Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
32/12.6TBSRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUIS CRAVO
Descritores: INSOLVÊNCIA
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 03/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SERTÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 120, 121 CIRE
Sumário: 1. Com o C.I.R.E passou a proibir-se o recurso dos credores à impugnação pauliana no decurso do processo quanto a actos objecto de resolução pelo administrador da insolvência – não sendo sequer apensadas as impugnações que estejam a correr os seus termos, os quais ficam suspensos – e a prever-se a reconstituição do património do devedor (a massa insolvente) por meio de um instituto específico – a resolução em benefício da massa insolvente – , que permite, de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais a esse património.

2. Decorrentemente deste regime, associado ao facto de ter deixado de existir uma impugnação pauliana colectiva (que era especial do processo de falência), após a entrada em vigor do C.I.R.E., aproveitando a procedência da acção pauliana somente ao credor impugnante, o administrador da insolvência carece de legitimidade para deduzir este tipo de acções ou para nelas intervir.

Decisão Texto Integral:             Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

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            1 – RELATÓRIO

            A “MASSA INSOLVENTE DE M (…)” intentou a presente acção declarativa de condenação de Impugnação Pauliana, sob a forma de processo ordinário contra M (…) e J (…) , ambos residentes na Rua (...), Proença-a-Nova, pedindo a declaração de nulidade e ineficácia das doações efectuadas pela primeira ré ao segundo réu em 16/10/2009 e 11/11/2008, bem como o cancelamento dos registos efectuados a favor do 2º réu.

Para tanto, alega que a 1ª ré foi declarada insolvente, por decisão transitada em julgado no processo nº 574/10.8TBSRT, e que a mesma, por escritura de doação de 16/10/2009, doou ao 2º réu, com ela casado no regime de separação de bens, uma fracção autónoma sita em (...), Almada e ¼ de uma fracção autónoma sita na freguesia da (...), Albufeira; além disso, por escritura de 11/11/2008, a 1ª ré doara ao 2º réu um prédio rústico sito em (...), Proença-a-Nova e as metades indivisas de 4 prédios rústicos, três deles sitos em Proença-a-Nova e um em Vila Velha de Ródão; os réus pretenderam dissipar todo o património pessoal da 1ª ré, de forma a que o mesmo não viesse a responder pelo seu passivo, sendo conhecedores de que a 1ª ré se encontrava incapaz de solver pontualmente os seus compromissos, desta forma prejudicando os credores.

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Regularmente citados, os réus apresentaram contestação, alegando, em síntese, que a autora não alega as dívidas e o seu montante, nem as datas da sua constituição, tão pouco alegando que os actos impugnados impossibilitam o cumprimento de uma qualquer obrigação concreta, pelo que devem ser absolvidos do pedido; a não ser assim, a ré não era devedora principal em qualquer das obrigações que conduziram à sua insolvência, não tendo contratado qualquer dívida para si própria, derivando a situação das funções que desempenhou como gerente nas empresas “(…), Lda.”, ambas declaradas insolventes; quanto às doações, o prédio sito na (...) só foi adquirido em nome da ré por esta ter menos idade e ser mais fácil e barata a obtenção de crédito, tendo na verdade sido o 2º réu quem fez a compra e pagou, designadamente o sinal de 15.000 euros, bem como os custos da escritura, tendo também sido ele que tem pago as prestações, respeitantes ao financiamento da fracção autónoma, donde, na verdade, era o 2º réu o real proprietário do prédio; já quanto ao prédio da (...), o mesmo foi adquirido pela família do 2º réu, tendo sido este quem sempre liquidou todas as prestações; no que respeita à outra doação, a mesma constituiu na verdade uma dação em pagamento, pois o 2º réu fizera financiamentos às sociedades cuja insolvência foi declarada, em montantes elevados, sendo certo que os credores das sociedades são os mesmos da massa insolvente que ora é autora.

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Foi elaborado despacho saneador, no qual se considerou existir erro na qualificação jurídica do pedido, por se tratar de impugnação por parte da massa insolvente, que determina, nos termos dos artigos 120º e 121º do CIRE, que o pedido deveria ser o de resolução dos actos praticados em benefício da massa insolvente, nada obstando a que o Tribunal, na decisão, proceda à condenação nesses termos e não nos peticionados, nos termos do artigo 664º do C.P.Civil.

