Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
43/10.6GDAND-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: APOIO JUDICIÁRIO
DISCORDÂNCIA DO TRIBUNAL
Data do Acordão: 11/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA -ANADIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 18º,2, 20º, 44º LEI Nº 34/04
Sumário: Prevendo a lei a possibilidade de o apoio judiciário ser requerido até ao trânsito em julgado da decisão final e sendo esse benefício concedido pelos serviços competentes para o efeito, não pode o tribunal opor-se com base num diferente entendimento sobre as circunstâncias em que tal benefício poderia ser requerido.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

Nos autos de processo sumário que correm termos pela Comarca do Baixo Vouga – Juízo de Instância Criminal de Anadia, e que originaram o presente recurso em separado, foi proferido despacho com o seguinte teor:
Nos presentes autos foi o arguido condenado por sentença proferida a 15- 04-2010 e transitada em julgado a 19-05-2010 (fls.19 e 47).
A 05-05-2010 (fls.33) o arguido requereu protecção jurídica junto dos serviços de segurança social, o qual lhe foi deferido na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo (fls.40).
Sobre a decisão que concedeu o apoio judiciário ao arguido pronunciou-se o Ministério Público nos termos da vista de fls.41 e 42 (cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido) pugnado pela interpretação de que em processo penal a protecção jurídica só pode ser requerida até ao trânsito em julgado da decisão final desde que o requerente pretenda aceder ao direito e aos tribunais. Caso contrário, se já foi ou sabe que vai ser condenado e com isso se conformou e nada mais quer do processo, mais não tem que assumir a sua responsabilidade tributária.
Requer o Ministério Público que se desatenda a produção de quaisquer efeitos do requerido apoio judiciário e que se comunique tal facto à S.Social.
O arguido, apesar de notificado, não se pronunciou.
Cumpre apreciar e decidir:
Em nosso entender, e salvo o devido respeito por opinião contrária, a posição aqui defendida pelo Ministério Público e pela doutrina e jurisprudência citadas não é a que melhor se ajusta às finalidades do art. 20.° da C.R.P. e do art. 1º, n.o 1, da L. n.º 34/2004, de 29/07.
Com efeito, julgamos mais consentâneas com os objectivos das "supra" referidas normas as seguintes decisões:
Acórdão do T.R.Guimarães de 31/10/2005 (em www.dgsLpt - Processo n.º 1783/05) em cujo sumário se lê que:
"1- Na vigência da Lei 30-E/90 de 20-12, tal como já acontecia no regime do anterior Dec.-Lei 387-B/87, de 29-12, em que o apoio judiciário podia ser requerido "em qualquer estado da causa'" - en. 17 n," 2, a jurisprudência veio a fixar-se no entendimento de que o apoio judiciário só operava para o futuro, isto é, a partir do momento em que tinha sido requerido.
II - Na verdade, destinando-se o sistema de acesso ao direito e aos tribunais a promover que a ninguém seja dificultado ou Impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, de conhecer; fazer valer ou defender os seus direitos, verdadeiramente, o requerente do apoio judiciário só necessitava dele para o que ainda tivesse de litigar, pelo que, fazer retroagir os seus efeitos ao inicio do processo equivaleria a uma isenção do pagamento das quantias já em divida, o que nada tinha a ver com a possibilidade de defesa.
III - Mas a Lei 34/04 de 29-7 estabeleceu um regime diferente: o apoio judiciário "deve ser requerido antes primeira intervenção processual" (art. 18º, nº 2), salvo se ocorrer facto superveniente, e mesmo neste caso, "o apoio judiciário deve ser requerido antes da primeira intervenção processual que ocorra após o conhecimento da respectiva situação" (art. 18 nº 3).
IV - No entanto, alguma excepção tinha de ser prevista para o processo penal, sob pena de existirem situações em que, simplesmente, seria negada a possibilidade de apoio judiciário a quem dele estivesse carente, pois que, sendo, actualmente, o apoio judiciário sempre decidido pelos serviços da segurança social (art. 20), casos haveria em que o arguido, na prática, estaria impedido de se dirigir àqueles serviços antes da primeira intervenção no processo, como, por exemplo, quando fosse detido em flagrante delito e apresentado nessa situação para primeiro interrogatório ou para julgamento em processo sumário, como é o caso dos autos.
V - Essa a razão da norma do art. 44 n" 1 da nova Lei, que dispõe que se aplicam ao "processo penal, com as necessárias adaptações, as disposições do capitulo anterior, com excepção do disposto nos nºs 2 e 3 do art. 18.°, devendo o apoio judiciário ser requerido, até ao trânsito em julgado da decisão final",
VI - Temos, pois que, actualmente, ao contrário do que acontecia anteriormente, a lei fixa o momento até ao qual tem de ser requerido o apoio judiciário: na generalidade dos processos, até à primeira intervenção; no processo penal, até ao trânsito em julgado da sentença.
