Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
627-10.2BTACB-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO BRANDÃO
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
PARECER DO ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
PRAZO DE CADUCIDADE
PRAZO PEREMPTÓRIO
PRAZO ORDENADOR
Data do Acordão: 04/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 188.º, N.º 3, DO CÓDIGO DE INSOLVÊNCIA E DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE)
Sumário: I) O prazo para que o administrador de insolvência apresente parecer quanto à qualificação da insolvência que não tenha sido ele a propor, não é um prazo de prescrição, de caducidade ou peremptório, sendo meramente ordenador e sem carácter cominatório.

II) A ausência desse parecer impede a tramitação posterior do incidente de qualificação.

III) Destituído o administrador de insolvência com fundamento na falta de apresentação desse parecer, permanece a necessidade da sua apresentação e o dever de o fazer por parte do administrador que vier a ser nomeado.

Decisão Texto Integral:



Acordam os Juízes, em audiência, na 1ª Secção Cível, do Tribunal da Relação de Coimbra:

***

A… e B… interpuseram o presente recurso de apelação do despacho proferido pelo Sr. Juiz em 17.02.17, onde decidiu que “tendo sido declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência em sede de sentença de 18 de Novembro de 2011, como então era obrigatório, constato que o Sr. AJ não emitiu até esta data o parecer a que estava obrigado nos termos do art. 188.º do CIRE, o que cumpre suprir no prazo de 10 dias, no apenso próprio.

Após as respectivas e pertinentes alegações apresentaram a seguintes conclusões:

(…)

FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objeto do recurso,

É pelas conclusões das alegações do recurso que se afere e delimita o seu objeto – cfr., designadamente, as disposições conjugadas dos artºs 5º, 635º, nºs 3 e 4, 639º, nºs 1, 2 e 3, e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3, todos do Código de Processo Civil, CPC – sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso.

A questão que nos é colocada através da presente apelação é a de saber se o Administrador de Insolvência, o AI, poderá apresentar, ou não, o seu parecer quanto à qualificação da insolvência depois de decorrido o prazo estabelecido pelo artº 188º, nº 3, do CIRE, na sequência da indicação dada pelo sr. juiz responsável pelo processo.  

Será tomada em consideração nessa mesma abordagem, por um lado, a sentença que declarou a insolvência da sociedade “C… , SA”, proferida em 18.11.2011 e que consta de fls 18 a 27 da certidão junta, onde, para além, se refere em “IV. Decisão”, no ponto 3, o Administrador da Insolvência nomeado e, no ponto 6, se declara “ … aberto o incidente de qualificação da insolvência com carácter pleno”, e, por outro lado, o despacho proferido em 17.02.2017, onde consta, no trecho que aqui nos interessa, que “tendo sido declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência em sede de sentença de 18 de Novembro de 2011, como então era obrigatório, constato que o Sr. AJ não emitiu até esta data o parecer a que estava obrigado nos termos do art. 188.º do CIRE, o que cumpre suprir no prazo de 10 dias, no apenso próprio”.

Vejamos então,

A determinação do tipo ou a natureza do prazo fixado pelo citado artº 188º, nº 3, do DL nº 53/2004, de 18.03, no “Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas”, CIRE, e os efeitos decorrentes da sua não observância, impõe uma prévia indagação quanto à posição do AI no processo de insolvência e ao exercício das funções que lhe estão atribuídas, pois que daí decorre a configuração e o conteúdo de tal lapso de tempo e deste, por fim, a resposta pretendida.

O AI, como de resto se refere no trabalho científico invocado pelos apelantes e do qual retiram toda a sua argumentação[1], é, nos termos do artº 52º a 80º do CIRE, um órgão da insolvência, e é com essa qualidade e no exercício das suas funções que intervém no incidente de qualificação, não portanto como parte processual ou sequer, como se diz naquele trabalho, como “órgão acusador”.

O AI é um órgão com intervenção lato sensu na insolvência, exerce as suas funções pessoalmente, sob a fiscalização do juiz, para além da comissão de credores quando exista, podendo o juiz, a todo tempo e nos termos do artº 58 do CIRE, exigir-lhe informações sobre quaisquer assuntos ou relatório de actividade e do estado da administração ou da liquidação.

