Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
104/06.6PTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: PENA DE MULTA
CONVERSÃO
Data do Acordão: 02/10/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 490º DO CPP, 44º, 48º E N.º4 DO ART.º49º DO CP
Sumário: 1. A substituição da multa por trabalho coloca-se no decurso do prazo do pagamento da multa e a requerimento do condenado e não após o decurso daquele prazo sem o pagamento (art.º 490º do CPP).
2.A previsão do n.º4 do art.º49º reporta-se à pena de multa enquanto pena principal e não enquanto pena de substituição. Ou seja, para o incumprimento da pena de multa de substituição o Código prevê o cumprimento da pena originária de prisão (art.º 44/2); e para o incumprimento da pena principal de multa manda aplicar prisão subsidiária reduzida a 2/3 ( art.º 49/3).
3.No caso, o não cumprimento da prestação de trabalho é consequência da prática pelo condenado de novos crimes dolosos por que foi julgado e condenado em pena de prisão efectiva. Não há assim lugar à suspensão da execução da pena de prisão a que alude por remissão o n.º2, in fine, do art.º 44º.
Decisão Texto Integral: I-  Relatório
1.1- No processo sumário n.º…/06.6PTCRB do 1º Juízo Criminal de Coimbra foi julgado VA.
No processo assinalam-se as seguintes vicissitudes -
a) A 5/…/2006 o arguido foi condenado, por crime de condução sem habilitação legal, na pena de 6 meses de prisão convertidos em igual tempo de multa à taxa diária de €4 ( fls. 16/18);
b) Em Agosto e em Setembro de 2006 requereu o pagamento da multa em prestações ou o seu pagamento diferido (fls. 32/33 e fls. 40);
c) Em Outubro do mesmo ano requereu a substituição da pena de multa por dias de trabalho (fls. 52/53);
d) A 7/1/2007, ao abrigo do art.º 48º do Código Penal, o tribunal deferiu o pedido de substituição da pena de multa por dias de trabalho [a efectuar na freguesia de Eiras em tarefas de limpeza de limpeza, manutenção dos espaços verdes, serviços de cantoneiro, de pedreiro e pintor, às terças-feiras e quintas- feiras, entre as 8H30 e as 12H30 as 14H00 e as 17H00, num total de 253 horas (despacho de fls. 67)]. O despacho foi notificado ao arguido e seu defensor a 15/1/2007 (fls. 69/70).
e) Por acórdão do STJ de .../…/2008, no processo ../07.0PECBR, por factos que praticou entre os dias 16 e 23 de Janeiro de 2007, o arguido ficou definitivamente condenado em 5 anos e 6 meses de prisão [pena única decorrente do cúmulo jurídico das penas nele aplicadas por seis crimes de roubo e um crime de ameaças (fls. 168 a 213)].
f) Face a esta nova condenação o tribunal revogou a pena de prestação de dias de trabalho e ordenou que o arguido cumprisse a pena de prisão que lhe fora aplicada neste processo.
1.2- O teor do despacho (fls. 215/217) é o seguinte – “VA… foi, por sentença de fls. 16 e segs., condenado pelo crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3/2 do DL 2/98 de 3/1, na pena de 6 meses de prisão substituídos por igual período de multa (…); não sendo paga a pena de multa ( de substituição ) cumpriria a pena de prisão aplicada.
Requereu e foi-lhe deferida a substituição da pena de multa por prestação de trabalho, fixado em 235 horas. Esta decisão foi-lhe notificada a 15.1.2007 ( fls. 69 e 70 ).
Por decisão proferida a 24.01.2007 no Inquérito ../07.0PECBR, após 1.º interrogatório judicial foi-lhe aplicada a medida de prisão preventiva (fls. 77 e 93 ) antes de cumprir qualquer hora de trabalho ( cfr. fls. 77 ).
Após dedução de acusação e realização de julgamento no Proc. Comum Colectivo n.º …/07.0PECBR da 1.ª Secção da Vara Mista de Coimbra, foi condenado na pena de 5 anos e 6 meses de prisão por práticas criminais referentes ao período de 16.01.2007 a 23.01.2007.( cfr. fls. 170 e segs. ), prevendo-se o termo da pena para 23.07.2012 ( cfr. fls. 147/8 ).
