Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1230/09.5T2AVR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
UNIÃO DE FACTO
ESBULHO
VIOLÊNCIA
Data do Acordão: 05/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 388, 393, 394 CPC, 255, 1261, 1279 CC, LEI Nº 7/2001 DE 11/5
Sumário: I - O estatuto legal da união de facto é incompatível com casamento não dissolvido de um dos companheiros, o que não obsta à eventual relevância da figura da “economia comum” e da protecção legal que lhe está associada, mormente em matéria de direito real de habitação da casa de morada de família.


II - Nos termos do disposto no art.º 388º, n.ºs 1, alínea b), e 2, do CPC, o juiz poderá manter, reduzir ou revogar a providência anteriormente decretada, aí se compreendendo, v. g., a possibilidade de modificar a decisão originária, reforçando ou alterando a respectiva fundamentação.

III - Para efeitos de restituição provisória de posse, a violência sobre a coisa é relevante quando a coisa violada pela actuação do esbulhador constituía um obstáculo ao esbulho que teve de ser vencido.

IV - A violência sobre coisas pode abranger, nomeadamente, os actos consistentes na mudança de fechaduras de portas do próprio prédio objecto de esbulho.
Decisão Texto Integral:             Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


            I. 1. R (…) intentou, na comarca do Baixo Vouga/Juízo de Média e Pequena Instância Cível de Ílhavo, o presente procedimento cautelar[1] contra M A (…) e M J (…) pedindo a restituição provisória de posse da casa de habitação sita à Av. (…) Ílhavo.

            Alegou, em síntese, que não obstante o seu estado de “casada”, passou a viver maritalmente com A (…), em 31.12.1999, na referida casa, “casa de morada de família” do casal (constituído pela própria e por aquele), em economia comum e partilhando mesa e cama, como se de marido e mulher se tratasse, sendo que, depois do falecimento do A (…), em 04.3.2009, os requeridos passaram a pressionar a requerente para que abandonasse aquele imóvel e, no dia 14.5.2009, mudaram as fechaduras, sem o seu conhecimento e contra a sua vontade, levando a requerente a “refugiar-se” em casa de uma prima do seu companheiro.

            Diz ter direito à mencionada casa (que foi durante dez anos a sua casa de morada de família) e que pretende instaurar acção judicial para o seu reconhecimento nos termos do disposto nas Leis n.°s 6 e 7/2001, de 11 de Maio.

            Produzidas as provas, sem audiência do esbulhador, o tribunal a quo considerou suficientemente indiciado:

            a) Desde 31.12.1999, a requerente passou a viver como se de uma relação conjugal se tratasse, com o companheiro, A (…), o qual faleceu em 04.3.2009. na morada sita na Av (…), Ílhavo.

            b) Não obstante ter mantido o vinculo conjugal que ainda a liga a AA (…)

            c) É do conhecimento de família, amigos e conhecidos, bem como dos requeridos, que a requerente havia cessado, por separação de facto, a vida conjugal com o sobredito AA (…).

            d) A requerente e o falecido companheiro encetaram desde a referida data de 31.12.1999 uma vida a dois, partilhada entre ambos em todos os aspectos inerentes a uma relação conjugal.

            e) Vivendo e habitando sob o mesmo tecto, partilhando mesa e cama, viajando e gozando férias em conjunto e com amigos e familiares, organizando e discutindo entre ambos a vida familiar, patrimonial e financeira, do casal.

            f) Tudo o que se deixa descrito decorreu tendo como base essencial e territorial, a casa de morada de família de ambos, sita na Av. (…) Ílhavo.

            g) A referida morada corresponde a um prédio urbano, mandado construir pelo falecido companheiro da requerente no ano de 2000, sua residência definitiva, após terem transitoriamente habitado numa casa sita na Rua (…) Aveiro.

            h) A referida casa de morada de família foi construída tendo como propósito essencial adquirir aquela qualidade para o casal constituído pela requerente e pelo falecido, desde 31.12.1999.

            i) Como é do conhecimento dos requeridos, familiares, amigos e conhecidos.

            j) Os requeridos são filhos do falecido, nascidos de anterior casamento deste, dissolvido há muitos anos.

            k) Os requeridos eram visita habitual da casa de morada de família da requerente e companheiro, ali tomando refeições em partilha de mesa com o casal.

