Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
893/09.6TAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOURAZ LOPES
Descritores: OMISSÃO DE FACTOS
NULIDADE DA SENTENÇA
CRIME DE FALSO TESTEMUNHO
Data do Acordão: 06/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 379º Nº 1 A) CPP; 360º Nº 1 CP
Sumário: 1.- Não tendo o tribunal apreciado um facto essencial que constava na acusação, dando-o como provado ou como não provado, a sentença é nula, nos termos do art. 379º, nº 1, al. a) do CPP.

2.- O crime de falso testemunho pressupõe que o autor da declaração falsa se encontre investido em uma particular e precisa função processual: a de testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete.

3.- O bem jurídico protegido com o crime é a realização da justiça como função do Estado e, nesse sentido, só quem assume uma qualidade processual (porque isso tem consequências para o funcionamento da «máquina» da justiça) pode ser responsabilizado pelas consequências da sua actuação.

4.- Se o autor dessa declaração, no momento em que a prestou, não assume qualquer papel processual, no sentido referido anteriormente, dessa declaração não pode retirar-se qualquer consequência em termos de obstáculo ao desempenho da actividade judicial, nomeadamente que ela ponha em causa a realização ou administração da justiça.

Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO.
Nos presentes autos, após acusação do Ministério Público, o arguido CS... foi absolvido, por sentença de 26 de Janeiro de 2011 como autor de um crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, p.p. pelo artigo 360º n.º 1 do Código Penal.

Não se conformando com a decisão o Ministério Público veio dela recorrer.

Nas suas alegações o recorrente conclui a sua motivação nos seguintes termos:

1. O Ministério Público vem recorrer da sentença proferida pelo Tribunal a quo, que decidiu absolver o arguido CS... da prática de um crime de falsidade de testemunho, que lhe vinha imputado ao abrigo do disposto no art. 360°, n° 1, do CP.
2. Da fundamentação da matéria de facto não consta como facto provado, nem como facto não provado, um dos factos descritos na acusação: que o arguido, ao prestar as aludidas declarações, sabia que faltava à verdade, contudo e apesar de saber que estava obrigado a falar com verdade e de saber que praticava um crime ao mentir, perante autoridade policial, em diligência de inquérito, o arguido não se demoveu de o fazer, o que quis e conseguiu
3. Ao não ser dado como provado, nem como não provado, o facto indicado na conclusão anterior, a sentença proferida nos autos padece da nulidade prevista no art. 379º, n° 1, ai c), do CPP, que expressamente se invoca.
4. Por outro lado, não poderia o Tribunal a quo entender, em primeiro lugar, que o arguido não prestou declarações como testemunha, para, em segundo lugar, considerar que o OPC deveria, na sequência da sua inquirição nessa qualidade, constituí- lo arguido, o que, a verificar-se na decisão, configura uma contradição na fundamentação, que é insanável nos termos do art. 4100, n° 2, al. b), do CPP.
5. A contradição está no ponto em que o Tribunal recorrido, num primeiro momento, considera que as declarações prestadas pelo aqui arguido não poderiam integrar o ilícito previsto no art. 360°, n° 1, do CP, para, num segundo momento, entender que essas mesmas declarações, caso tivesse sido dado cumprimento ao preceituado no art. 59°, n° 1, do CPP, não constituiriam qualquer ilícito.
6. Não se impunha ao OPC — que recolheu as declarações do aqui arguido — proceder, naquele acto, à sua constituição nessa qualidade.
7. Analisando o teor de fis. 88 a 190 verificamos que, somente em 26 de Janeiro de 2007 passa a existir inquérito (cfr. fis. 89), ou seja, à data das declarações prestadas pelo arguido, 10 de Janeiro de 2007 não existia o NUIPC l/07.8PDLRA.
8. São as declarações do arguido de fis. 92 e as declarações de MM... de fis. 93 que constituem a “notícia do crime” e com base nas quais o OPC elabora a participação de fls.89, que dá por sua vez origem ao inquérito n° 1/07.8PDLRA.
9. Por isso, não poderia o OPC, em 10 de Janeiro de 2010 quando o arguido presta declarações na PSP da Marinha Grande (fis. 92) — data em que ainda não existia, sequer, inquérito — constituí-lo e interrogá-lo como arguido.
10. Os factos em causa integram o crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo art. 256°, n° 1, al. d), do CP, e não o crime de falsidade de depoimento, previsto no art. 360°, n° 1, do CP.
11. Nesta conformidade, em função da prova constante dos autos e da produzida em audiência de julgamento, deveria o Tribunal a quo ter dado como provados com relevância para a decisão a proferir, entre o mais, os seguinte factos:
• No dia 10 de Janeiro de 2007, o arguido CS... prestou declarações na esquadra da PSP da Marinha Grande.
• Nestas circunstâncias, o arguido declarou ter comprado a MM... duas espingardas de caça, pelo preço de 15,00 euros cada, sendo uma delas da marca Liegeois, calibre 16, n° 29692, livrete F82834.
• Mais afirmou que as não registou em seu nome e que, contrário do era verdade e que fez constar desse auto já as havia destruído totalmente, lançando-as para a fogueira, não sendo possível a sua recuperação com o que restou delas.
• No decurso da investigação no inquérito no 812/06.1GAMMV, a arma da marca Liegeois, foi em 13 de Abril de 2007 apreendida na posse de AP....
• Realizada perícia à mencionada arma, concluiu-se que a mesma se encontrava em boas condições de funcionamento.
• O arguido sabia que as declarações por si prestadas e subscritas não correspondiam totalmente à verdade uma vez que não havia destruído as armas lançando-as para a fogueira, o que fez com o intuito de alcançar um beneficio ilegítimo, que se traduziu em ficar na posse dessas armas sem que as mesmas ficassem registadas em seu nome, o que quis e conseguiu.
• O arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
12. Atendendo a que os factos supra enunciados seriam susceptíveis de integrar a prática de crime diverso, o que dita a agravação da moldura penal abstracta da pena, ao abrigo do art. l ai. f), do CPP, está em causa uma alteração substancial dos factos vertidos na acusação.
13. Como tal alteração não poderia ser tomada em consideração para efeitos de condenação, a não ser que se mostrassem verificados os pressupostos vertidos no art. 359°, n° 3, do CPP, impunha-se dar cumprimento ao preceituado neste artigo.
14. Uma vez que tal não sucedeu, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 256°, n° 1, ai. d), do CP e, bem assim, o art. 3590, nos i e 3 do CPP.

O arguido não respondeu sendo que o Exmo. Senhor Procurador Geral-Adjunto neste Tribunal da Relação apenas apôs um «visto».

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II. FUNDAMENTAÇÂO

As questões que importa decidir, face às conclusões efectuadas pelo recorrente na sua motivação são identificadas nas (i) nulidade da sentença, (ii) inexistência de crime e (iii) da alteração dos factos.

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Importa antes de mais atentar na matéria de facto dada como provada pelo Tribunal:

II - FUNDAMENTAÇÃO

A) Factos provados:

Observado o legal formalismo procedeu-se a julgamento na presença do arguido e, com relevo para a decisão da causa, provaram-se os seguintes factos:

1- No dia 10 de Janeiro de 2007 o aqui arguido prestou declarações no âmbito do processo nº 01/07.8PDLRA, na esquadra da PSP da Marinha Grande.

2- Ao lhe ser perguntado, o aqui arguido declarou ter comprado a MM... duas espingardas de caça, pelo valor de 15 euros cada, sendo uma delas de marca Liegeois, calibre 16, nº 29692, livrete nº F82834.

3- Mais afirmou que as não registou em seu nome e que já as havia destruído totalmente, lançando-as para a fogueira não sendo possível a sua recuperação com o que restou delas.

4- No decurso da investigação no inquérito 812/06.1GAMMV, a arma especificadamente referida em 2, foi apreendida em 13 de Abril de 2007 na posse de AP....

