Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1590/10.5TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
PROVA ADMISSÍVEL. CLÁUSULA CONDICIONAL RESOLUTIVA TÁCITA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Data do Acordão: 05/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 3º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 236º, 270º, 393º, Nº 3, 792º E 808º, TODOS DO C.CIVIL.
Sumário: I – Visando-se determinar o alcance do contrato celebrado entre as partes, para a sua determinação é possível o recurso quer à prova testemunhal quer à documental.

II - O artº 236º do C. Civil consagrou a teoria segundo a qual as declarações de vontade, em princípio, valem com o sentido que as partes lhe quiseram conferir (vontade real das partes). Só se não for conhecida essa vontade ou quando declarante e declaratário entenderam a declaração em sentidos diversos, deve valer o sentido que um declaratário normal podia julgar conforme às reais intenções do declarante, excepto se este não tinha o dever de considerá-lo acessível à compreensão da outra parte.

III - Estando a celebração do contrato prometido, ou seja o cumprimento do negócio celebrado, condicionado à verificação de um acontecimento futuro e incerto, dependente da actividade de terceiro – uma entidade licenciadora –, estamos perante a existência de uma cláusula condicional resolutiva tácita, tipificada no art.º 270º do C. Civil, uma vez que a não verificação da condição determinará necessariamente a resolução do contrato-promessa, dado que as partes manifestaram a vontade de apenas celebrarem o contrato prometido caso obtivessem o licenciamento de dois projectos de construção de barracões industriais no terreno prometido vender.

IV - Existindo uma situação de impossibilidade temporária de cumprimento da obrigação assumida – a celebração do contrato prometido –, por não se verificar o acontecimento ao qual as partes condicionaram esse cumprimento – o licenciamento dos projectos de construção dos barracões industriais –, os promitentes compradores não deixavam de poder resolver o contrato, por perda de interesse no cumprimento da prestação, em resultado daquela impossibilidade temporária, quer esta seja imputá­vel à contraparte – artigo 808º, n.º 1, do C. Civil –, quer não seja – art.º 792º, n.º 2, do C. Civil –, diferindo, todavia, as consequências da resolução numa e noutra situação.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra


Os Autores intentaram contra os Réus a presente acção declarativa sob a forma de processo ordinário, pedindo que se declare resolvido o contrato-promessa que identificam sob 1º a 4º na petição inicial e que se condene os demandados a entregarem-lhes a quantia de € 249.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal contados desde a citação até integral pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão alegaram, em síntese:
Ø        Comprometeram-se a comprar e os Réus a venderem-lhes cinco terre­nos sitos em …, pelo preço de € 124.700,00, pagos em dois momentos e metades, sendo a última aquando da realização da escritura em Novembro de 2007, obrigando-se outrossim os Réus a entregar neste último momento dois projetos para barracões aprovados pela Câmara Municipal com a área total de construção de 973,60 m2, e os AA. a avisar da data da celebração com quinze dias de antecedência.
Ø        Na altura, Autores e Réus condicionaram a realização do contrato prometido à obtenção do licenciamento de dois projectos para barracões destinados à indústria.
Ø        Os Réus deram entrada de dois projectos de licenciamento, a 8-6-2006 e a 3-7-2007, tendo em 29-11-2007 recebido o remanescente do preço.
Ø        Porém, os Autores, após questionarem os Réus sobre o andamento do processo de licenciamento e da resposta positiva destes, enviaram a 13 de Outubro de 2010 cartas para resolução do problema, nada tendo sido respondido.
Ø        Por fim, os Autores vieram a considerar rescindido o contrato-pro­messa por via de notificação judicial avulsa, tendo os Réus conhecido a mesma a 10 de Fevereiro de 2010.
Os Réus contestaram, alegando, em síntese:
Ø Foi negociada a venda dos terrenos bem como a entrega de dois pro­jectos, um que estava na Câmara quando foi assinado o contrato e outro que foi entregue depois, tendo os Autores tido acesso a toda a documentação para avaliar ris­cos, sendo pessoas experientes nestes negócios.
Ø        Não foi acordado condicionarem a outorga do contrato prometido à obtenção de licenciamento sobre os projectos.