            l) Os requeridos tinham conhecimento que o casal formado pela requerente e o pai de ambos, durante dez anos fizeram daquela casa, a de morada de família.

            m) Que naquela casa, além do referido designadamente em I. 1. alíneas d) e e), a requerente sempre cuidou, de forma dedicada do seu companheiro e pai dos requeridos, quanto aos seus problemas de saúde, nomeadamente os que sobrevieram de um acidente de automóvel que o mesmo sofrera anos antes de encetarem a sua vida em comum.

            n) Tendo falecido o companheiro da requerente, logo os requeridos passaram a pressionar a requerente para deixar a casa de morada de família sita na Av. (…)

            o) Invocando que tendo falecido o pai de ambos, nada justificava a permanência da requerente na referida casa.

            p) Isto não obstante terem conhecimento que a requerente ali viveu da forma que se deixou descrita.

            q) Os requeridos têm casa própria, nunca tendo vivido na casa de morada de família da requerente e do seu companheiro.

            r) Não têm necessidade, por tal facto, da casa de morada de família, agora em causa.[2]

            s) No dia 14.5.2009, os requeridos ocuparam a referida casa sita na Av. (…) mudando a fechadura da porta de entrada, ali permanecendo, um ou outro, alternadamente a fim de impedir a requerente de ali aceder e legitimamente permanecer.

            t) Situação que mantêm, amedrontando a requerente com ameaças verbais e escritas, nomeadamente, por “SMS”, para o telemóvel da mesma.

            u) Além disso, a requerida recebeu dos requeridos, via “SMS”, nomeadamente:

            1 - Uma mensagem emitida pelo número de telemóvel 935786076, pertencente ao MJ (…), com os seguintes dizeres: “ Às 2h estou na costa nova para ir buscar as cxs com o recheio da quinta do picado. Telef para me dar o código do alarme! Antes K eu o desligue a minha maneira!!!” (…);

            2 - Posteriormente recebeu outra mensagem do mesmo número pelas 13H55” Eu não lhe kero mal nenhum, so kero falar consigo!” (Mário Neves);

            3 - Por via telefónica, no mesmo dia e no encadeamento das mensagens anteriores, ainda recebeu como humilhação da parte do (…), o seguinte “Você já lá quer meter gajos lá dentro”;

             4 - Uma mensagem proveniente do telemóvel com o número 916782889, pelas 22H11, pertencente ao MA (…), a qual dizia “As suas coisas estão à sua disposição por favor vir buscá-las ou indicar onde as quer obrigada’;

            5 - No dia 19.5.2009, pelas 13,06h, recebeu outra mensagem sms, em tom intimidatório, que dizia “QUERO o álbum que dei com o meu irmão ao MEU PAI no aniversário dele...mas quero MESMO!!!!!

            v) A requerente viveu com o pai dos requeridos, como se de uma união de facto se tratasse, cuidando dele com extremosa dedicação, atentos os seus problemas de saúde.

            w) A requerente, tendo sido impedida pelos requeridos, de viver na casa de morada de família, refugiou-se em casa de uma prima do seu falecido companheiro, com todos os incómodos inerentes e com características de transitoriedade, determinadas pelos requeridos, que a colocaram em situação de profundo padecimento moral.

            x) Encontra-se despojada da posse do imóvel e dos seus bens e vestuário, pessoais, pois ficaram retidos na casa de morada de família.

            2. Ante a descrita factualidade o tribunal a quo ordenou a restituição provisória de posse da requerente sobre a residência/casa de morada de família correspondente ao (…) [devendo os requeridos abster-se da prática de quaisquer actos impeditivos da posse da mesma, assim como sobre o recheio da residência, respeitando ainda a privacidade da requerente], por considerar preenchidos os requisitos previstos nos art.ºs 393º e seguintes do CPC e art.º 1279º do CC e atento o preceituado no art.º 4º da Lei n.° 7/2001, de 11.5.

            Em 31.7.2009, cumprindo-se aquela decisão, a requerente foi investida na posse da referida casa.

            3. Os requeridos, em oposição à providência, invocaram a sua ilegalidade em razão do disposto no art.º 2º, alínea c), da Lei n.° 7/2001, de 11.5 e impugnaram a generalidade dos factos alegados na petição inicial.

            Produzidas as provas indicadas pelos requeridos, o tribunal a quo concluiu pela verificação da mesma factualidade, e, reafirmando o expendido na 1ª decisão e considerando, ainda, o disposto no art.º 5° da Lei n.º 6/2001, de 11.5, julgou a oposição improcedente e manteve aquela restituição provisória de posse.

Inconformados com esta decisão, os requeridos apelaram, terminando a alegação com as seguintes conclusões:

A decisão da Meritíssima Juiz que ordenou de forma antecipatória a restituição da posse à Requerente do procedimento cautelar é manifestamente ilegal:

a) Porque o direito à posse invocado pela Requerente e sustentado na douta decisão da Meritíssima Juiz — união de facto — é expressamente vedado pela Lei 7/2001 de 11/05 na alínea c) do seu n.° 2;

b) A outra hipótese de direito à posse que ora se pretende seja relevante, com base na Lei 6/2001 de 11/05 não foi considerada na primeira decisão nem na fundamentação de direito da confirmação da mesma, tomada à posteriori;

c) E por último, não ocorreu qualquer esbulho violento como está definido no artigo 1261° n.° 2 do Código Civil e por tal razão não se encontram preenchidos os requisitos do artigo 393º do Código de Processo Civil que permitem a restituição provisória da posse.

A requerente contra-alegou sustentando a improcedência do recurso.

Atento o referido acervo conclusivo (delimitativo do objecto do recurso nos termos dos art.ºs 684º, n.º 3 e 685º-A, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil[3], com a redacção conferida pelo DL n.º 303/07, de 24.8, aplicável ao caso vertente), colocam-se duas questões fundamentais: primeiro, se a descrita situação da requerente encontra adequada tutela jurídica e, depois, se se verificam os pressupostos da providência em questão, inclusive o “esbulho violento”.

                                                        *

II. 1. A factualidade relevante é aquela que ficou descrita em I. 1. e fundamentou a decisão sob censura.

            Porém, na fase de recurso, a requerente juntou aos autos diversos documentos (a fls. 152 e seguintes), comprovando ainda que, por sentença de 02.12.2009, transitada de imediato em julgado, foi decretado o divórcio por mútuo consentimento da requerente e de (…), tendo os cônjuges acordado, nomeadamente, que “o direito a habitar a casa de morada de família, bem próprio da Autora, fica atribuído ao cônjuge marido até 31.12.2011” e que “para efeitos patrimoniais (…) a coabitação do casal cessou em Dezembro do ano de 1999”.

            2. Para fundamentar a pretensão feita valer em juízo, a requerente invocou o disposto no art.º 4º, n.º 1, da Lei n.° 7 /2001, de 11.5, normativo que estabelece que “em caso de morte do membro da união de facto proprietário da casa de morada comum, o membro sobrevivo tem direito real de habitação, pelo prazo de cinco anos, sobre a mesma (…)”, bem como o preceituado no art.º 5º, n.º 1, da Lei n.º 6/2001, de 11.5, que prevê que “em caso de morte da pessoa proprietária da casa de morada comum, as pessoas que com ela tenham vivido em economia comum há mais de dois anos nas condições previstas na presente lei têm direito real de habitação sobre a mesma, pelo prazo de cinco anos (…)”.

            Como vimos, a Mm.ª Juíza a quo considerou, na decisão inicial, que a situação da requerente era regulada pela previsão do cit. art.º 4º, n.º 1, da Lei n.º 7/2001 e, depois do contraditório, na decisão a que alude o art.º 388º, n.º 2, que eram aplicáveis ambas as estatuições.

            Salvo o devido respeito por opinião em contrário, e embora se trate de matéria não isenta de dificuldades, afigura-se-nos que, considerados os factos apurados [a existência, ao longo da coabitação “more uxorioe à data da morte (do membro da união de facto proprietário da casa de morada comum), de casamento anterior não dissolvido por parte da requerente/membro sobrevivo – cf. I. 1. b), supra] e os demais normativos aplicáveis [maxime, o art.º 2º, alínea c) da Lei n.º 7/2001, que estabelece como facto impeditivo dos efeitos jurídicos decorrentes da mesma Lei, entre outros, o “casamento anterior não dissolvido, salvo se tiver sido decretada separação judicial de pessoas e bens[4]], o presente caso, no tocante à problemática em causa, apenas poderá beneficiar das medidas de protecção das pessoas que vivam em economia comum, sendo certo que a Lei n.º 7/2001, que regula a situação jurídica de duas pessoas, independentemente do sexo, que vivam em união de facto há mais de dois anos, não deixa de estabelecer que nenhuma das suas normas poderá prejudicar a aplicação de qualquer outra disposição legal ou regulamentar em vigor tendente à protecção jurídica de uniões de facto ou de situações de economia comum (art.º 1º, n.ºs 1 e 2, da referida Lei).

            Por seu lado, a Lei n.º 6/2001, de 11.5, que contem o regime de protecção das pessoas que vivam em economia comum há mais de dois anos, também estabelece idêntico regime de salvaguarda (“o disposto na presente lei não prejudica a aplicação de qualquer disposição legal ou regulamentar em vigor tendente à protecção jurídica de situações de união de facto, nem de qualquer outra legislação especial aplicável”) e torna claro que não constitui facto impeditivo da aplicação do respectivo regime jurídico a coabitação em união de facto (cf. art.º 1º).

            Assim e considerando-se economia comum a situação de pessoas que vivam em comunhão de mesa e habitação há mais de dois anos e tenham estabelecido uma vivência em comum de entreajuda ou partilha de recursos (art.º 2º, n.º 1, idem), dúvidas não restam de que a requerente viveu com o (…) em economia comum e poderá beneficiar da medida de protecção prevista no cit. art.º 5º, n.º 1, ou seja, do direito real de habitação da casa de morada de família, porquanto se verificam todos os requisitos da sua atribuição [cf., principalmente, I. 1. alíneas a), d), e), f), g), h), l) e m), supra].

            3. Nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 388º, quando o requerido não tiver sido ouvido antes do decretamento da providência, é-lhe lícito (…), na sequência da notificação prevista no n.º 6 do art.º 385º, deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução, aplicando-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos art.ºs 386º e 387º.

            Nesse caso, o juiz decidirá da manutenção, redução ou revogação da providência anteriormente decretada, cabendo recurso desta decisão, que constitui complemento e parte integrante da inicialmente proferida (n.º 2 do art.º 388º).

            E a via de recurso abre-se, de seguida, relativamente a todas as questões suscitadas, quer na decisão originária, quer pela que a completa ou altera, já que, como tem vindo a entender-se, a decisão inicialmente proferida no procedimento cautelar, sem contraditório do requerido, é uma mera “decisão provisória”, insusceptível de constituir caso julgado que precluda a ulterior apreciação jurisdicional da oposição deduzida supervenientemente pelo requerido, constituindo a segunda decisão complemento ou parte integrante da primeira, pelo que – proferida esta – o procedimento passa a ter uma decisão unitária[5] (a decisão de manutenção completa a decisão mantida)[6].

            Por conseguinte, a circunstância de a Mm.ª Juíza, aquando da prolação da “segunda decisão”, haver alargado, reforçado e/ou modificado a decisão inicialmente proferida, mormente no que tange à sua fundamentação da direito, em nada prejudica a sua validade e regularidade substancial e formal, sendo igualmente insubsistente ou irrelevante, para o sucesso do presente recurso de apelação, a eventual insuficiência da fundamentação de direito de tal decisão unitária.

            4. Entendem os recorrentes que, dada a materialidade apurada, não se devia ter ordenado a questionada restituição provisória de posse, por ausência do elemento esbulho violento [em seu entender, no momento do dito esbulho, a requerente não alegou nem sentiu qualquer intimidação, ou ficou constrangida, inexistindo por isso, violência, e a violência relevante para efeitos de posse é aquela que é exercida no momento em que ocorre o esbulho], posição que sustentam nalguns arestos[7] e no ensinamento do Prof. Dias Marques[8].

            É pacífico que a restituição provisória de posse tem lugar quando haja posse, seguida de esbulho, com violência; no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência (cf. art.ºs 393º e 394º).

            No caso em análise, também pelo que ficou exposto em II. 2., é inequívoco que a requerente tinha a disponibilidade fáctica ou empírica da referida casa de habitação [porquanto nela residiu com o companheiro, pai dos requeridos, durante cerca de dez anos, como se de marido e mulher se tratasse, em economia comum], assistindo-lhe o direito de defender tais poderes de facto invocando a correspondente tutela normativa.

            Assim, em face da factualidade apurada, mostra-se preenchido o primeiro pressuposto de que depende a procedência deste procedimento cautelar – a posse.

            De igual modo, dúvidas não restam quanto à verificação do segundo dos referidos requisitos, o esbulho, que supõe que o possuidor foi privado da posse que tinha, foi colocado em condições de não poder continuar a exercer a posse, e por isso é que o pedido que lhe corresponde é a restituição[9] - os requeridos impediram a requerente de aceder à casa que constituiu/constitui a sua casa de morada de família, tendo mudado a fechadura da porta de entrada [cf., sobretudo, I. 1. alíneas s), w) e x), supra].

            Resta assim decidir se a conduta dos recorrentes integra o conceito legal de esbulho violento, também previsto no art.º 1279º do CC, sendo que, atento o disposto no n.º 2 do art.º 1261º do CC, existe violência quando o novo possuidor usou de coacção física ou moral nos termos do art.º 255º, do mesmo Código.

            No passado recente, no tocante à verificação da violência física, por causa da mudança da fechadura, a doutrina não dava uma resposta unânime e convincente e a jurisprudência dava-nos decisões divergentes[10], e, mesmo a corrente que veio a aceitar que o resultado da coacção legalmente prevista pudesse verificar-se tanto em pessoas como em coisas[11], não deixava de sublinhar que era em relação ao uso da força contra às coisas que surgia a principal divergência, entendendo alguns que o emprego da força sobre as coisas que faziam obstáculo ao esbulho, tornavam-no sempre violento, mesmo que a pessoa desapossada não estivesse presente, enquanto outros julgavam indispensável essa presença[12].

            Se, naquele contexto - em que abundavam posições e decisões por vezes diametralmente opostas -, a tese dos recorrentes poderia porventura encontrar acolhimento, hoje, também à luz de posteriores decisões da 2ª instância e do nosso mais alto tribunal, parece-nos que será de afastar o entendimento segundo o qual a violência relevante deve ser necessariamente exercida contra a pessoa do possuidor[13], já que se antolha firme e substancialmente sustentada a orientação segundo a qual “a violência sobre a coisa é relevante - para efeitos de restituição provisória - quando esta constitui um obstáculo ao esbulho que teve de ser vencido,(…) quando a coisa violada pela actuação do esbulhador era em si um obstáculo ao esbulho que teve de ser vencido[14].

            Daí que se nos afigure a todos os títulos razoável que tal relevância da violência sobre coisas possa abranger, nomeadamente, os actos consistentes na mudança de fechaduras de portas do próprio prédio objecto de esbulho[15], como sucede no caso vertente, tanto mais que a requerente, ao contrário dos requeridos/recorrentes, decidiu seguir, e confiar, na protecção jurídica através dos tribunais (art.º 2º, n.º 1), reagindo, desta forma, adequadamente[16], contra a violência e a força privada, arbitrária e incontrolada exercida sobre a coisa, e que visou impor-lhe uma situação de forma inelutável.[17]           

            5. Por conseguinte, embora se conclua pela parcial procedência da posição plasmada na alegação dos recorrentes (no respeitante ao enquadramento normativo - “união de facto/”economia comum” – susceptível de conduzir à pretendida tutela possessória), o recurso improcede, já que se mostram preenchidos os requisitos da requerida restituição provisória de posse.


*

III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida, embora, parcialmente, com diferente fundamentação.

            Custas pelos requeridos/recorrentes.


[1] Depois apensado à Acção Ordinária n.º 1230/09.5T2AVR (fls. 111).

[2] Eliminou-se, por conclusiva, a matéria que havia sido alegada sob o item 19º da petição inicial (“Nada justifica os intentos dos requeridos, a não ser a má-fé.”).

[3] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.

