Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | EMÍDIO SANTOS | ||
Descritores: | EXTRAVIO DE CHEQUE | ||
Data do Acordão: | 03/27/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | CBV - AVEIRO | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ART. 32.º DA LUCC | ||
Sumário: | 1. O extravio de cheque constitui motivo legítimo para o titular da conta sacada se opor ao pagamento. 2. É necessário, no entanto, encontrar-se um ponto de equilíbrio entre o interesse do sacador em opor-se ao pagamento de um cheque perdido ou fraudulentamente subtraído, e a necessidade de proteger a fé pública do cheque enquanto meio de pagamento. 3. Tal equilíbrio depende dos seguintes requisitos: 1º) O banco sacado não tem o dever de averiguar se é exacta a alegação de extravio transmitida pelo titular da conta sacada; 2º) Depois de receber a comunicação de extravio, o banco sacado não tem de suscitar o “incidente de extravio”, dando conhecimento da comunicação ao apresentante do cheque para que este possa provar que é legítimo; 3º) O banco sacado tem o dever de se certificar que a comunicação foi efectuada pelo titular da conta sacada; 4º) O banco deve proceder ao pagamento se existirem sérios indícios de que o extravio comunicado é falso e foi invocado apenas para o emitente do cheque frustrar o seu pagamento. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
A..., Lda, com sede na rua de ..., ... Aveiro, propôs a presente acção declarativa com processo ordinário contra o Banco B... , SA, com sede na rua ..., Porto, pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de € 20 332,37 [vinte mil trezentos e trinta e dois euros e trinta e sete cêntimos], acrescida de juros de mora à taxa legal para os juros civis, desde a data da citação até integral pagamento. Para tanto alegou, em síntese, que forneceu mercadorias à sociedade C..., Lda; que esta sociedade entregou-lhe, para pagamento do preço das mercadorias, um lote de 9 cheques sacados sobre o B...; que os cheques foram apresentados a pagamento dentro dos oito dias seguintes à data da emissão neles aposta; que a ré recusou o pagamento deles, apondo, no verso, como causa da recusa, a indicação de “Extravio”; que a ré recusou o pagamento sem que tivesse recolhido indícios sérios do extravio dos cheques; que a autora sofreu, com a recusa de pagamento dos cheques, um prejuízo igual ao valor por eles titulado (€ 20 332,37). O réu contestou, concluindo pela improcedência da acção. Na sua defesa alegou que recebeu, no serviço B... Directo, uma chamada telefónica por intermédio da qual o Sr. D..., em representação contratual da C..., procedeu ao cancelamento, por motivo de extravio, de uma caderneta de 150 cheques; que procedeu ao cancelamento dos cheques em causa, em cumprimento das instruções recebidas; que dois dos cheques apresentados a pagamento pela autora foram devolvidos por falta de provisão; que os cheques em causa nos presentes autos não teriam sido pagos, ainda que não tivesse sido comunicado o extravio deles pois a conta sacada não tinha provisão; que o réu não poderá ser responsabilizado perante a autora pelo não pagamento dos cheques em causa nos autos, pois limitou-se a cumprir as instruções válida e eficazmente transmitidas pela sociedade C..., no âmbito do relacionamento contratual estabelecido com a mesma. No final da contestação, o Banco requereu a intervenção acessória, nos autos, da sociedade C... , Limitada. O chamamento foi deferido. Notificada da contestação, a autora reconheceu que dois dos cheques que havia apresentado a pagamento, um no montante de € 2 166,70 e outro no de € 3 281,52, haviam sido devolvidos por insuficiência de provisão, pelo que, em relação a eles, nenhuma responsabilidade se podia apontar à ré pela falta de pagamento. Em consequência, reduziu o pedido, deixando de reclamar os referidos montantes. O processo prosseguiu os seus termos e, a final, foi proferida sentença que, julgando a acção procedente, condenou o réu a pagar à autora a quantia de € 20 332,37, acrescida de juros de mora legais à taxa de 7%, desde a citação até integral pagamento. O réu não se conformou com a sentença e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo: Os fundamentos do recurso, expostos nas conclusões, foram os seguintes: A autora respondeu. Na resposta alegou, em síntese, que assistia razão à recorrente na parte em que arguia a nulidade da sentença por ter condenado em quantidade superior ao pedido; que devia manter-se a resposta dada ao ponto n.