Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
706/09.9TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: RECURSO
QUESTÃO NOVA
Data do Acordão: 02/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA 4º C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: NO ARTIGO 892.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: Os recursos são um instrumento processual para reapreciar questões concretas, de facto ou de direito, que se consideram mal decididas e não para conhecer questões novas, não apreciadas e discutidas nas instâncias, sem prejuízo das que são de conhecimento oficioso.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A... instaurou, na comarca de Leiria, a presente acção declarativa, com processo sumário, contra B..., pedindo que se declare que é dono do veículo Mercedes com a matrícula ... e se condene este a reconhecê-lo e também a pagar-lhe a quantia de 1.840,00€.

Alegou, em síntese, que o réu, a 21 de Julho de 2008, vendeu-lhe o veículo automóvel Mercedes com a matrícula ..., pelo preço de 12.500 €, e que então lhe entregou, para pagamento da viatura, um cheque naquele valor. O réu depositou esse cheque, mas não lhe entregou o veículo vendido. Face à recusa do réu em lhe entregar a viatura, o autor instaurou contra ele uma providência cautelar, que foi julgada procedente, e na sequência da qual o veículo lhe foi entregue no dia 30 de Janeiro de 2009. Entretanto, o réu utilizou o carro, fazendo com ele vários milhares de quilómetros, usando-o como se fosse seu e o autor esteve privado de o poder usar ou vender.

O réu contestou dizendo, em suma, que é sócio e gerente da ... de B... L.da e que o autor emprestou a esta o veículo ..., até que lhe pudesse entregar um Audi Allroad que substituísse um outro Audi que lhe tinha vendido, mas que havia sido devolvido por ter problemas no compressor. Por outro lado, o cheque de 12.500 € refere-se a uma quantia emprestada pelo autor à Rebobinagens, para esta fazer face a uma dívida que tinha para com as Finanças. O réu diz, ainda, ser parte ilegítima.

O autor respondeu à excepção de ilegitimidade do réu afirmando que não é verdade que tenha emprestado o veículo ... à sociedade ...de B... L.da.

A excepção de ilegitimidade do réu foi julgada improcedente, foi proferido despacho saneador e seleccionaram-se os factos assentes e elaborou-se a base instrutória.

Realizou-se a audiência de julgamento.

Foi proferida sentença em que se decidiu:

Nos termos e fundamentos expostos:

- julgo a acção parcialmente procedente e em consequência:

a) - Declaro que o A. é legítimo proprietário do veículo Mercedes com a matrícula ... e condeno o Réu a reconhecê-lo;

b) - condeno o Réu a pagar ao A. a quantia de €1000,00 (mil euros).

Inconformado com tal decisão, o réu dela interpôs recurso, que foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

1.ª - Foram incorrectamente julgados os factos insertos nos quesitos 2.º, 3.º, 4.º, 6.º, 7.º e 8.º, que aqui se dão como integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos.

2.ª - O depoimento da testemunha C..., gravado no CD, tempo 10:07:19 a 10:36:41, no sentido de que o veículo BF...pertencia à firma ... de B....da, o que, aliás, resultou provado da audiência de julgamento,

3.ª – Que o mesmo veículo foi retomado pelo Autor, devido a avaria no compressor, que impedia a sua normal utilização,

4.ª - Que o Autor, por não ter outro veículo equivalente para entregar aquela firma, emprestou-lhe um Mercedes, com a matrícula ...;

5.ª - Que os € 12.500,00 entregues em 21/7/2008 pelo Autor ao Réu não se destinaram a pagamento do Mercedes, tratou-se de empréstimo;

6.ª – Este depoimento conjugado com os documentos nos autos, conduz a que os artigos 3.º 6.º e 7.º da base Instrutória devem ser considerados não provados,

7.ª – Enquanto que as respostas aos artigos 2.º, 4.º e 8.º da base Instrutória devem ser alterados nos termos sobreditos, que aqui se dão por reproduzidos.

8.ª - O veículo de matrícula ... era propriedade do Autor, pelo que o Réu não lho poderia ter vendido.

9.ª- E ainda que assim não fosse, também o Réu também não poderia vender tal veículo, nem ao Autor, nem a outrem, já que o mesmo seria propriedade da firma ... de B... L.da, que o teria trocado pelo BF....

10.ª – Já que estaríamos perante venda de bem alheio, com a consequente nulidade do negócio, nos termos do art.º 892.º do CC.

Sem prescindir,

11.ª – O Autor não tem direito a ser indemnizado pela privação do uso do veículo já que o mesmo não era utilizado na sua vida diária.

12.ª- Com efeito, o Autor é comerciante de automóveis usados, destino do ..., pelo que o Autor só poderia ser indemnizado se alegasse e provasse que perdeu oportunidade de negócio ou negócio mais vantajoso, o que não fez.

Termina pedindo que o recurso seja julgado procedente e se revogue a sentença recorrida, substituindo-a por outra no sentido da improcedência da acção:

O réu não contra-alegou.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:

a) há erro no julgamento da matéria de facto que figura nos quesitos 2.º, 3.º, 4.º, 6.º, 7.º e 8.º[1];

b) se o autor não tem direito a ser indemnizado pela privação do uso do veículo já que o mesmo não era utilizado na sua vida diária[2].


II

1.º


Nas conclusões 8.ª a 10.ª o réu suscita a questão de uma (alegada) venda de bem alheio, com a consequente nulidade do negócio nos termos do disposto no artigo 892.º do Código Civil.

Como é sabido, os recursos destinam-se a permitir que um tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação da decisão recorrida[3], constituindo, assim, um instrumento processual para reapreciar questões concretas, de facto ou de direito, que se consideram mal decididas e não para conhecer questões novas, não apreciadas e discutidas nas instâncias[4], sem prejuízo das que são de conhecimento oficioso.

Ora, por um lado a questão da (alegada) venda de bem alheio e sua nulidade não foi suscitada no tribunal a quo, nomeadamente em sede de contestação, e, por isso mesmo, este não se pronunciou sobre ela. Por outro lado, a venda feita nessas condições está afectada por uma nulidade atípica[5], que não é de conhecimento oficioso, sob pena de se elidir as proibições da sua invocação[6].

Assim, não pode agora, por via do recurso, este tribunal da Relação conhecer tal matéria.


2.º

O réu sustenta que a prova produzida conduz a conclusões diferentes das extraídas pelo tribunal a quo, no que se refere ao julgamento da matéria de facto dos quesitos 2.º, 3.º, 4.º, 6.º, 7.º e 8.º.

Estes quesitos têm o seguinte teor:

2.º- Alegando que este veículo gastava muito combustível, em Março de 2008, o réu fez uma troca com o autor entregando-lhe a referida carrinha de marca Audi e recebendo o automóvel de marca Mercedes, com a matrícula ...?

3.º- Alegando dificuldades financeiras, em 21.07.08 o réu entregou ao autor, a troco de 12.500,00 €, o veículo de marca Mercedes?

4.º- No mesmo dia, o autor entregou ao réu, para pagamento deste veículo de marca Mercedes, um cheque de 12.500,00 €?

6.º- O réu não entregou logo ao autor, o veículo referido em 4., prometendo que o faria no prazo de oito dias, indo levar-lho ao stand?

7.º- Tendo, no entanto, entregue ao autor os documentos do veículo a 21.07.2008?

8.º- Passados os 8 dias, o réu não entregou o veículo ao autor e recusou-se a fazê-lo?

A estes quesitos a Meritíssima Juíza respondeu:

2.º- Provado que o Réu alegando que o veículo de marca Audi matrícula BF... gastava muito combustível, em Fevereiro de 2008, trocou-o com o autor entregando-lhe a referida carrinha de marca Audi e recebeu o automóvel de marca Mercedes, com a matrícula ....

3.º- Provado.

4.º- Provado.

6.º- Provado

7.º- Provado.

8.º- Provado.

Segundo o réu, deveria ter-se respondido:

2.º - Provado que em Fevereiro de 2008, o Autor, por causa de problemas mecânicos, recebeu da firma ... de B...Lda.da o veículo de matrícula BF..., emprestando-lhe o veículo de matrícula ....

3.º- Não provado.

4.º- Provado que em 21-07.2008 o Autor entregou ao Réu um cheque de 12.500,00.

6.º- Não provado.

7.º- Não provado.

8.º- Provado que o Réu não entregou o veículo ao Autor.

O autor alegou que, em Março de 2008, a pedido do réu recebeu deste o Audi BF entregando-lhe, por troca, o Mercedes .... Mais tarde, também a pedido do réu, comprou-lhe o Mercedes ... por 12.500 €[7].

Na versão do réu, o Audi BF foi adquirido ao autor pela ... de B... L.da, de que aquele é gerente, e foi devolvido a este por apresentar problemas mecânicos. Nessa altura o autor emprestou à ... de B... L.da o Mercedes ..., até que lhe pudesse entregar um Audi que substituísse o BF ou, no caso de não encontrar tal carro, entregaria um Mercedes E 220. Por outro lado, o cheque de 12.500 € que recebeu o autor, refere-se a uma quantia emprestada por este à ... de B... L.da [8].

Ouvidos os depoimentos prestados, regista-se que sobre a questão da venda ou do empréstimo do Mercedes ..., para além do depoimento de parte do autor, só se pronunciaram as testemunhas D...[9], E...[10] e C...[11].

A testemunha D... afirmou, em síntese, que o réu, queixando-se de que o Audi BF gastava muito combustível, acordou com o autor em o trocar pelo Mercedes .... Mais tarde, o réu disse ao autor que estava com dificuldades económicas e, para fazer face a elas, acordou com este vender-lhe o Mercedes ..., pelo preço de 12.500 €. Mas, o réu ficou na posse deste veículo, pois combinou com o autor que se em oito dias encontrasse algum interessado que oferecesse mais, venderia o Mercedes a essa pessoa e devolveria ao autor os 12.500 €. D... diz ter assistido às conversas entre as partes sobre estes dois negócios.

E... depôs no sentido de que o réu apareceu na sua oficina com o Mercedes ..., pedindo que este fosse examinado para saber se ele estava em boas condições. Nessa altura disse que pensava trocar o Audi BF por esse Mercedes, em virtude daquele gastar muito combustível. Esclareceu que não assistiu à realização desse negócio e que não sabe se ele se concretizou. Disse ainda que o autor lhe referiu que depois veio a comprar o Mercedes ... ao réu.

C... disse que o Audi BF foi devolvido ao autor por ter uma avaria. Nessa altura, como o autor não tinha nenhum Audi para poder substituir pelo BF, emprestou à ... de B... L.da o Mercedes .... Disse também que o cheque de 12.500 € emitido pelo autor se referia a um empréstimo que este fez, a pedido do réu, por necessitar de efectuar o pagamento de uma dívida da ... de B...L.da às Finanças.

Destas três testemunhas a que revelou estar mais afastada dos interesses das partes foi E.... O depoimento deste aponta, claramente, no sentido de que o réu acordou com o autor em trocar o Audi BF pelo Mercedes .... A existência dessa troca é inconciliável com a tese do réu e confirma uma parte importante da versão do autor.

Por outro lado, o réu diz que devolveu o Audi BF ao autor por esse veículo ter problemas mecânicos. Sucede que teve o carro consigo durante quase dois anos (de Abril de 2006 a Março de 2008[12]) e só menciona uma avaria em concreto (o compressor[13]) e não alega qualquer denúncia de outros defeitos ao autor no decorrer desse período. Aliás, a avaria que refere verificou-se somente em Março de 2008 e o autor reparou-a. Por outro lado, é também estranho que só ao fim de dois anos é que chegue à conclusão de que o Audi BF não estava nas condições negociadas, nem valia o preço que as partes (…) lhe atribuíram[14], sendo certo que ao longo desse tempo foi usando tal viatura. A ser verdadeira a tese do réu foi devolvido ao autor o Audi BF, por ter problemas mecânicos, e recebeu-se por empréstimo o Mercedes ..., até que este conseguisse encontrar um outro Audi ou um Mercedes E 220 para substituir o BF. Ora, não tendo ocorrido essa substituição era normal que insistisse junto do autor para este cumprir o que estava obrigado, o que não se alega ter feito, apesar de o tempo ir decorrendo.

Quanto ao cartão assinado pelo autor que está na folha 106, há que dizer que ele nada prova, pois o seu texto não é claro. Faz alusão a que o B... ade trazer 12.500 € no prazo de 60 dias, mas, na versão do réu, o dinheiro não lhe foi emprestado a ele, mas sim ... de B... L.da, pelo que era esta quem tinha que devolver tal quantia. E faz-se menção de que se deveria trazer os 12.500 € em 60 dias, mas o réu não alegou que, no empréstimo que afirma ter havido, o respectivo pagamento tivesse que ser feito em tal prazo. Acresce que, se os 12.500 € foram emprestados, não se percebe por que motivo é que, nesse caso, quando se está a dizer qual o prazo para pagar o empréstimo se faz alusão ao veiculo ..., pois, nesse cenário, não há qualquer relação entre tal empréstimo e esta viatura.

Deve, ainda, ter-se presente que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados[15].

Finalmente há que dizer que, ao contrário do sustentado pelo réu[16], não se encontra qualquer contradição entre as repostas dadas aos quesitos 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 23.º e 24.º e a do quesito 2.º. É verdade que das respostas aos quesitos 16.º, 18.º e 24.º resulta que o autor cedeu o Audi BF à ... de B...L.da e que ao responder-se ao quesito 2.º se considera provado que o autor adquire (por troca) esse mesmo veículo ao réu. Porém, o segundo negócio é celebrado quase dois anos depois (Fevereiro de 2008) do primeiro (Abril de 2006), o que significa que nesse período de tempo a propriedade do Audi 7 BF pode ter sido objecto de transmissão, nada existindo nos factos provados que afaste a possibilidade da mesma ter ocorrido. E, mesmo que essa transmissão não se tenha verificado, o réu pode ter negociado, em seu nome, essa viatura, apesar dela não lhe pertencer, o que então suscitará questões de direito, mas ao nível do facto não está em contradição com a matéria dos quesitos 16.º, 18.º e 24.º.

Assim, tendo presente o depoimento testemunha D..., que é confirmado no que diz respeito à troca dos carros por E..., e o que acima se deixa dito, conclui-se que a Meritíssima Juíza ajuizou correctamente a matéria de facto dos quesitos 2.º, 3.º, 4.º, 6.º, 7.º e 8.º.


3.º

Estão provados os seguintes factos:

1.º - O A. comercializa automóveis usados, tendo estabelecimento em ..., ...(al. A) da matéria de facto assente).

2.º- O autor consta no Registo Automóvel, como proprietário do veículo automóvel de marca Mercedes, matrícula ..., desde 19/12/2008 (al. B) da matéria de facto assente).

3.º- O autor instaurou contra o réu a providência cautelar que, com o n.º 131/09.1TBLRA, correu seus termos pelo 5.º juízo cível da comarca de Leiria que, por decisão de 15/01/09, foi julgada procedente (al. C) da matéria de facto assente).

4.º- Na sequência de tal decisão, acabou por o veículo ser entregue ao autor no dia 30/01/09 (al. D) da matéria de facto assente).

5.º- O réu é sócio-gerente da firma ... de B... L.da (al. E) da matéria de facto assente).

6.º- O Réu alegando que o veículo de marca Audi matrícula BF... gastava muito combustível, em Fevereiro de 2008, trocou-o com o autor entregando-lhe uma carrinha de marca Audi e recebeu o automóvel de marca Mercedes, com a matrícula ... (art. 2.º da base instrutória).

7.º- Alegando dificuldades financeiras, em 21/07/08 o réu entregou ao autor, a troco de € 12.500,00, o veículo de marca Mercedes (art. 3.º da base instrutória).

8.º- No mesmo dia, o autor entregou ao réu, para pagamento deste veículo de marca Mercedes, um cheque de € 12.500,00 (art. 4.º da base instrutória).

9.º- O réu recebeu o cheque, depositou-o na sua conta e obteve a quantia a que o mesmo correspondia (art. 5.º da base instrutória).

10.º- O réu não entregou logo ao autor, o veículo referido em 7), prometendo que o faria no prazo de oito dias, indo levar-lho ao stand (art. 6.º da base instrutória).

11.º- Tendo, no entanto, entregue ao autor os documentos do veículo a 21/07/08 (art. 7.º da base instrutória).

12.º- Passados 8 dias, o réu não entregou o veículo ao autor e recusou-se a fazê-lo (art. 8.º da base instrutória).

13.º- Continuando a usá-lo e a circular diariamente com ele (art. 9.º da base instrutória).

14.º- O Réu fez vários quilómetros com o veículo Mercedes, com a matrícula ... (art. 10.º da base instrutória).

15.º- Usando-o como se fosse seu (art. 11.º da base instrutória).

16.º- O aluguer de um automóvel semelhante importa em, pelo menos, € 10,00 por dia (art. 12.º da base instrutória).

17.º- Em Maio de 2005, a ... de B...L.da celebrou um acordo com a empresa G... L.da, para execução de trabalhos de canalização, num prédio urbano sito na ...(art. 13.º da base instrutória).

18.º- Tendo a ... de B... L.da efectuado trabalhos no valor de mais de setenta e cinco mil (art. 14.º da base instrutória).

19.º- Inicialmente, foi estabelecida forma de pagamento parcelada, mas, com o decorrer dos trabalhos, a ...e a G...acordaram que os mesmos seriam pagos pela entrega de um apartamento no referido prédio, ao nível do primeiro andar (art. 15.º da base instrutória).

20.º- Em Abril de 2006 a firma ... de B... L.da cedeu ao Autor o direito de encontrar interessado, de negociar e de receber o preço do referido apartamento, como consta do documento constante de fls. 37 dos autos de providência cautela, manuscrito pelo autor (art. 16.º da base instrutória).

21.º- O apartamento foi avaliado em € 75.000,00 (art. 17.º da base instrutória).

22.º- Por conta do apartamento, o autor obrigou-se a entregar à ...L.da um automóvel marca Audi, modelo Allroad, em bom estado e com o valor comercial de € 30.000,00 e uma carrinha Passat, avaliada em € 15.000,00 (art. 18.º da base instrutória).

23.º- E recebia da ...L.da um veículo da marca Audi, avaliado em € 10.000,00 e um veículo de marca Citroen Berlingo, avaliado em € 1.250,00 (art. 19.º da base instrutória).

24.º- Estes veículos foram entregues ao autor (art. 20.º da base instrutória).

25.º- Ao valor assim apurado, ou seja, € 41.250,00, a pagar pelo autor, foi descontado, por acordo, o montante de € 8.924,44, em dívida pela firma ...L.da ao ... referente ao financiamento de um dos veículos e  € 250,00 para as despesas de registo na Conservatória que seriam feitas pelo A (art. 21.º da base instrutória).

26.º- Em 11 de Abril de 2006, efectuado o acerto de contas, o autor emitiu e entregou à ...L.da um cheque a pagar através do ..., no montante de € 32.075,56 (art. 22.º da base instrutória).

27.º- O autor ficou, assim, com os direitos de negociar o apartamento em apreço, com quem bem entendesse e de receber o respectivo preço (art. 23.º da base instrutória).

28.º- Por essa ocasião, o autor entregou à ...L.da um automóvel de marca Audi, modelo Allroad, com matrícula BF..., por conta do valor do apartamento (art. 24.º da base instrutória).

29.º- A ...L.da celebrou com a da seguradora S...um acordo denominado por “contrato de seguro” para este veículo (art. 25.º da base instrutória).

30.º- A viatura nunca foi registada em nome da ...L.da (art. 26.º da base instrutória).

31.º- Em Fevereiro de 2008 o veículo de marca Audi com a matrícula BF... tinha o compressor avariado (art. 27.º da base instrutória).

32.º- Em Fevereiro de 2008, a viatura foi colocada no concessionário da Audi, em ... tendo sido constatado que a mesma necessitava de um novo compressor (art. 28.º da base instrutória).

33.º- A firma ...L.da pagou em 22/07/08 uma dívida no Serviço de Finanças de ... no valor de € 12.624,71 (art. 32.º da base instrutória).

34.º- O Réu sempre usou o veículo ... com cuidado (art. 36.º da base instrutória).


4.º

Segundo o réu, o autor não tem direito a ser indemnizado pela privação do uso do veículo já que o mesmo não era utilizado na sua vida diária, pois ele é comerciante de automóveis usados, destino do ..., pelo que o autor só poderia ser indemnizado se alegasse e provasse que perdeu oportunidade de negócio ou negócio mais vantajoso, o que não fez[17].

Salvo melhor juízo, a conclusão de que, pelas razões apontadas, o autor não tem direito àquela indemnização pressupõe que o veículo Mercedes ... não seria utilizado na sua vida diária e se destinava ao seu comércio. Ora, esses factos não se encontram provados; eles nem, tão pouco, foram alegados. Se o réu entende que o autor pretendia exclusivamente vender o Mercedes ..., tinha que o alegar e provar. A circunstância de o autor ser comerciante de automóveis não significa que ele, necessariamente, destinava esse Mercedes à venda. Um comerciante de automóveis também é utilizador de veículos e pode, até, usar durante algum tempo uma viatura para, só mais tarde, a vender. Pode igualmente querer ceder por empréstimo algum dos seus veículos ou por isso ser vantajoso para o seu negócio ou por um qualquer interesse particular. Aliás, na versão do réu foi esse o fim dado pelo autor ao Mercedes ..., ao alegadamente o emprestar à ... deB... L.da.

Portanto, os pressupostos de facto em que assenta esta alegação do réu não estão demonstrados, pelo que cai a conclusão que neles assenta.


III

Com fundamento no atrás exposto, julga-se improcedente o presente recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo réu.


António Beça Pereira (Relator)
Nunes Ribeiro
Hélder Almeida


[1] Cfr. conclusões 1.ª a 7.ª.
[2] Cfr. conclusão 11.ª.
[3] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, pág. 23.
[4] Cfr. artigo 676.º n.º 1 do Código de Processo Civil. Neste sentido pode ver-se Ac. STJ de 28-4-2010 no Proc. 2619/05.4TTLSB, em www.gde.mj.pt, Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 23, Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2ª Edição, pág. 566 e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em processo Civil, 9.ª Edição, pág. 153 a 158.
[5] Neste sentido Pedro Martinez, Direito das Obrigações, 2.ª edição, pág. 115.
[6] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, 6.ª Edição, pág. 102. Igual solução parece também defender Pedro Martinez, obra citada, pág. 115.
[7] Cfr. artigos 3.º e 4.º da petição inicial.
[8] Cfr. artigos 15.º a 29.º da contestação.
[9] É comerciante de automóveis e colabora com a actividade que o autor tem nessa área. Afirma ter presenciado as conversas entre o autor e o réu relativas aos negócios que envolveram os veículos Audi BF e Mercedes ....
[10] Tem uma oficina de automóveis, à qual o réu levou o Mercedes ... para saber do estado desta viatura.
[11] É irmã do autor e sócia da ... de B... L.da. Esta testemunha depôs sobre a matéria dos quesitos 29.º a 32.º, onde se encontra vertida a versão do réu, pronunciando-se sobre a questão de ter havido uma venda ou um empréstimo do Mercedes ....
[12] Cfr. artigos 13.º a 15.º e 19.º a 22.º da contestação.
[13] Cfr. artigo 19.º da contestação.
[14] Cfr. artigo 20.º da contestação.
[15] Ac. Rel. Porto de 19-9-00, CJ 2000-IV-186.
[16] Cfr. folhas 142 e 143.
[17] Cfr. conclusões 11.ª e 12.ª.