No mais, foi a instância considerada válida e regular, e foi efectuada a selecção da matéria de facto, que não foi objecto de reclamação.

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Foi interposto recurso relativamente à consideração da irregularidade do pedido e da sua modificabilidade na decisão final, recurso que não foi admitido, por se ter considerado só caber recurso nesses termos quando interposto da decisão final.

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Procedeu-se à audiência de julgamento, com observância das formalidades legais, sendo que à matéria de facto da base instrutória respondeu-se nos termos constantes do despacho de fls. 202-204, que não foi objecto de reclamação.

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Na sentença, considerou-se, em suma, como “questão prévia”, que não se afigurava possível considerar, nos termos do art. 664º do C.P.Civil, que o pedido a ter em conta era o de resolução e não o de anulação ou ineficácia (que eventualmente resultariam da impugnação pauliana) que fora formulado na p.i., face ao que havia que apreciar esse pedido no âmbito da impugnação pauliana, mas nesse caso resultava manifesto que o administrador de insolvência não tinha legitimidade para a respectiva propositura, pelo que, sendo como era a ilegitimidade de conhecimento oficioso, se concluiu no sentido da julgar verificada a ilegitimidade da autora e, consequentemente, absolveu-se os RR. da instância.

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Inconformada, apresentou a Autora recurso de apelação, que finalizou com as seguintes conclusões:
«A. Concordamos com a douta sentença, pelo que em apreciação está efectivamente o pedido no âmbito da impugnação pauliana, o que efectivamente sempre se pretendeu.

B. O conceito de legitimidade processual afere-se pela regra comum e geral contida no artigo 30º do NCPC, segundo o qual “o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer”.

C. Na consideração do exposto, configura-se genericamente, que com a declaração da insolvência, os poderes de administração e disposição passam para o administrador da insolvência, para todos os efeitos de carácter patrimonial, competindo a este a representação do devedor, como decorre do disposto no artigo 81º n.º 1, 4 e 5 do CIRE.

D. Nos termos do artigo 17º do CIRE, o processo de insolvência rege-se pelo Código de Processo Civil em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código, pelo que, facto da massa insolvente e/ou Administrador ter intentando acção pauliana, não configura um acto ilegítimo, nem contrário, ao espírito do CIRE.

E. Salvo melhor opinião e tendo em consideração o caso concreto, o elemento literal não será o único a ter em consideração numa interpretação da lei: “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” – artigo 9.º do C. Civil.

F. A questão fundamental que importa apreciar no presente recurso consiste em saber se, prevendo a lei a resolução dos actos em benefício da massa, tendo em consideração os prazos ali previstos, esgotados que sejam os mesmos, mas considerando o prazo do artigo 618º do C. Civil (5 anos), continua ou não a ser possível o recurso à acção de impugnação, para se obter a ineficácia do acto em benéfico dos c credores da massa insolvente.

G. Não nos parece adequado o entendimento de que o recurso à acção de impugnação pauliana fique reservado, para os casos em que se encontram esgotados os prazos da resolução, previstos do artigo 120º e segs do CIRE, quando ainda é possível, ao interessado, beneficiar do prazo dos 5 anos previsto no artigo 618º do C. Civil.

H. Assim sendo, esgotados que sejam os prazos previstos nos artigos 120º e segs. do CIRE, não se vê que o legislador possa ter pretendido retirar direitos à massa insolvente, afastando, por completo, a possibilidade do direito de recorrer à acção de impugnação pauliana, quando efectivamente não se mostre esgotado o prazo de 5 anos.

I. Pensamos, salvo melhor opinião, que tal norma deve ser perspectivada sempre numa possibilidade e não como uma imposição única, quando o direito português prevê outras acções que permitem alcançar resultados idênticos.

J. Aliás, não seria razoável que o legislador tivesse pretendido tornar mais difícil à massa insolvente a resolução dos negócios, limitando, ao mesmo tempo, de forma tão gravosa, o seu direito de acção, constitucionalmente consagrado (artigo 20º da CRP).