Ø        Os Autores não marcaram a escritura como estavam obrigados e a partir da data aprazada seriam os Autores a promover o processo camarário, sendo que os Réus estiveram sempre disponíveis para assinar a escritura, tendo até marcado a sua realização por duas vezes, não tendo os Autores comparecido.
Concluíram pela improcedência da acção.
Os Autores, na réplica, alegaram que o Réu marido garantiu obter a apro­vação municipal, tendo o seu desinteresse advindo da inviabilidade do licenciamento.
Pediram a condenação dos Réus como litigantes de má-fé e indemnização a seu favor no valor de €. 2.500,00 e no pagamento de despesas e honorários.
Veio a ser proferida sentença que julgou a causa nos seguintes termos:
Por tudo exposto, decide-se:
a) Julgar procedente a acção por provada e em consequência declarar resolvido o contrato promessa id. em § 6. a), condenando-se os RR. a entregar a quantia de cento e vinte e quatro mil e setecentos euros, acrescida de juros de mora à taxa legal desde 25-03-2010;
b) Condenar os RR. como litigantes de má-fé na multa de cinco unidades de conta, determinando-se a audição das partes nos termos do art. 457 nº 2 do Código de Processo Civil;
A indemnização aos Autores decorrente da litigância de má-fé pelos Réus veio a ser fixada em € 3.134,00.
Inconformados os Réus interpuseram recurso, formulando as seguintes conclusões:

Os Autores apresentaram resposta, defendendo a confirmação da decisão proferida.
1.Do objecto do recurso
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegações dos Recorrentes, as questões a decidir são as seguintes:
a) A resposta dada ao quesito 2º formulado na base instrutória deve ser alterada para não provado?
b) Não é imputável aos Réus o incumprimento do contrato-promessa?
e) Os Réus não usaram de má-fé quando deduziram contestação?
2. Dos factos
Neste recurso os Réus pretendem, além do mais, que, após reapreciação da prova produzida, seja alterada a resposta ao quesito 2º formulado na base instrutória. Para a alteração pretendida invocam em 1º lugar o texto do contrato-promessa celebrado com os Autores e a impossibilidade decorrente do art.º 393º do C. Civil de não ser possível a utilização da prova testemunhal, uma vez que o facto que aquele visa não consta do texto do contrato.
Dispõe o art.º 393º do C. Civil:
1. Se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunhal.
2. Também não é admitida prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena.
3. As regras dos números anteriores não são aplicáveis à simples inter­pretação do contexto do documento.
O n.º 1 deste preceito proíbe a prova testemunhal como meio de se deter­minar a existência de uma cláusula contratual quando se esteja perante um contrato que deva ser reduzido a escrito.
Ora, no caso que nos ocupa não se visa com o recurso à prova testemunhal o apuramento da existência de uma clausula contratual que não esteja expressa no acordo celebrado entre as partes, mas tão só a interpretação das declarações negociais escritas por aqueles contraentes no momento da celebração do contrato, pelo que estamos no domínio do n.º 3 daquele preceito, não estando, por isso, proibido o recurso à prova testemunhal.
Assim, visando-se determinar o alcance do contrato celebrado entre as partes e sendo para a sua determinação possível o recurso quer à prova testemunhal quer documental, passamos a apreciar a mesma.

De todos estes depoimentos conjugados com os documentos juntos aos autos e que constituem fls. 14 e 15, que são os requerimentos dirigidos pelo Réu em 6.6.2006 e 26.6.2007 à Câmara Municipal com vista ao licenciamento da construção nos terrenos, do contrato-promessa celebrado com os Autores em 12.5.2007 e do contrato-promessa celebrado entre os Autores e J…, L.da, em 19.7.2007, resulta a convicção de que a aprovação dos projectos era essencial à celebração do contrato prometido, pois não faria sentido algum que, se assim não fosse, o Réu requeresse o licenciamento referente a um dos prédios, já depois de celebrado o contrato-promessa com os Autores.
Também o facto dos Autores terem prometido vender os mesmos prédios, imediatamente à celebração do contrato com os Réus e estabelecerem como termo do prazo para a celebração do contrato definitivo 30 dias contados da data em que a última das licenças de construção relativas aos dois pavilhões …, for posta a pagamento.., retira-se que a sua convicção era que iriam comprar esses mesmos prédios já com os projectos aprovados.