VII - Finalmente sempre se dirá, (embora como questão prejudicada no caso dos autos, pois o apoio judiciário foi formulado antes do trânsito em julgado da sentença por arguido que havia sido detido e nessa condição apresentado em juízo para julgamento em processo sumário), que nada na letra da norma do art. 44º nº 1 da lei 34/04, permite a conclusão de que o arguido é único sujeito processual por ela abrangido e, mesmo ele, só se estiver detido.
VIII - Efectivamente, onde a lei não distingue não cabe ao julgador diferenciar, nomeadamente censurando tal decisão do legislador de permitir que outros sujeitos processuais também beneficiem de um regime mais favorável que talvez apenas se impusesse relativamente ao arguido detido. ".
Acórdão do T.RCoimbra de 09/04/2008 (em www.dgsi.pt - Processo nº 134/06.8GASRE-A.C1) em cujo sumário se lê que:
"1. A lei é muito clara nesse aspecto - o apoio judiciário deve ser requerido até ao trânsito em julgado da decisão final (art. 44° nº 1 - L. 34/04) ­, não havendo qualquer restrição no caso deste ser formulado após a sentença.
2. Assim sendo, tendo tal apoio sido requerido antes do trânsito da sentença proferida nos autos, e tendo o mesmo sido deferido, não pode o tribunal vedar o acesso a esse beneficio só porque tem um diferente entendimento sobre as circunstâncias em que aquele podia ser requerido, ignorando que a competência para essa concessão é agora dos serviços de segurança social. ".
Acórdão do T.RGuimarães de 16/03/2009 (em www,dgsi.pt - Processo nº 205/07.3GAPTL-A.G1) (subscreve e mantém o entendimento do acórdão do TRGuimarães de 31/10/2005 "supra" referido)em cujo sumário se lê que:
"I - Actualmente, em processo penal, o pedido de apoio judiciário pode ser requerido até ao termo do prazo de recurso da decisão em primeira instância.
II - Se deferido. o apoio judiciário abrange as custas de todo o processo e não apenas as devidas após o requerimento." .
A interpretação restritiva que o Ministério Público defende levaria, em nosso entender, e salvo o devido respeito por opinião contrária, a que, na prática, os arguidos detidos em flagrante delito (art. 256º do C.P.Penal), apresentados de imediato ao Ministério Público e por este a julgamento em processo sumário (arts. 381º, 382º e 387º do C,P.Penal) nunca pudessem aceder ao apoio judiciário, pois nunca tiveram oportunidade, antes da audiência de julgamento (e, em rigor (art. 389º, nº 6, do C.P. Penal), antes da condenação) de se deslocar aos serviços da S.Social e requerer o apoio judiciário.
Seria a total e completa denegação do acesso ao apoio judiciário por estes arguidos desde o princípio até ao fim do processo.
*
Por outro lado ainda, a interpretação da L. nº 34/2004, de 29/07, no sentido de que a concessão do benefício de apoio judiciário só se justifica nos casos em que o arguido necessite de despender determinadas quantias para defender os seus direitos [neste sentido, a titulo de exemplo, o acórdão do T.R.Coimbra de 18-11-2009 (em www.dgsi.pt-processo n.o207/07.0GCPBL.C1) e o acórdão do T.R.Coimbra de 28-01-2010 proferido no processo 491/0e.1GBAND.C1 deste Juízo de Instância Criminal], em nosso entender, e sempre salvo o devido respeito por opinião contrária, esbarra frontalmente com o art. 15.°, al. c), do Regulamento das Custas Processuais (R.C.P.).
A ser deste modo, desde a entrada em vigor do R.C.P., não seria nunca admissível a concessão do apoio judiciário ao arguido, por desnecessário.
Com efeito, à luz do R.C.P. os arguidos estão sempre dispensados do pagamento prévio de taxa de justiça, pelo que não têm que despender previamente qualquer quantia para defender e exercer os seus direitos, logo, de acordo com esta interpretação, nunca se verifica em processo penal a necessidade de conceder aos arguidos o benefício do apoio judiciário.
Em síntese, face ao R.C.P., a concessão do apoio judiciário visa efectivamente e apenas o não pagamento de custas pelo arguido que não reúne condições económico-financeiras para as suportar, seja qual for a fase processual em que o mesmo é requerido junto dos serviços da S.Social, pois ao longo de todo o processo nunca é exigido ao arguido o prévio pagamento de qualquer quantia para o exercício dos seus direitos de defesa.
*
Pelo exposto, em nosso entender:
1) Actualmente, o apoio judiciário pode ser requerido pelo arguido até ao termo do prazo de recurso da decisão em primeira instância;
2) Se deferido pelos serviços de segurança social, o apoio judiciário abrange as custas de todo o processo e não apenas as devidas após o requerimento.
No caso concreto:
O arguido requereu o apoio judiciário antes do termo do prazo de recurso da sentença condenatória pelo que dentro do prazo legal, devendo, portanto, o Tribunal observar o que foi decidido no âmbito do procedimento administrativo que correu termos nos serviços de segurança social.