K. Não será correcta a interpretação segundo a qual a possibilidade da massa insolvente proceder à resolução dos negócios, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 120º e ssgs.do CIRE, não permite o recurso à acção de impugnação pauliana.

L. Tal interpretação, afecta desproporcionadamente a garantia de acesso ao direito e aos tribunais, consagrada no artigo 20.º da CRP, encontrando-se por isso ferida de inconstitucionalidade.

M. Consequentemente, não deveria a Meritíssima Juiz “a quo” ter concluindo pela ilegitimidade da massa insolvente em intentar e/ou promover acção de impugnação pauliana, nos termos em que o fez.

N. Ao decidir de modo diverso, violou a douta sentença os artigos 618 do C. Civil e artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

O. O que o legislador visou, manifestamente, foi apenas facilitar e acelerar os procedimentos em que se visa a resolução dos negócios, nos termos e para os efeitos dos artigos 120º e segs. do CIRE.

P. A sentença recorrida viola as disposições constantes do artigo 9º e 618º do C. Civil; artigos 81º n.º 1, 4 e 5 CIRE; artigo 18º e violação frontal do princípio de que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, previsto no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.

Termos em que deve revogar-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra, que considere a autora parte legitima e, por conseguinte, face à factualidade dada como provada, julgue procedente por provada a presente acção, com as legais consequências.

E, assim, Vossas Excelências, como sempre, farão, JUSTIÇA»

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            Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

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            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso cumpre apreciar e decidir.

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            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do N.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo N.C.P.Civil), face ao que é possível detectar o seguinte:

- da correcção da decisão de absolvição dos RR. por ilegitimidade da Autora  massa insolvente em intentar e/ou promover acção de impugnação pauliana (sub-questão da possibilidade da massa insolvente proceder à resolução dos negócios, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 120º e segs.do CIRE, não permitir o recurso à acção de impugnação pauliana);

            - da violação pela decisão recorrida do art. 20º da Constituição da República Portuguesa (que define o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva).

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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Consiste a mesma na enunciação do elenco factual que foi considerado/fixado pelo tribunal a quo, o que naturalmente contempla a conjugação da condensação dos factos assentes com os decorrentes das respostas dadas aos quesitos da base instrutória elaborada, e sendo certo que o recurso deduzido não questiona a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto[2]

            São então os seguintes os factos que se consideraram provados na 1ª instância:

1) Por sentença proferida a 08.11.2010, transitada em julgado a 13.12.2010, no âmbito do processo nº 574/10.8TBSRT, foi a ré M (…) declarada insolvente. [alínea A) dos factos Assentes];

2) Por escritura pública outorgada no dia 16.10.2009, a ré M (…) declarou doar ao réu J (…):

a) A fracção autónoma designada pela letra AI, correspondente ao segundo andar H, piso dois, destinada a habitação com acesso pelo nº 1 da Rua (...) e com garagem, que faz parte do prédio urbano sito na Quinta (...), (...), na Rua (...), na freguesia da (...), concelho de Almada, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 4529 e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o nº 1231 da supra mencionada freguesia;

b) ¼ da fracção autónoma designada pela letra G, correspondente ao segundo piso, primeiro andar esquerdo, que faz parte do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito em (...)ou (...), na freguesia de (...), concelho de Albufeira, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 4301 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob o nº 323 da supra mencionada freguesia.

[alínea B) dos factos assentes];

3) Por escritura pública outorgada no dia 11.11.2008, a ré M(...) declarou doar ao réu J(...):

a) Prédio rústico, sito em (...), na freguesia e concelho de Proença-a-Nova, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 45576 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Proença-a-Nova sob o nº 7203 da supra mencionada freguesia;

b) Metade do prédio rústico, sito em (...), freguesia de (...), no concelho de Proença-a-Nova, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 11865 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Proença-a-Nova sob o nº 2272 da supra mencionada freguesia;

c) Metade do prédio rústico, sito em (...), na freguesia de (...), no concelho de Proença-a-Nova, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 11863 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Proença-a-Nova sob o nº 87 da supra mencionada freguesia;

d) Metade do prédio rústico, sito em Bica, na freguesia de (...), concelho de Proença-a-Nova, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 11564 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Proença-a-Nova sob o nº 3681 da supra mencionada freguesia;

e) Metade do prédio rústico, sito em (...), na freguesia de (...), concelho de Vila Velha de Ródão, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 21, secção M, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Velha de Ródão sob o nº 3354 da supra mencionada freguesia.

