaisquer outros elementos, levem à invalidade do juízo produzido em julgamento e plasmado na sentença.

            Vem a propósito o trecho que transcrevemos da obra “Art D’Arriver au Vrai”, Jacques Balmés, no capítulo dedicado à atenção, (pag. 20): «S’ilestdesmoyens qui nous conduisent à la connaissance de la vérité, ilestaussidesobstacles qui nousempèchent d’y parvenir. Enseigner à se servir des uns, à écarter lesa utres, l’art de bien penser n’apoint d’autre object

            Os escolhos encontrados nesta árdua tarefa de fixação dos factos, essencial no julgamento, não são de molde a alterar a decisão de primeira instância, neste pormenor.

II - a medida da pena de prisão e a não sujeição da sua suspensão a regime de prova

O crime em causa, de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelos art.ºs 21.º, n.º 1, 25.º, al. a), e Tabelas Anexas I-A e I-B, do Dec.Lei 15/93, de 22/01, é punível com pena de prisão de 1 a 5 anos.

Na determinação da medida da pena a aplicar ao agente são atendidas todas as circunstâncias que a favor dele ou contra ele militem, designadamente as necessidades de repressão deste tipo de crimes, de tráfico de droga, que alastram no meio social, com nefastas consequências para a saúde e para a segurança públicas (aqui, atenta a ocorrência dos crimes conexos, geralmente contra o património), e as premências de retribuição da conduta, em termos de prevenção especial.

E se é verdade que essas razões são, como dissemos já, prementes, até tendo em vista o fim de protecção da organização da nossa sociedade e do seu ordenamento legal, não podemos olvidar que, em todos os casos, as penas (tipo e medida) deverão sempre ser encontradas tendo em atenção o princípio da culpa, de retribuição.

São as seguintes as circunstâncias a atender, aliás retiradas do rol enumerado na sentença;

«Depõem contra o arguido as seguintes circunstâncias não integradoras do tipo legal de crime:

- a elevada intensidade do dolo (directo);

Depõem, por outro lado, a favor do arguido:

- Mostrar-se, com suficiência, socialmente integrado, maxime na perspectiva familiar;

- Não possuir antecedentes criminais;

- A concreta quantidade de estupefaciente detida»

    É neste exercício dialéctico de deve e haver entre as circunstâncias que favorecem o arguidos e aquelas que o prejudicam, ou seja, da respectiva conjugação, e atenta a moldura penal aplicável, que há-de resultar a pena concreta a fixar (artº 71º, CP). Atentos todos esses factores e circunstâncias, afigura-se-nos que nenhuma censura merece a pena concreta individualizada pelo tribunal recorrido para o recorrente, pois que, sendo, apesar de tudo, branda, procurara retratar o seu grau de culpa. Basta atentar que, numa amplitude penal de 4 anos (o vazio entre o mínimo e o máximo), a pena fixada se situa uns ‘meros’ 8 meses acima do mínimo e a mais de 3 anos do máximo.

A segunda questão em análise neste ponto prende-se com a pretensão do recorrente de a suspensão da execução dessa pena de prisão não ser subordinada ao regime de prova.

Rege a propósito o artº 53º, 1, do CP, segundo o qual «o tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade».

A este propósito, conclui o recorrente que «a aplicação de um regime de prova ao arguido revela-se desnecessária, atento o facto de ser primário, os deveres inerentes à suspensão da pena de prisão, são suficientes para garantir as finalidades das penas».

Pressuposto do acompanhamento da suspensão em regime de prova é a conveniência e adequação do mesmo para a promoção da reintegração do condenado na sociedade. Ora, no caso concreto, temos que o arguido foi condenado pela prática de crime de tráfico de droga (ainda que de menor gravidade), um daqueles em que mais facilmente se reitera na prática criminosa, atentos, por um lado, a disponibilidade de substâncias para esse comércio ilícito – e o arguido bem saberá onde as encontrar - com os proventos que daí poderá retirar, como retirou, e, por outro, a circunstância facilitadora traduzida na demanda dessa substância pelos consumidores. Acresce que a integração social do arguido se mostra prejudicada por diversos factores: em primeiro lugar o desvio criminal ora em censura; depois, a situação de desemprego prolongado do arguido, de há mais de 2 anos, com as necessárias consequências no contexto social e familiar.

A circunstância a que o arguido faz apelo, de ser delinquente primário, é fortemente abalada por essas outras circunstâncias coetâneas.

Assim sendo, também neste pormenor, não merece censura a sentença recorrida.

III – O perdimento do automóvel.

Pretende o recorrente que o automóvel apreendido e cujo perdimento foi decretado não foi essencial à eclosão do crime por que acaba condenado.

Transcrevemos, a propósito, o seguinte segmento da sentença:

«Dos bens apreendidos:

Sob a epígrafe “perda de instrumentos e produtos”, prescreve o art.º 109.ºdo Código Penal:

“1 – São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.

2 – O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto.

3 – Se a lei não fixar destino especial aos objectos perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio”.

Leal Henriques e Simas Santos escrevem que “... a perda dos objectos não tem uma natureza jurídica unitária. Tem um carácter quase-penal, quando se dirige contra o autor ou comparticipante no delito, a quem no momento da sentença pertencem os objectos, mesmo que sirva então, ao mesmo tempo, os fins de prevenção geral e a ideia de que essa perda ao incidir sobre o réu o pode afectar de forma mais severa do que a própria pena [...]. Mas apresenta-se como medida de segurança, quando é imposta sem ter em conta a questão da propriedade ou da má procedência; quando é imposta para proteger a comunidade, porque esta é posta em perigo pelos mesmos objectos ou quando existe o perigo de que possam servir para a comissão de outros factos antijurídicos. Conexionando os objectos com o perigo típico que acarretam para a prática de crimes, a medida deve essencialmente ser vista como medida preventiva e não como reacção contra o crime – o que explica que ela não esteja na dependência da efectiva condenação do arguido (n.º 2) [do art.º 109.ºdo Cód. Penal], podendo compreender-se perfeitamente que a perda deve ainda ser levada a cabo quando o arguido é absolutamente inimputável.” (Manuel Leal Henriques e Manuel Simas Santos – Código Penal Anotado, 1.º Volume, 2.ª Ed., Rei dos Livros, Lisboa, 1997, p. 745.)

A propósito do perdimento do automóvel, a fundamentação da sentença concretiza-se no seguinte trecho:

«Por outro lado, tanto o veículo como os telemóveis destinavam-se à mesma e oferecem, pela sua natureza facilitadora de contactos e de deslocações, um notório risco do cometimento de crimes da mesma índole do ora sob julgamento.

Restará, portanto, declarar a sua perda a favor do Estado».

Aquele artº 109º do CP deve ser conjugado com a norma especial do artº 35º do DL 15/93, de 22/1, se cujo nº 1 resulta que «são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos».

Aparentemente, a regra geral é mais exigente do que a norma especial pois que esta, literalmente, apenas exige que os objectos em causa tenham «servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma» ao passo que a norma do CP dispõe que esse perdimento apenas tem lugar, «quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos».

Quer-nos parecer, no entanto que essa oposição é aparente, já que os requisitos devem ser comuns num e noutro caso.

Em causa estará, na nossa perspectiva, um princípio de «essencialidade», traduzida na circunstância de o automóvel em causa ser necessário ao surgimento do delito ou, pelo menos, à sua manifestação de determinado modo. Dúvidas não existem quando o veículo, em si, é instrumento do crime, v.g. quando é usado como ‘arma de arremesso’; mas nos casos como o presente as coisas revestem maior complexidade.

Temos que o arguido, nas circunstâncias em que foi interceptado, detinha as substâncias apreendidas na sua posse, que trazia no interior de uma «bolsa de napa de cor preta» (4) e que depois «apercebendo-se da presença da PSP, (…) deitou aquela bolsa para os arbustos existentes junto ao rio» (5). Muito embora o arguido se fizesse transportar no veículo apreendido, ficamos sem saber se ele acondicionava essa bolsa junto ao seu corpo ou se a trazia guardada do interior do veículo, circunstância a que, de qualquer modo, não atribuímos demasiada importância. O que é fácil de concluir é que, dada essa possibilidade, que transforma em acessório o uso do veículo, não podemos concluir que este tenha «servido» para a prática do crime de tráfico de droga em questão. Este bem poderia ter-se perfeccionado sem o concurso da viatura, movendo-se o agente pelo seu pé. Daí a sua não essencialidade já que não põe uma condição ‘sine qua non’ ao surgimento ou à caracterização do crime.

No mesmo sentido vai o recente acórdão desta Relação, de 22/10/2014, proferido no processo 27/12.0JACBR.C1, assim sumariado (in www.dgsi): «Não deve ser declarado perdido a favor do Estado, nos termos do disposto no nº 1 do artº 35º do DL 15/93, de 22/1 (redacção da Lei nº 45/96, de 3/9), o veículo automóvel – no interior do qual foi detectada substância estupefaciente destinada à venda – que não se revele indispensável ao transporte ou ocultação da dita substância, constituindo apenas mero meio de locomoção do seu proprietário».

Assim sendo, não deveria ter sido decretado o perdimento do automóvel “KIA FB SHUMA”, com a matrícula (...) QV, que deverá ser entregue a quem prove ser o titular inscrito.

Termos em que se acorda em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido, revogando a sentença recorrida, na parte em que ordena a perda do veículo de matricula (...) QV a favor do estado.

No mais confirma-se a decisão recorrida.

Sem tributação

Coimbra, 28 de Janeiro de 2015

Jorge França (Relator)

Fernanda Ventura (Adjunta)