Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
235/13.6TTLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FELIZARDO PAIVA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DO RECORRENTE
ACIDENTE DE TRABALHO
NEXO DE CAUSALIDADE.
Data do Acordão: 12/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – SECÇÃO DE TRABALHO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 640º, Nº 2, AL. A) DO NCPC; 8º, 9º E 10 DA LEI Nº 98/2009, DE 4/09 (LAT).
Sumário: I – Quando se impugne a matéria de facto exige a lei, além do mais, que quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, ..., não bastando indicar de forma genérica a prova testemunhal e documental junta.

II – Nos termos do artº 8º, nº 1 da LAT (Lei nº 98/2009) é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.

II – Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido no trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste; na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para o empregador; ...; fora do local ou tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pelo empregador ou por ele consentidos – artº 9 da Lei nº 98/2009, de 4/09.

III – Para existir acidente de trabalho reparável é necessário que exista um nexo de causa e efeito (nexo de causalidade) entre o acto lesivo e a lesão corporal, presumindo-se esse nexo se a lesão for constatada no tempo e local de trabalho – artº 10º, nº 1 da LAT.

IV – Independentemente de ocorrer ou não no tempo e no local de trabalho, o que relevará fundamentalmente para que um acidente possa ser considerado como de trabalho é que o trabalhador se encontre, no momento da sua verificação, sob a autoridade da entidade empregadora, se encontre a executar um serviço ou tarefa por ela determinado.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – A... , divorciado, residente na Rua (...) , Alcobaça, instaurou a presente acção para a efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, contra “B..., COMPANHIA DE SEGUROS, SA”, com sede na Rua (...) , Lisboa, pedindo que, na respectiva procedência, a Ré seja condenada a pagar-lhe:

a) O capital de remição calculado com base na pensão anual que vier a ser apurada após a fixação da ITP e IPP;

b) A quantia de € 117,00 a título de despesas com deslocações obrigatórias ao Tribunal e ao Gabinete Médico-Legal, e ainda as despesas que o Autor efectuou e venha a efectuar com tratamentos e deslocações, a apurar em execução de sentença;

c) Os juros vencidos e vincendos até ao seu integral pagamento.

Para tanto alegou, em síntese, que foi vítima de um acidente no dia 08.12.2013, quando trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização como vendedor, da “C... , Lda.”, designadamente quando procedia à limpeza do veículo que a entidade patronal lhe atribuiu, do qual resultaram sequelas, tendo ficado afectado, a final, com incapacidade permanente para o trabalho, e suportou despesas com tratamentos de fisioterapia e deslocações para a sua realização, pelo que tem direito ao pagamento das quantias peticionadas, estando a responsabilidade do seu pagamento a cargo da Ré.


+

Devidamente citada contestou a R alegando que o acidente em causa não pode ser configurado como acidente de trabalho, porquanto o sinistrado estava a lavar o veículo automóvel, o qual, embora pertença da sua entidade empregadora, lhe estava também adstrito para uso pessoal, fora do horário de trabalho, em dia de feriado nacional, na sua residência, e fora de qualquer actividade relativa à sua actividade laboral

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II – Organizou-se apenso para fixação da incapacidade, foi proferido despacho saneador e, após selecção da matéria de facto assente e da matéria controvertida, prosseguiram os autos a sua normal tramitação com prolação de sentença na qual se julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência, decidiu absolver a Ré do pedido contra si formulado pelo Autor.

***

III – Inconformado, veio o autor apelar, alegando e concluindo:

[…]


+

Contra alegou a seguradora, rematando em síntese conclusiva:

[…]


+

Recebida a apelação e colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

***

IV – Da 1ª instância vem assente a seguinte matéria de facto:

[…]


****

V - Do direito:

Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas respectivas conclusões a questão a decidir passa por saber:

1. Se a sentença é nula.

2. Se há lugar à alteração da matéria de facto

3.Se ocorreu um típico e indemnizável acidente de trabalho.

Da nulidade da sentença:

Alega o recorrente que a sentença recorrida, não se encontra devidamente fundamentada, pelo que, é nula nos termos do artº. 668º, nº1 alínea b) do C.P.Civil.

O recorrente fica-se pela afirmação sem adiantar uma única razão ou justificação onde alicerce a alegada falta de fundamentação.

Ora, como se sabe, só a total ausência de fundamentação gera o vício da nulidade da sentença.

Mas, independentemente de se saber se ocorre essa total falta de fundamentação, há a assinalar que, como é sabido, em processo laboral a arguição das nulidades da sentença obedece a um formalismo próprio que se afasta do processo civil comum.

Constata-se que arguição não teve lugar no requerimento de interposição do recurso da forma imposta pelo artigo 77º, nº 1, do CPT – expressa e separadamente (“a arguição de nulidades da sentença é feita expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso”).

Conforme insistentemente esta Relação tem vindo a afirmar a referida norma do CPT encontra a sua razão de ser na circunstância da arguição das nulidades serem, em primeira linha, dirigidas à apreciação pelo juiz pelo tribunal da 1ª instância e para que o possa fazer. Radica no “princípio da economia e celeridade processuais para permitir ao tribunal que proferiu a decisão a possibilidade de suprir a arguida nulidade” (v., por todos, Ac. Relação do Porto de 20-2-2006, in www.dgsi.pt, proc. nº 0515705 e jurisprudência ali citada).

O Ac. do Tribunal Constitucional nº 304/2005, DR, II Série, de 05.08.2005 confirma esta doutrina: em processo do trabalho, o requerimento de interposição de recurso e a motivação deste, no caso de arguição de nulidades da sentença, deve ter duas partes, a primeira dirigida ao juiz da 1ª instância contendo essa arguição e a segunda (motivação do recurso) dirigida aos juízes do tribunal para o qual se recorre.

Por conseguinte, uma vez que o procedimento utilizado pelo autor apelante, para a arguição da nulidade da sentença, não está de acordo com o legalmente exigido em processo de trabalho, não se conhecerá da mencionada nulidade uma vez que, não tendo sido dado cumprimento ao estabelecido no art. 77º, nº 1, do CPT, a sua arguição é extemporânea.

Da alteração da matéria de facto:

No que a que este aspecto concerne, o recorrente limita-se a alegar que da prova produzida em Audiência de Julgamento e a prova documental constante dos autos, não pode resultar a decisão proferida pela meritíssima Juíza do tribunal “a quo”; a prova documental constante nos autos e nos depoimentos testemunhais devem levar à procedência da acção; a Meritíssima Juíza do Tribunal “a quo” não apreciou devidamente, quer a prova documental dos autos quer a prova testemunhal em Audiência de Julgamento; desde logo, ao dar como provado o número 1º da Base Instrutória, acrescentou bem como para seu uso pessoal; de lado nenhum podia a Meritíssima Juíza do tribunal “a quo” ter concluído que o Autor utilizava o veículo de matrícula IR (...) para seu uso pessoal (que de resto tinha a sua viatura própria)

Ora, quando se impugne a matéria de facto exige a lei que se observem determinados procedimentos sob pena de rejeição.

Prescreve o art. 640º nº 1 do CPC que “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”.

Por seu turno a alínea a) do seu nº 2 dispõe: “No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;”

No que respeita à indicação dos concretos pontos de facto que reputa como mal julgados, o recorrente indica o facto 1 insurgindo-se, se bem estamos a ver a questão, contra o facto do tribunal ter dado como provado na resposta ao quesito 1 que a viatura que lhe estava distribuída se destinava também ao seu “uso pessoal” mas, depois, não concretiza os meios probatórios constantes do processo que impõem decisão diversa, limitando-se a indicar de forma genérica a prova testemunhal e documental junta aos autos.

Por isso, parece-nos evidente que não deu minimamente cumprimento ao exigido pelo citado artº 640º, o que constitui motivo de rejeição da apelação na parte relativa à impugnação da matéria de facto.

Ainda assim, sempre se dirá que o que parece perturbar o recorrente é o facto do tribunal ter dado como provado que o veículo se destinava a uso pessoal do autor quando no quesito 1º da base instrutória não se perguntava isso.

Efectivamente, no quesito 1º[1] não se perguntava se a viatura se destinava a uso pessoal.

Todavia, no artº 20º da contestação a recorrida alegou que o veículo estava distribuído ao autor para seu uso pessoal, ou seja, este facto foi alegado e sobre ele incidiu o contraditório ou discussão pelo que não estava o tribunal impedido, antes pelo contrário, de o considerar na decisão da matéria de facto nos termos do disposto no nº 1 parte final do artº 72º do CPT.

Também por esta razão, a decisão sobre a matéria de facto se deve manter inalterada.

Da caracterização do acidente como de trabalho:

A 1ª instância entendeu que o acidente dos autos não ode ser caracterizado como de trabalho.

Para o efeito, alinhou a argumentação que, apesar da sua extensão, a seguir se transcreve para um melhor enquadramento da questão:

Lê-se na decisão recorrida que “de acordo com o art. 8º, nº 1 da Lei nº 98/2009, de 04/09, é acidente de trabalho aquele que se verifica no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.

Entende-se por “local de trabalho” todo o lugar onde o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador” [al. a) do nº 2 do art. 8º] e por “tempo de trabalho além do período normal de trabalho” o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas do trabalho [al. b) do nº 2 do art. 8º].

Este conceito de acidente de trabalho é ampliado pelo art. 9º do mesmo diploma, preceito que tem a epígrafe “extensão do conceito”. Aí se diz, no nº 1, que: “Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido: a) No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte; b) Na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para o empregador; c) No local de trabalho e fora deste, quando no exercício do direito de reunião ou de actividade de representante dos trabalhadores, nos termos previstos no Código do Trabalho; d) No local de trabalho, quando em frequência de curso de formação profissional ou, fora do local de trabalho, quando exista autorização expressa do empregador para tal frequência; e) No local de pagamento da retribuição, enquanto o trabalhador aí permanecer para tal efeito; f) No local onde o trabalhador deva receber qualquer forma de assistência ou tratamento em virtude de anterior acidente e enquanto aí permanecer para esse efeito; g) Em actividade de procura de emprego durante o crédito de horas para tal concedido por lei aos trabalhadores com processo de cessação do contrato de trabalho em curso; h) Fora do local ou tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pelo empregador ou por ele consentidos”, dizendo-se depois, no nº 2, que: “A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador: a) Entre qualquer dos seus locais de trabalho, no caso de ter mais de um emprego; b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho; c) Entre qualquer dos locais referidos na alínea precedente e o local do pagamento da retribuição”; d) Entre qualquer dos locais referidos na alíneas b) e o local onde ao trabalhador deva ser prestada qualquer forma de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente; e) Entre o local de trabalho e o local da refeição; f) Entre o local onde por determinação do empregador presta qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho habitual ou a sua residência habitual ou ocasional”, não deixando “de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou de caso fortuito” (nº 3 do citado normativo).

Como vem referindo a jurisprudência, «a caracterização de um acidente de trabalho pressupõe a verificação de três elementos ou requisitos: a) um elemento espacial (local de trabalho); b) um elemento temporal (tempo de trabalho); c) um elemento causal (nexo de causa de efeito entre o evento e a lesão, perturbação funcional ou doença, por um lado, e entre estas situações e a redução da capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte)» (vide, neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Janeiro de 2005, in CJ/STJ Tomo I, p. 231).

Como decorre do ante exposto, para existir acidente de trabalho reparável, é necessário que exista um nexo de causa e efeito (nexo de causalidade) entre o acto lesivo e a lesão corporal, presumindo-se esse nexo se a lesão for constatada no tempo e local de trabalho (cfr. art. 10º, nº 1 da LAT); trata-se de uma presunção iuris tantum, logo ilidível mediante prova do contrário, nos termos do art. 350º do Código Civil, mas sendo muito importante por «libertar as vítimas de parcelas significativas do dever geral de prova, nomeadamente no que respeita a alguns elementos de facto em que se decompõe o conceito normativo de acidente de trabalho e a sua complexa inter-relação causal, seja face à falibilidade da prova testemunhal ou mesmo considerando a insuficiência ou incapacidade da ciência médica» - vide, neste sentido, Acórdão da Relação de Coimbra de 13.11.2007, in CJ, Tomo V, p. 56; no mesmo sentido pronunciou-se a Relação de Lisboa (em Acórdão de 19 de Maio de 2010, retirado de www.dgsi.pt): «Estas presunções assentam a sua razão de ser na constatação imediata ou temporalmente próxima, de manifestações ou sinais aparentes entre o acidente e a lesão (perturbação ou doença), que justificam, na visão da lei e por razões de índole prática, baseadas na normalidade das coisas e da experiência da vida, o benefício atribuído ao sinistrado (ou aos seus beneficiários), a nível de prova, dispensando-os da demonstração directa do efectivo nexo causal entre o acidente e a lesão ou mesmo, na referida interpretação do art. 7º, n.º 1 do RLAT, do concreto acidente gerador da lesão (Ac. do STJ de 18.01.2005, CJ/STJ, Ano XIII, T. I, pág. 231)».

A propósito do alcance de tal presunção, o STJ pronunciou-se no seguinte sentido: «a mera verificação do condicionalismo enunciado nos sobreditos preceitos demonstra a existência de nexo causal entre o acidente e a lesão, dispensando o beneficiário da sua prova efectiva. É dizer que o seu sentido útil se reporta em exclusivo aos pressupostos daquele nexo de causalidade, sendo de todo alheio à ocorrência do próprio acidente, enquanto tal» (vide Acórdãos de 14 de Abril de 2010, de 25 de Junho de 2008 e de 19 de Novembro de 2008, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Do confronto dos normativos já citados, resulta que só se pode qualificar como acidente de trabalho aquele em que concorram, cumulativamente, os seguintes pressupostos: «(…) - Existência de uma relação laboral entre o sinistrado e o dador do trabalho: - Ocorrência, no tempo e local de trabalho, de um facto ou evento em sentido naturalístico, súbito, violento, inesperado e de ordem exterior ao próprio lesado (v.g. queda, corte, esmagamento, pancada, intoxicação, soterramento); - Lesão, perturbação funcional ou doença; - Morte ou redução da capacidade de trabalho ou de ganho; - Nexo de causalidade entre o evento e as lesões; - Nexo de causalidade entre as lesões e a morte ou redução da capacidade de trabalho ou de ganho. Ou seja, tem de existir uma relação causal sucessiva e ininterrupta, entre todos os elementos por aquela ordem, pois o acidente de trabalho é constituído por uma cadeia de factos em que cada um dos respectivos elos tem de estar entre si sucessivamente interligados por um nexo de causa e efeito: o evento naturalístico tem de estar conexionado com a relação de trabalho; a lesão, perturbação ou doença, terão que resultar daquele evento; e a morte ou a incapacidade para o trabalho deverão resultar da lesão, perturbação funcional ou doença, de tal forma que se esse elo causal se interromper em algum dos momentos do encadeado fáctico atrás descrito, não poderemos falar, sequer, em acidente de trabalho – Ac. desta Relação de Lisboa de 10/10/2007 (www.dgsi.pt)» – Acórdão da Relação de Lisboa de 20 de Maio de 2009, disponível em www.dgsi.pt.

No caso concreto, não se deu como provado que o acidente (queda) tivesse ocorrido no tempo e local e trabalho, nem ficou demonstrada qualquer circunstância que permita enquadrar a situação em causa no citado artigo 9º da LAT.[2]

No que a esta matéria concerne, preceitua o art. 342º do Código Civil, no seu nº 1 que “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado” e no seu nº 2 que “a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita”.

Conforme refere o Prof. Antunes Varela (in Código Civil Anotado, I, p. 306), “Impondo o ónus de provar os factos impeditivos do direito invocado àquele contra quem a invocação do direito é feita, o artigo 342º aproxima-se bastante do critério da normalidade.

Aquele que invoca determinado direito tem de provar os factos que normalmente o integram; a parte contrária terá de provar, por seu turno, os factos anormais que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos”.

No caso dos autos, não logrou o Autor demonstrar, desde logo, que o evento naturalístico (queda), que determinou a lesão, esteja relacionado com a relação de trabalho, não bastando para tal que o acidente tenha ocorrido quando procedia à lavagem de veículo que lhe foi atribuído pela entidade patronal para o exercício das suas funções de vendedor, porquanto também o utilizava na sua vida pessoal, a ele incumbido proceder à respectiva limpeza, pelo que, em face do disposto no art. 342º, nº 1 do Código Civil já citado e à não existência de qualquer presunção legal que faça presumir a existência de um acidente de trabalho, competia ao Autor a prova da verificação do próprio acidente de trabalho, o que não sucedeu.

Assim, não se verificam todos os elementos que definem legalmente o acidente de trabalho, que, na definição de MELO FRANCO, Acidentes de Trabalho, Separata do B.M.J., 1979, p. 62, é “todo o acontecimento que produz directa ou indirectamente lesão corporal, funcional ou doença de uma trabalhador, de que resulte morte ou redução na sua capacidade de trabalho, devendo ter ocorrido no tempo e local de trabalho, havendo um nexo de causa e efeito entre o evento e a lesão, perturbação ou doença”, improcedendo, necessariamente e in totum, a presente acção”.

Decidindo:

Em primeiro lugar para que haja direito à reparação emergente de um acidente de trabalho não é necessário que o trabalhador sinistrado esteja vinculado através de uma relação de trabalho subordinado.

Como decorre do nº 1 artº 3º da LAT (aprovada pela Lei 98/2009 de 04/09), o regime previsto na dita Lei abrange o trabalhador por conta de outrem de qualquer actividade, seja ou não explorada com fins lucrativos.

No que se refere ao âmbito subjectivo, a Lei define trabalhador por conta de outrem todo aquele que está na dependência económica da pessoa em proveito da qual presta serviço, estabelecendo uma presunção de dependência económica quando a própria Lei não impuser entendimento deferente (nº 2 do citado normativo).

Aliás, isso mesmo resultava já, até com maior clareza, do disposto no artº 2º da Lei 100/97 quando neste número se fazia a expressa distinção entre trabalhadores vinculados através de contrato de trabalho e vinculados através de contrato legalmente equiparado.

Posto isso, há ainda a dizer que, conforme se refere na sentença impugnada, a LAT no seu artº 10º, não estabelece qualquer presunção que liberte o sinistrado ou os seus beneficiários de provar a verificação do próprio evento causador das lesões. À semelhança do que acontecia com os nº s 5 e 6 da Lei 100/97 e artº 7º do DL 143/99, onde a norma em questão teve a sua fonte, “o sentido útil dessa presunção é o de libertar o sinistrado ou os seus beneficiário da prova do nexo de causalidade entre o evento (acidente) e as lesões, não os libertando do ónus de provar a verificação do próprio evento causador das lesões” – Ac. desta Relação proferido no processo nº 71/09.4TTAGD.C1.

Portanto, importa saber se o autor logrou fazer prova do evento causador das lesões.

Nos termos do art. 8º nº 1 da LAT, é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.

O nº 2 deste normativo define o que se deve entender por local e tempo de trabalho.

Por seu turno, o artº 9º da mesma Lei estende o conceito de acidente de trabalho a outras situações, entre as quais figuram os acidentes ocorridos fora do local e do tempo de trabalho, quando verificados na execução de serviços determinados pela entidade empregadora ou por esta consentidos (alínea h) do n 1).

Para os efeitos em análise[3], importar reter a lição de Carlos Alegre, in Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 45-47, segundo a qual são três os elementos a considerar para que o acidente seja qualificável como de trabalho ao abrigo da mencionada alínea f): a) execução de serviços fora do local e/ou tempo de trabalho; b) missão ou função profissional, que pode ter carácter duradouro ou meramente ocasional ou esporádico; c) posição subordinada do trabalhador durante o cumprimento da missão.

E quanto à função profissional afirma: “Em regra, o cumprimento da missão impõe ao trabalhador não só a deslocação a determinados locais, como a sua permanência, mais curta ou mais longa, nesses locais, muitas vezes sem que o objecto específico da missão esteja a ser directamente trabalhado. Por outras palavras, o trabalhador que se desloca, fora do tempo e do local de trabalho, está sujeito a acidentes ocasionados directamente pelo cumprimento da sua missão profissional, como a acidentes ocasionados por actos da vida corrente, cujos riscos normalmente não correria. É na diferenciação entre actos da vida corrente, impostos pelas necessidades pessoais quotidianas (higiene, repouso, refeições, lazer, etc.) e os actos decorrentes da execução da missão ou função profissional que, com frequência, se colocam as dificuldades práticas. O critério de distinção só pode ser exactamente este: os actos da vida profissional distinguem-se dos actos da vida corrente, desde que decorram directamente da execução da missão. Por isso mesmo, afigura-se-nos pouco rigoroso e susceptível de, em geral, inultrapassáveis confusões falar-se de nexo de causalidade entre o acidente e o trabalho do sinistrado, devendo, antes, averiguar-se da existência ou não do vínculo de autoridade da entidade patronal, a qual, obviamente, só se exerce sobre os actos da vida profissional e não sobre os da vida corrente.”.

Resulta de quanto acaba de referir-se que a qualificação de um dado acidente como sendo de trabalho exige, em situações como aquelas de que ora cuidamos, que o trabalhador/sinistrado se encontre em função profissional, o mesmo é dizer em actos decorrentes da sua actividade profissional, e não em meros actos (particulares) de lazer, repouso, etc.

Para lá do que acaba de referir-se, importa ainda ter em conta que subjacente ao regime dos acidentes de trabalho está hoje a denominada teoria do risco económico ou do risco de autoridade (Carlos Alegre, Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 12, 13, 41 e 42) que sustenta como elemento preponderante na qualificação de um acidente como de trabalho o da sujeição do trabalhador, no momento do acidente, à autoridade do empregador.

Assim, independentemente de ocorrer ou não no tempo e no local de trabalho, o que relevará fundamentalmente para que um acidente possa ser considerado como de trabalho é que o trabalhador se encontre, no momento da sua verificação, sob a autoridade da entidade empregadora, se encontre a executar um serviço ou tarefa por ela determinado.

No caso em apreciação é fora de quaisquer dúvidas de que o evento que originou as lesões ocorreu fora do local e tempo de trabalho. Para além do mais o sinistrado procedia à lavagem do automóvel que lhe estava distribuído num dia de Domingo (08.12.12) e certamente o local (que a matéria de facto não revela) onde lavava a viatura não correspondia ao local onde devia desempenhar as suas funções de vendedor.

Podemos concluir, assim, que o evento infortunístico não ocorreu no local e tempo de trabalho.

Não obstante, o sinistrado tinha por missão proceder à lavagem do automóvel que estava distribuído.

De facto (ponto 6. não impugnado) ao Autor incumbia proceder à limpeza dessa viatura, ou seja, o sinistrado tinha ordens da sua empregadora para proceder à limpeza do veículo na qual, obviamente, se incluía a sua lavagem.

É verdade que o automóvel tinha também sido atribuído para seu uso pessoal.

Mas daqui não se pode concluir que, por esse facto, deixasse de estar obrigado a cumprir a missão que a sua empregadora lhe confiou, qual seja, a de proceder à limpeza do veículo que era utilizado também e principalmente para uso profissional.

Como assim, temos que no momento do acidente a que os autos se reportam, o sinistrado estava no desempenho da concreta missão de que foi incumbido pela sua entidade empregadora, logo praticando actos da sua da vida profissional, que não actos da sua vida corrente, fora do seu horário e local de trabalho e de forma subordinada em relação à entidade empregadora.

Por isso, tendo em conta a extensão da noção de acidente a que se reporta a alínea h) do nº 1 do artº 9º da LAT o acidente deve ser qualificado como de trabalho, havendo lugar à reparação infortunística por parte da seguradora para a qual a responsabilidade estava transferida em parte, e ainda por se encontrar também demonstrado o nexo de causalidade entre o evento e as lesões sofridas pelo sinistrado.


****

IV Termos em que se delibera julgar totalmente procedente a apelação, em função do que se decide:

1) Declarar que o acidente a que se reportam os presentes autos é um típico e indemnizável acidente de trabalho

2) Condenar a ré a pagar ao autor:

a) O capital de remição de uma pensão anual e vitalícia obrigatoriamente remível desde a data em que é devida – 22 de Abril de 2013 – no valor de € 7.203,41[4]

b) A indemnização por ITA no valor de € 2678,22[5] correspondente a 133 dias (desde 09.12.12 a 21.04.13), acrescida da parte proporcional correspondente aos subsídios de férias e de Natal nos termos do artº 50º da LAT, a que haverá de deduzir a quantia de € 1.326,25 já paga pela seguradora ao sinistrado a esse título.

c) Juros vencidos e vincendos desde a data do vencimento[6] das quantias atrás referidas até efectivo pagamento.


*

Custas a cargo da seguradora.

*

Valor: € 8.555,38

*

Coimbra, 16 de Dezembro de 2015

*

(Joaquim José Felizardo Paiva)

(Paula Maria Videira do Paço)

(José Luís Ramalho Pinto)



[1] O quesito 1º tem a seguinte redacção: “A sociedade “C..., Lda.” atribuiu ao A. o veículo de matrícula IR (...) para exercer as unções de vendedor em todo o país, durante a semana, aos fins de semana e feriados?”
[2] Negrito e sublinhado nosso
[3] E aqui seguimos o decidido no Ac. desta secção social de 28.11.13, proferido no procº 922/06.5TTLRA.C1, consultável em www.dgsi.pt.que tirado no domínio da Lei 100/97 tem hoje plena actualidade na medida em que a alínea h) da actual LAT corresponde, sem alterações, à alínea f) do nº 1 do artº 6º da anterior LAT.
[4] € 10,500 (Valor anual do salário transferido) x IPP de 0,0572 x 0,70 = € 435,12 (valor da pensão) x 16,555.
[5] Calculada nos termos da alínea d) do nº 3 do artº 48º da LAT.
[6] Cfr artºs 50º nºs 1 e 2 da LAT.