Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
156/19.9T8OHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
ACOMPANHANTE
NOMEAÇÃO
Data do Acordão: 11/03/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - O.HOSPITAL - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS138, 140, 143, 146 CC
Sumário:
I – O acompanhante ao qual se referem os artigos 138.º e seguintes do Código Civil – maior acompanhado –, deve ser alguém em quem o acompanhado deposite confiança e este último, se as suas faculdades mentais lhe permitam fazer tal avaliação, é a pessoa melhor colocada para saber em quem confia.

II – A dignidade da pessoa implica que se respeite a sua vontade quanto aos aspetos da sua vida privada, salvo se se mostrar que a pessoa, em relação a esse ato de vontade, já não tem capacidade para compreender e avaliar a realidade que o cerca.

III - Tendo o Requerido declarado na contestação, através do defensor nomeado, que não tem bom relacionamento com a Requerente, sua esposa, a qual pretende ser nomeada sua acompanhante, e que não quer que ela seja nomeada para esse cargo, tal declaração é, em regra, suficiente para impedir que essa pessoa seja nomeada acompanhante.

Decisão Texto Integral:







I. Relatório

a) A recorrente M (…) instaurou a presente ação com processo especial (maior acompanhado), dirigida ao requerido A (…), seu marido, residente no Lar (…), (...).

Alegou, em síntese, que é casada com o requerido sob o regime de separação de bens e que apresentou queixa contra o requerido por violência doméstica em 20 de novembro de 2017, porquanto aquele apresentava comportamentos de agitação, agressividade e delírio, tendo o exame pericial concluído pela sua inimputabilidade, sendo certo que efetivamente já não tem autonomia sobre a sua pessoa e capacidade para gerir ou dispor dos seus bens.

Pediu a sua nomeação como acompanhante, por ser a familiar mais próxima do requerido e quem o visita regularmente. Considera que poderá prover às necessidades do requerido no que respeita a higiene, alimentação e consultas médicas.

O requerido, através do seu defensor nomeado nos autos contestou, referindo, em síntese que não tem bom relacionamento com a Requerente, que não autoriza a requerida a apresentar a presente ação, e que em todo o caso, uma vez que tem três filhos maiores – J (…), M (…) e M (…) – não pretende que seja a requerente nomeada para acompanhante, considerando ainda que a requerente é uma pessoa que não tem plena capacidade para reger a sua própria pessoa e os seus bens.

No final foi proferida sentença com este dispositivo:

«Nestes termos, julga-se procedente por provada a ação e, em consequência decide-se:

1. Determinar o acompanhamento do beneficiário A (…), atribuindo ao acompanhante, as seguintes medidas de acompanhamento:

i) poderes de representação geral do beneficiário;

ii) poderes de representação especial, concretamente os de, em substituição do beneficiário, realizar os atos necessários à gestão imediata dos bens do beneficiário, proceder à abertura de contas bancárias em nome do beneficiário, receber a pensão de invalidez do beneficiário, por forma a poder custear as despesas diárias do beneficiário e exclusivamente para este fim;

iii) administração total dos bens do beneficiário;

iv) autorização prévia para a prática de atos médicos ou outros que careçam de consentimento informado, no que se inclui manter o acompanhamento médico regular junto dos Médicos Assistentes de Neurologia e Medicina Geral e Familiar e cumprir a medicação prescrita;

2. Fixar em janeiro de 2018 a data a partir da qual se mostrou necessária a medida em causa;

3. Nomear para seu acompanhante, J (…),filho do beneficiário, residente (…)França;

4. Fixa-se o regime livre de visitas e contactos entre acompanhante e acompanhado, contudo tais visitas ou contactos deverão ocorrer, pelo menos, com uma periodicidade mensal.

5. Nomear para integrar o conselho de família, M (…) e M (…) filhas do beneficiário;

6. Estabelecer o prazo de cinco anos para a revisão oficiosa da medida de acompanhamento (artigo 155.º do Código Civil);

7. Transitado, comunique-se, nos termos do disposto nos artigos 1920.º-B do Código Civil, aplicável «ex vi» artigo 902.º nº 2 e 3, do Código de Processo Civil, dispensando o

8. Consigna-se que o maior acompanhado não outorgou testamento vital nem procuração para cuidados de prestação de saúde (artigo 903.º do Código de Processo Civil);

9. Consignar que, para os efeitos do disposto no artigo 2189.º, alínea b) do Código Civil, o beneficiário é incapaz de testar;

10. Consignar que, para os efeitos do disposto no artigo 1601.º, alínea b) do Código Civil, a presente decisão de declaração de situação de acompanhamento, constitui impedimento dirimente absoluto;

11. Consignar que, para os efeitos do disposto no artigo 2.º, alínea b) da Lei 7/2001 de 11 de maio, a situação de acompanhamento de maior, ora declarada, impede a atribuição de direitos ou benefícios, em vida ou por morte, fundados na união de facto;

12. Consignar que, para os efeitos do disposto no artigo 6.º n.º 2 da Lei 32/2006 de 26 de julho, a situação de acompanhamento de maior, ora declarada, veda o recurso a técnicas de procriação medicamente assistida;

13. Consignar que, para os efeitos do artigo 4.º, nº 1, do Decreto-Lei 272/2001 de 13 de outubro, o acompanhado não pode aceitar ou rejeitar liberalidades, a seu favor;

14. Consignar que a situação de acompanhamento ora declarada não faculta o exercício direto de direitos pessoais, nos termos do artigo 5.º, nº 3, da Lei de Saúde Mental;

15. Consignar que, para os efeitos do artigo 13.º da Lei de Saúde Mental, ocorre restrição de direitos pessoais, com a presente declaração da situação de acompanhamento, pelo que o acompanhante tem legitimidade para requerer as providências previstas no referido diploma legal.

Nos termos do artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, fixa-se à causa o valor de €30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo).

Sem custas (artigo 4.º, nº 1, alínea l), do Regulamento das Custas Processuais, na redação da L 41/2018 de 14 de agosto) …».

b) É desta decisão que vem interposto recurso por parte da requerente M (…), cujas conclusões são as seguintes:

(…)

c) Contra-alegou a Exma. Magistrada do Ministério Público, que concluiu nestes termos:

(…)

II. Objeto do recurso.

Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões que este recurso coloca são as seguintes:

1 – Em primeiro lugar colocam-se as questões relativas à impugnação da matéria de facto.

A Recorrente pretende ver declarados não provados os seguintes factos provados:

«23. Desde o final do verão de 2017, o relacionamento conjugal da requerente e do requerido começou a deteriorar-se.

24. Em janeiro de 2018, os filhos do requerido deslocaram-se a Portugal para se inteirarem pessoalmente sobre o estado do seu pai e aperceberam-se de que este não se encontrava bem cuidado, tanto ao nível de higiene e alimentação, como de saúde, e que a requerente não tinha qualquer preocupação com o requerido, sendo a relação entre ambos muito conflituosa.

25. A requerente administrava-lhe medicação que não estava correta.

29. Os filhos do requerido fazem deslocações periódicas e habituais a Portugal.

30. Das vezes que a requerente esposa visita o requerido no Lar, este fica muito agitado e nervoso».

2 – Em segundo lugar, pretende ser ela a pessoa nomeada para o cargo de acompanhante do requerido, ou, caso assim não se entenda, que possa a mesma integra Conselho de Família.

III. Fundamentação

a) Impugnação da matéria de facto

Como se referiu, a Requerente pretende ver declarados não provados os factos que a seguir se indicam.

Facto provado 23 «Desde o final do verão de 2017, o relacionamento conjugal da requerente e do requerido começou a deteriorar-se».

Quanto a este facto dado o seu grau de abstração, de falta de enraizamento em factos concretos, cumpre retirá-lo da matéria de facto porque não se consegue ter uma ideia a que tipo de factos se refere.

Facto provado 24 «Em janeiro de 2018, os filhos do requerido deslocaram-se a Portugal para se inteirarem pessoalmente sobre o estado do seu pai e aperceberam-se de que este não se encontrava bem cuidado, tanto ao nível de higiene e alimentação, como de saúde, e que a requerente não tinha qualquer preocupação com o requerido, sendo a relação entre ambos muito conflituosa».

Quanto a este facto cumpre apenas retirar este segmento «… alimentação… a requerente não tinha qualquer preocupação com o requerido, … muito …»

Quanto ao resto, resultou com a necessária certeza dos depoimentos da testemunha (…), filho do requerido, da testemunha (…), filha do requerido e da testemunha (…) (gestor do lar).