O MP promove a revogação da pena de prestação de trabalho e o cumprimento da pena de prisão aplicada (fls. 150/1).
Notificado para se pronunciar, o arguido respondeu, alegando que não chegou a cumprir a pena de prestação de trabalho por ter sido preso preventivamente à ordem do processo onde neste momento cumpre pena de prisão efectiva, pelo que foi objectivamente impossível o cumprimento das horas de trabalho. Assim como lhe era impossível o pagamento da multa por a sua situação económica não o permitir nem antes em liberdade e muito menos agora detido por ausência de rendimentos ou bens penhoráveis. É de aplicar ao caso o art.º 49/3 nos termos do art.º 43/ 2 ( 2.ª parte) ambos do Cód. Penal. Conclui que o não pagamento da pena de multa não é imputável ao arguido e, em consequência, requer a suspensão da execução da prisão principal ( cfr. fls. 155 e segs. ).
O MP manteve o promovido ( cfr. fls. 158 ).
Cumpre apreciar e decidir.
Artigo 49.º do Cód. Penal - « 1. Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão, não se aplicando, para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constante do n.º 1 do art.º 41.º.
2. O condenado pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado.
3. Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa não lhe é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa...
4. O disposto nos n.ºs 1 e 2 é correspondentemente aplicável ao caso em que o condenado culposamente não cumpra os dias de trabalho pelos quais, a seu pedido, a multa foi substituída. Se o incumprimento lhe não for imputável, é correspondentemente aplicável o disposto no número anterior».
Do exposto supra resulta, ostensivamente, que o arguido não cumpriu a pena de prestação de trabalho (substitutiva) porque se dedicou à prática de crimes depois de ter sido notificado do deferimento da substituição da pena de multa por prestação de trabalho (…) razão pela qual lhe foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva e posteriormente a pena de prisão que se encontra a cumprir, sendo, por isso, tal conduta considerada culposa.
Face ao exposto e nos termos do preceito legal citado, revoga-se a pena de prestação de trabalho. O art.º 43/2 do Cód. Penal estipula que “Se a multa não for paga, o condenado cumpre a pena de prisão aplicada na sentença. É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 3 do art.º 49.º.”
“Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa não lhe é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa...” - n.º 3 do art.º 49.º do Cód. Penal.
Uma vez que o arguido requereu e viu substituída a pena de substituição de multa por trabalho, revogada esta terá de cumprir a pena principal de prisão. Isto por força do art.º 49/4 do Cód. Penal. Efectivamente este preceito legal remete para os seus n.ºs 1 e 2 – cumprimento da prisão subsidiária –, no caso de incumprimento culposo dos dias de trabalho por parte do arguido.
Ora, nos casos em que a pena de multa substituída não é pena principal mas de substituição (como é o que nos ocupa), o incumprimento da pena de substituição (de prestação de trabalho) não dá lugar à aplicação da pena de prisão subsidiária mas sim ao cumprimento da pena de prisão aplicada.
Admitir que nestes casos ao arguido poderia ser-lhe aplicada, agora, a pena de prisão subsidiária era violar o art.º 49/3 do Cód. Penal, que apenas admite a suspensão da prisão caso o arguido prove que a razão do não cumprimento da pena de substituição não lhe é imputável.
Contrariamente ao exigido pelo referido preceito, a razão do não cumprimento da pena de substituição é-lhe imputável. Neste contexto terá de cumprir a prisão aplicada, o que se determina com o desconto legal de 1 dia ( art.º 80/1 do CP).
2- Deste despacho recorre o condenado, concluindo –
1) O recurso é interposto de despacho que determinou o cumprimento da pena de prisão aplicada na sentença, por imputar ao arguido falta culposa no incumprimento do pagamento da pena de multa de substituição.
2) O art.º 43/2 manda aplicar tão só o art.º 49/3 do Código Penal que confere ao condenado a possibilidade de suspensão de execução da pena principal , caso prove que o não pagamento da multa lhe não é imputável .