5- Inquirido no âmbito do inquérito referido em 4, MM…, esclareceu que vendeu a referida arma ao arguido, em Dezembro de 2006 pelo preço de 15 euros.

6- Realizada perícia à mencionada arma, conclui-se que aquela se encontrava em boas condições de funcionamento.

7- O arguido agiu livre deliberada e conscientemente.

Mais se provou:

8- No âmbito do processo referido em 1, o aqui arguido foi ali julgado e absolvido pelo crime de detenção de arma proibida, e a testemunha MM… julgado e absolvido do crime de tráfico de armas.

9- O arguido é vendedor ambulante auferindo em média por mês a quantia de € 300,00.

10- Vive com a companheira e dois filhos, todos eles auferindo a quantia de € 300,00 a título de rendimento social de inserção.

11- Paga de renda de casa a quantia de € 20,00.

12- Do teor do CRC do arguido constam as seguintes condenações:

i- Pela prática em 16 de Maio de 1999, de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, foi o mesmo condenado na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 400$00, a qual foi declarada extinta por despacho de 14 de Março de 2006;

ii- Pela prática em 28 de Maio de 1999, de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, foi o mesmo condenado na pena de multa de 54.000$00, a qual foi declarada extinta por despacho de 21 de Fevereiro de 2002;

iii- Pela prática em 31 de Janeiro de 2001, de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, foi o mesmo condenado na pena prisão de 5 meses substituída por igual tempo de multa, a qual foi declarada extinta por prescrição por despacho de 11 de Abril de 2008;

iv- Pela prática em 20 de Maio de 2003, de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, foi o mesmo condenado na pena prisão de 1 ano, suspensa por três anos, tendo tal suspensão sido revogada por decisão de 13 de Fevereiro de 2007, cumprida a pena e declarada extinta;

v- Pela prática em 22 de Maio de 2003, de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, foi o mesmo condenado na pena prisão de 15 meses suspensa por 3 anos com regime de prova;

vi- Pela prática em 10 de Março de 2004, de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, foi o mesmo condenado na pena prisão de 16 meses, suspensa por três anos, com regime de prova;

vii- Pela prática em 28 de Janeiro de 2004, de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, foi o mesmo condenado na pena prisão de 1 ano e 8 meses suspensa por três anos, com regime de prova;

viii- As penas indicadas em v, vi, vii, foram englobadas no processo referido em vii, e aplicada pena única de 2 anos de prisão suspensa por 5 anos, com regime de prova;

ix- Pela prática em 08 de Junho de 2007, de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, foi o mesmo condenado na pena prisão de 9 meses, tendo a mesma já sido declarada extinta pelo cumprimento.

Não se provou que:

a) O arguido tivesse prestado declarações no processo referido em 1 na qualidade de testemunha.

b) Que a conduta do arguido fosse proibida e punida por lei.

B) Motivação da Matéria de Facto

1.Considerandos preliminares.

Importa rememorar que vigora em processo penal o Princípio da Livre Apreciação da Prova (art. 127.º do CPP), ou seja, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção. O julgador, ao apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a verdade material, deve observar as regras da experiência comum, utilizando como método de avaliação critérios objectivos genericamente susceptíveis de motivação e controlo (AC. TC n.º 1165/96, de 19.11, BMJ, 461, 93). A convicção deve ser racional, objectivável e motivável.

Saliente-se também o Princípio do In dubio Pro Reo, que deverá estar sempre presente na apreciação da prova e que estabelece que, na decisão de factos incertos, a dúvida favorece o arguido.

a) Declarações do arguido:

O arguido ao prestar declarações afirmou que relativamente às armas referidas em 2 dos factos provados, as adquiriu a MM...em troca de dinheiro mas que passado algum tempo queimou uma delas, e quanto à outra a Liegeois por estar inutilizada a mandou para o lixo.

Confrontado com o teor das declarações por si prestadas e referidas em 3 dos factos provados, informou que as mesmas só ai podem estar por lapso, sendo que apesar de ter assinado as suas declarações as não leu por não saber, sabendo no entanto assinar.

Realce-se que, atenta a demais prova existente nos autos e conforme abaixo se demonstrará o tribunal não se deixou convencer pela versão do arguido no que tange ao destino dado às armas.

Já relativamente às suas condições económicas e sociais o arguido prestou declarações plausíveis, congruentes e suficientes, sendo que com base nas mesmas deu o tribunal como provados os factos constantes de 9º a 11º

b) Prova testemunhal

Prestaram depoimento em juízo as testemunhas Carlos Pires e MM....

Carlos Pires foi o agente autuante que ouviu em declarações o arguido no âmbito do processo nº 01/07.8PDLRA e bem assim a aqui testemunha MM…, (factos 1º a 3º) os quais foram por si confirmados, tendo deposto nesta sede de modo considerado isento e credível.

MM...por seu lado, num depoimento também ele congruente e efectuado de modo isento, afirmou ter efectivamente prestado declarações no âmbito do processo referido em 4º, (documento de fls. 6) e que vendeu as armas ao arguido, que este as pagou e que posteriormente lhe disse que as tinha queimado.

c) Prova documental

Valorou ainda o tribunal conjuntamente com os testemunhos acima referidos e para prova dos factos 1 a 6 e 8 os seguintes documentos:

- certidão de fls. 2 e seguintes – mormente autos de declarações de fls. 92 (para prova dos factos 1º a 3);

- certidão de fls. 2 e seguintes – mormente auto de interrogatório de fls. 2, acusação de fls. 59 e seguintes, auto de inquirição de fls. 72 (para prova do facto 4º);

- certidão de fls. 2 e seguintes – mormente declarações de fls. 6 (para prova do facto 5º);

- certidão de fls. 2 e seguintes – mormente relatório de exame pericial de fls. 9 (para prova do facto 6º)

- certidão de fls. 87 e seguintes – mormente sentença de fls. 182 e seguintes (para prova do facto 8º).

- CRC do arguido constante de fls. 267 e seguintes e datado de 23 de Novembro de 2011.


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O facto provado constante de 7º, resulta da prova dos anteriores e bem assim das regras da experiência.

Atento o papel social do arguido revelado na altura em que prestou declarações e sendo certo que as assinou, certo é também que o aí relatado por ele corresponde à realidade que o mesmo queria transmitir.

Ainda que fosse verdade que o mesmo não soubesse ler, impunha-se-lhe que solicitasse ao agente de autoridade que elaborou o auto que lho lesse previamente, a fim de averiguar se aquilo que havia sido dito era aquilo que escrito estava.

Nada disso ocorreu, o arguido prestou as declarações que entendeu, assinou-as, responsabilizou-se por elas, pelo que, não pode agora sem que tal possa ser comprovado, informar que não disse que ambas as armas tinham ido para a fogueira quando isso é aquilo que assinou.

Deste modo provado está que agiu de forma livre e deliberada ao prestar as declarações que prestou.

Factos não provados:

Os factos não provados resultam da completa ausência de prova que os pudesse confirmar.

Quanto ao facto 1º o mesmo resulta assim, pois que do “auto de declarações” de fls. 92 não resulta em que qualidade o aqui arguido as prestou aí.

Ora necessário era que em tal auto estivesse explicitada a qualidade de quem presta declarações, pois que, não se pode presumir sem mais que quem as prestou o fez como testemunha, ou suspeito, ou interveniente a qualquer título.

Por outro lado, nem sequer se sabe bem se quando tais declarações foram prestadas existia já um processo-crime a correr, presumindo-se que sim, atento o que consta de fls. 92.

Por fim e não menos importante, o certo é que o aqui arguido, foi julgado (e necessariamente constituído arguido) no âmbito do processo nº 01/07.8PDLRA, processo esse onde prestou as declarações que a acusação reputa como falsas e por causa das quais responde pelo crime de falsidade de depoimento.

Não podemos olvidar que tendo tido a qualidade de arguido nesses autos, o certo é que logo quando prestou as declarações que aqui se analisam, deveria ter sido constituído arguido se existisse fundada suspeita da prática de um crime o que posteriormente se veio a comprovar, tendo até sido julgado nesses autos.

Deste modo deu-se como não provado o facto constante em 1, e consequentemente o facto constante de 2, o qual está na dependência daquele.


OS FACTOS E O DIREITO: --
Importa agora fazer o enquadramento jurídico dos factos dados como provados.

O arguido vem acusado como autor de um crime de falsidade de testemunho p.p. pelo artigo 360º nº1 do CP.

Dispõe tal artigo que “quem como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias”

Realce-se que não foi dado como provado que o aqui arguido tivesse deposto na qualidade de testemunha, já que do auto nada resulta, apenas se falando em auto de declarações, devendo dizer-se a qualidade daquele que depõe o que não ocorreu.

Mas a ainda a entender-se que o aqui arguido ali depôs como testemunha, há que chamar à atenção do seguinte: o aqui arguido foi constituído arguido nos autos em que prestou declarações, tanto mais que ai foi julgado. Consequentemente deveria desde logo o OPC e quando o mesmo prestou declarações constitui-lo arguido, pela eventual prática de detenção de arma proibida.

Isso mesmo resulta do disposto no artigo 59º nº1 do CPP que nos diz “se durante qualquer inquirição feita a pessoa que não é arguido, surgir fundada suspeita de crime por ela cometido, a entidade que procede ao acto, suspende-o imediatamente e procede à comunicação e indicação referidas no nº2 do artigo anterior”

Tal não foi feito e devê-lo-ia ter sido.

Veja-se a propósito o que a este respeito é referido por A. Medina de Seiça In Comentário Conimbricense ao Código Penal, 1999, Coimbra Editora, Tomo III, p.464. :

“ Ora se a qualidade de arguido não decorre automaticamente da existência do pressuposto objectivo fixado na lei (a fundada suspeita), requerendo, ainda, um acto subjectivo a cargo da autoridade competente (a constituição de arguido), podem surgir situações em que, apesar de estar perante tal fundamento objectivo, a constituição não teve lugar, cabendo perguntar se a eventual falsidade da declaração realiza o tipo legal do artigo 360º. Poderia dizer-se que, formalmente, a declaração é prestada ainda na veste de testemunha e não na de arguido, pelo que a previsão típica estaria preenchida. Quando muito haveria lugar à aplicação do privilégio constante do artigo 364º alínea a): atenuação especial da pena, ou mesmo a sua dispensa, nos casos em que a declaração falsa tenha como finalidade evitar que o “agente (…) se expusesse ao perigo de vir a ser sujeito a pena ou medida de segurança.

Porém essa tutela é insuficiente: por um lado, porque a declaração falsa pode ter sido determinada por um fundamento diverso dos referidos no artigo 364º alínea a); por outro, porque o funcionamento desse privilégio não elimina sem resto a desvantagem para a “testemunha-que-já-devia ser arguido”, pois não só a dispensa de pena é facultativa, como pode ser decretada uma pena efectiva ainda que atenuada. Ora o incumprimento, intencional ou não, por parte do órgão da administração da justiça, do dever de constituição tempestiva de arguido não pode resolver-se em desfavor da pessoa interrogada. Por isso a solução é a da exclusão da tipicidade. Assim, e em conclusão, a verificação dos pressupostos objectivos da constituição de arguido determina que no plano material já não estamos perante uma testemunha, cessando portanto o dever de responder e de responder com verdade…”

In casu a situação é exactamente a mesma que acima se deixou escrita na citação.

O aqui arguido deveria ter sido como tal constituído naquele auto, pelo que, se assim tivesse sido, como o foi posteriormente diga-se, já que foi julgado nesse processo, as suas declarações não constituiria qualquer ilícito, como não constituem.