Acresce que do facto dos prédios objecto deste contrato-promessa confina­rem com a linha férrea, estando o licenciamento de qualquer construção, pela entidade competente, sujeito, além do mais, ao parecer da Refer, se a venda não incluísse os projectos aprovados o preço era demasiado elevado para o negócio, dados os riscos que comportava.
Face ao exposto deve manter-se o sentido da resposta ao quesito 2.º, alte­rando-se apenas a sua redacção de modo a melhor precisar a conclusão retirada da prova produzida.
Assim, deve considerar-se provado, em resposta ao quesito 2.º, que a von­tade dos Autores e Réus ao inserirem a clausula n.º 2 c) no contrato-promessa de compra e venda entre eles celebrado foi a de condicionar a celebração do contrato prometido à obtenção do licenciamento de dois projectos para barracões, destinados à indústria, com a área total de 973,60 m2, a edificar no terreno objecto do contrato-promessa.
Os factos provados são os seguintes:

3. O direito aplicável
Os Autores, na posição de promitentes-compradores, e os Réus, na posição de promitentes-vendedores, celebraram um contrato-promessa de compra e venda, tendo o negócio prometido como objecto um terreno para construção industrial, com a área de 3.665 m2.
Os Autores vieram a resolver este contrato, tendo proposto a presente acção para obter a devolução de todas as quantias entregue para pagamento anteci­pado do preço, em dobro.
O tribunal recorrido proferiu sentença em que, reconhecendo legítima a resolução operada, perante o incumprimento definitivo pelos Réus da obrigação de obter o licenciamento dos projectos de construção de dois barracões no terreno prometido vender, resultante duma perda de interesse justificado dos Autores, condenou os Réus no pedido formulado.
Estes, para além da impugnação da matéria de facto fixada, no presente recurso também questionaram a solução jurídica encontrada, discordando que lhes possa ser assacado um incumprimento culposo do contrato-promessa que justifique a sua condenação no pagamento da indemnização peticionada, atribuindo antes aos Autores a responsabilidade pelo incumprimento, ao não marcarem a escritura do negócio prometido no prazo acordado.
Pelo contrato-promessa outorgado Autores e Réus obrigaram-se à celebra­ção de um contrato de compra e venda, tendo por objecto um terreno para construção pertencente aos Réus.
Na cláusula 2.ª c) desse contrato escreveram que os Réus se obrigavam a entregar aos os Autores no dia da escritura definitiva dois projectos para barracões com a área total de construção de 973,60 m2.
As partes discordam sobre a interpretação do conteúdo desta cláusula.
As regras sobre os critérios a utilizar na interpretação dos contratos encontram-se plasmadas no art.º 236º do C. Civil.
Dispõe este normativo:
"1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário nor­mal, colocado na posição do real declaratário possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder contar razoavelmente com ele.
2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida".
Este artigo consagrou a teoria segundo a qual as declarações de vontade, em princípio, valem com o sentido que as partes lhe quiseram conferir (vontade real das partes). Só se não for conhecida essa vontade ou quando declarante e declaratário entenderam a declaração em sentidos diversos, deve valer o sentido que um declaratário normal podia julgar conforme às reais intenções do declarante, excepto se este não tinha o dever de considerá-lo acessível à compreensão da outra parte.
Da prova produzida apurou-se que a vontade dos Autores e Réus, ao inse­rirem a clausula n.º 2 c) no contrato-promessa de compra e venda entre eles cele­brado, foi a de condicionar a celebração do contrato prometido à obtenção do licenciamento de dois projectos para barracões, destinados à indústria, com a área total de 973,60 m2, a edificar no terreno objecto do contrato-promessa, pelo que, aquela cláusula deve ser lida com esse sentido, nos termos das regras de interpretação dos contratos constantes do art.º 236º do C. Civil.
Estando a celebração do contrato prometido, ou seja o cumprimento do negócio celebrado, condicionado à verificação de um acontecimento futuro e incerto, dependente da actividade de terceiro – a entidade licenciadora –, estamos perante a existência de uma cláusula condicional resolutiva tácita, tipificada no art.º 270º do C. Civil, uma vez que a não verificação da condição determinará necessariamente a resolução do contrato-promessa, dado que as partes manifestaram a vontade de apenas celebrarem o contrato prometido, caso obtivessem o licenciamento de dois projectos de construção de barracões industriais no terreno prometido vender [1].
A condição é resolutiva e não suspensiva, porque não foi a celebração do contrato-promessa que ficou condicionada ao licenciamento dos projectos de constru­ção, até porque o contrato promessa logo produziu efeitos com a entrega do sinal acordado, mas sim a celebração do contrato prometido, ou a seja a realização da prestação a que as partes se obrigaram com a outorga já efectuada do contrato-promessa.
Note-se ainda que estamos perante uma cláusula acessória que se traduz na aposição de uma condição resolutiva tácita e não de um dever acessório dos promi­tentes vendedores obterem o referido licenciamento (obrigação de resultado), embora sobre eles não deixasse de recair uma obrigação acessória de meios consistente no dever de efectuarem as diligências necessárias no sentido de obter esse licenciamento, dado que eram eles os proprietários do terreno prometido vender, no âmbito dos ditames da boa-fé, explicitada nos art.º 272º e 275º do C. Civil.
A condição resolutiva aposta é causal, porque respeita a um acto de ter­ceiro, e negativa porque o facto resolutivo corresponde a uma não alteração da situação existente (o não licenciamento).
Relativamente à verificação desta condição resolutiva, provou-se o seguinte:
- Os Réus, através do seu arquitecto, deram entrada de dois pedidos de licenciamento, o primeiro em 8/06/2006, ao qual foi atribuído o n.º de processo …, a edificar nos artigos matriciais rústicos n.º …, o segundo em 3/07/2007 com o n.º de processo … a edificar nos artigos matriciais rústicos n.º ...
- Os AA. regularmente questionavam os RR. do andamento do processo.
- Decorrido algum tempo, os AA. solicitaram directamente informações ao arquitecto responsável pelos projectos ao que este, alegando a morosidade de que padecem os serviços camarários, apelou à paciência dos AA.
- Pese embora a tolerância e bondade dos AA., estes começaram a ques­tionar os RR. sob a viabilidade de tais licenciamentos, uma vez que estavam a ser alvos de solicitações do Sr. H…, sócio gerente da sociedade J…., Lda. para dar cumprimento ao contrato-promessa entre eles celebrado em 19 de Julho de 2007.
- Em Março de 2008, os AA. são informados pelo arquitecto dos RR. que, pelo facto do caminho de ferro confinar do seu lado poente com a parcela de terreno, cujo licenciamento se pretende, este organismo deveria pronunciar-se.
- A Câmara Municipal de …, através do ofício datado de 14/04/2008, notificou os RR. da decisão da REFER, tendo-se esta pronunciado pela improcedên­cia da pretensão dos RR. e convidou-os a juntar, no prazo de 30 dias, os elementos solicitados por este organismo.
- Em 16/05/2008, os RR. vieram a solicitar à Câmara Municipal de … uma prorrogação de sessenta dias cujo deferimento lhes foi comunicado em 18/06/2008.
- Após algumas tentativas de contactos telefónicos gorados, os AA. envia­ram em 13 de Outubro de 2009, uma carta registada com aviso de recepção na qual propunham uma resolução do assunto em virtude de até à data não lhe terem sido entregues as licenças para os projectos em causa.
- Após consulta dos processos camarários, os AA. confirmaram não terem os RR. entregue quaisquer elementos solicitados no ofício camarário por forma a prosseguir com a aprovação dos referidos projectos.
- Com data de 16 de Novembro de 2009 o pedido de licenciamento foi indeferido pelo vereador camarário.
- Em 25 de Novembro de 2010, foram notificados pela Câmara da pro­posta de indeferimento do projectado.
Deste relato resulta que os promitentes vendedores solicitaram à entidade administrativa competente o licenciamento dos projectos de construção em causa, mas que esta, não chegou a deferir tal pretensão, tendo até sido proposto o seu indeferimento, por tais projectos não reunirem vários requisitos, entre os quais, a necessidade de um parecer favorável da Refer.
Apesar das partes não terem estabelecido nenhum prazo específico para a verificação do acontecimento que condicionava a celebração do contrato prometido, o que é certo é que clausularam que a escritura do contrato prometido se deveria realizar até finais de Novembro de 2007, o que pressupunha que o licenciamento teria que ser obtido até essa data.
Contudo, a formulação da cláusula respeitante ao prazo da celebração da escritura permite-nos concluir que, apesar de estarmos perante uma obrigação de prazo certo, este não se revela essencial, porquanto tal não resulta nem do clausulado, nem do comportamento dos contraentes que, após o decurso daquele prazo, continua­ram a diligenciar pelo licenciamento dos projectos, manifestando a manutenção do seu interesse no cumprimento do contrato.
Estamos, deste modo, perante um prazo fixo relativo em que, a verificação do termo não era impeditiva da possibilidade de prestação ulterior susceptível de satisfazer ainda a finalidade do negócio celebrado, o que abrange a produção do facto condicionante.
Mas isso não significa que os contraentes tivessem de ficar eternamente vinculados às vinculações contratuais assumidas, aguardando uma decisão final do processo de licenciamento dos projectos de construção, para se determinar, com certeza, a verificação ou não da condição aposta.
Existindo uma situação de impossibilidade temporária de cumprimento da obrigação assumida – a celebração do contrato prometido –, por não se verificar o acontecimento ao qual as partes condicionaram esse cumprimento – o licenciamento dos projectos de construção dos barracões industriais –, os promitentes compradores não deixavam de poder resolver o contrato, por perda de interesse no cumprimento da prestação, em resultado daquela impossibilidade temporária, quer esta fosse imputá­vel à contraparte – artigo 808º, n.º 1, do C. Civil –, quer não fosse – art.º 792º, n.º 2, do C. Civil –, diferindo, todavia, as consequências da resolução numa e noutra situação.
A decisão recorrida entendeu que a impossibilidade temporária, resultante do não licenciamento dos projectos de construção, era imputável aos Réus por estes terem omitido o que lhes incumbia para uma solução final do processo camarário, pelo que a resolução do contrato operada pelos Autores estava legitimada pelo disposto no art.º 808º do C. Civil.
Defendem os Recorrentes que, impendendo sobre os Autores o dever de marcar a escritura e não o tendo feito, eles colocaram-se numa situação de incumpri­mento que os impedia de resolver o contrato.
Da análise do contrato promessa resulta que Autores e Réus se obrigaram a outorgar a respectiva escritura pública até fins do mês de Novembro de 2007, devendo para o efeito os promitentes compradores (ora AA.) avisar os promitentes vendedores da data da sua marcação com a antecedência mínima de quinze dias.
Efectivamente, os Autores nunca marcaram a escritura em causa.
Mas essa omissão não se traduz em qualquer incumprimento censurável do plano contratual, uma vez que, estando a celebração do contrato prometido condicio­nada ao licenciamento dos projectos de construção de dois barracões industriais no terreno prometido vender, a marcação da escritura, sem a verificação deste facto, revelava-se um acto perfeitamente inútil.
Estando a execução do plano contratual já retardada pela não obtenção do referido licenciamento, a não marcação da realização da escritura revela-se plena­mente justificada, uma vez que a outorga do contrato prometida pressupunha a prévia obtenção do licenciamento, pelo que a omissão desse acto pelos Autores é irrelevante para a legitimação da resolução do contrato promessa por eles posteriormente efectuada ou para a determinação duma eventual transferência da responsabilidade pelo risco da verificação da condição resolutiva.
E da análise da matéria de facto acima transcrita, efectivamente, resulta inequívoco o comportamento negligente dos Réus em dar andamento ao processo camarário referente ao licenciamento dos projectos. Assim, apesar de lhes ter sido solicitado, através do ofício camarário, datado de 14.04.2008, que fornecessem diversos elementos necessários ao licenciamento pretendido, após lhe ter sido prorrogado, a seu pedido, o prazo para a indicação desses elementos, os Réus nunca corresponderam ao solicitado, pelo que em 16 de Novembro de 2009 o vereador responsável pronunciou-se pelo indeferimento do pedido de licenciamento, tendo os Réus sido notificados pela Câmara Municipal da proposta de indeferimento do projectado, em 25.11.2010.