3) Resta perguntar qual o alcance dessa imputabilidade: se se deve imputar ao arguido todo e qualquer comportamento culposo  ou apenas o comportamento directa, objectiva e causalmente adequado  a eximir-se ao pagamento da multa . Em suma, o facto de ter dinheiro e não querer pagar.
4) O facto do arguido não cumprir a prestação de trabalho a favor da comunidade por ter sido preso à ordem doutro processo, implica apenas a revogação dessa pena de trabalho a favor da comunidade e o cumprimento da pena de substituição.
5) Só o incumprimento culposo da pena de multa é que levará à execução da pena de prisão.
6) Provada a ausência de meios económicos, o arguido não deve cumprir a pena de prisão aplicada; esta deve ser-lhe suspensa já que não pagou a multa por falta de meios [económicos] para o fazer.
7) Está vedado ao julgador concluir que o não cumprimento culposo da pena de trabalho a favor da comunidade  em substituição da pena de multa equivale , sem mais, ao não cumprimento culposo da pena de multa.
8) Tal concepção redunda na apologia de que caso o arguido não tivesse cometido tais crimes, teria eventualmente  trabalho e dinheiro para pagar a multa.
9) A revogação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade pelo cometimento de novos crimes, deve repristinar a anterior condenação em multa  de substituição  e só o incumprimento culposo desta determinará o cumprimento da pena de prisão.
10) O juiz lança mão do art.º 49/4 que no caso não é de aplicar pelo que vai dito em 2).
11) Como a sentença substituiu a pena de prisão por multa, então não pode agora fazer-se um juízo retrospectivo de que a pena de multa de substituição não acautela as necessidades de prevenção.
12) Foram violados os art.ºs 43/2, 49/3 do Código Penal e o art.º 29/4 da Constituição da República Portuguesa.
13) Devendo julgar-se que o não pagamento da multa de substituição não é de imputar ao arguido pelo que deve ser suspensa a execução da pena de prisão principal.       
  3- Respondeu-lhe o Ministério Público no sentido da sua improcedência, no que foi secundado pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto.
4- Colheram-se os vistos. Cumpre apreciar e decidir!

II- Apreciação –
1.1- Antes do mais diga-se que tratando-se dum processo sumário coloca-se a questão da recorribilidade do despacho face à estatuição do art.º 391 do Código de Processo Penal segundo o qual «em processo sumário só é admissível recurso da sentença ou de despacho que puser termo ao processo».
Parece-nos, contudo, que a finalidade do preceito é obter uma sentença rápida, sem entraves processuais emergentes de recursos. Mas obtida a sentença, cremos que a finalidade do preceito se esgotou, passando a reger o art.º 399º do mesmo diploma que consagra a regra geral da recorribilidade dos despachos judiciais.
1.2- A segunda clarificação impõe-se face à alteração do Código Penal pela Lei 59/2007 de 4 de Setembro.
Para compreensão dos raciocínios e remissões que se fizerem para normas legais, estas são as do Código Penal na versão de 1995. Efectivamente, foi na vigência do seu regime que se sentenciou o arguido, se substituiu a pena de prisão por multa (art.º 44º) e se substituiu esta por dias de trabalho (art.º 48º).
A nosso ver o seu regime penal substantivo deve ser aplicado em bloco, a não ser que o novo regime de execução se revelasse mais favorável ao arguido.
2.1- Nos termos do art.º 44º a pena de prisão aplicada foi substituída por igual tempo de multa. E a requerimento do condenado o tribunal substituiu esta pena de multa por dias de trabalho.
A substituição da multa por dias de trabalho ainda é uma forma ou modo de pagamento da pena de multa.
Afirma Maria João Antunes [Consequências Jurídicas do Crime /Notas complementares para a cadeira de Direito e Processo Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2006/2007] que a prestação de trabalho deixou de ser uma sanção para passar a ser uma forma de cumprimento da pena de multa a requerimento do condenado.
Aí também afirma que a execução da pena de multa de substituição pode ocorrer por duas formas: por pagamento voluntário ou por prestação de trabalho[1].
Efectivamente, diremos nós agora, a questão da substituição da multa por trabalho coloca-se no decurso do prazo do pagamento da multa e a requerimento do condenado e não após o decurso daquele prazo sem o pagamento (art.º 490º do CPP).