O filho do requerido referiu que veio a Portugal na companhia das irmãs de propósito para se inteirarem da situação em que o pai se encontrava, o que sucedeu em fevereiro de 2018, tendo dito que quando chegou verificou que  o pai cheirava mal (minuto 7:07), quase não podia andar (minuto 7:19) e tinha dificuldades em falar; tinha muita dificuldade em ir para um lado qualquer (minuto 15:33), estava doente, estava para morrer (minuto 15:49), referindo ainda que (minuto 15.57) havia uma diferença enorme nele desde agosto até fevereiro, referindo-se a testemunha à sua anterior estadia no país, em férias.

A testemunha (…), filha do requerido, também referiu que quando chegou com o seu irmão, o seu pai (minuto 5:05) estava um velhote, nem lhe parecia o seu pai, estava sujo.

A testemunha (…) (gestor do Lar) também referiu (minuto 4.51) que o requerido quando entrou no lar ia desmazelado e com falta de higiene.

Não há depoimentos em sentido contrário a estes e a convicção não tem dificuldades em formar-se em tal sentido porque estando o requerido a viver apenas com a requerente, sendo pessoas com idade já avançada, pode ocorrer e ocorre com alguma frequência que pessoas nestas condições, nem todas, é sabido, têm muitas dificuldades em cuidar de si mesmos e ainda mais para cuidar dos outros.

Prova-se que a relação entre ambos era conflituosa porquanto é facto certo que a requerente tinha levantado 23.000,00 euros da conta comum e tinha-os colocada numa conta aberta só em seu nome e que tal facto, segundo o depoimento do filho foi motivo para o seu pai se decidir pelo divórcio, tendo o mesmo referido a este respeito (minuto 28:13) que quando o seu pai se quis divorciar lhe disse que não queria mais nada com aquela mulher e que ele estava convencido que tinha sido a questão do dinheiro que lhe fez perder a confiança nela, ele falava-lhe que a esposa lhe roubava dinheiro.

E além disso, a testemunha (…) também disse (minuto 6.11) que o requerido lhe dizia que a mulher lhe tinha roubado dinheiro e que o requerido (minuto 6.25) ficava incomodado com a visita da mulher porque ela lhe falava mal das filhas.

Neste aspeto a testemunha (…) (assistente social) também referiu que ao princípio quando a esposa o visitava ficava muito nervoso e ao outro dia ficava doente, com diarreia, nervoso, agitado (minuto 06:40).

Retira-se, por conseguinte, destes depoimentos que na altura em que os filhos do requerente vieram a Portugal vieram os três ao mesmo tempo e numa altura do ano inabitual porque o fizeram precisamente para verificar em que estado o pai se encontrava, o que mostra que eles tinham informação prévia negativa a tal respeito, caso contrário não tinham vindo os três nessa altura do ano e que a relação entre o casal não era pacífica.

Mas na parte da alimentação nada de concreto foi referido e também não se pode afirmar que a requerente nãos e preocupasse com o requerido. Se se preocupava ou não preocupava não pode ser afirmado só pelo aspeto apresentado por alguém, porquanto a falta de cuidado pode ter como causa não a vontade de não cuidar, mas o não saber ou o não ser capaz.

Por conseguinte, o facto provado 24 fica com esta redação:

«Em janeiro de 2018, os filhos do requerido deslocaram-se a Portugal para se inteirarem pessoalmente sobre o estado do seu pai e aperceberam-se de que este não se encontrava bem cuidado ao nível de higiene e saúde, sendo a relação entre o casal conflituosa».

Facto provado 25. A requerente administrava-lhe medicação que não estava correta.

Muito embora o filho do requerente tenha referido que a requerente dava uma dose de medicação mais alta ao seu pai que a prescrita na receita, também é certo que não temos mais elementos a este respeito.

Ora, sem afirmar que a testemunha referiu um facto falso, não há elementos para verificar se tal facto ocorreu mesmo até porque não foi constatado pessoalmente pela testemunha.

Além disso mesmo que tivesse existido um engano, um só caso não faz uma regra.

Ou seja, não há prova suficiente para declarar tal facto como provado, pelo que será eliminado.

Facto provado 29 «Os filhos do requerido fazem deslocações periódicas e habituais a Portugal».

