Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4114/15.4T8ACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: TÍTULO DE CRÉDITO
FORMALIDADES
LIVRANÇA
FALSIDADE
ASSINATURA
CIRCULAÇÃO
OBRIGAÇÃO SUBJACENTE
VALIDADE
PORTADOR
INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 09/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - ALCOBAÇA - JUÍZO EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1º, 7º, 32º E 75º DA LULL
Sumário: I – A constituição de um título de crédito e as formalidades para o efeito exigidas são reguladas pela lei cambiária – independentemente de o título entrar ou não em circulação – e o que resulta da conjugação do disposto nos artigos 1º e 75º da LULL com o disposto no artigo 7º do mesmo diploma é que a constituição do título de crédito se basta a mera aparência da assinatura de quem o emite (o sacador na letra de câmbio e o subscritor na livrança), uma vez que a falsidade de qualquer assinatura constante do título (incluindo a do sacador ou subscritor porque não é ali excepcionada) – bem como qualquer outras das irregularidades que as afectem e que aí estão mencionadas – não interfere com a validade das obrigações que tenham sido assumidas no título por outros signatários;

II – A falsidade da assinatura do subscritor da livrança, não impedindo a formação/constituição do título de crédito, não invalida as demais obrigações que aí sejam assumidas e não invalida, designadamente, a obrigação do avalista que deu o seu aval àquela obrigação;

III – A obrigação do avalista apenas fica invalidada quando a obrigação avalizada é nula por vício de forma (artigo 32º da LU), como tal se considerando o vício reportado à forma externa do acto e que, como tal, tenha expressão e seja detectável no título de crédito; os vícios ocultos ou não aparentes – como é o caso da falsidade da assinatura de um obrigado cambiário – não correspondem a vícios formais e, como tal, não invalidam a obrigação do respectivo avalista;

IV – Assim, ainda que o título não tenha entrado em circulação, a falsificação da assinatura do subscritor de uma livrança (ou do sacador da uma letra de câmbio) não releva para efeitos de desonerar o respectivo avalista do cumprimento da obrigação cambiária.

V – A circunstância de estar pendente um processo de insolvência referente à subscritora de uma livrança onde foi reclamado o respectivo crédito (ou parte dele) não obsta a que o portador do título venha a reclamar do avalista o crédito que nele está titulado; estando em causa uma responsabilidade solidária, o portador da livrança, enquanto não obtiver o pagamento do seu crédito, pode reclamá-lo de qualquer um dos obrigados cambiários; pode fazê-lo individual ou colectivamente e a circunstância de ter demandado apenas um deles não o impede de, posteriormente, vir a accionar os demais.

Decisão Texto Integral:


Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A..., S.A., com sede no (...) , Mem Martins, instaurou execução contra B... , residente na (...) , Reguengo do Fetal, pedindo o pagamento da quantia de 13.586,20€, acrescida de juros vencidos no valor de 11,91€ e juros vincendos, juntando como título executivo uma livrança subscrita por C...., Ldª (entretanto declarada insolvente) e avalizada pelo Executado e alegando que tal livrança se destinou a garantir o cumprimento do contrato nº 47837, cuja cópia junta aos autos.

O Executado veio deduzir oposição, por embargos, a tal execução, aceitando ter dado o seu aval na livrança em questão quando esta se encontrava em branco, alegando, porém, que, enquanto sócio gerente da referida sociedade, não subscreveu a letra de câmbio dada à execução, uma vez que a assinatura “ B... ” aposta no local destinado ao aceitante não corresponde à assinatura que o executado costuma utilizar e não foi feita pelo seu punho. Sustenta que a aludida livrança padece de nulidade por vício de forma e que essa nulidade se estende ao avalista e alega que no âmbito do processo de insolvência referente à sociedade “ C... , Lda.” a embargada reclamou um crédito no valor global de €968,98 referente ao contrato de locação financeira do veículo da marca AA... , modelo V(...) , com a matrícula FQ(...) , sendo esse o contrato que a livrança visou garantir. Assim – diz – sendo o Processo de Insolvência a sede própria para a reclamação do crédito pela Embargada e tendo o mesmo sido aí reclamado, nada mais haverá a peticionar, devendo declarar-se extinta a presente execução.

