Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3356/16.0T8LRA.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: DOAÇÃO
DOAÇÃO PURA
DOAÇÃO A FAVOR DE MENOR OU DE INCAPAZ
DISPENSA DE ACEITAÇÃO
Data do Acordão: 03/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: RIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – J. C. CÍVEL DE LEIRIA – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 940º, Nº 1, E 951º, Nº 2, AMBOS DO C. CIVIL.
Sumário: I – O art.º 940º, n.º 1 do C. Civil define doação nos seguintes termos:
Doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberdade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente.

II - O contrato de doação é, geralmente, um contrato bilateral, exigindo a intervenção de ambas as partes.

III - No entanto, a lei admite doações a favor de menores ou outros incapazes, independentemente de aceitação, desde que delas não resulte a imposição de quaisquer encargos àqueles menores ou incapazes. São as chamadas doações puras.

IV - No art.º 951º, n.º 2 do C. Civil dispensa-se de aceitação as doações feitas a incapazes – pessoas que não têm capacidade para contratar -, dispondo este preceito:

Porém, as doações puras feitas a tais pessoas produzem efeitos independentemente de aceitação em tudo o que aproveite aos donatários’.

V - As doações podem ser puras ou com encargos.

VI - No que respeita às doações puras ‘há uma simples transferência do doador para o donatário’, enquanto nas doações com encargos ‘o donatário assume deveres para com o doador ou para com terceiros ou, ainda, adopta uma posição que não lhe dá a plena e definitiva titularidade do bem doado’.

VII - A doação pura distingue-se da doação modal porque naquela, ainda que haja reserva de usufruto ou de outro direito real, não se impõe ao donatário qualquer obrigação, não ficando ele vinculado a nenhum dever de prestar, enquanto nesta o donatário fica adstrito ao cumprimento de uma ou mais prestações, caracterizando-se a doação pelo facto destes encargos não representarem uma contraprestação e muito menos o correspectivo da atribuição patrimonial.

VIII - Tem vindo a ser unanimemente aceite pela jurisprudência que uma doação com reserva de usufruto ainda assim é uma doação pura, porquanto da restrição ao direito de propriedade sobre o bem doado resultante daquela reserva não decorre qualquer encargo para o donatário.

IX - Caracterizando-se a doação com reserva de usufruto como doação pura, em que no caso dos incapazes a lei dispensa a sua aceitação, não se coloca a existência de qualquer vício que determine o seu conhecimento oficioso por este tribunal.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
A Autora intentou a presente acção pedindo:
- a declaração de ineficácia em relação a si da doação efectuada pelo 1º ao 2º Réu, condenando-se este a restituir o bem ao 1º Réu;
Ou
- a declaração de nulidade da doação efectuada e consequente restituição a si do prédio urbano objecto da mesma.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese:
- O 1º Réu foi declarado insolvente por sentença de 18.12.2014.
- No respectivo processo de insolvência encontram-se reconhecidos créditos no valor total de €1.212.704,05, tendo a maioria dos mesmos origem em avales prestados pelo insolvente em data anterior àquela em que efectuou a doação ao 2º Réu.
- Na data da concessão dos créditos referidos foi relevante a sua situação patrimonial que era integrada, quanto ao 1º Réu, pelo prédio que em 14.3.2012 doou ao 2º Réu, reservando para si o direito de usufruto.
- No processo de insolvência não foram encontrados quaisquer bens imoveis propriedade do 1º Réu, só tendo sido penhorado o usufruto do prédio doado.
- Ao doar o prédio ao 2º Réu, seu filho, o 1º Réu pretendeu evitar a recuperação dos créditos dos seus credores.
- O 1º Réu ao declarar doar o prédio ao 2º Réu teve, exclusivamente em vista evitar a penhora do seu património e não a vontade rela de transmitir o bem.

Os Réus contestaram, excepcionando a legitimidade da Autora para os pedidos formulados, impugnado ainda a versão dos factos apresentada na p. inicial.
Concluíram pela procedência da excepção.
A Autora respondeu à excepção invocada, defendendo a sua improcedência.
Foi proferida decisão que julgou a causa nos seguintes termos:
Nos termos e fundamentos expostos,
1. Julgo verificada a falta de legitimidade da Autora MASSA INSOLVENTE DE J... para pedir a declaração de ineficácia do negócio jurídico de doação em relação àquela,
2. Com consequente absolvição dos Réus J... e D... da instância.
3. E julgo verificada a impossibilidade da lide relativamente ao pedido subsidiário de declaração de nulidade do mesmo negócio por simulação,
4. Com consequente extinção da instância.