Este facto resultou provado através dos depoimentos dos próprios filhos que referiram virem mais de uma vez por ano a Portugal, em regra no período do verão, o que é habitual suceder com imigrantes em países europeus e que têm os pais já idosos em Portugal.

Mantém-se, por isso, o facto.

Facto provado 30 «Das vezes que a requerente esposa visita o requerido no Lar, este fica muito agitado e nervoso».

Este facto resultou provado pelos depoimentos das testemunhas (…)mas com o esclarecimento que isso ocorreu no início, não no presente.

Com efeito, a testemunha (…) referiu (minuto 6:40) que ao princípio o requerido ficava muito nervoso com a visita da requerente e ao outro dia ficava por vezes doente, com diarreia, nervoso, agitado, mas agora isso já não ocorre.

A testemunha (…)referiu (minuto 6.11) que o requerido dizia que a mulher lhe tinha roubado dinheiro e (minuto 6.25) ficava incomodado com a visita da mulher porque ela lhe falava mal das filhas dele.

Cumpre retirar, porém, o quantificador «muito».

O facto ficará com este teor:

«No início, quando a requerente esposa visita o requerido no Lar, início, este fica muito agitado e nervoso».

b) 1. Matéria de facto – Factos provados

1. O requerido nasceu no dia 28 de outubro de 1933.

2. O requerido tem três filhos: J (…) nascido em 9 de abril de1957; M (…) nascida em 12 de setembro de 1959; M (…) nascida em 1 de agosto de 1966, todos residentes em França.

3. Desde o dia 30 de janeiro de 2018 que o requerido se encontra a residir na Residencial (…), em (...).

4. Sabe dizer o seu nome, mas desconhece a data de nascimento e a sua idade.

5. Consegue ler, mas não interpretar.

6. Efetua cálculos simples com muita dificuldade.

7. Não efetua compras.

8. Não confeciona refeições.

9. Não consegue vestir-se, lavar-se, locomover-se, ou alimentar-se sozinho.

10. O requerido desconhece o local onde se encontra.

11. Desconhece a hora, o dia, mês e ano em que se encontra.

12. Na informação clinica datada de 23.02.2018, pode ler-se: «(…) Desde dezembro de 2014 que o requerido apresentava um quadro de deterioração cognitiva multidomínios, com particular enfoque na memória episódica (imediata e diferida) o que era sugestivo da doença de Alzheimer (…)».

13. Consta do parecer psiquiátrico-forense datado de 3.10.2019, que: «(…) o requerido é portador de um síndrome demencial.

14. Tal quadro clínico incapacita-o para a realização dos atos da vida quotidiana desde o inicio de 2018.

15. A condição de saúde do beneficiário é permanente e irreversível;

16. Consta do parecer psiquiátrico-forense datado de 3.10.2019, que: «(…) o requerido necessita que lhe seja nomeado um acompanhante legal para gerir os seus bens ou o seu património, celebrar contratos, deslocações, cuidar da sua pessoa e das suas relações, higiene, apresentação e saúde. Não está capaz de decidir sobre as suas relações afetivas, local de residência, votar, elaborar testamento ou prestar declarações em tribunal».

17. Em virtude da sua condição de saúde, o beneficiário depende permanentemente de terceiros para a preparação da alimentação, lavá-lo, vesti-lo, movimentar-se, e para as demais atividades básicas do quotidiano, não sendo capaz de satisfazer as suas necessidades básicas de vida diárias.

18. Não tem discernimento para efetuar negócios correntes, como comprar bens de consumo ou fazer pagamentos correntes ainda que de reduzido valor.

19. O requerido não tem Testamento Vital registado ou procuração para cuidados de saúde.

20. O beneficiário recebe uma reforma mensal de invalidez no montante de cerca de €1.300,00, e possui depósitos em conta bancária.

21. O beneficiário é casado em segundas núpcias e no regime de casamento da separação de bens, com a requerente M (…) tendo contraído matrimónio no dia 5 de agosto de 2000.

22. A Requerente, presentemente com 67 anos de idade, reside na Rua (…) Seia.

23. [suprimido].

24. Em janeiro de 2018, os filhos do requerido deslocaram-se a Portugal para se inteirarem pessoalmente sobre o estado do seu pai e aperceberam-se de que este não se encontrava bem cuidado ao nível de higiene e saúde, sendo a relação entre o casal conflituosa.

25. [suprimido].

26. No dia 26 de dezembro de 2017, a requerente ordenou uma transferência, sem conhecimento e consentimento do requerido, da quantia de €23.000,00 (vinte e três mil euros), que estava depositada na conta n.º (…), do Banco (…)  S.A. em nome de ambos, para uma conta da C (…) apenas titulada pela própria.

27. Desde o dia 30 de janeiro de 2018, os filhos J (…) e M (…) tomaram a seu cargo a responsabilidade de orientar, tratar e cuidar do seu pai, procedendo, desde então, ao pagamento do Lar e de todas as demais despesas do seu pai, com recurso à reforma auferida pelo requerido.

28. Passados alguns dias de estar na referida Residencial (Lar), o requerido melhorou bastante tanto a nível de saúde, como a nível emocional.

29. Os filhos do requerido fazem deslocações periódicas e habituais a Portugal.

30. No início, quando a requerente esposa visita o requerido no Lar este fica muito agitado e nervoso.

31. A requerente, visita com regularidade o marido, na instituição onde este se

encontra a residir.

32. A requerente é de modesta condição económica, tendo para o efeito solicitado apoio judiciário.

33. Corre termos em Tribunal desde 4.03.2019, o processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge com o n.º 96/19.1T8OHP, intentado pelo requerido (mediante procuração).

2. Matéria de facto – Factos não provados

Não há.

e) Apreciação da restante questão objeto do recurso

A Recorrente pretende ser nomeada ela como acompanhante do requerido ou, pelo menos, integrar o conselho de família.

1 - Vejamos o regime legal relativo à pretensão.

Nos termos do artigo 138.º do Código Civil, «O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código».

O n.º 1 do artigo 140.º do mesmo código dispõe que «1 - O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença».

No que respeita à pessoa escolhida para acompanhar, o artigo 143.º do Código Civil determina, no n.º 1, que «O acompanhante, maior e no pleno exercício dos seus direitos, é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente».

Continua o n.º 2 dizendo que «Na falta de escolha, o acompanhamento é deferido, no respetivo processo, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário, designadamente:

a) Ao cônjuge não separado, judicialmente ou de facto;

b) Ao unido de facto;

c) A qualquer dos pais;

d) À pessoa designada pelos pais ou pela pessoa que exerça as responsabilidades parentais, em testamento ou em documento autêntico ou autenticado;

e) Aos filhos maiores;

f) A qualquer dos avós;

g) À pessoa indicada pela instituição em que o acompanhado esteja integrado;

h) Ao mandatário a quem o acompanhado tenha conferido poderes de representação;

i) A outra pessoa idónea».

E o número 3 deste artigo acrescenta ainda que «Podem ser designados vários acompanhantes com diferentes funções, especificando-se as atribuições de cada um, com observância dos números anteriores».

No artigo 146.º do mesmo diploma determina-se que «1 - No exercício da sua função, o acompanhante privilegia o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada.

2 - O acompanhante mantém um contacto permanente com o acompanhado, devendo visitá-lo, no mínimo, com uma periodicidade mensal, ou outra periodicidade que o tribunal considere adequada».

São estas as normas convocadas pela questão colocada no recurso agora em análise.

Antes de avançar cumpre traçar o perfil do acompanhante.

Como resulta das disposições legais citadas, a medida de acompanhamento visa assegurar o bem-estar, a recuperação, o pleno exercício de todos os direitos e o cumprimento dos deveres do acompanhado – n.º 1 do artigo 140.º do Código Civil.

Para alcançar estas finalidades o acompanhante deve aproximar-se tanto quanto possível de alguém que seja depositário da confiança do acompanhado, porquanto essa confiança promove o seu bem-estar emocional, dado que lhe transmite um sentimento de segurança contribuindo, por isso, para que o mesmo desfrute de uma vida mais saudável.

E o inverso, a desconfiança, despromove, pelas mesmas razões, o seu bem-estar emocional.

Face às funções que é chamado a desempenhar, o acompanhante tem de ser, por isso, alguém em quem o acompanhado deposite confiança e o acompanhado é a pessoa melhor colocada para saber em quem confia, já que se trata de um conhecimento acedido na primeira pessoa, desde que, claro está, o acompanhado ainda tenha faculdades mentais suficientes para fazer tal avaliação.

E mesmo que tal avaliação não esteja totalmente de acordo com a realidade, ainda assim, deve ser atendida, salvo se se mostrar factualmente inadequada, porque, afinal, o que releva é a crença que o acompanhando faz acerca da realidade que o rodeia, pois mesmo que essa crença esteja objetivamente incorreta, para si essa crença é a realidade.

Assim, olhando agora ao reverso da situação, não deverá ser nomeada para ser acompanhante uma pessoa em quem o acompanhado não confia, mesmo que as razões da sua desconfiança, como se disse, não tenham correspondência na realidade, porquanto a confiança é algo que o acompanhado sente, independentemente do seu bom ou mau fundamento, e se repercute no seu estado emocional e na sua saúde.

Recorda-se aqui que a Organização Mundial de Saúde (OMS), no seu estatuto, inclui o bem-estar mental e social da pessoa no conceito de «saúde», pois define aí a saúde nestes termos: «A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade».

Assim se compreende que o n.º 1 do artigo 143.º do Código Civil refira que quem escolhe o acompanhante é o acompanhado quando este é de maioridade e está no pleno exercício dos seus direitos.

Como se disse, ninguém melhor que o acompanhado sabe em quem ele confia.

Essa confiança relacional é normalmente assegurada pelas pessoas elencadas no n.º 2 do artigo 143.º do Código Civil, sendo o rol encabeçado pelo cônjuge não separado judicialmente ou de facto; seguindo-se o unido de facto, os pais, a pessoa designada pelos pais, a pessoa que exerça as responsabilidades parentais, os filhos maiores, os avós e por fim qualquer pessoa idónea.

Este perfil vale também para os casos em que o acompanhante é escolhido pelo representante legal do acompanhado ou pelo tribunal.

Além disso, o acompanhante tem de ser pessoa com disponibilidade de tempo e, como diz o n.º 1 do artigo 146.º do Código Civil, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada, ou seja, tem de possuir uma postura de quem deseja servir uma causa, o que implica abdicar de algo de si em prol do outro, sem esperar receber contrapartida, além do sentimento do dever cumprido.

2 - Passando ao caso dos autos.

Como se disse, a Requerente pretende ser nomeada acompanhante do Requerido, mas, analisados os autos, não procede a sua pretensão, pelas seguintes razões:

(I) Em primeiro lugar, cumpre referir que o requerido declarou na contestação, através do seu defensor nomeado nos autos, que não tem bom relacionamento com a Requerente e não pretende que ela seja nomeada para sua acompanhante.

Muito embora esta declaração tenha sido feita por intermédio do seu defensor, é, nos termos da lei, como se tivesse sido proferida pelo próprio, uma vez que o defensor representa o requerido e é um veículo da própria vontade do requerido, como resulta das normas legais relativas à «representação» que constam dos artigos 258.º e seguintes do Código Civil.

Esta declaração exarada nos autos, salvo prova em contrário, resulta de facto de um ato de vontade do próprio representado, do requerido, que o seu defensor transmite ao processo, revelando-a, não se tratando de uma atividade atinente ao aspeto técnico-jurídico do processo, na sua vertente substantiva e processual, na qual o defensor age autonomamente no exercício da sua competência técnica.

 Tratando-se, como se trata, de um ato de vontade do próprio acompanhado, tal declaração é, em regra, suficiente para impedir que seja nomeado como acompanhante alguém que é objeto de recusa por parte do acompanhado.

Só assim não será nos casos em que resulte do processo que tal declaração não é fruto de uma vontade que ainda tem alguma autonomia, ou em outros casos excecionais, como no caso de não existir outra pessoa para ser nomeada.

E por «autonomia» quer-se dizer aqui a capacidade do acompanhado para, neste aspeto particular, compreender a sua própria situação, no sentido de interiorizar que carece de ajuda para gerir a sua pessoa e bens; de ter consciência de quem é a pessoa que se propõe acompanhá-lo e de ter vontade própria, isto é, manifestar aos outros que não prescinde e exige ser ele mesmo a fazer algumas escolhas que afetam a sua vida.

Como se disse, tal declaração é, em regra, impeditiva da nomeação, porquanto tal nomeação implicaria uma violação injustificada da vontade do acompanhado, pois que constituiria concretizando-se uma ofensa à sua pessoa e ao poder que ainda tem de fazer escolhas sobre a sua própria vida.