[4] Cf., neste sentido, entre outros, o acórdão do STJ de 26.6.2007-processo 07A2003, aresto que efectua uma análise comparativa da regulamentação sucessivamente aplicável – principalmente, o art.º 2020º do CC, na redacção do DL n.º 496/97, de 25.11; a Lei n.º 135/99, de 28.8 e a Lei n.º 7/2001, de 11.5 – e que alinha pelo entendimento segundo o qual o impedimento resultante de vínculo anterior visa também evitar o conflito de interesses e de direitos que poderiam colidir tendo em conta os efeitos reconhecidos ao casamento e os efeitos reconhecidos à união de facto, citando-se, entre outros, Pereira Coelho (in “Curso de Direito da Família”, 513 segs. e Antunes Varela (“Direito da Família”, I, 530 segs.), e concluindo-se, nomeadamente, que “como a situação cripto-matrimonial da união de facto incide, nuclearmente, nas áreas sociais e patrimoniais do casamento – nunca nos deveres de vinculação pessoal – o artigo 2020º do Código Civil e as leis nºs 135/99 e 7/2001, excluem a separação judicial de pessoas e bens dos factos impeditivos do reconhecimento legal da união de facto”, sendo que “tal não acontece quando existe casamento válido, não dissolvido e sem que decretada separação judicial de pessoas e bens, só assim se evitando conflitos de interesses e direitos conflituantes entre casamento e união de facto, que é uma forma atípica de constituir família”, bem como o acórdão da RL de 26.6.2008-processo 6600/2007-6, que, numa perspectiva de análise algo diversa, acaba por destacar a circunstância de a lei estabelecer este impedimento “de modo bilateral e genérico, não limitando o efeito inibitório do casamento anterior em função da natureza do efeito jurídico em causa, designadamente da possibilidade de conflito de pretensões decorrentes do casamento não dissolvido”, que o legislador da Lei n.º 7/2001 “entendeu restringir aos unidos de facto os direitos que lhes concede, em determinadas situações que enunciou - designadamente nas situações de existência de casamento anterior não dissolvido por parte de qualquer dos membros da união de facto” e que, perante a evolução social a que temos assistido, o mesmo legislador “só pode ter querido forçar à regularização das situações, de modo a evitar desconformidade entre situações legalmente constituídas mas sem correspondência na vida real e as situações reais mas sem correspondência no mundo jurídico”.

    Vide, ainda, com interesse, o acórdão da RP de 09.02.2009 (Secção Social) (in CJ, XXXIV, 1, 260), ao referir que a norma contida no art.º 2º, alínea c), da Lei n.º 7/2001, encontra justificação material, assentando no respeito e protecção dos efeitos jurídicos do casamento (livremente contraído e mantido) e que entendimento diferente levaria a que a pessoa casada (e não judicialmente separada de pessoas e bens), mas em situação de união de facto, ficasse simultaneamente abrangida pela reparação que, porventura, fosse devida no âmbito dessas duas situações, o que não é, manifestamente, o propósito da lei [infortunístico-laboral (atento o caso versado na decisão) ou em geral (acrescenta-se)].
[5] Cf., neste sentido, de entre vários, Carlos Lopes do Rego, Comentários ao CPC, Vol. I, 2ª edição, 2004, pág. 357 e os acórdãos da RC de 27.10.1998 e do STJ de 06.7.2000, in, respectivamente, CJ, XXIII, 5, 30 e BMJ, 499º, 205, referindo-se neste segundo aresto, designadamente, que o art.º 388º, n.º 2, consagra “uma excepção ao princípio de que, proferida a sentença, fica esgotado o poder jurisdicional, quanto à matéria da causa, consignado no art.º 666º, n.º 1”, concluindo-se ainda, em conformidade, que “a decisão inicial não faz caso julgado”, “é uma decisão provisória” e que, “sendo a segunda seu ´complemento ou parte integrante´, o procedimento cautelar, proferida esta, passa a ter uma decisão unitária”.  
[6] Vide José Lebre de Freitas, e outros, CPC Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 45.

[7] Acórdãos da RL de 13.3.1981 (in CJ, VI, 2, 172) – indicando o excerto: “o esbulho a considerar na providência cautelar de restituição provisória de posse, é apenas aquele que resulta de violências ou ameaça contra pessoas que defendem a posse” – e do STJ de 29.9.1993-processo 084128 (publicado no “site” da dgsi), ao propugnar que “se uma pessoa não está presente quando mudam a fechadura da porta de acesso ao local que lhe foi arrendado, sem o seu conhecimento ou autorização, não pode dizer-se que ela esteja a ser constrangida ou ameaçada fisicamente”; “mesmo de forma indirecta não pode considerar-se que se processa qualquer coacção física contra o desapossado”, “tanto assim que este para defender a sua posse ou recuperá-la, pode tornar a mudar a fechadura, sem chegar a haver qualquer confronto físico com o esbulhador”, “o que reforça a ideia de que consumada a ocupação, sem estar presente o esbulhado, termina a coacção física sobre as coisas, se ela foi necessária”.