Desta decisão foi interposto recurso para este Tribunal que decidiu:
‘Pelo exposto, julgando-se parcialmente procedente o recurso revoga-se a decisão recorrida, na parte respeitante ao pedido subsidiário, devendo os autos prosseguir para apreciação desse pedido, confirmando-se no que respeita ao pedido de impugnação pauliana’.
Na sequência do decidido prosseguiu a acção para apreciação do pedido subsidiário, vindo a ser proferida sentença que julgou nos seguintes termos:
1. Julgo a acção totalmente improcedente e, em consequência,
2. Absolvo os Réus J... e D... do pedido formulado pela Autora MASSA INSOLVENTE DE J...
A Autora interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
Matéria de facto
A. Existe uma clara e óbvia incorrecta apreciação da matéria de facto (art.º 640.º do CPC), com relevância para a decisão da causa, quer por confronto dos documentos juntos aos autos, quer por depoimentos testemunhais que seguidamente se indicarão e que impõe:
a) A eliminação da matéria dada como provada do facto referido sob o n.º 15, Em 28/12/2011 foi inscrito o prédio urbano no respetivo serviço de finanças”
b) O aditamento à matéria dada como provada dos seguintes factos:
15.Que o negócio jurídico subjacente ao contrato de doacção referido não corresponde uma qualquer vontade real do 1.º R de celebrar aquele ou qualquer outro negócio jurídico. - actual alínea a) da matéria não provada,
16.Que o 1.º R ao declarar doar a seu filho o bem imóvel em questão, apenas e só, teve em vista evitar a penhora e venda do seu património e não uma verdadeira e real vontade de transmitir aquele bem, àquele seu filho. – actual alínea b) da matéria não provada
17.O prédio urbano referido em 6 foi edificado pelo 1.º R e por G... após o casamento.
Vejamos:
a) A eliminação da matéria dada como provada do facto referido sob o n.º 15,
Em 28/12/2011 foi inscrito o prédio urbano no respetivo serviço de finanças”
1. O descritivo que consta da caderneta predial junta aos autos apenas e só prova que no dia 28/12/2011 foi apresentada – não sabemos por quem – a modelo 1 do IMI n.º ... e que esta deu origem à ficha de avaliação n.º ...
2. Se o prédio a que essa modelo 1 do IMI se reporta estava omisso, foi melhorado, ou o seu Valor Patrimonial estava desatualizado, nada, rigorosamente nada resulta daquele documento.
3. A data de inscrição de um prédio na matriz apenas e só pode ser provada pela junção aos autos de certidão ou da Modelo 129, se anterior a 2004, ou da modelo 1 do IMI se posterior.
4. Não tendo nenhum destes documentos sido junto aos autos não pode tal facto ser dado como provado pelo que se impõe a sua eliminação da matéria assente
b) O aditamento à matéria dada como provada dos seguintes factos:
15.Que o negócio jurídico subjacente ao contrato de doação referido não corresponde uma qualquer vontade real do 1.º R de celebrar aquele ou qualquer outro negócio jurídico. - actual alínea a) da matéria não provada,
16.Que o 1.º R ao declarar doar a seu filho o bem imóvel em questão, apenas e só, teve em vista evitar a penhora e venda do seu património e não uma verdadeira e real vontade de transmitir aquele bem, àquele seu filho. – actual alínea b) da matéria não provada
5. O depoimento da testemunha ... é muito claro no que respeita à vontade do 1.º R ao declarar doar ao filho o prédio urbano objecto dos presentes autos:
Advogada: Mas eu perguntava-lhe era se a doação tinha sido antes ou depois da insolvência da L... prédios
Testemunha: Foi antes a insolvência da L… prédios (…)
Advogada: Não (..) eles fizeram a doação ao filho e eu estou a perguntar lhe é se essa escritura foi antes ou depois da empresa ter sido declarada insolvente
Testemunha: Foi antes. A doação ao filho foi antes. Ele estava com medo de não conseguir fazer a doação e depois..
Advogada: E depois ser apanhado pela insolvência?
Testemunha: Pois…
Testemunha: Estava com medo porque não conseguia pagar … ora bem, não conseguia libertar o bem para a família
6. Note-se que a testemunha usa expressamente o termo libertar, ou seja tornar o prédio livre