Assim, há que absolver o arguido do crime que lhe vem imputado, atento o que acima se deixou escrito e transcrito.

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I. Nulidade da sentença

Na primeira dimensão do recurso o recorrente invoca a nulidade da sentença porquanto a fundamentação da matéria de facto não consta como facto provado, nem como facto não provado, um dos factos descritos na acusação: que o arguido, ao prestar as aludidas declarações, sabia que faltava à verdade, contudo e apesar de saber que estava obrigado a falar com verdade e de saber que praticava um crime ao mentir, perante autoridade policial, em diligência de inquérito, o arguido não se demoveu de o fazer, o que quis e conseguiu.
Atentando na decisão proferida, nomeadamente sobre os factos provados e não provados e na acusação efectuada pelo Ministério Público, é evidente que o Tribunal não se pronunciou sobre a dimensão factual agora objecto de impugnação.
E não se pronunciou, nem no sentido de dar esse facto (que é um facto essencial face ao teor da acusação proferida) ter sido dado como provado ou não ter sido dado como provado.
Estabelece o artigo 374º n.º 2, no âmbito dos requisitos da sentença que conformam a sua fundamentação, que o Tribunal deve enumerar os factos provados e os factos não provados, para além da exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão.
A conformação normativa sobe o não cumprimento desta injunção impõe, nos termos do artigo 379º a nulidade da sentença.
Trata-se, neste efeito, de salvaguardar a vinculação constitucional que decorre do princípio da fundamentação das decisões, nomeadamente a imposição de que este dever é aplicável a todas as decisões (generalidade) é indisponível, público e sobretudo (face à situação dos autos) tem de ser completo (completude).
A consagração deste corolário do princípio da fundamentação, impõe todas as questões da decisão têm de ter, sem excepção, uma correspondente justificação na motivação. O princípio da completude justifica-se na medida em que a decisão é um documento auto-suficiente, isto é tem que se bastar por si mesmo para ser compreendido pelo cidadão

Todas as questões suscitadas perante o tribunal no âmbito do procedimento e que são objecto de tratamento jurisdicional têm que ser reflectidas na decisão. Com o princípio da completude não está em causa a quantidade da fundamentação mas sim se a fundamentação existe e se é efectuada de forma suficiente para que os seus objectivos possam ser alcançados.

Daí que não tendo o Tribunal da primeira instância efectuado uma pronúncia sobre um facto essencial que constava na acusação não há, efectivamente, dúvida de que ocorreu um vicio cuja patologia conforma uma nulidade de sentença (artigo 379º n.º 1 alínea a) do CPP).
Nulidade a que deveria seguir-se o «tratamento» adequado da sua sanação através da intervenção do Tribunal da primeira instância com vista a resolver a questão.
O que se segue, porém, condiciona esta opção, como veremos.
(ii) Da inexistência do crime.
Constata-se, no entanto, na decisão uma outra questão/problema que, podendo ser conhecido desde já e a proceder, inviabiliza, tornando inútil, a nova intervenção do Tribunal decorrente da nulidade referida.
Vejamos.
Da matéria de facto apurada e de acordo com a acusação consta que No dia 10 de Janeiro de 2007 o aqui arguido prestou declarações no âmbito do processo nº 01/07.8PDLRA, na esquadra da PSP da Marinha Grande. Ao lhe ser perguntado, o aqui arguido declarou ter comprado a MM... duas espingardas de caça, pelo valor de 15 euros cada, sendo uma delas de marca Liegeois, calibre 16, nº 29692, livrete nº F82834. Mais afirmou que as não registou em seu nome e que já as havia destruído totalmente, lançando-as para a fogueira não sendo possível a sua recuperação com o que restou delas(…). No âmbito do processo referido, o aqui arguido foi ali julgado e absolvido pelo crime de detenção de arma proibida, e a testemunha MM...julgado e absolvido do crime de tráfico de armas.

Da análise dos autos (e como se refere também na decisão sub judice) há que constatar que o arguido CS..., prestou declarações na PSP da Marinha Grande no âmbito do processo NUIP01/07.8PDLRA em 10.01.2007, sendo que no mesmo processo, com data de 7.2.2007, existe uma decisão do Magistrado do Ministério Público dos serviços do Ministério Público da Marinha Grande a determinar que «solicite ao OPC competente que proceda ao interrogatório de CS..., após constituição como arguido (…)». No seguimento desse despacho o arguido é constituído arguido e interrogado como tal em 4.4.2007 (fls. 104 e 105).

Posteriormente o arguido, no mesmo processo, foi acusado e julgado, tendo sido absolvido pelo crime de detenção de arma proibida (o que aconteceu igualmente com o outro arguido no processo, MM…).

Importa referir que o arguido prestou declarações na PSP, em 10.01.2007, no seguimento de uma participação que conjuntamente com outro cidadão fez naquela data, relativamente a determinadas armas que teria destruído e das quais vinha entregar os livretes (cf. fls 90 e 91).

A participação efectuada pelo arguido (e pelo outro cidadão) deu origem à informação/proposta que consta a fls 90 (onde consta já a indicação de que se trata do NUIPC/o1/07.8PDLRA) e que deu origem ao inquérito.

Da factualidade documentalmente provada decorre que o arguido, quando efectuou as declarações naquela data, não o fez nem como arguido, nem como testemunha (conforme constava da acusação do Ministério Público), nem como qualquer sujeito processual mas, conforme decorre do processo, como «declarante».

Duas questões se colocam desde já: face às declarações prestadas pelo arguido, é absolutamente claro que o mesmo não pode ter cometido o crime que lhe foi imputado e pelo qual foi acusado (mal, porquanto na acusação diz-se que o arguido foi inquirido como testemunha) e, diga-se, bem absolvido.

O crime de falso testemunho pressupõe que o autor da declaração falsa se encontre investido em uma particular e precisa função processual: a de testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete» (inequivocamente, neste sentido cf. Medina Seiça, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo III, p. 463.

Isto porque o bem jurídico protegido com o crime é a realização da justiça como função do Estado e, nesse sentido, só quem assume uma qualidade processual (porque isso tem consequências para o funcionamento da «máquina» da justiça) pode ser responsabilizado pelas consequências da sua actuação.

O recorrente, naquela data, «prestou declarações» sem assumir qualquer papel processual, no sentido referido, sendo por isso essas declarações para todos os efeitos, não formais», no sentido de que não podem retirar-se delas qualquer consequência em termos de obstáculo ao desempenho da actividade judicial, nomeadamente que elas ponham em causa a realização ou administração da justiça.

Daí que falta, desde sempre, à factualidade imputada ao arguido um elemento típico do crime que lhe era imputado e que, em função da documentação existente nos autos que suportou a acusação e a decisão, nunca poderia existir. Estamos, por isso, no domínio de um crime impossível, porque não é (nem nunca foi) suportado num dos seus elementos típicos estruturais.

O arguido quando presta declarações (mesmo que na altura não fossem correspondente com a realidade) fê-lo numa veste processual não formal. A sanção a essa actuação, podendo existir, não assume no entanto uma natureza criminal.

Daí que não há crime de falsidade de testemunha na matéria de facto provada e mesmo no suporte acusatório que a sustenta.

Importa, além disso, sublinhar que as razões invocadas pelo Tribunal da primeira instância assumem igualmente uma pertinência inequívoca. Efectivamente se o arguido recorrente, quando prestou declarações o tivesse efectuado numa qualquer dimensão processual (testemunha, técnico, perito, assistente) e o OPC se apercebesse que os factos sobre os quais estava a prestar declarações configuravam um ilícito, naturalmente a título de suspeita, deveria imediatamente suspender tal acto e comunicar-lhe que seria constituido arguido, dando assim cumprimento ao que resulta do disposto no artigo 59º nº1 do CPP: “se durante qualquer inquirição feita a pessoa que não é arguido, surgir fundada suspeita de crime por ela cometido, a entidade que procede ao acto, suspende-o imediatamente e procede à comunicação e indicação referidas no nº2 do artigo anterior”.