E este incumprimento do dever acessório que sobre eles recaía de praticar todos os actos necessários ao licenciamento dos projectos de construção presume-se culposo, nos termos do art.º 799º, n.º 1, do C. Civil, não tendo sido ilidída esta presunção legal de culpa.
O incumprimento deste dever acessório, pela influência que tem na produ­ção do facto que condicionava a outorga do contrato-prometido, revela-se determi­nante no prolongamento da impossibilidade temporária de cumprimento do contrato-promessa, pelo que aos Autores assistia o direito de o resolverem nos termos dos art.º 801º, n.º 1 e 808.º, n.º 1 e 2, do C. Civil, com fundamento na perda de interesse na realização da prestação, sendo essa perda de interesse objectiva, dado o tempo entretanto decorrido, o elevado grau de incerteza sobre a cessação da impossibilidade de celebração do negócio prometido, atenta a proposta camarária de indeferimento do pedido de licenciamento, e o valor da quantia antecipadamente desembolsada.
Resolvido o contrato-promessa, com fundamento no incumprimento cul­poso pelos Réus de um dever acessório, nos termos do artigo 442.º, n.º 2, do C. Civil, existindo constituição de sinal, os Autores têm direito à sua devolução em dobro.
Estipulou-se que a título de sinal e princípio de pagamento, os Autores pagariam aos Réus a quantia de €. 62.350,00, sendo a restante quantia liquidada no ato de assinatura da respectiva escritura pública.
Contudo, provou-se que os Autores, além de terem entregue aos Réus a quantia estipulada como sinal, acabaram por antecipar o pagamento integral do preço acordado.
Dispõe o art.º 441º do C. Civil que no contrato-promessa de compra e venda, como é o dos autos, presume-se que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título ou princípio de pagamento do preço.
Trata-se de uma simples presunção que pode ser ilidida pela prova do contrário – art.º 350º, n.º 2, do C. Civil.
Contudo, essa prova não se basta com a demonstração que as partes atri­buíram a essa quantia a função de antecipação ou princípio de pagamento do preço acordado como prestação do contrato prometido. Uma vez que é possível às quantias entregues antes da celebração do contrato definitivo desempenharem simultanea­mente a função de sinal e de antecipação da prestação do contrato prometido, é necessário demonstrar que as partes excluíram o carácter de sinal [2].
Isto não significa que as partes tenham que expressis verbis declarar a exclusão de tal função, podendo essa vontade retirar-se de quaisquer declarações negociais concludentes nesse sentido [3].
Ora, tendo as partes contratantes consignado no contrato-promessa que a título de sinal e princípio de pagamento, os Autores pagariam aos Réus a quantia de € 62.350,00, sendo a restante quantia liquidada no ato de assinatura da respectiva escritura pública, revelaram, sem margem para dúvidas, que só a entrega de € 62.350,00, tinha simultaneamente a função de sinal e de princípio de pagamento do preço, estando o pagamento da restante parte do preço excluída da função de sinal, a qual foi exclusivamente atribuída ao pagamento antecipado de € 62.350,00.
E o facto dos Autores terem entregue aos Réus a restante parte do preço, sem que tenha sido celebrada a escritura relativa ao negócio prometido, não é suficiente para que se tenha alterado a função estabelecida para esse pagamento. Se é verdade que essa entrega consubstancia uma alteração do plano contratual, a estipula­ção de que apenas a primeira entrega dos € 62.350,00 funcionava também como sinal, não foi alterada, pelo que a vontade contratual de excluir qualquer outro pagamento posterior dessa função, manteve-se válida, sendo ela suficientemente concludente para impedir o funcionamento da presunção estabelecida no art.º 441º do C. Civil.
Assim, os Réus deverão ser condenados a pagar aos Autores, nos termos do art.º 442º, n.º 2, do C. Civil, a quantia de € 124.700,00 (€ 62.350,00 x 2), equiva­lente ao dobro do sinal entregue, e a devolver-lhes a quantia correspondente à restante parte do preço, ou seja € 62.350,00 (€ 124.700,00 – € 62.350,00), por força dos efeitos retroactivos da resolução do contrato – art.º 434º, n.º 1, do C. Civil –, acresci­das de juros de mora, calculados sobre ela, até integral pagamento, desde a data da citação - 25.3.2010 -, à taxa definida por lei, nos termos dos art.º 804º, 805º e 806º, do C. Civil.
Os Réus discordam ainda da condenação por litigância de má-fé, alegando que se limitaram, ao apresentar a contestação, a exercer um direito.
Dispõe o n.º 2, do art.º 456º, do C. P. Civil:
Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
 a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
 c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
 d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso mani­festa­mente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou, protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
A má-fé a que alude o citado preceito reveste-se de dois aspectos: a má-fé material, aquela a que se referem as alíneas a), b) e c), e a má-fé instrumental, a referida na alínea d).
Ao direito concreto de exercer a actividade processual são impostas limita­ções pela ordem jurídica, nomeadamente, exigindo-se que o litigante esteja de boa-fé ou suponha ter razão.
Se a parte agiu com a consciência de que não tinha razão ou se não pon­derou com prudência as suas pretensas razões, a sua conduta é ilícita, impondo o art.º 456º do C. P. Civil, que seja condenada em multa e numa indemnização à parte contrária se esta o pedir.
A decisão recorrida, considerando que os Réus invocaram um facto pes­soal do qual se veio a provar o contrário, entendeu verificados os pressupostos definidos pela alínea b), do nº 2, do art.º 456º, do C. P. Civil, reveladores de dolo indirecto, que ultrapassou, claramente, a lide temerária.
Com efeito, a má fé substancial, quer dolosa, quer com culpa grave ou erro grosseiro, esta última designada por lide temerária, a que se reporta a referida alínea b), diz respeito ao fundo da causa, à relação substancial deduzida em juízo.
Ora, tal como fez notar a sentença recorrida os Réus negaram que a cele­bração do negócio prometido tivesse ficado condicionada à obtenção do licencia­mento dos projectos de construção, tendo-se provado precisamente o contrário.
Sendo este um facto pessoal não podia o mesmo ser ignorado pelos Réus, sendo certo que era um facto decisivo para a resolução do litígio.
É certo que os Réus defenderam no presente recurso a alteração da decisão da matéria de facto precisamente quanto à prova desse facto, mas esse fundamento do recurso improcedeu, pelo que também não procede a pretensão de alteração da decisão relativa à sua condenação como litigantes de má-fé.
Decisão
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso e, em conse­quência, altera-se a decisão recorrida, julgando-se parcialmente procedente a acção e condenando-se os Réus a pagarem aos Autores a quantia de € 187.050,00, acrescida de juros de mora, desde 25.3.2010, até integral pagamento daquela quantia, calcula­dos sobre ela, à taxa definida por lei, mantendo-se a condenação por litigância de má-fé.
Custas do recurso pelos Réus, na proporção de 75% e pelos Autores, na proporção de 25%.
Coimbra, 20 de Maio de 2014.

Relatora: Sílvia Pires
Adjuntos: Henrique Antunes
     Regina Rosa

[1] Adoptaram esta qualificação em situações semelhantes Henrique Mesquita, em anotação ao Ac. do S.T.J. de 17 de Junho de 1999, na R.L.J., Ano 132.º, pág. 342-344, e os seguintes Acórdãos:
- do S.T.J., de 12.1.1999, na C.J., Ano VII, tomo 1, pág. 27, relatado por Torres Paulo.
- da Relação do Porto, de 22.11.2007, relatado por Pinto de Almeida.
- do S.T.J., de 16.10.2008, na C.J., Ano XVI, tomo 3, pág. 72, relatado por Mário Cruz.
- da Relação do Porto, de 28.11.2011, relatado por Anabela Luna de Carvalho

[2] Ana Prata, in O contrato-promessa e o seu regime civil, pág. 821-823, ed. 1999, Almedina, e Menezes Leitão, in Direito das obrigações, vol. I, pág. 209-210, 10ª ed., Almedina.
[3] Ana Prata, ob. e loc. cit.