[alínea C) dos factos assentes];

4) Aquando da realização dos negócios descritos em 2) e 3), o Réu J (…) sabia que a ré M (…) tinha contraído dívidas próprias e prestado garantias pessoais relativamente a dívidas alheias.

[resposta ao facto 1º da base instrutória];

5) Ao outorgarem nas escrituras públicas referidas em 2) e 3), visaram os réus impedir que os credores da ré M (…) satisfizessem os seus créditos.

[resposta ao facto 2º da base instrutória];

6) À data de 16.10.2009, a ré M (…) apenas ficou com a propriedade dos seguintes bens: - 1/3 de um prédio rústico – cultura arvense com a área total (ha) de 1,025000 sito em (...), inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 182, secção J, da freguesia de (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial do Crato sob o nº 1946/20110211, com o valor patrimonial de € 11,06; - um veículo ligeiro de passageiros, marca Jeep, modelo Grand Cherokee, matrícula (...)OI, do ano de 1999. [resposta aos factos 3º e 4º da base instrutória].

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4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1 – questão da correcção da decisão de absolvição dos RR. por ilegitimidade da Autora  massa insolvente em intentar e/ou promover acção de impugnação pauliana (sub-questão da possibilidade da massa insolvente proceder à resolução dos negócios, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 120º e segs. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[3], não permitir o recurso à acção de impugnação pauliana):

Recorde-se que no despacho saneador fora opção “converter” oficiosamente em pedido de resolução dos actos praticados em benefício da massa insolvente nos termos dos artigos 120º e 121º do C.I.R.E., o pedido de impugnação pauliana que tinha sido formulado na p.i.,

Ao invés, na sentença recorrida, divergindo de tal opção e solução, concluiu-se pela ilegitimidade do administrador da insolvência (quer enquanto tal, quer como representante da autora massa falida) para a propositura da acção em apreciação, sendo certo que tendo sido formulado na p.i. um pedido de anulação ou ineficácia, havia que efectivamente apreciar esse pedido no âmbito da impugnação pauliana, mas nesse caso resultava manifesto que o administrador de insolvência não tinha legitimidade para a respectiva propositura, pelo que, sendo como era a ilegitimidade de conhecimento oficioso, se concluiu no sentido da julgar verificada a ilegitimidade da autora e, consequentemente, absolveu-se os RR. da instância.

Que dizer?

Em nosso entender – e releve-se o juízo antecipatório! – nada há que censurar à decisão recorrida, na medida em que a mesma se encontra fundamentada na melhor (senão mesmo única) interpretação dos dispositivos legais aplicáveis, e em linha com a opinião doutrinária que se conhece sobre tal.

O que para nós resultará perfeitamente claro e incontroverso após uma breve resenha do regime do C.I.R.E., em contraponto com o do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (abreviadamente C.P.E.R.E.F.) que o primeiro revogou, pois que a diferente configuração dada num e noutro pelo legislador ao regime da impugnação pauliana e legitimidade para a sua dedução é que é o nó górdio da solução para a questão em apreciação, sendo certo que desta forma damos paralelamente resposta à sub-questão supra enunciada, imbricada que está ela com a principal, mais genérica.

Com efeito, no C.P.E.R.E.F. além dos “credores” – aproveitando os efeitos da impugnação pauliana a todos eles – também o administrador da massa falida podia deduzir acção de impugnação pauliana nos termos expressos do art. 160º, nº1 deste normativo, donde muito logicamente ser esta apelidada de “impugnação pauliana colectiva”[4].

Sendo certo que nesse mesmo C.P.E.R.E.F., em paralelo, estava prevista e regulada a resolubilidade dos actos do falido praticado anteriormente à falência, nos arts. 156º e segs….