2.2- Assentemos, pois, que a prestação de trabalho prevista no art.º 48/1 é ainda um modo de pagamento da multa.
Mas ao voltar a delinquir e a ser preso o arguido inviabilizou este modo de pagamento da multa, assente também, como ele próprio o afirma, não estar ao seu alcance outro modo de pagamento.
Por outras palavras, o arguido colocou-se por sua vontade em situação de não poder pagar a multa por prestação de trabalho que para o efeito lhe foi obtido junto da freguesia de Eiras. Efectivamente antes mesmo da prática dos novos crimes o condenado sabia da ocorrência desta substituição.
Consequentemente, rege no caso o n.º2 do art.º 44º segundo o qual “Se a multa não for paga o condenado cumpre a pena de prisão aplicada na sentença”.
A previsão do n.º4 do art.º49º reporta-se, a nosso ver, à pena de multa enquanto pena principal e não enquanto pena de substituição. Ou seja, para o incumprimento da pena de multa de substituição o Código prevê o cumprimento da pena originária de prisão (art.º 44/2); e para o incumprimento da pena principal de multa manda aplicar prisão subsidiária reduzida a 2/3 ( art.º 49/3).
2.3- Ainda assim, poder-se-á suspender a pena originária de prisão nas mesmas condições em que se pode suspender a execução da pena de prisão subsidiária da pena principal de multa – cfr. o n.º3 do art.º 49º para o qual «correspondentemente» se remete o n.º2 do art.º 44º.
Efectivamente, o art.º 49/3 estatui que «Se o condenado provar que a razão do não pagamento lhe não é imputável, pode a execução da prisão da prisão subsidiária ser suspensa, por um período de 1 a 3 anos desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro. Se os deveres ou regras de conduta não forem cumpridos, executa-se  a prisão subsidiária; se o forem, a pena é declarada extinta».
Ora, já se viu que a não prestação de trabalho é de imputar à prática pelo condenado de actos voluntários e ilícitos, a saber, a prática de novos e graves crimes dolosos por que foi julgado e condenado novamente em pena de prisão efectiva.
O recorrente parece pretender negar a relação de causa a efeito entre a prática dos novos crimes e a impossibilidade da prestação de trabalho como forma do pagamento/cumprimento da multa.
Contudo essa relação é apodíctica pois que se a sua prisão é um efeito necessário dessa prática voluntária de novos crimes, esta constitui ainda a causa da impossibilidade daquele cumprimento/pagamento. 
Consequentemente não cabe no caso a previsão legal da suspensão da pena de prisão a que alude por remissão o n.º2, in fine, do art.º 44º.
Mas mesmo que o fosse, note-se que o preceito [ art.º 49/3] reza que “pode a execução ser suspensa”, o que impõe ao julgador um juízo de prognose favorável à suspensão da execução da pena de prisão.
Ou seja, ao prever a mera possibilidade de suspensão condicionada da pena de prisão, o preceito coloca o tribunal perante a necessidade da formulação dum juízo de prognose quanto à suspensão.
Ora esse juízo é no caso seguramente negativo, pois que na base da decisão de suspensão da execução da pena de prisão estará sempre uma esperança fundamentada de que o condenado sentiu a condenação como uma advertência solene, não vindo a cometer novos crimes.
Mas pela nova condenação em 5 anos e 6 meses de prisão por factos cometidos posteriormente à condenação sofrida neste processo demonstrado ficou que o arguido ainda não se consciencializou da necessidade dum comportamento conforme com os valores essenciais criminalmente tutelados[2]. Consequentemente, não seria de lhe suspender a execução da pena.

III- Decisão –
Termos em que se tem o recurso do arguido por improcedente.
Custas a cargo do recorrente, com a taxa de justiça se fixa em 3 UCs .
Coimbra,     
       
            


                        [1] ob. cit. pp. 57.
[2] De resto, como refere Figueiredo Dias in Direito Penal Português/ As Consequências Jurídicas do Crime, pp. 344 §520, «A suspensão da execução da pena não deve ser decretada mesmo em caso de conclusão do tribunal por um prognóstico favorável se a ela se opuserem considerações de prevenção geral sob a forma de exigência mínima e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico».