Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
143/08.2TBOBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: EXCEPÇÃO DILATÓRIA
INCOMPETÊNCIA
PEDIDO CÍVEL
INDEMNIZAÇÃO
DANO
MORTE
ILÍCITO CRIMINAL
Data do Acordão: 03/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - ANADIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 71.º: 72.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. ARTIGOS E 493.º 1 E 2: 494.º E 288.º, N.º 1, AL. A), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. Decorre do princípio da adesão obrigatória do processo civil ao processo penal, que, para demandar os responsáveis com base num ilícito penal, o lesado tem de recorrer aos autos criminais, só o podendo fazer em separado e noutro foro, nos casos excepcionais previstos no artigo 72.º do CPP.

2. A não inclusão (por esquecimento) do pedido de indemnização pelo dano morte na acção cível processada nos autos crime, não constitui excepção à regra consagrada no artigo 71.º do CPP, pelo que o tribunal civil carece de competência para o seu conhecimento, devendo o réu ser absolvido da instância.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

           

A..... e B...., intentaram a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra C....., já identificados nos autos, pedindo a condenação do réu a pagar-lhes a quantia de 70.000,00 €, a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela vítima D.... (pela perda do seu direito à vida), acrescida de juros desde a citação do réu e até integral pagamento, que viessem a vencer-se.

            Para tanto, alegaram, em resumo, serem os únicos filhos e herdeiros de D...., o qual, conforme os factos dados por apurados no processo n.º 525/06.4GBOBR, foi vítima de homicídio perpetrado pelo aqui réu, que ali era arguido, nas condições melhor descritas no Acórdão naqueles autos proferidos e junto, por certidão, de fl.s 20 a 63, transitado em julgado em 19 de Março de 2009, cf. informação de fl.s 93.

O ali arguido e aqui réu, C..., quis matar e matou a vítima Amílcar, computando os aqui autores a indemnização devida pela morte de seu pai na quantia de 70.000,00 €.

            Contestando, o réu, em primeira linha, alegou que se verifica a inadmissibilidade legal da dedução do pedido cível ora formulado nos presentes autos, com o fundamento em que nos referidos autos de processo crime já haviam deduzido pedido de indemnização cível peticionando a sua condenação por danos morais e lucros cessantes, o qual foi julgado totalmente improcedente, no qual os ora autores não formularam o pedido de indemnização decorrente do dano morte da vítima, pelo que a decisão ali proferida transitou em julgado.

Mais refere que sob pena de violação do princípio da adesão consagrado no artigo 71.º do CPP, não podem, agora, os autores formular o pedido que não deduziram no âmbito do processo crime, em consequência do que pugna pela sua absolvição da instância, para além do que impugna a veracidade dos demais factos alegados pelos autores e para o caso de improcedência das alegadas excepções, pela improcedência do pedido, que reputa, ainda, de exagerado.

            Replicando, os autores reiteram os seus pontos de vista, quanto a tal, já expendidos na p. i., designadamente que não se verifica a excepção de caso julgado, porque o pedido aqui formulado é diferente do peticionado nos referidos autos crime, já que aqui o mesmo se refere ao dano vida que naqueles não foi objecto de apreciação e porque não estão impedidos de demandar o réu civilmente, nem isso importa a violação de quaisquer princípios subjacentes ao processo penal.

           

            Findos os articulados, pelo M.mo Juiz foi dispensada a realização da audiência preliminar e proferido o despacho saneador de fl.s 102 a 104, em que se decidiu pela procedência da excepção dilatória de incompetência material/inadmissibilidade legal da presente acção invocada pelo réu, em função do que o absolveu da instância, ficando as custas a cargo dos autores.

            Fê-lo, resumidamente, com o fundamento em que os autores violaram o princípio da adesão previsto no artigo 71.º do CPP, por força do qual é obrigatória a adesão do processo civil ao processo penal em termos de o pedido cível fundado na prática de um crime ter de ser deduzido no processo penal respectivo, salvas as excepções legalmente previstas e que não se encontram verificadas no caso em apreço.

            Inconformados com tal decisão dela, interpuseram os réus o presente recurso, recurso, esse admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 119), concluindo a sua motivação do seguinte modo:

            1-O presente recurso vem interposto da sentença que julgou a invocada excepção dilatória de incompetência material/inadmissibilidade legal da presente acção procedente e consequentemente, absolveu o Réu C... da instância;

2- Salvo o devido respeito, discordamos da tese defendida pelo tribunal ad quo;

3- Os Recorrentes consideram que o Ex.mo Juiz a quo esteve mal ao decidir julgar procedente tal excepção dilatória e, consequentemente, não ter conhecido do objecto do processo;

4-Na verdade invoca o tribunal a quo uma clara violação do principio da adesão, pelo facto dos AA. não terem deduzido o pedido, que nestes autos se faz, no processo penal respectivo;

5-Na verdade e conforme foi dado a conhecer pelos recorrentes, que juntaram a certidão do acórdão proferido no processo crime que correu os seus termos no extinto Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro, sob o nº 525/06.4GBOBR, nesse processo foi formulado um pedido cível, totalmente diferente do peticionado nestes autos;

6- O pedido formulado naqueles autos é distinto do pedido aqui formulado, não havendo identificação de pedidos;

7- O pedido formulado nestes autos é o direito à vida e a sua violação como um dano autónomo;

8- O dano resultante da perda do direito à vida goza de autonomia relativamente aos outros danos patrimoniais e não patrimoniais dos aqui Recorrentes sofridos em consequência da morte do pai destes;

9-Entendemos pois não existir nenhum impedimento deste pedido ser conhecido e apreciado pelo tribunal Cível, por duas ordens de razão, como se passará a elencar;

10-Sendo tal pedido divergente do peticionado na instância criminal, não existe aqui caso julgado, dado que não se está a apreciar o mesmo pedido;

11- A excepção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa; repetindo-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, nos termos do artigo 497.º, n.º 1 do CPC, aplicável por força do artigo 4.º do CPP);

12-Apesar de existir identidade de sujeitos e de causa de pedir, não existe, in casu, uma identidade de pedido;

13- Falecendo, assim, um dos argumentos defendidos pelo tribunal ad quo;

14-O artigo 71º do CPP estabelece que o pedido cível fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado nos casos previstos na lei;

15- Dispõe a alínea a) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP, que “o pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado perante o tribunal civil, quando o processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da noticia do crime”;

16- In casu, a notícia do crime situou-se em Setembro de 2006 e a acusação data de 30 de Julho de 2007, isto é, 10 meses depois a contar da notícia do crime.

17- Logo o caso em apreço é subsumível ao preceituado no artigo 72.º, n.º 1, alínea a) do CPP;

18- Podendo, assim, os recorrentes deduzir todo e qualquer pedido resultante do facto danoso, em separado, como o vieram a fazer e que o tribunal a quo;

19- Em suma, o pedido dos ora recorrentes deveria ter sido apreciado pelo tribunal ad quo;

20- Assim, a sentença violou os artigos 71.º e 72.º do CPP.

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO APLICÁVEL, SEMPRE COM O MUI DOUTO SUPRIMENTO DE V. EXªS., DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE POR PROVADO, DEVENDO A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA SER REVOGADA POR OUTRA QUE A SUBSTITUA, FAZENDO-SE,

ASSIM, A COSTUMADA

JUSTIÇA!

            Não foram apresentadas contra-alegações.

            Dispensados os vistos legais, há que decidir.

            Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 684, n.º 3 e 690, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a única questão a decidir é a de apurar se se verifica ou não, a invocada excepção de incompetência material por inadmissibilidade legal da presente acção.

            Para a decisão do presente recurso, importa considerar os seguintes factos para tal relevantes:

            1. Conforme certidão de fl.s 20 a 63 e ofício de fl.s 93, aqui dados por integralmente reproduzidos, através de Acórdão proferido pelo Tribunal de Círculo de Anadia, em 10 de Janeiro de 2008, transitado em julgado em 19 de Março de 2009, nos autos de Processo Comum (Tribunal Colectivo) n.º 525/06.4GBOBR, o aqui réu C..., foi condenado na pena de 8 anos de prisão, pela autoria material de um crime de homicídio simples na forma consumada e dolosa, p. e p. pelo artigo 131.º do CP, na pessoa de D....

            2. No mesmo Acórdão, foi julgado improcedente por não provado o pedido de indemnização cível ali deduzido pelos demandantes A... e B..., do qual foi o ali arguido, absolvido.

            3. Conforme certidão de fl.s 96 a 101, aqui dada inteiramente por reproduzida, os aqui autores, deduziram pedido cível contra o aqui réu, no âmbito dos autos, então, de inquérito com o n.º referido em 1, pedindo a condenação deste na quantia de 106.000,00 €, reportando-se a quantia de 56.000,00 € a lucros cessantes com a perda de rendimentos que a vítima deixou de auferir, em consequência da morte que lhe foi causada pelo aqui réu e a de 50.000,00 €, respeitante a danos morais sofridos pelos demandantes decorrentes da morte de seu pai.

            4. Como decorre da certidão referida em 1., designadamente cf. fl.s 57 a 60 dos presentes autos, tal pedido cível foi julgado improcedente com o fundamento em os ali demandantes não terem provado os factos em que o mesmo assentava e relativamente ao dano decorrente da morte da vítima, não se fixou nenhuma indemnização porque os aqui autores e ali demandantes não o alegaram nem peticionaram, com base nele, qualquer indemnização.

            5. Dano que reclamam com a propositura da presente acção, a qual ocorreu em 21 de Fevereiro de 2008, cf. fl.s 2.

            Passando à análise da excepção de incompetência material por inadmissibilidade legal da presente acção, invocada pelo aqui réu, importa ter em linha de conta o disposto nos artigos 71 e 72, do CPP e 493, n.os 1 e 2, 494.º e 288.º, n.º 1, al. a), do CPC.

            De acordo com tais preceitos do CPP, consagrou-se entre nós o princípio da adesão obrigatória da acção civil à acção penal, de harmonia com o qual o direito à indemnização por perdas e danos sofridos com o ilícito criminal só pode ser exercido no processo penal, mediante o enxerto do procedimento civil na estrutura do processo penal em curso, com a excepção, entre nós consagrada nos artigos 72.º e 82.º, do CPP, desiderato que não se verificou no caso em apreço, uma vez que no processo penal se conheceu e decidiu o pedido cível aí deduzido pelos ora autores.

            Por outro lado, e de acordo com o estabelecido no artigo 84.º do mesmo CPP, atribui-se força de caso julgado às sentenças penais, ainda que absolutórias, que conhecerem do pedido cível nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis (não obstante, no caso em apreço, não há que analisar a questão sob o prisma do caso julgado, apesar da sua alegação por parte do réu, uma vez que tal questão não chegou a ser apreciada na decisão recorrida, que se baseou apenas e tão só na questão da incompetência material para apreciação e decisão do pedido aqui formulado).

            Uma das consequências que decorre do princípio da adesão do pedido cível ao processo penal é a de que (e tal como estabelecido no artigo 129, CPP) haverá que respeitar, no que se refere ao pedido cível enxertado, os princípios básicos do processo civil.

           

            Como estatui o artigo 71.º do CPP:

            “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.”.

            Estas excepções são as previstas no artigo 72.º e 82.º do mesmo Código, sendo que esta última, como acima já se referiu, não tem aplicação por se ter conhecido do pedido cível formulado no processo penal.

            Da conjugação destes preceitos tem de concluir-se existir no nosso ordenamento jurídico uma adesão obrigatória do mecanismo civil ao penal, nos termos do que a indemnização cível decorrente da prática de um ilícito criminal tem, por regra, de ser conhecida e decidida no processo penal.

            Como o refere F. Dias, in Sobre a reparação de perdas e danos arbitrada em processo penal, 1963, Separata do BFDC, 8.º, “a razão de ser de tal sistema estará na natureza tendencialmente absorvente do facto que dá causa às duas acções, em atenção aos efeitos úteis que, do ponto de vista pessoal, se ligam à indemnização civil.”.

            Ou, no dizer de Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, pág. 87 “verifica-se, assim, na unidade formal do processo penal, a conjunção e coordenação da acção penal e da acção civil”.

            Tal princípio da adesão obrigatória do processo civil ao processo penal, significa, pois, que, para demandar os responsáveis com base num ilícito penal, o lesado tem de recorrer aos autos criminais, só o podendo fazer em separado e noutro foro, nos casos excepcionais previstos no artigo 72.º do CPP.

           

            De resto, nem os recorrentes põem em crise que assim seja.

            Ao invés, pretendem socorrer-se, agora, em sede de alegações de recurso, que o podem fazer ao abrigo do disposto no artigo 72.º, n.º 1, al. a) do CPP, de acordo com o qual:

            “1. O pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, quando:

            a) O processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de 8 meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo;”.

            Efectivamente, cf. conclusões 16.ª a 18.ª alegam os recorrentes que a notícia do crime se situou em Setembro de 2006 e acusação data de 30 de Julho de 2007, ou seja, dez meses contados desde a notícia do crime.

            No entanto, na petição inicial, nada referem os ora recorrentes quanto a tal, pelo que estamos perante questão nova, não alegada nos articulados, sendo que os recursos constituem um “remédio jurídico” para concretas questões, de direito ou de facto, já apreciadas nos autos e não para apreciar questões novas, por referência à decisão recorrida.

            Não obstante, não deixaremos de referir o seguinte:

            Dada a obrigatoriedade da adesão do processo civil ao penal, em matéria de indemnização civil fundada em ilícito penal, estando a sua dedução em separado e perante outro foro condicionada à existência de uma das excepções previstas a tal regra, logo ao deduzir a acção, o lesado que beneficie de tal excepção deverá alegar os factos em que a mesma (excepção) se fundamenta – neste sentido, o Acórdão desta Relação, de 24/04/2007, Processo n.º 6135/05,6TBLRA.C1, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrc.

            Ora ao deduzirem a presente acção, os ora recorrentes nada alegaram quanto a tal e agora, também já não o poderão fazer.

            Por outro lado, como o referem Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal, Anotado, I Volume, 2.ª Edição, Reimpressão, Rei dos Livros, 2004, a pág. 394, com a excepção prevista na al. a) do n.º 1 do artigo 72.º CPP, quis o legislador “facilitar um instrumento de satisfação dos interesses particulares do lesado sempre que a via criminal (por dificuldades investigatórias ou inoperância do sistema) não seja capaz de, em tempo considerado razoável, levar o feito a juízo através da acusação.”.

            Mas, não é isto que está aqui em causa.

            O que acontece é que (cf. itens 3 e 4 dos factos provados) os recorrentes, logo em 13 de Agosto de 2007, formularam no processo penal, o pedido cível que entenderam e no qual se “esqueceram” de incluir o dano decorrente da morte da vítima.

            Tanto assim é, que tendo sido lido o Acórdão proferido no processo crime em 10 de Janeiro de 2008, no qual, pelas razões que constam dos itens ora referidos, se julgou improcedente o pedido cível ali formulado, logo, em 21 de Fevereiro de 2008, os ora recorrentes intentaram a presente acção.

            Ou seja, não se antevêm no comportamento processual dos ora recorrentes quaisquer motivações decorrentes no atraso da dedução da acusação mas sim de um mero esquecimento em alegarem o dano de que ora pretendem ser ressarcidos que, com a propositura da presente acção, pretendem remediar.

            Só se compreenderia que assim não fosse se nenhum pedido cível tivesse sido formulado no processo penal, o que não aconteceu.

            Ainda assim, como acima já se referiu, os autores e ora recorrentes, só em sede de alegações de recurso afloram tal questão, o que, desde logo, impediria que se analisasse tal questão, a qual, pelas razões ora expostas, também, não seria relevante.

            Consequentemente, tal como decidido na decisão recorrida, não se verifica nenhuma excepção à regra consagrada no artigo 71.º do CPP, do que decorre que o pedido ora formulado deveria ter sido, obrigatoriamente, formulado no processo penal, carecendo o tribunal civil de competência para o seu conhecimento e decisão, verificando-se, pois, a alegada excepção de incompetência material do presente Tribunal, para apreciar e decidir os presentes autos, com a consequente absolvição do réu da instância, em conformidade com o disposto nos artigos 493.º, n.os 1 e 2; 494.º, al. a) e 288.º, n.º 1, al. a), todos do CPC, em função do que tem o presente recurso de improceder.

Nestes termos se decide:

Julgar por improcedente o presente recurso de apelação, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.