Ora no caso repare-se que estava em causa o crime de detenção de arma proibida evidenciado pelas características do livrete entregue que o próprio (na altura) participante referiu ao OPC.

Daí que o comportamento adequado do Órgão de Policia Criminal seria, na altura, de suspender a diligência e despoletar os mecanismos com vista a constituir o declarante como arguido, com todas as consequências dai advenientes. Facto que o próprio Ministério Público mandou efectuar quando recebeu a participação.

O que não pode, de todo é usar essa «omissão», para posteriormente vir imputar-lhe um crime de «falso testemunho».

(iii) Da alteração dos factos.

O Ministério Público, recorrente, vem ainda numa última conclusão, invocar que «os factos em causa integram o crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo art. 256°, n° 1, al. d), do CP, e não o crime de falsidade de depoimento, previsto no art. 360°, n° 1, do CP(…) atendendo a que os factos supra enunciados seriam susceptíveis de integrar a prática de crime diverso, o que dita a agravação da moldura penal abstracta da pena, ao abrigo do art. l ai. f), do CPP, está em causa uma alteração substancial dos factos vertidos na acusação. Como tal alteração não poderia ser tomada em consideração para efeitos de condenação, a não ser que se mostrassem verificados os pressupostos vertidos no art. 359°, n° 3, do CPP, impunha-se dar cumprimento ao preceituado neste artigo».
No que à questão poderá interessar, em função doas conclusões, há que referir que segundo o artigo 256º n.º 1 alínea d) do Código Penal

“1- Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:

(…)

b) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante; ou

(…) é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

Protege-se neste amplo tipo legal de crime o bem jurídico da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório, no que respeita à prova documental, atribuindo a confiança na autenticidade e veracidade dos documentos social e juridicamente relevantes.

Segundo Helena Moniz, in Comentário Conimbricense, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 683, «a falsidade em documentos é punida quando se tratar de uma declaração de facto falso, mas não todo e qualquer facto falso, apenas aquele que for juridicamente relevante, isto é, aquele que é apto a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica».

Conforme se refere no Acórdão desta Relação de 2.3.2011, proc. nº 909/09.6TALRA.C1 (relator Calvário Antunes), em situação referente a uma participação de acidente efectuada por um arguido, «a função de apresentação de documentos, na sequência da participação do acidente, não é a de assegurar ou certificar, ela própria, a autoria do facto (condução), mas tão só a de fornecer um princípio de investigação. Assim, a atitude do arguido ao referir que era ele que conduzia, embora seja um facto falso relevante, porque levou a uma determinada actividade policial errada, certamente com custos, não é juridicamente relevante para a falsificação, na medida em que por si e autonomamente, não constitui, modifica ou extingue qualquer relação jurídica, pois não é idónea para provar facto juridicamente relevante - neste mesmo sentido, vide, Ac. do TRP, de 18/6/2003, in CJ, ano XXVII, Tomo III, pag 224».

Ora no caso dos autos a questão juridica é exactamente a mesma. Em declarações efectuadas pelo arguido perante a autoridade policial, o então participante (que não arguido nem testemunha) prestou declarações que não correspondiam à verdade. Verifica-se, por isso uma falsidade na declaração mas nunca uma falsificação de documento.

A conduta do arguido não preenche, claramente os elementos típicos do crime de falsificação de que o Ministério Público agora pretende ver como objecto de uma alteração da qualificação dos factos susceptível de ser levada em consideração pelo Tribunal.

Em síntese, pelas razões referidas, que em termos substancial são diferentes das alegadas na decisão sub judice, mas que levam à mesma decisão, mantém-se a absolvição do arguido e, por isso, julga-se improcedente o recurso.


III. DECISÃO

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto
Sem custas.
Notifique.


Mouraz Lopes (Relator)
Félix de Almeida