º 17 da base instrutória; que ao recusar o pagamento dos cheques, a recorrente violou o disposto no artigo 32º da Lei Uniforme sobre Cheques; que tal conduta ilícita e culposa foi causa directa e adequada à falta de pagamento daqueles títulos cambiários; que a título excepcional e por motivo de força maior é permitido ao banco aceitar a ordem de revogação, com isso afastando a ilicitude da sua conduta; que, sob pena de se fazer letra morta do artigo 32º da Lei Uniforme, impõe-se ao banco que tal faculdade seja condicionada à evidência de sérios indícios da justa causa invocada que o banco não pode deixar de aferir; que o banco tem o dever de direito, de boa fé, social e económico de salvaguardar a seriedade e a confiança na circulação do cheque perante terceiros, que extravasa o conteúdo obrigacional da convenção de cheque que forma com os seus clientes; que pela pública e notória frequência da prática do recurso à causa de extravio falsamente utilizada para justificação da revogação de cheques, o banco deve recolher o mínimo indício de seriedade da justificação de extravio que o titular da conta sacada lhe apresente; que não basta que o titular da conta sacada alegue um extravio do cheque, por mero contacto telefónico, impondo-se que o banco recolha o mínimo de prova, ainda que indiciária, que de tal argumento é verdadeiro; que não resultando provado que o recorrente tivesse recebido qualquer confirmação ou ordem escrita, tal como impôs ao ordenante do cancelamento que fizesse no dia seguinte, perante tal falta era expectável e normal que o recorrente suspeitasse da bondade da ordem recebida e da justa causa alegado tanto mais que – e isto é facto notório, infelizmente, no nosso país, o falso argumento de extravio é com regularidade utilizado na prática do giro bancário pelos emitentes de cheques como justificação para a sua revogação quando os não querem pagar; que viola os seus deveres mínimos de cuidado e actua ilicitamente o banco que, como fez o recorrente, recusa o pagamento de um cheque no período da sua apresentação, por motivo de extravio que não retém o mínimo de prova da veracidade de tal argumento. Antes de ordenar a subida dos autos ao tribunal da Relação, a Meritíssima juíza a quo corrigiu a sentença na parte em que condenou o réu no pagamento da quantia € 20 332,37, substituindo-a pela condenação do réu no pagamento da quantia de € 14 884,15. * As questões suscitadas pelo recurso são fundamentalmente as seguintes: 1. A de saber se a sentença condenou em quantidade superior ao pedido e se, por esta razão, enferma da nulidade prevista na alínea e), do n.º 1, do artigo 668º, do CPC; 2. A de saber se o tribunal a quo errou ao julgar não provado o ponto n.º 17 da base instrutória; 3. A de saber se a sentença violou o artigo 32º da Lei Uniforme sobre Cheques, e os artigos 483º, 487º, 497º, 559º, 804º e 806º, todos do Código Civil, e, em caso afirmativo, se deve ser revogada e substituída por outra que absolva o réu do pedido. * A primeira questão que importa solucionar é a de saber se a sentença condenou em quantidade superior ao pedido e se, por esta razão, enferma da nulidade prevista na alínea e), do n.º 1, do artigo 668º, do CPC. A resposta a esta questão é positiva. Com efeito, a sentença condenou o réu no pagamento da quantia pedida inicialmente [€ 20 332,37], depois de a autora haver reduzido o pedido para € 14 884,15 e de haver decisão, transitada em julgado, a considerar válida a redução. Ora, o n.º 1 do artigo 661º, do CPC, dispõe que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir e a alínea e), do n.º 1, do artigo 668º, do CPC, fere com a nulidade a sentença que ultrapassar estes limites. Sucede que a Meritíssima juíza do tribunal a quo, antes da subida dos autos ao tribunal da Relação, corrigiu a sentença no sentido de a condenação do réu passar a ser no montante de € 14 884,15. Desta forma, supriu a nulidade da sentença, como lhe era consentido pelos artigos 666º, n.º 2 e 668º, n.º 4, ambos do CPC. * A segunda questão que importa solucionar é a de saber se o tribunal a quo errou ao julgar não provado o ponto n.