E enquanto resolução de um negócio, verificava-se por via dela um efeito retroactivo, donde, em linha com o regime decorrente do art. 434º do C.Civil, os bens prestados revertiam para o património de onde saíram em consequência do negócio resolvido, mas porque se estava no domínio do processo de falência, os bens ou valores prestados pelo falido revertiam para a massa falida (art. 159º, nº1 do C.P.E.R.E.F.)[5].

Isto é, esta resolução não dependia da demonstração de quaisquer pressupostos, bastando que o acto se inserisse no catálogo constituído pelas alíneas do art. 156º do C.P.E.R.E.F., e que a data da sua prática se situasse nos períodos temporais indicados nesse mesmo dispositivo, sendo certo que não era necessária a prova da demonstração da anterioridade de qualquer crédito, nem da má fé dos intervenientes nesse acto, nem que o mesmo tivesse provocado um prejuízo efectivo.

Dito de forma breve: face ao regime do art. 156º do C.P.E.R.E.F., o tipo de acto consumado e o tempo em que o havia sido eram suficientes para o resolver!    

 De referir que foi porque seguramente o legislador constatou a dificuldade da impugnação pauliana muitas vezes satisfazer os interesses dos credores do falido – devido à necessidade de serem provados os apertados requisitos que condicionavam a sua procedência, nomeadamente o eventus damni no momento em que o acto foi praticado – que entendeu consagrar no C.P.E.R.E.F. um direito de resolução legal, em benefício da massa insolvente, de actos prejudiciais ou potencialmente prejudiciais desta.

De facto, a resolução então delineada pelo legislador do C.P.E.R.E.F pretendeu eliminar o risco do falido, no período imediatamente anterior ao processo de insolvência, ter subtraído ao procedimento concursal, que se anunciava iminente, uma parte do seu património, e fê-lo, estabelecendo períodos suspeitos, relativos à prática de determinados actos tipificados, os quais poderão ser resolvidos pelos credores ou pelo liquidatário, sem, em regra, ser necessário demonstrar a da existência de qualquer prejuízo, de qualquer anterioridade dos créditos reconhecidos ou de qualquer má fé.

Mas em que é que este regime se distingue afinal do constante do C.I.R.E.?

Precisamente na medida em que o C.I.R.E., nos seus arts. 120º a 127º, veio ampliar substancialmente a área de aplicação deste direito de resolução, subdividindo-o em duas modalidades no que respeita aos seus pressupostos – a que o próprio legislador designou por “resolução incondicional” (cf. art. 121º deste normativo) e a que se pode designar por “resolução condicionada” (cf. art. 120º do mesmo normativo) – e regulando de forma desenvolvida os seus efeitos e a sua articulação com a acção de impugnação pauliana.

De facto, quanto a este último particular – aspecto da articulação da impugnação pauliana com o direito de resolução dos actos do devedor insolvente – o que resultou com o C.I.R.E. foi a redução considerável da oportunidade da utilização da impugnação pauliana quando o devedor tenha sido judicialmente declarado insolvente.

Com efeito, como bem se sublinhou na sentença recorrida, resulta ter sido dada uma clara prevalência pelo legislador à resolução sobre a impugnação pauliana, o que se releva e traduz no seguinte: se já tiver sido emitida pelo administrador da insolvência declaração resolutiva de um acto praticado ou omitido pelo devedor insolvente, estão os credores impedidos de propor acção de impugnação pauliana relativamente a esse acto (art. 127º, nº1, do C.I.R.E.); e se essa acção já se encontrar pendente quando o administrador de insolvência emite uma declaração resolutiva do acto impugnado, deve aquela instância ser suspensa (art. 127º, nº2 do C.I.R.E.); se a resolução não for judicialmente impugnada pelo terceiro, ou apesar de impugnada, a respectiva acção é julgada improcedente, deve a impugnação pauliana ser julgada extinta, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art. 287º, al.e) do C.P.Civil; e assim o é porque determinando a resolução a restituição à massa insolvente do bem transmitido pelo negócio posto em causa, já não é possível a sua execução no património do terceiro adquirente, pelo que a impugnação pauliana deixa de ter qualquer utilidade; contudo, se a declaração resolutiva vier a ser impugnada judicialmente pelo terceiro e esta impugnação obtiver vencimento, sendo declarada a ineficácia daquela declaração, por sentença transitada em julgado, os credores já poderão deduzir acção de impugnação pauliana relativa ao mesmo acto, ou fazer prosseguir a já instaurada que se encontrava suspensa, nos termos do art. 127º, nº2 do C.I.R.E..    