Com efeito, a pessoa, muito embora careça de ser acompanhado por ter perdido as capacidades para governar a sua vida, continua a ser pessoa e, por isso, não perdeu ainda todas as rédeas da sua existência e não se lhe pode impor que seja acompanhada por alguém que ele não quer que o acompanhe.

Entre as caraterísticas que definem a essência da pessoa por contraposição ao resto da realidade, encontra-se justamente a sua autonomia, coadjuvada pela sua vontade (capacidade para determinar o modo como se quer viver).

Bem como a liberdade (capacidade para optar entre várias vias de ação, para fazer ou não fazer) e a responsabilidade (assunção e cumprimento de deveres, de compromissos; e centro de imputação de consequência pelas ações executadas ou omitidas).

Sem esquecer que fazem parte da essência do ser pessoa a sua individualidade (não há outra pessoa igual); a unidade (trata-se de um todo ordenado); a intimidade (existe uma esfera privada à qual só o próprio tem acesso); a abertura à realidade social (capacidade para interagir com os outros); a dimensão cultural e histórica (a pessoa integra-se num segmento da história humana e vivendo recebe e dá continuidade aos valores que transmite, eventualmente alterados às gerações futuras); o conhecimento de si mesmo (trata-se de um ser que tem consciência da sua própria identidade e diversidade perante o mundo e ou outros); a capacidade para aperfeiçoar as suas aptidões; a exigência da autenticidade (a procura da verdade nas relações humanas) e  abertura à transcendência (impulso para Deus, em direção à realidade que crê estar além da realidade material e a sustenta).

Ora, todas estas caraterísticas inerentes à pessoa conferem a esta uma especial dignidade que é igual para todos (não há vidas mais dignas que outras, podendo tão só distinguir-se a dignidade da vida que cada um constrói, porque essa diverge de pessoa para pessoa, consoante os seus méritos e deméritos) e, por isso, é absoluta, não se perde nunca (muito embora para alguns a dignidade esteja condicionada à saúde e à autonomia do ser humano), a qual todos têm de respeitar.

Esta realidade é de tal modo importante que a própria Constituição declara no seu artigo 1.º que «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana…».

Concluindo este aspeto, dir-se-á que a dignidade derivada do facto de se ser pessoa implica que se respeite a vontade de cada um quanto aos aspetos da sua própria vida privada, salvo, claro está, se se mostrar que a pessoa já não tem capacidade para compreender e avaliar a realidade que o cerca.

No caso, não se mostra que o Requerido não tenha capacidade para determinar em quem confia e em quem não confia para o acompanhar.

 (II) Em segundo lugar, verifica-se que corre termos em Tribunal desde 4 de março de 2019, o processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge com o n.º 96/19.1T8OHP, intentado pelo requerido (facto provado 33) contra a requerente.

Este facto mostra que existe uma rotura de comunhão de vidas entre o ora requerido e a sua esposa ora requerente

Trata-se de uma situação que desaconselha a nomeação da requerente como acompanhante.

(III) Por fim verifica-se que a requerente «No dia 26.12.2017, a requerente ordenou uma transferência, sem conhecimento e consentimento do requerido, da quantia de €23.000,00 (vinte e três mil euros), que estava depositada na conta n.º (….) do B (…) S.A. em nome de ambos, para uma conta da C (…)apenas titulada pela própria» - facto provado n.º 26.

Esta atuação da requerente feita à revelia do seu marido, para a qual os factos provados não adiantam qualquer explicação, também revela uma atuação egoística e desrespeitosa para com este último, adequada, por isso, a gerar no acompanhado um sentimento de desconfiança em relação à requerente.

Tal postura também não é compatível com o perfil de pessoa de confiança que se quer para a função de acompanhante.

3 - O que fica dito mostra que a requerente não merece a confiança do requerido e esta circunstância vale também para o cargo de vogal do conselho de família.

O requerido tem razões para não confiar na requerente, devido ao episódio da transferência bancária acabado de mencionar, pelo que a requerente também não pode fazer parte do conselho de família.

Não ocorre, pelo exposto, violação do preceituado nos artigos 143º, nº 2 e nº 3, artigo 146.º, ambos do Regime Jurídico do Maior Acompanhado, cumprindo julgar o recurso improcedente.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida. Custas pela Requerente.


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Coimbra, 3 de novembro de 2020

Alberto Ruço ( Relator)

Vítor Amaral

Luís Cravo