º 17 da base instrutória. Sob este número perguntava-se se, mesmo que aquelas instruções não fossem dadas [as instruções em causa são as dadas para o não pagamento dos cheques por motivo de extravio], os cheques não seriam pagos por falta ou insuficiência de provisão da conta sacada. Como se escreveu acima, o tribunal a quo julgou não provada esta alegação. No seu entender, os documentos de fls. 157 a 160 não permitiam tal conclusão, atento o saldo existente em 9 de Maio de 2006. O recorrente interpreta os documentos em sentido diferente. Alega que os cheques em questão foram apresentados a pagamento em datas posteriores a 9 de Maio de 2006, mais concretamente entre 11 de Maio de 2006 e 20 de Junho de 2006, e que o exame ao extracto de conta revela que a citada conta, após a execução do último lançamento a débito de 9 de Maio de 2006, veio a apresentar o saldo de € 42,96, não mais tendo tal conta apresentado saldo credor superior a tal montante. Constando do processo os elementos de prova que serviram de base à decisão do tribunal da 1ª instância, a alínea a), do n.º 1, do artigo 712º, do CPC, permite ao tribunal da Relação alterar a decisão de facto. O documento de fls. 157 a 160 tem natureza particular. A autoria dele, atribuída ao réu, não foi impugnada, pelo que, nos termos do artigo 376º, n.º 1, do Código Civil, faz prova plena das declarações atribuídas ao seu autor. As declarações dizem respeito aos movimentos e ao saldo relativos à conta n.º 3452096 – 000 – 00, à ordem da qual foram emitidos os cheques em causa nos autos, no período compreendido entre 1 de Abril de 2006 e 19 de Julho de 2006. Apesar de o documento não fazer prova de que os factos compreendidos nas declarações sejam verdadeiros - logo nesta parte, o documento está sujeito à livre apreciação do tribunal -, não temos razões para pôr em causa a exactidão desses factos, designadamente os movimentos e o saldo da conta, tanto mais que a autora não impugnou a exactidão deles. Tomando como verdadeiros os movimentos descritos no documento, bem como os sucessivos saldos que a conta foi tendo, verificamos que a conta, no período em que os cheques foram apresentados a pagamento, nunca teve saldo superior a € 42,96, manifestamente insuficiente para pagar os cheques em causa nos autos. Embora não se possa afirmar com toda a certeza que os cheques seriam devolvidos por falta de provisão, caso o réu não tivesse recusado o seu pagamento com fundamento na comunicação de extravio que lhe foi feita pela titular da conta, pode, no entanto, afirmar-se que isso seria muito provável. Ora, como observam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, página 420, a prova não “visa um estado de certeza lógica, absoluta”, “a prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”. Face ao exposto, considera-se que o documento de fls. 157 a 160 constitui prova suficiente da alegação vertida no ponto n.º 17 da base instrutória. Deste modo, modifica-se a resposta que lhe foi dada pelo tribunal a quo, julgando-se provada a respectiva alegação. Ainda em sede de facto cumpre dizer que deve considera-se provada, por acordo, a alegação do réu feita no artigo 27º da contestação, segundo a qual D...não confirmou por escrito a ordem telefónica transmitida. Segue-se do exposto que se consideram provados os seguintes factos: * Fixados os factos, importa passar ao conhecimento do recurso na parte em que versa sobre matéria de direito. Imputando o recorrente, à sentença, a violação de várias disposições legais, está naturalmente indicado que se comece por expor, ainda que de modo resumido, as razões que levaram a sentença a condenar o réu, ora recorrente, no pagamento à autora da quantia de € 14 884,15. Em sede de fundamentação de direito, a decisão recorrida começou por indicar que a questão suscitada pelo pedido era a de saber se “actuava de forma ilícita e culposa o Banco que recusava o pagamento de cheque, por ordem de cancelamento operada pelo sacador, nos oito dias subsequentes às datas apostas no título”. De seguida, indicou as seguintes normas pertinentes à resolução desta questão: o artigo 32º da Lei Uniforme sobre Cheques, o artigo 14º do Decreto n.º 13 004, de 12.01.1927, o artigo 8º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-lei n.º 316/97, de 19/11, e os artigos 483º e 487º, ambos do Código Civil. Como dizendo respeito à questão, invocou ainda o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2008, de 28 de Fevereiro de 2008, publicado no DR I Série de 4 de Abril de 2008. A partir das citadas normas afirmou que “o extravio seria, em princípio, justa causa de recusa de pagamento e este nunca seria um acto ilícito que o artigo 32º da LUCC proibisse por se não tratar de revogação”. “Todavia – continuou - o Banco só se exime de responder por perdas e danos se existirem sérios indícios de tanto, isto é, se, pelo menos, tendo recebido do sacador a informação de extravio, se inteirar, junto do portador, do motivo pelo qual este adquiriu o cheque, isto é, se der oportunidade ao portador de demonstrar que, quanto aos cheques cujo pagamento reclama, não poderia ter existido extravio porquanto existiu uma relação subjacente válida que justifica a detenção do cheque ou cheques. Não procedendo desta forma, o Banco que recusa sem mais o pagamento actua de forma ilícita e culposa, defraudando a confiança e fé pública que o sistema e o comércio jurídico depositam na circulação do cheque”. Continuando escreve: “…face à indicação do titular do cheque de que o mesmo foi extraviado, talvez se não exija que o Banco obtenha prova do extravio para recusar o pagamento nessa base, mas já será exigível que, sendo apresentado um cheque a pagamento, o Banco permita ao detentor demonstrar minimamente a legitimidade da detenção. Só actuando assim o Banco se exime da responsabilidade de ser, no fundo, colaborante com o sacador que, de modo fraudulento, dá por extraviados cheques que entregou para pagamento. E essa actuação bancária nem será impossível ou de difícil exequibilidade, sobretudo quando, como aqui sucede, existe documentação profusa relativa à relação comercial havida entre a autora e a titular da conta sacada, relação essa que o Banco poderia e deveria ter avaliado sendo que não deu oportunidade à autora para sustentar a sua posição de confiança de que os cheques que recebeu seriam pagos”. Seguidamente, aplicando as soluções expostas ao caso dos autos escreveu: “o réu, no caso dos autos, limitou-se a receber uma chamada telefónica de alguém (admite-se de quem poderia fazê-lo e nem é isso que está em causa pois não é daí que emerge o dano da autora) que afirmou que todo o lote de cheques fora extraviado, não constando qualquer referência à razão do extravio. Escassos dias após, ao banco apresenta-se a autora com diversos cheques datados sucessivamente, e o Banco não indaga se, afinal, os cheques não foram extraviados, como lhe foi transmitido, antes de recusar o pagamento”. Cremos que, por isso, está demonstrada a ilicitude e culpa, sob a forma de negligência, da entidade bancária ora ré, quanto aos cheques cujo pagamento recusou por extravio, pelo menos quanto aos primeiros sete cheques em causa, de modo que o banco, caso se verifiquem os demais requisitos da responsabilidade civil (para além da ilicitude e da culpa que já referimos) responderá por perdas e danos”. O recorrente opõe-se a esta fundamentação alegando, essencialmente, que a comunicação do extravio dos cheques era suficiente, por si só, para recusar o pagamento deles com esse motivo, não lhe cabendo indagar, junto do portador, da veracidade da comunicação, nem sindicar as razões que levaram a sua cliente a comunicar o extravio dos cheques. Como se vê, a resposta à questão de saber se a sentença violou as disposições indicadas pelo recorrente, passa pela resposta à questão de saber se o banco sacado deve recusar o pagamento de um cheque, apresentado a pagamento dentro do prazo de oito dias a contar do dia indicado como data da sua emissão, com base na comunicação de extravio que lhe foi feita pelo titular da conta sacada, ou se o banco, recebida a comunicação de extravio, tem o dever de a dar a conhecer ao portador e dar-lhe oportunidade de provar que é o legítimo possuidor do cheque. A Lei Uniforme Relativa aos Cheques não responde a estas questões. Com efeito, o parágrafo II do artigo 16º do Anexo II à Lei Uniforme ao dispor que “qualquer das altas partes contratantes tinha a faculdade de determinar as medidas a tomar em caso de perda ou roubo de um cheque e de regular os seus efeitos jurídicos”, aponta claramente no sentido de que o artigo 32º, parágrafo primeiro, da Lei Uniforme sobre Cheques, segundo o qual “a revogação do cheque só produz efeitos depois de findo o prazo de apresentação, não abrange a “revogação” que seja motivada pelo extravio dos cheques. Trata-se de entendimento afirmado, de modo inequívoco, em várias decisões da jurisprudência, como sucedeu no assento n.