7. Ora, se conjugarmos este receio (“medo”) do 1.º R de não conseguir a tempo tornar o prédio livre, o com os factos dados como provado sob os n.º 1 a 5, muito em particular este último, ou seja “E tais avais foram prestados pelo R em data muito anterior àquela em que celebrou a escritura de doação infra referida.”
Facilmente concluímos que
a) “Que o negócio jurídico subjacente ao contrato de doacção referido não corresponde uma qualquer vontade real do 1.º R de celebrar aquele ou qualquer outro negócio jurídico”.
8. Pois a vontade do 1.º R ao doar o bem ao filho foi apenas e só a de evitar que o bem fosse “apanhado” “aprisionado” pelos credores e, consequentemente que a família não pudesse usufruir desse mesmo bem
b) Que o 1.º R ao declarar doar a seu filho o bem imóvel em questão, apenas e só, teve em vista evitar a penhora e venda do seu património e não uma verdadeira e real vontade de transmitir aquele bem, àquele seu filho.
9. Dado que o 1.º R ao declarar doar o bem ao filho apenas e só teve em vista libertar o bem para a família evitando que o mesmo fosse apanhado” “aprisionado” pelos credores, seja pela realização de penhora seja pela apreensão à massa insolvente
10. Termos em que podiam e deviam os factos referidos sob as alíneas a) e b) dos factos dados como não provados terem sido dados como assentes, ao não fazê-lo, o Tribunal “a quo” fez uma clara e óbvia incorrecta apreciação da matéria de facto (art.º 640.º do CPC), impondo-se a eliminação de tais factos da matéria dada como não provada e consequente adição de dois novos factos com os n.º 15 e 16 com a seguinte redacção supra mencionada
c) O aditamento à matéria dada como provada do facto:
17.O prédio urbano referido em 6 foi edificado pelo 1.º R e por G... após o casamento.
11. As testemunhas do 1.º R foram unanimes em dizer que a casa objecto dos autos foi construída pelo 1.º R em conjunto com a ex-esposa após o casamento:
- O depoimento da testemunha:
“Sim fizeram uma casa. Ele contou-me que não tinha dinheiro para a casa a sogra ajudou-o, a mãe e conseguiram fazer a casa”
- O depoimento da testemunha ...:
Acho que era a mulher ou a sogra que lá tinha posto o dinheiro na casa
(…)
- O depoimento da testemunha ...:
Advogado: (…) fizeram uma casa
Testemunha: sim fizeram (…) A casa não estava legal para ser partilhada na altura, que eu até ajudei depois à legalização dela (…) a G... convenceu a Mãe a emprestar-lhe dinheiro para fazerem a casa, mas depois quando eles se separam havia a casa (…) o J… tinha alguma vontade de ficar com a casa, a G... nem tanto porque era lá de cima da X…, mas havia porque a G... convenceu a Mãe a emprestar lhe dinheiro, portanto tinha que pagar à Mãe, o Q... também não tinha dinheiro, não é?
- Acrescentando ao minuto 10:10
Testemunha: Construíram a casa, sim
Advogada: depois de casar?
Testemunha: depois de casar, exactamente
12. Termos em que se impõe uma alteração à matéria de facto dada como provada, à qual deve ser aditado um novo facto com o n.º 17 com a redacção supra.
13. Desta feita e no que respeita a este ultimo facto (com o n.º 17) que se pretende ver aditado à matéria dada como provada importa ainda reter um aspecto, muito claro, muito obvio e de suma importância à boa decisão da causa e que não foi, tão pouco aflorado pelo Douto Tribunal “a quo”
14. Tendo a casa sido construída pelo 1.º R em conjunto com a sua ex-esposa na constância do casamento:
-  ou o urbano é, no seu todo, um bem comum do casal
- ou sendo o prédio rustico apenas da propriedade do 1.º R o urbano aí
edificado pelo casal é sempre uma benfeitoria comum do casal.
15. Pelo que não podia o 1.º R doar sozinho ao seu filho, pois não era o único proprietário do bem e sendo a sua ex-esposa igualmente titular do imóvel, esta tinha obrigatoriamente que ter intervindo na escritura de doação ao filho de ambos.
16. O que não sucedeu! A ex-esposa do 1.º R não interveio na escritura de doação ao filho
17. E não interveio, sejamos claros porque o 1.º R , com o objectivo de conseguir libertar o bem para a família evitando a apreensão do mesmo à massa insolvente e/ou a realização de penhoras por avais há muito prestados e que “não conseguia pagar” o 1.º R prestou falsas declarações e falsificou documentos
-  Prestou falsas declarações perante o notário, quando afirma ser o único proprietário do imóvel
-  Falsificou documentos (modelo 1 do IMI), ao inscrever o prédio no estado de divorciado, omitindo propositadamente a sua construção no estado de casado e, consequentemente a ex-esposa como co-titular do mesmo
18. Termos em que tal acto dispositivo não pode subsistir na nossa ordem jurídica
Do Direito
19. Nos termos do disposto no art.º 240.º CC são três os Requisitos cuja verificação é cumulativa para que o negócio seja havido como simulado:
a) um acordo simulatório entre o declarante e o declaratário;
b) divergência intencional entre a declaração e a vontade das partes;
c) e o intuito de enganar terceiros.
a) um acordo simulatório entre o declarante e o declaratário
20. No caso dos autos a simulação que nos reportamos é absoluta: pois não há qualquer outro negócio “escondido”, o 1.º R não pretendia vender, trocar, mutuar ao filho o bem objecto dos autos, apenas e só pretendendo “libertar” o bem dos credores
b) divergência intencional entre a declaração e a vontade das partes;
21. A vontade emitida pelo 1.º R no negócio a que nos reportamos teve apenas e só em vista evitar a venda judicial do bem em questão, seja por apreensão à massa insolvente, seja pela realização de penhora
22. Tal vontade é claramente divergente da declaração que emitiu, ou seja, de dispor gratuitamente do bem em benefício do filho, tal como é definido no art.º 940.º cc
23. Sendo certo e obvio que o 1.º R tinha a perfeita consciência da divergência da sua vontade real e declarada e propositadamente a emitiu e a quis
«A intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração traduz-se na consciência, por parte do declarante, de que emite uma declaração que não corresponde à sua vontade real. O declarante não só sabe que a declaração emitida é diversa da sua vontade real, mas quer emiti-la nestes termos. In AcRG DE 18/02/2016, proc n.º 7600/12.4TBBRG.G1, www.dgsi.pt
24. E tanto quis emitir essa vontade que não se inibiu de o prestar falsas declarações perante o notário, quando afirmou ser o único proprietário do imóvel, bem sabendo que este era igualmente da titularidade da sua ex-esposa o falsificar documentos – ao assinalar na modelo 1 ser único titular do imóvel e não que o mesmo era pertença do casal
25. Se não o fizesse não teria conseguido celebrar nem a escritura que celebrou, nem registar a mesma – atenta a divergência de titulares
26. Acresce que, a doação efectuada pelo 1.º R a favor do filho não é uma doação pura, uma vez que este reservou para si o usufruto vitalício e puras são apenas as doações sem encargos
27. Tal significa que pese embora o donatário seja menor, não pode presumir-se a sua aceitação de tal doação
28. O que nos transporta à inevitável conclusão que a doação em questão nos autos enquanto não aceite nos termos do disposto no art.º 945.º CC é apenas e só uma proposta de doação
29. Termos em que, também por esta via não pode tal doação subsistir na nossa ordem jurídica com prejuízo da massa insolvente
c) e o intuito de enganar terceiros.
30. A doação em questão nos autos é claramente fraudulenta, pois além de, com a mesma, o 1.º R ter visado apenas e só o prejuízo de terceiros, massa insolvente e respectivos credores, ao emitir tal vontade visou claramente enganar terceiros, prestando falsas declarações, falsificando documentos
31. Criando uma realidade aparente, tudo com o claro e único intuito de obter um objectivo ilegal e que sabia ser ilegal,
32. Libertando o bem e evitando a sua apreensão à massa insolvente
33. Conduta esta que terá, claramente de ser sancionada por esse Venerando Tribunal pela declaração de nulidade da doação efectuada pelo 1.º R ao filho
Conclui pela procedência do recurso.