[8] Na obra “Prescrição Aquisitiva”, 1, págs. 277 e seguinte, da qual é citado o seguinte trecho: “Não constitui violência contra pessoas se estas se encontram ausentes e um indivíduo muda a fechadura duma casa, arromba uma porta ou destrói parte de um muro porque o proprietário não pode sentir a intimidação, a coacção física, e tais actos se destinam a facilitar a ocupação”.
[9] Vide, entre outros, Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 669 e Manuel Rodrigues, A Posse, edição de 1981, pág. 363.
[10] Cf., ainda, entre outros, os acórdãos da RP de 20.4.1982 (in BMJ, 316º, 275, com o sumário:”constitui violência, para o efeito de privação da posse, a mudança da fechadura da única porta de acesso ao prédio, com recusa de entrega de uma chave da nova fechadura”) e da RL de 10.7.1979 e de 27.7.1979 (in CJ, IV, págs. 1169 e 1198, respectivamente), todos em idêntico sentido, e, ainda, o acórdão da RL de 13.5.1977 (in CJ, II, 3, 610), no qual se refere: “se um muro, um portal, uma vedação ou uma árvore representam um obstáculo a qualquer esbulho, uma porta, que se encontra fechada à chave, constitui um meio de defesa da coisa, da casa, traduz um obstáculo que o esbulhador terá de vencer. Se a entrada na casa, por meio de escalamento, foi tida como violência (…) deve igualmente ser olhada como violência a introdução em casa por meio de chave que não foi voluntariamente cedida ao esbulhador (…)”
    Com uma perspectiva contrária, cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 15.3.1983 (in BMJ, 325º, 578), que considerou, nomeadamente, que mesmo que a entrada numa casa se tenha verificado por meio de arrombamento, não se encontrando nela qualquer pessoa, inexiste coacção física ou moral necessária à configuração de violência, e de 13.11.1984 (in BMJ, 341º, 401), que julgou que a mudança da fechadura de uma porta para impedir a entrada de alguém, não objectiva o requisito violência.
[11] Seguindo uma orientação doutrinal dominante – vide, entre outros, Alberto dos Reis, ob. e vol. cit., pág. 670; Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. III, 2ª edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 23; Manuel Rodrigues, ob. cit., págs. 364 e 365 e José Lebre de Freitas, e outros, ob. e vol. cit., pág. 72.
[12] Cf. o citado acórdão do STJ de 29.9.1993, aresto em que se decidiu optar por esta segunda linha de entendimento.
[13] Adoptado, designadamente, nos acórdãos do STJ de 15.3.1983, da RP de 18.9.1995, da RE de 26.9.1996 e da RC de 03.12.1998, in BMJ, 325º,580 e 449º,445; CJ, XXI, 4, 281 e CJ, XXIII, 5, 37, respectivamente.
[14] Cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 26.5.1998 e de 07.7.1999, in BMJ, 477º, 506 e 489º, 338, respectivamente, o primeiro também publicado no “site” da dgsi (processo 98A073); em idêntico sentido, cf. o acórdão do STJ de 03.5.2000 em que se decidiu que “a total substituição das fechaduras de instalações onde estavam colocados bens que a requerente possuía constitui esbulho violento por, contra a vontade desta, impedir, reiteradamente, a sua entrada nas referidas instalações, ainda que tão somente para retirar aqueles bens” (apud Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, 3ª edição, Almedina, 2006, pág. 46-nota 56).
[15] Vide, a propósito, designadamente, os acórdãos do STJ de 28.3.1958 (in BMJ, 75º, 577), da RE 08.02.1979 (in CJ, IV, 1, 222), da RL de 16.02.1979 e da RP de 20.4.1982 (in BMJ, 316º, 275), os três últimos citados na anotação III ao acórdão do STJ de 26.5.1998 (referido na nota anterior), bem como, entre outros, os acórdãos da RL de 11.3.1993 e de 23.4.2002, in CJ, XVIII, 2, 95 e XXVII, 2, 120, respectivamente.
[16] Pois não se crê que se deva criar (ou sequer potenciar o risco de criar/originar…) as condições susceptíveis de legitimar o recurso à acção directa para reposição do statu quo ante – cf., a propósito, o caso referido por Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 45, nota 55.
[17] Cf., ainda, o acórdão do STJ de 20.5.1997-processo 97A325, publicado no “site” da dgsi.