º 4/2000 publicado no DR I-A, de 17 de Fevereiro de 2000, e no acórdão uniformizador n.º 4/2008, publicado no DR I Série de 4 de Abril de 2008. Na doutrina cita-se Paulo Olavo Cunha que, em anotação ao acórdão n.º 4/2008, de 28/02/2008, Cadernos de Direito Privado, página 18, escreveu a este propósito: “Do referido artigo 32º resulta que, no decurso da apresentação do cheque a pagamento, o banco não pode recusar o seu pagamento, sendo a revogação do cheque eficaz decorrido esse prazo. Mas essa regra legal – … - deixa em aberto outras questões. Por outro lado, é omissa quanto a situações excepcionais que conduzam à sua derrogação, justificando a recusa de pagamento com base em justa causa;…”. Daí que a doutrina do acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2008, segundo a qual “uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29º da LUC, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na 1ª parte do artigo 32º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque nos termos previstos nos artigos 14º, nº 2, 2ª parte, do Decreto n.º 13 004 e 483º, n.º 1, do CC”, não seja aplicável ao caso, pois o que estava em causa no acórdão era a revogabilidade do cheque dentro do prazo de apresentação a pagamento previsto no artigo 29º da Lei Uniforme. Fora do direito cambiário, as disposições que aludem ao extravio do cheque também não respondem às questões acima enunciadas. Referimo-nos ao parágrafo único do artigo 14º do Decreto n.º 13 004, de 12 de Janeiro de 1927, e ao n.º 3 do artigo 8º do Decreto-lei n.º 454/91, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-lei n.º 316/97. A primeira das normas citadas normas, cuja vigência não é incontroversa, dispõe: “se, porém, o sacador, ou o portador, tiver avisado o sacado de que o cheque se perdeu, ou se encontra na posse de terceiro em consequência de um facto fraudulento, o sacado só pode pagar o cheque ao seu detentor se este provar que o adquiriu por meios legítimos”. A segunda das normas citadas está relacionada com a obrigatoriedade de a instituição de crédito sacada pagar, não obstante a falta ou insuficiência de provisão, qualquer cheque emitido através de módulo por ela fornecido de montante não superior a € 150. O n.º 3 do artigo 8º afasta a obrigatoriedade de pagamento quando existirem “sérios indícios de falsificação, abuso de confiança ou apropriação ilegítima de cheque”. Por seu turno, a jurisprudência tem dado respostas divergentes à questão. O acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 9/2008, publicado no DR, I Série, de 27 de Outubro de 2008, embora não tivesse objecto as questões acima enunciados – o acórdão pronunciou-se sobre a interpretação do artigo 11º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, uniformizando a jurisprudência, no sentido de que “verificados que sejam todos os restantes elementos constitutivos do tipo objectivo e subjectivo do ilícito, integra o crime de emissão de cheque sem provisão previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, a conduta do sacador de um cheque que, após a emissão deste, falsamente comunica ao banco sacado que o cheque se extraviou, assim o determinando a recusar o seu pagamento com esse fundamento” – referiu-se a elas como premissas da decisão final, nos seguintes termos: O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-04-2010, Processo n.º 4511/07.9TBLRA, publicado no sítio www.dgsi.pt/jstj, decidiu que “em qualquer caso, o banco sacado deve apreciar a comunicação do sacador, que só deverá aceitar se existirem indícios sérios do alegado vício”. Embora tenha entendido que não deva ir-se ao ponto de exigir do banco a prova efectiva da causa justificativa invocada pelo sacador, pois não era essa a sua vocação, isso não o eximia de agir com a máxima diligência, só aceitando os motivos justificantes para o não pagamento no período legal de apresentação, quando dispusesse dos referidos indícios sérios de que a situação comunicada pelo sacador se verificou ou, pelo menos, dadas as circunstâncias concretas de cada caso, tinha grande probabilidade de se ter verificado. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 19-05-2011, processo n.º 2978/08.7TJLSB, publicado no sítio www.dgsi.pt vai no mesmo sentido ao decidir que “a mera comunicação abstracta de extravio, sem uma mínima base factual explicativa feita pela sacadora (…), não pode ser considerada suficiente pelo Banco, para efeitos de preenchimento da aludida causa justificativa”. Já o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16 de Março de 2010, proferido no processo n.º 339/08.7TBSRE, também publicado no sítio www.dgsi.pt decidiu que a “informação de “extravio” prestada pelo sacador ao banco constitui motivo explícito bastante e sério para que este recuse o pagamento sem que lhe possa ser oposto que em face da eventual falta de provisão deveria exigir daquele maior informação por haver uma forte probabilidade de se não haver verificado essa anomalia”. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16 de Junho de 2009, proferido no processo n.º 5479/07.7TVLSB, publicado no sítio www.dgsi.pt, considerou “exagerada e estranha à vocação financeira e comercial de uma instituição bancária” a exigência ao banco para que investigasse se a alegação do sacador era verdadeira, “fazendo-o assumir a responsabilidade pela não detecção da falsidade de um invocado motivo”. Admitiu, contudo, que, num caso de alegado extravio ter como objectivo mascarar ou camuflar uma situação de falta de provisão, sendo o banco conhecedor da realidade, o pagamento do cheque fá-lo-ia incorrer em responsabilidade por perdas e danos”. Por último, o acórdão do Tribunal da relação do Porto de 16-03-2010, proferido no processo n.º 827/07.2TVPRT, também publicado no sítio www.dgsi.pt entendeu que, provando-se que havia sido falsa a comunicação de extravio ao banco sacado, a sua recusa em pagar os cheques com o fundamento que lhe foi comunicado, tornava-o responsável pelos prejuízos causados ao portador, pois tinha de se entender que a mesma configurava uma autêntica revogação da ordem de pagamento daqueles cheques, nos termos em que a mesma integrava a previsão do referido art.º 32º. Na doutrina, Paulo Olavo Cunha [Cheque e Convenção de Cheque, Almedina, páginas 622 e 623] sustenta que na pendência do prazo de apresentação a pagamento “para que o banco possa legitimamente recusar o pagamento é necessário que o sacador lhe forneça, oportunamente, prova suficiente do desapossamento, designadamente entregando-lhe cópia da declaração policial de perda ou furto do cheque”. Quanto à fundamentação legal desta interpretação, o citado autor vai buscá-la ao parágrafo único do artigo 14º do Decreto n.º 13004 de 12 de Janeiro de 1927. Da exposição acabada de fazer, pode afirmar-se, com segurança, que o extravio dos cheques constitui motivo legítimo para o titular da conta sacada se opor ao pagamento. É necessário, no entanto, encontrar um ponto de equilíbrio entre o interesse do sacador em opor-se expeditamente ao pagamento de um cheque que se perdeu ou que foi subtraído fraudulentamente e a necessidade de proteger a fé pública que deve merecer o cheque como meio de pagamento seguro. Por outro lado, é igualmente necessário tomar em conta que as instituições de crédito têm deveres para com os possuidores dos cheques que ultrapassam os que decorrem da relação com o cliente/sacador, deveres esses que decorrem quer da necessidade de defesa do cheque como meio de pagamento seguro quer do próprio Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, designadamente do artigo 73º, quando dispõe que as instituições de crédito devem assegurar, em todas as actividades que exerçam, elevados níveis de competência técnica, garantindo que a sua organização empresarial funcione com os meios humanos e materiais adequados a assegurar condições apropriadas de qualidade e eficiência. No entender deste tribunal, o equilíbrio entre estes interesses, susceptíveis de conflituar entre si, passam pelas seguintes soluções. Em primeiro lugar, não cabe ao banco sacado levar a cabo investigações destinadas a assegurar-se que os cheques se extraviaram, isto é, o banco sacado não tem o dever de averiguar se é exacta a alegação do titular da conta sacada segundo a qual o cheque se extraviou. Em segundo lugar, recebida a comunicação de extravio, não lhe cabe suscitar um “incidente de extravio”, dando conhecimento