Inconformado, recorre o M.P. retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:
1ª - Após a publicação da sentença condenatória dos autos, a qual não foi objecto de recurso, mas ainda antes do trânsito o arguido requereu perante a Segurança Social e viu deferida a concessão de apoio judiciário, nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos e de pagamentos de honorários ao defensor oficioso.
2ª - Tal decisão administrativa, que ignorou o estado dos autos a que respeita, não pode ter qualquer repercussão nas custas e demais encargos da responsabilidade do condenado, de que o Estado é credor.
3ª - Na verdade, ao demandar o benefício de apoio judiciário o arguido, ora condenado, não quis aceder ao direito e aos tribunais, cfr. art. 20° da CRP; não quis conhecer, exercer ou defender os seus direitos, cfr. art. 1º da L. 34/2004 de 29/7 mas, tão só e apenas, livrar-se / eximir-se do pagamento das custas e demais encargos a que dera lugar a sua condenação ..
4ª - O despacho recorrido aceitou formal e acriticamente a citada decisão administrativa, ainda que o arguido se tenha conformado com a sentença, não curando de saber se ele pretendia aceder ao direito e aos tribunais ou conhecer, exercer ou defender os seus direitos, tal a matriz, a génese e a finalidade do instituto.
5ª - Tal despacho colide de modo ostensivo com a filosofia do instituto, já não como um instrumento/regime de acesso ao direito e aos tribunais, já não para conhecer, exercer ou defender direitos, como claramente resulta da letra e do espírito da lei mas, antes, como meio expedito de perdoar/branquear/amnistiar os encargos de um processo já exaurido para o requerente, onde, em suma, o ius dicere já teve lugar, ademais por via administrativa e á custa dos já esforçados contribuintes.
6ª - Para significar que o termo final (meramente formal) previsto no citado art. 44°-1 " ... devendo o apoio judiciário ser requerido até ao trânsito em julgado da decisão final" no que tange á oportunidade do pedido não pode ser desligado dos fundamentos materiais e da finalidade subjacentes ao requerimento e á concessão do beneficio em causa, para não o desvirtuar completamente.
7ª - Em processo penal a protecção jurídica só pode requerida até ao trânsito em julgado da decisão final e desde que o requerente pretenda aceder ao direito e aos tribunais, ou seja, conhecer, exercer ou defender os seus direitos, sendo esta, cremos bem, a única interpretação (restritiva) da lei que respeita a previsão do art. 9 do CC., ora reproduzido e a génese e finalidade do instituto.
8ª - Pelo que, a decisão administrativa que concedeu ao arguido, condenado, o apoio judiciário nenhuma repercussão pode ter na sua responsabilidade tributária nestes autos.
9ª - O despacho recorrido violou, entre outros, os art.s 20.0 da CRP e lº, 18º, 39.° a 44º, todos da L. 34/2004, de 29/07 na redacção da L. 47/2007, de 28/08.
Nestes termos e nos mais de direito, se V. Exas. derem provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido e mandando-o substituir por outro que decline a produção de efeitos nos autos do concedido apoio judiciário, será feita a habitual, Justiça.

Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer reforçando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância.

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, o objecto do recurso consiste essencialmente em averiguar se o apoio judiciário requerido em processo sumário, após a prolação da sentença mas antes do respectivo trânsito em julgado abrange as custas anteriores.

*
*

II - FUNDAMENTAÇÃO:

A questão suscitada no recurso não é recente, tendo sido já objecto de numerosas decisões jurisprudenciais tanto no actual regime legal do acesso ao direito e aos tribunais, estruturado na Lei nº 34/04, de 29 de Julho (a este diploma se reportam as normas seguidamente citadas sem menção de origem), como no regime legal anterior. Contudo, o seu tratamento jurisprudencial conheceu significativa evolução com o regime actualmente vigente que, fruto da alteração legal verificada, veio impor uma nova abordagem da questão.
Como é sabido, a garantia do acesso ao direito e aos tribunais é objecto de tutela constitucional, consagrada no art. 20º, nº 1, da CRP, em cujos termos “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”. Dando seguimento àquela garantia constitucional, o art. 1º da Lei nº 34/2004 dispõe que “o sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos”. O âmbito pessoal desta garantia é regulado no art. 7º do mesmo diploma, que reconhece o direito a protecção jurídica aos “cidadãos (…) que demonstrem estar em situação de insuficiência económica”, considerando-se como tal aquele que “…tendo em conta factores de natureza económica e a respectiva capacidade contributiva, não tem condições objectivas para suportar pontualmente os custos de um processo” (art. 8º, nº 1).
Registe-se que contrariamente ao que sucedida no domínio do regime anterior, a Lei nº 34/04 veio impor a formulação do pedido de protecção jurídica perante os serviços de segurança social (art. 20º). Por outro lado, o pedido deixou de poder ser formulado a todo o tempo, devendo agora ser requerido, em regra, antes da primeira intervenção processual (art. 18º, nº 2), tendo a lei excepcionado o caso do arguido em processo penal, que poderá requer o apoio judiciário até ao trânsito em julgado da decisão final (art. 44º, nº 1). Esta excepção salvaguarda todas aquelas situações em que é manifestamente impossível ou em que pelo menos se apresenta como inexigível a formulação do pedido antes da primeira intervenção processual, como seja o caso dos arguidos detidos para serem imediatamente apresentados a julgamento em processo sumário. Prevendo a lei a possibilidade de o apoio judiciário ser requerido até ao trânsito em julgado da decisão final e sendo esse benefício concedido pelos serviços competentes para o efeito, não pode o tribunal opor-se com base num diferente entendimento sobre as circunstâncias em que tal benefício poderia ser requerido. Na verdade, a lei não prevê qualquer distinção relativa à concessão daquele benefício antes do trânsito em julgado mas já após a prolação da sentença, estando assim vedado ao julgador estabelecer tal diferenciação à margem da previsão legal.

*
*

III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, nega-se provimento ao recurso.
Sem tributação.

*
*

Coimbra, ____________
(texto processado pelo relator e
revisto por todos os signatários)




__________________________________
(Jorge Miranda Jacob)




­__________________________________
(Maria Pilar de Oliveira)