Os Réus responderam, defendendo a confirmação da decisão.
1. Do objecto do recurso
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões apresentadas cumpre apreciar:
- a impugnação da matéria de facto
- natureza da doação.
2. Dos factos
A Autora revela no recurso a discordância quanto ao julgamento da matéria de facto, pretendendo que, após reapreciação das provas que indica, seja alterada.
Assim, pretende que:
-  seja eliminado dos factos provados o provado sob o n.º 15
- que os factos não provados sob a alínea a) e b) sejam julgados provados
- que seja julgado provado o seguinte facto:
O prédio urbano referido em 6 foi edificado pelo 1º Réu e por G... após o casamento.
O facto provado sob o n.º 15 tem a seguinte redacção:
Em 28.11.2011 foi inscrito o prédio urbano no respectivo serviço de finanças.
Da fundamentação da decisão da matéria de facto consta:
Os factos relativos à data da inscrição do prédio urbano resultam do teor objectivo do registo predial.
A recorrente defende que não tendo sido junta aos autos a certidão do modelo 1 do IMI n.º ... apresentada em 28.11.2011, o único documento capaz de provar que aquele foi o dia em que foi requerida a inscrição do prédio na matriz, não podia o douto tribunal ter dado como provado o facto n.º 15.
Ora, da análise dos documentos juntos aos autos – em especial da caderneta predial do prédio em causa – resulta claro que o modelo 1 do IMI a que a recorrente alude foi entregue em 28.12.2011, constando também da escritura de doação que nesse acto foi exibido o referido modelo que foi recepcionado no serviço de finanças competente em 28.12.2011. Tal realidade é suficiente para se julgar provado o facto em causa, razão pelo que se mantém como tal.
Quanto aos factos julgados não provados sob as alíneas a) e b) cuja redacção é:
a) Que o negócio jurídico subjacente ao contrato de doação referido não corresponde uma qualquer vontade real do 1.º R de celebrar aquele ou qualquer outro negócio jurídico.
b) Que o 1.º R ao declarar doar a seu filho o bem imóvel em questão, apenas e só, teve em vista evitar a penhora e venda do seu património e não uma verdadeira e real vontade de transmitir aquele bem, àquele seu filho.
Estes factos foram julgados nos termos referidos com a seguinte fundamentação:
Os factos relativos à motivação subjacente ao negócio de doação com usufruto invocada pelos Réus resultaram não provados, uma vez que as testemunhas ... apenas referiram que “ouviram dizer” ao 1.º Réu que a casa tinha sido doada como condição para o divórcio porque tinha sido construída em parte com dinheiro da sogra do 1.º Réu mas este não tinha dinheiro para lhe dar – ora, para além de serem depoimentos algo vagos e genéricos, limitam-se a “ouvir dizer”, sem o recurso a circunstancialismos que nos permitam aferir de tal credibilidade, não tendo sido junto qualquer documento comprovativo de quantias doadas pela sogra do 1.º Réu para a construção da casa, por isso, não mereceram a necessária credibilidade.
A recorrente, convocando o depoimento de ... defende que tais factos devem ser julgados provados.
Da audição integral do referido depoimento resulta claro que a testemunha que conhece o Réu há mais de 30 anos e com tem uma relação de amizade declarou que aquando do divórcio da Ré foi acordado que a casa seria para o filho de ambos, ficando o Pai – 1º Réu – como usufruto.
A testemunha disse não ter qualquer conhecimento da insolvência do 1º Réu, tendo declarado que a doação foi efectuada antes da declaração de insolvência. Quando a testemunha se refere à insolvência, uma vez que desconhecia a insolvência do Réu só se pode entender que se estava a referir à insolvência da sociedade, única de que tinha conhecimento.
Não resulta, pois, do depoimento prestado pela testemunha ... a prova dos factos impugnados, mantendo-se, desse modo, o mesmo como não provado.
Pretende ainda a recorrente que seja julgado provado e aditado aos demais o seguinte facto:
O prédio urbano referido em 6 foi edificado pelo 1º Réu e por G... após o casamento.
Em momento algum do processo – nos articulados - a Autora alega os factos que agora pretende ver julgados provados e demonstrativos da titularidade do bem doado, para ver declarada a nulidade da doação, factos esses que constituem uma causa de pedir distinta da invocada para a procedência do pedido de declaração de nulidade da doação por simulação.