da comunicação ao apresentante do cheque e a oportunidade para provar que é o legítimo portador, decidindo, no final, se recusa ou se aceita o pagamento. Não vemos cobertura legal para esta solução. Em terceiro lugar, o banco tem o dever de se certificar da identidade de quem faz a comunicação do extravio, assegurando-se de que a comunicação foi efectuada pelo titular da conta sacada. Por último, o banco sacado deve rejeitar a oposição ao pagamento se existirem indícios sérios de que o extravio comunicado é falso e foi invocado apenas para o emitente do cheque frustrar o seu pagamento. Não se ignora que, ao permitir-se que o banco aceite a oposição ao pagamento sem estar comprovada a exactidão do motivo alegado como fundamento da oposição, está a permitir-se ao sacador opor-se ao pagamento mediante a alegação falsa de que o cheque se extraviou, frustrando, assim, a ineficácia da revogação do cheque durante o período de apresentação a pagamento, que decorre do artigo 32º, parágrafo primeiro da Lei Uniforme sobre Cheques. Neste caso, porém, o equilíbrio que acima se referiu é restabelecido através da tipificação como crime da oposição fraudulenta ao pagamento do cheque (artigo 11º, alínea b), do Decreto-lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-lei n.º 316/97, de 19 de Novembro e o acórdão n.º 9/2008, de 27/10/2008). Posto isto, vejamos as ilações a retirar para o caso vertente. Em primeiro lugar, não se acompanha a sentença na parte em que entendeu que a recusa do pagamento estava dependente da existência de indícios sérios do extravio dos cheques e na parte em que afirmou que depois de ter recebido a comunicação de extravio, cabia ao réu, ora recorrente, ter dado oportunidade à autora de demonstrar que era a legítima portadora deles e que os cheques não se haviam extraviado. Em segundo lugar, cabe averiguar se: 1. O réu, ora recorrente, se certificou que a comunicação de extravio procedia do titular da conta sacada; 2. Havia indícios sérios de que não tinha havido extravio dos cheques apresentados a pagamento. Com relevo para a resposta à primeira questão, provou-se que a titular da conta sacada aderiu ao serviço B... Directo; que este serviço permitia à titular da conta comunicar telefonicamente o extravio dos cheques; que nos termos do contrato de adesão ao serviço foi designado D..., como representante da titular da conta, para a prática de todos os actos que eram susceptíveis de ser praticados através do serviço; que dia 9 de Maio de 2006, foi recebida no serviço B... Directo uma chamada efectuada por D... que, em representação da titular da conta sacada, deu ordem de cancelamento, por motivo de extravio, dos cheques em causas nos presentes autos. Esta matéria de facto mostra que a comunicação do extravio foi efectuada por um dos representantes do titular da conta sacada. Apesar de o meio de comunicação utilizado – o telefone - não assegurar a identificação perfeita de quem estava a fazer a comunicação, a verdade é que esse meio estava previsto no quadro contratual que regia as relações entre o banco e a titular da conta sacada e foi utilizado por quem representava a titular da conta sacada. Assim, deve considerar-se que o réu cumpriu o dever de identificação do autor da comunicação de extravio. Quanto à existência de indícios sérios de que o facto comunicado (extravio) era falso, a matéria de facto não dá conta da sua existência. Face ao exposto, considera-se que, ao recusar o pagamento dos cheques por motivo de extravio, o Banco recorrente não violou o direito da autora nem qualquer disposição legal destinada a proteger os seus interesses; isto é, não agiu ilicitamente. Assim, não está constituída na obrigação de indemnizar a autora, pagando-lhe o montante dos cheques recusados por motivo de extravio. Deste modo, condenar o réu no pagamento do montante dos cheques, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 483º, n.º 1, do Código Civil, impondo-se a sua revogação. Afastada a ilicitude da conduta do réu, fica prejudicado o conhecimento da questão de saber se havia nexo de causalidade entre essa conduta e os danos invocados. * Decisão: Julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, absolvendo-se o réu do pedido. * As custas serão suportadas pela recorrida.
Emídio Snatos (Relator) António Beça Pereira Nunes Ribeiro |