Conforme resulta do artº 2º, nº 1, da Lei nº 22/2013 de 26.02, diploma que define o respectivo estatuto, o AI é a pessoa incumbida da fiscalização e da orientação dos atos integrantes do processo especial de revitalização e do processo especial para acordo de pagamento, bem como da gestão ou liquidação da massa insolvente no âmbito do processo de insolvência, sendo competente para a realização de todos os atos que lhe são cometidos pelo presente estatuto e pela lei, designadamente os artº 52º e sgs do CIRE.

Os poderes do AI têm em vista a satisfação de interesses que não são próprios, corresponde-lhes, por isso, a natureza de verdadeiros deveres funcionais, poderes/deveres[2], que ele não só pode como, sobretudo, deve desempenhar com diligência de um gestor criterioso e ordenado. Será pois com esta perspectiva que têm de ser avaliados os deveres que sobre ele impendem, os seus procedimentos e responsabilidade.[3]

Ora, na situação vertente, foi o magistrado responsável pela tramitação do processo quem, por iniciativa própria e logo na sentença que declarou a insolvência da “C…”, declarou igualmente aberto, com carácter pleno, o incidente de qualificação dessa mesma insolvência, tal como lhe era permitido fazer pelo disposto no artº 36º, nº 1, alínea i), do CIRE.

Tal decisão deu início de imediato ao incidente para qualificação da insolvência ao qual, autuado por apenso, com carácter urgente e sem alegações iniciais, seguir-se-ia a apresentação do parecer pelo AI e depois a pronúncia do Mº Pº tal como dispõem os artºs 9º e 188º, nºs 1, 3 e 4, do CIRE[4].

O AI dispunha pois do prazo de 20 dias – o fixado pelo citado nº 3 do artº 188 do CIRE[5] - para apresentar o seu parecer, devidamente fundamentado e documentado sobre os factos relevantes e que deveria terminar com a formulação de uma proposta, identificando, se fosse caso disso, as pessoas que deveriam ser afectadas pela qualificação da insolvência como culposa, o que efectivamente não fez até ao despacho de 17.02.2017.

Não tinha todavia o AI, como não tem ainda hoje, a faculdade de entregar ou não esse relatório, mas impunha-se-lhe antes o dever e a obrigação funcional de o fazer no prazo e nos termos enunciados, sob pena de cometer uma falta que, podendo ser considerada justa causa, constituiria fundamento para a sua demissão do cargo nos termos do artº 56º do CIRE.

É a natureza das funções do AI e a qualidade da sua intervenção que, a nosso ver, enformam e dão conteúdo ao aludido prazo, que não é, por tais razões, nem prescricional nem de caducidade a que alude o artº 298º, nºs 1 e 2 do Código Civil, CC, nem é tampouco um prazo processual peremptório tal como o define do artº 139º, nºs 1 e 2, do CPC.

Com efeito,

A prescrição e a caducidade pressupõem, respectivamente, quer um direito subjectivo propriamente dito ou, stricto sensu, o poder de exigir ou pretender de outrem um determinado comportamento positivo (acção) ou negativo (abstenção ou omissão), ao qual se contrapõe o dever jurídico da contraparte – um dever de facere ou non facere, quer um direito potestativo, o poder jurídico de, por um acto livre de vontade, só de per si ou integrado por uma decisão judicial, produzir efeitos jurídicos que inelutavelmente se impõem à contraparte[6].

A prescrição tem a ver com os direitos subjectivos e é o instituto por via do qual tais direitos se extinguem quando não exercitados durante o período de tempo fixado na lei e tem como fundamento específico a negligência do titular do direito, o que permite presumir a renúncia desse mesmo direito ou torna o seu titular indigno da protecção jurídica[7].

A caducidade ou preclusão, própria dos direitos potestativos, é o instituto por via do qual estes direitos se extinguem pelo seu não exercício prolongado por certo tempo. Persegue um interesse público e emerge da necessidade de estabelecer a certeza jurídica e para que fique inalteravelmente definida a situação jurídica das partes[8]

É peremptório o prazo estabelecido para a prática de um acto processual que, uma vez decorrido, deixa de poder ser praticado, e que, por regra, é o relativo à pratica de um acto processual pela parte[9].  

Ora, como é bom de ver, a apresentação do parecer não decorre do exercício de qualquer direito subjectivo ou potestativo de que seja titular o AI, nem este o faz enquanto parte, constitui na verdade uma das tarefas impostas pelas suas funções, donde o seu incumprimento no prazo mencionado não resulta o efeito cominatório indicado no artº 139, nº 3, do CPC, a extinção do direito de praticar o acto.    

Aliás, sublinhe-se, só depois da apresentação desse parecer pelo AI pode então ser suscitada a intervenção do Mº Pº para que se pronuncie sobre o parecer, posto que não há alegações. Cumpridos estes passos o juiz tem duas opções, decidir de imediato a qualificação ou fazer prosseguir o incidente, ordenando neste último caso as notificações e citações a que alude o nº 6 do artº 188º, seguindo o processado os termos do disposto nos artºs 132º a 139º do CIRE, “ex-vi” do nº 8 do mesmo artº 188º.

O parecer tem pois, como se pode constatar e parece-nos evidente, uma inegável e imprescindível relevância na tramitação e decisão do incidente de qualificação, um papel incontornável e insubstituível, digamos assim, porque só depois de realizado e satisfeita tal incumbência do AI se poderá passar então às fases seguintes, desde logo com a pronúncia do Mº Pº, a decisão final logo de seguida ou, não sendo assim, a tramitação subsequente já com a observância do contraditório pleno, ou ainda, dito de outra forma, enquanto não houver apresentação do parecer o incidente não pode prosseguir. 

Decorre do que acabamos de escrever que não só fica arredada a possibilidade de cominatório nos termos do aludido artº 139º, nº 3, do CPC, como permanece a exigência e/ou necessidade da apresentação do parecer indicado pelo artº 188º, nº 3 do CIRE, independentemente do decurso do prazo de 20 dias que dispunha para o fazer.

A sanção do incumprimento recai já sobre o próprio AI, pessoalmente em qualquer das suas vertentes, mas no que diz respeito ao parecer, ainda que tivesse sido destituído com esse fundamento, permaneceria ainda a necessidade da sua apresentação para permitir os demais termos do incidente.

Nas circunstâncias em que nos movemos, surgidas na sequência da decisão judicial que declarou aberto o incidente de qualificação na própria sentença de insolvência, o prazo fixado ao AI pelo artº 183º, nº 3, do CIRE, para apresentação do relatório aí indicado é pois meramente regulador, de organização processual, sem cominatório[10].

Para finalizar, ainda uma nota, para chamar a atenção para a distinção entre a natureza do prazo para a apresentação do parecer pelo AI e que procurámos dilucidar, e a daquele outro, fixado no nº 7 do mesmo artº 188º do CIRE, segundo o qual “o administrador da insolvência, o Ministério Público e qualquer interessado que assuma a posição contrária à das oposições pode responder-lhe dentro de 10 dias subsequentes ai termo do prazo referido no número anterior” - o negrito é, obviamente, nosso).

O prazo indicado imediatamente acima, o segundo portanto, é já uma mera faculdade, o acto processual pode ser ou não praticado, cabe ao AI avaliar da bondade ou da utilidade da apresentação de uma resposta, mas cuja falta em todo o caso não contende já com o andamento do processo nem impede a prolação da decisão final, ao contrário do que acontecia e acontece com o primeiro.

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II – DECISÃO

Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso de apelação, mantendo-se assim inalterável o despacho em causa.

Custas pelos recorrentes.

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Coimbra, 13 de Abril de 2021


[1] Rui Estrela de Oliveira, “Uma Brevíssima Incursão pelos Incidentes de Qualificação na Insolvência”, Julgar, nº 11, pgs 199-249, mas aqui, em concreto, pgs 221 e 222. 
[2] Maria do Rosário Epifânio, “Manual do Direito da Insolvência”, 7ª ed., pg 81.
[3] Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., pg 346, ponto 14
[4] Cfr. Ponto 40 do preâmbulo do CIRE na enunciação do objectivo e da finalidade do incidente de qualificação da insolvência.
[5] Redacção que foi introduzida pela Lei 6/2012, de 20.04,
      [6] Carlos Alberto da Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 1980, pgs 135/142 
       [7] Manuel A. Domingues de Andrade, “Teoria geral da Relação Jurídica”, Vol. II, 1983, pgs 445/447.
       [8] Manuel A. Domingues de Andrade,, ob. cit., pgs 463/464.
 [9] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado” , Vol. 1º, 4ª ed., pg 293
 [10] Acs da Relação do Porto de 17.11.2008, de 29.10.2009 e de 06/12/2011, disponíveis em www.dgsi.pt,