Na sua p. inicial a Autora alega que o 1º Réu era proprietário do imóvel, não colocando em crise, por o motivo agora invocado, a validade da doação. Só nas alegações de recurso é que coloca a questão da propriedade do bem doado, questão que nunca foi discutida nos autos e que integrará outra causa de pedir distinta da simulação para a nulidade da doação.
Integrando esses factos uma nova causa de pedir, importa determinar se neste momento processual a mesma poderia ser modificada.
Ora, nos termos do art.º 264º do C. P. Civil a alteração da causa de pedir pode ser alterada ou ampliada em qualquer altura, em 1ª ou 2ª instância, desde que haja acordo das partes.  Não falta de acordo a causa de pedir só pode ser alterada nos termos definidos pelo n.º 1 do art.º 265º do C. P. Civil.
No caso que nos ocupa, manifestamente não há acordo das partes nem se verifica nenhuma das circunstâncias a que alude o n.º 1 do referido art.º 265 º - resultar de confissão feita pelo Réu e aceita pelo Autor – pelo que não é a mesma admissível.
Não sendo admissível a alteração da causa de pedir, fica prejudicada a apreciação da bondade do aditamento do facto que a Autora pretende ver aditado.
Os factos provados são:
1. O 1º R. apresentou-se à insolvência, a qual veio a ser declarada por Sentença de 18.12.2014 nos autos cujos termos se encontram pendentes sob o n.º ..., pela 1.ª Secção de Comércio, J3, da Instância Central, Leiria.
2. No âmbito daquele processo de insolvência encontram-se reconhecidos créditos no valor total de €1.212.704,05.
3. Foram reconhecidos pelo senhor Administrador os seguintes créditos:
- Banco B..., SA €487.796,70
- Banco S..., SA €108.033,94
- C..., SA €68.270,67
- C..., SA €4.034,79
- Fazenda publica €1.709,65
- G..., SA €542.898,10.
4. Com excepção do crédito da Fazenda Publica no montante de €1.709,65 e do valor de €151,16 reconhecido ao Banco S..., no que respeita ao saldo devedor do cartão de crédito, todos os restantes têm a sua origem em aval prestado pelo 1.º R junto das entidades credoras.
5. E tais avais foram prestados pelo R em data muito anterior àquela em que celebrou a escritura de doação infra referida.
6. O património imobiliário no que respeita ao 1.º R. integrava o prédio urbano composto de casa de cave, rés-do-chão e 1.º andar, para habitação, com logradouro, com a área coberta de 260,70 e descoberta de 367,30m2, sita em ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ... com o valor patrimonial de €128.763,43 e descrita na 1.ª Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º ... da freguesia da (…).
7. Por escritura de 14.03.2012, lavrada a fls 33 a 34, do livro 17-A, exarada no cartório Notarial de ..., o 1.º R doou a seu filho menor, aqui 2.ª R, o imóvel descrito no art.º anterior.
8. O 1.º R reservou o direito de usufruto sobre o mencionado imóvel.
9. No âmbito do processo de insolvência acima identificado não foram encontrados quaisquer bens imóveis dos quais o 1.º R. fosse proprietário.
10. Tendo o Senhor Administrador apenas e só procedido à penhora do usufruto referido.
11. O único bem imóvel do qual o 1º R. era proprietário era o acima identificado, para além de uma viatura.
12. O 2.º Réu menor está à guarda da Mãe com quem vive na ...
13. Os pais do contestante menor, foram casados entre si,
14. O casamento de ambos foi dissolvido por divórcio decretado em 20/11/2011.
15. Em 28/12/2011 foi inscrito o prédio urbano no respetivo serviço de finanças.
3. O direito aplicável
Defende ainda a Autora a procedência da acção com fundamento na nulidade da doação, nulidade essa que na sua tese é decorrente do facto daquele acto não ter sido aceite pelo donatário e não se poder presumir aceitação por aquela se caracterizar como uma doação modal.
Esta questão nunca foi colocada nos autos, no entanto, sendo a nulidade dos negócios jurídicos de conhecimento oficioso – art.º 286º do C. Civil -, devendo dela o tribunal conhecer a todo o tempo, impõe-se caracterizar a doação efectuada para apurarmos se a questão colocada se inclui naquelas que são de conhecimento oficioso.
No caso que nos ocupa, conforme consta do instrumento notarial junto aos autos, o 1º Réu, em14.3.2012, declarou doar ao 2º Réu, seu filho menor, o prédio nesse instrumento identificado com reserva de usufruto vitalício a seu favor.
A Autora, invocando a menoridade do 2º Réu à data da doação defende que tendo o doador – 1º Réu – reservado para si o usufruto do bem doado – defende que estamos perante uma doação que não é pura não se presumindo, por essa razão a aceitação do donatário, valendo unicamente como proposta de doação.