Naturalmente que resulta do vindo de dizer a prevalência da resolução – como sublinhado na sentença recorrida – havendo mesmo um afastamento da impugnação pauliana, que só podendo ser instaurada pelo credor singular (nos termos e condições restritas apontadas), deixou obviamente de ter a característica de (impugnação pauliana) “colectiva” que havia tido no C.P.E.R.E.F., por essa função com o C.I.R.E. a estar reservada à resolução!

Na verdade, “no novo Código, proíbe-se o recurso dos credores à impugnação pauliana no decurso do processo quanto a actos objecto de resolução pelo administrador da insolvência – não sendo sequer apensadas as impugnações que estejam a correr os seus termos, os quais ficam suspensos – e prevê-se a reconstituição do património do devedor (a massa insolvente) por meio de um instituto específico – a resolução em benefício da massa insolvente – , que permite, de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais a esse património.[6]

            E decorrentemente deste regime – designadamente ter passado a existir um instituto específico para a destruição de actos prejudiciais ao património do devedor (a massa insolvente) – que é esta referenciada resolução em benefício da massa insolvente, associado ao facto de ter deixado de existir uma impugnação pauliana colectiva (que era especial do processo de falência), “após a entrada em vigor do C.I.R.E., aproveitando a procedência da acção pauliana somente ao credor impugnante, o administrador da insolvência carece de legitimidade para deduzir este tipo de acções ou para nelas intervir.[7]

            Esta foi também precisamente a opinião perfilhada na sentença recorrida, com apoio no ensinamento de FERNANDO GRAVATO MORAIS[8], relativamente ao que não vislumbramos como dissentir.

            Assim sendo e sem necessidade de maiores considerações, improcede claramente o argumento recursivo assente na discordância quanto à apontada ilegitimidade do administrador de insolvência para a instauração autónoma de um processo de impugnação pauliana, independentemente de tal ser permitido em termos temporais face ao disposto no art. 618º do C.Civil!

                                                                       *

      4.2 – questão da violação pela decisão recorrida do art. 20º da Constituição da República Portuguesa (que define o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva):

            Salvo o devido respeito, só se compreende este argumento recursivo enquanto fruto de algum equívoco ou incompreensão do que se tutela com os referenciados princípios constitucionais.
Senão vejamos o que se escreveu no Acórdão n.º 271/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31º vol., págs. 359 e segs.): E neste domínio é particularmente significativo o direito à protecção jurídica consagrado no artigo 20º da Constituição, no qual se consagra o acesso ao direito e aos tribunais que, para além de instrumentos da defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos, é também elemento integrante do princípio material da igualdade e do próprio princípio democrático, pois que este não pode deixar de exigir a democratização do direito.
Para além do direito de acção, que se materializa através do processo, compreendem-se no direito de acesso aos tribunais, nomeadamente: (a) o direito a prazos razoáveis de acção ou de recurso; (b) o direito a uma decisão judicial
sem dilações indevidas; (c) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas; (d) o direito a um processo de execução, ou seja, o direito a que, através do órgão jurisdicional se desenvolva e efective toda a actividade dirigida à execução da sentença proferida pelo tribunal.
Há-de ainda assinalar-se como parte daquele conteúdo conceitual "a proibição da `indefesa' que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhes dizem respeito. A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses" (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pp. 163 e 164 e Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, pp. 82 e 83).
Entendimento similar tem vindo a ser definido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, que tem caracterizado o direito de acesso aos tribunais como sendo entre o mais um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras (cfr. os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 404/87, 86/88 e 222/90, Diário da República, II série, de, respectivamente, 21 de Dezembro de 1987, 22 de Agosto de 1988 e 17 de Setembro de 1990).[…]
Ora se assim é, e tendo o legislador com a reforma do processo de falência que se traduziu no C.I.R.E, criado um instituto específico, que é o da resolução em benefício da massa insolvente, que permite – nos termos já supra explicitados e que aqui damos por reproduzidos – de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais ao património do devedor (a massa insolvente) pelo administrador de insolvência, onde é que está violado o princípio constitucional do acesso ao direito e aos tribunais com a opção de reservar a dedução da acção de impugnação pauliana (legitimidade activa) ao credor singular, de tal excluindo esse mesmo administrador de insolvência?
 Com efeito, cremos ser esta a acepção dos citados princípios constitucionais que deve prevalecer, pois que a interpretação de sentido contrário afinal é tributária de uma leitura de modo incompleto, porque unilateral, da Função do Estado, que na conformação do processo, é tanto a de assegurar a defesa do devedor quanto a satisfação do direito do credor, sendo que o legislador ordinário está obrigado a conformar processos justos para a realização do Direito, e realizar o Direito é, também, garantir a fluidez do tráfego, designadamente facultando e salvaguardando ao administrador de insolvência um meio apto a de forma expedita e eficaz, obter a destruição de actos prejudiciais ao património do devedor (a massa insolvente)…
Que é o que se encontra garantido pelo CI.R.E., na interpretação perfilhada!

Improcede assim igualmente o alegado neste particular.

                                                           *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – Com o C.I.R.E passou a proibir-se o recurso dos credores à impugnação pauliana no decurso do processo quanto a actos objecto de resolução pelo administrador da insolvência – não sendo sequer apensadas as impugnações que estejam a correr os seus termos, os quais ficam suspensos – e a prever-se a reconstituição do património do devedor (a massa insolvente) por meio de um instituto específico – a resolução em benefício da massa insolvente – , que permite, de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais a esse património.

II – Decorrentemente deste regime, associado ao facto de ter deixado de existir uma impugnação pauliana colectiva (que era especial do processo de falência), após a entrada em vigor do C.I.R.E., aproveitando a procedência da acção pauliana somente ao credor impugnante, o administrador da insolvência carece de legitimidade para deduzir este tipo de acções ou para nelas intervir.

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6 – DISPOSITIVO

            Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela Autora/recorrente.

                                                                       *

                                                                                   Coimbra, 11 de Março de 2014

                                               Luís Filipe Cravo (Relator)

                                                 Maria José Guerra

                                         António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des.ª Maria José Guerra
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins
[2] Nessa medida até tornando legítima a concreta dispensa de enumeração dessa factualidade (cf. art. 663º, nº6 do N.C.P.Civil), mas que optamos por fazer para tornar mais explícita e facilitada a exposição e compreensão da solução que se vai dar às questões que constituem o “thema decidendum”.
[3] Doravante designado abreviadamente como “C.I.R.E.” (aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18 de Março, e alterado pelo DL nº 200/2004, de 18 de Agosto, que o republicou).
[4] Assim o designa J. CURA MARIANO, in “Impugnação Pauliana”, Livª Almedina, Coimbra, 2004, a pags. 272-278.
[5] Donde ser em alguma medida idêntico aos efeitos da impugnação pauliana colectiva também regulada no C.P.E.R.E.F., consistindo a diferença primordial na circunstância de nesta figura a reversão ocorrer apenas na medida do prejuízo causado aos credores cuja garantia patrimonial havia sido lesada e na resolução do art. 156º do C.P.E.R.E.F., a reversão ser sempre total…  
[6] Citámos um excerto da versão integral do preâmbulo da autoria do Mestre OSÓRIO DE CASTRO, que não chegou a ser publicada no decreto-lei que aprovou o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. 
[7] Assim o afirma, sem qualquer hesitação, o já citado J. CURA MARIANO, in “Impugnação Pauliana”, Livª Almedina, Coimbra, 2004, a pags. 274. 
[8] In “Resolução em Benefício da Massa Insolvente”, Livªa Almedina, Coimbra, 2008, a págs. 205.