O art.º 940º, n.º 1 do C. Civil define doação nos seguintes termos:
Doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberdade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente.
Conforme consta do Acórdão do S. T. J. n.º 7/97[1]:
  Ao falar na doação de uma coisa, a lei não está a fazer mais do que mencionar, simplificadamente, a disposição gratuita de um determinado direito real - o de propriedade - sobre essa coisa, a par da possibilidade de doação de outros direitos pertencentes ao doador.
Como, em rigor, o conteúdo da doação não é a coisa doada, simples objecto do contrato, mas antes o conjunto dos poderes sobre ela que são em concreto transmitidos - ou, para quem preferir outra terminologia, a coisa será o objecto mediato e os efeitos jurídicos serão o objecto imediato -, logo se constata que a disposição assim feita não tem de referir-se, irrestrita e definitivamente, à totalidade da mesma ou dos poderes nesse direito contidos, antes podendo esse direito de propriedade ser objecto de restrição.
Só que esta restrição pode assumir formas muito diversas.
Uma das restrições que a lei prevê é a da doação com reserva de usufruto dos bens doados para o doador ou para terceiro – art.º 958º do C. Civil.
O contrato de doação é, geralmente, um contrato bilateral, exigindo a intervenção de ambas as partes. No entanto, a lei admite doações a favor de menores ou outros incapazes, independentemente de aceitação, desde que delas não resulte a imposição de quaisquer encargos àqueles menores ou incapazes. São as chamadas doações puras.
No art.º 951, n.º 2 do C. Civil dispensa-se de aceitação as doações feitas a incapazes – pessoas que não têm capacidade para contratar -, dispondo este preceito:
Porém, as doações puras feitas a tais pessoas produzem efeitos independentemente de aceitação em tudo o que aproveite aos donatários.
A justificação desta opção legislativa é-nos dada por Pires e Lima e Antunes Varela [2] da seguinte forma:
Esta solução é juridicamente anómala, na medida em que permite a celebração dum contrato unilateralmente; mas é perfeitamente compreensível, desde que as doações puras não podem trazer prejuízos para os donatários. Tudo se passa, por conseguinte, como presumindo a lei a aceitação por parte dos legais representantes dos incapazes, visto não haver razões económicas que justifiquem a recusa, nem ser provável a existência de razões de ordem moral que se oponham à aceitação.
As doações podem ser puras ou com encargos. No que respeita às puras há uma simples transferência do doador para o donatário enquanto nas com encargos o donatário assume deveres para com o doador ou para com terceiros ou, ainda, adopta uma posição que não lhe dá a plena e definitiva titularidade do bem doado. [3]
A doação pura distingue-se da doação modal porque naquela, ainda que haja reserva de usufruto ou de outro direito real, não se impõe ao donatário qualquer obrigação, não ficando ele vinculado a nenhum dever de prestar, enquanto nesta o donatário fica adstrito ao cumprimento de uma ou mais prestações, caracterizando-se a doação pelo facto destes encargos não representarem uma contraprestação e muito menos o correspectivo da atribuição patrimonial. [4]
Tem vindo a ser unanimemente aceite pela jurisprudência que uma doação com reserva de usufruto ainda assim é uma doação pura porquanto da restrição ao direito de propriedade sobre o bem doado resultante daquela reserva não decorre qualquer encargo para o donatário.
Caracterizando-se a doação com reserva de usufruto como doação pura, em que no caso dos incapazes a lei dispensa a sua aceitação, não se coloca a existência de qualquer vício que determinasse o seu conhecimento oficioso por este tribunal.
Assim, improcede o recurso.
Decisão:
Nos termos expostos, julgando-se improcedente o recurso confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela Autora.
                                                                                   17.3.2020



[1] Publicado no Diário da República n.º 83/1997, Série I-A de 1997-04-09.


[2] Código Civil Anotado, vol. II, 4ª ed., pág 254, Coimbra Editora.
[3] Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil, XI, Contratos em Especial (1ª parte, ed. 2018, pág. 446, Almedina.

[4] Ac. S. T. J. de 29.9.1988  acessível em www.dgsi.pt  .