A Exequente contestou, alegando, em suma: que a assinatura constante na frente da livrança foi aposta pelo Executado; que, ao alegar o contrário, o Executado litiga de má-fé e age em abuso de direito, sendo certo que não só assinou a livrança na qualidade de legal representante da subscritora e na qualidade de avalista, como também assinou, nessas duas qualidades, o contrato de locação financeira, sem que impugne estas assinaturas; que a quantia aposta na livrança é efectivamente devida à Exequente e corresponde às rendas vencidas e não pagas e respectivos juros e despesas, ao capital vincendo até ao termo da locação e respectivos juros, bem como despesas de contencioso e imposto de selo; que o valor do crédito reconhecido no processo de insolvência foi reconhecido pelo respectivo Administrador da Insolvência quando ainda estava a ser negociada a opção de recusa do cumprimento do contrato, sendo certo que, até à data, não foi devolvida a viatura nem foram pagos os valores para a sua aquisição e, nestas circunstâncias, tem o direito de exigir do Executado a totalidade do crédito resultante da falta de restituição da viatura, sendo certo que a circunstância de ter um crédito reconhecido no processo de insolvência da subscritora não a impede de exigir o pagamento ao avalista

Conclui pela improcedência dos embargos, pedindo ainda que o Embargante seja condenado como litigante de má-fé.

Foi realizada a audiência prévia, no âmbito da qual se entendeu que as questões suscitadas na oposição eram, exclusivamente, de direito e que o estado dos autos permitia o conhecimento da causa sem necessidade de mais prova, razão pela qual foi concedido prazo para que as partes viessem alegar por escrito.

Só a Exequente apresentou alegações, onde reafirmou a posição assumida na contestação.

Foi então proferido despacho saneador e, entendendo-se que era possível a apreciação do mérito da causa, foi proferida decisão que julgou os embargos improcedentes.

Inconformado com tal decisão, o Executado/Embargante veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

I – O recorrente não subscreveu a letra de câmbio dada à execução.

II - A assinatura “ B... ” aposta nos locais destinados ao subscritor e ao avalista não é a assinatura do recorrente, não foi feita pelo seu próprio punho e não passa de uma groseira falsificação.

III – Tendo sido executado apenas o ora recorrente como pretenso avalista da livrança dos autos, é-lhe licito opor à exequente, portadora da livrança, no domínio das relações imediatas, todas as exceções que à subscritora seria lícito invocar.

IV - A falsidade da assinatura no verso do título, mesmo no domínio das relações imediatas, não responsabiliza o seu presumível autor.

V - A obrigação do recorrente/avalista é nula, por vício de forma.

VI - Tendo sido declarada insolvente a sociedade “ C... , Lda.”, no âmbito do Processo de Insolvência n.º 1050/11.7TBPMS, que correu termos pelo extinto 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Porto de Mós, e tendo a recorrida, no âmbito do mencionado Processo de Insolvência, apenas reclamado um crédito no valor global de €968,98 contra a referida sociedade, referente ao contrato de locação financeira do veículo da marca AA... , modelo V(...) , com a matrícula FQ(...) , trato, nada mais haverá a peticionar, devendo declara-se extinta a execução.

VII - O Tribunal a quo violou e fez errada interpretação do preceituado nos artigos 17.º; 31.º e 32.º da L.U.L.L. e no artigo 260.º do C.S.C..

A Exequente apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

A) A decisão proferida na sentença ora recorrida, julgou, bem, improcedentes os embargos de executado apresentados pelo Recorrente.

B) Apesar da fundamentação vertida na sentença proferida pelo Tribunal a quo, o Recorrente permanece convicto que os factos alegados pelo mesmo nos seus Doutos embargos de executado são válidos e produzem os efeitos almejados por este.

C) Para o efeito, o Recorrente volta a arguir a falsificação da assinatura aposta na livrança, a nulidade da obrigação por vício de forma e a existência de uma situação de litispendência.

D) No entanto, nas alegações de recurso apresentadas pelo Recorrente, este inova ao arguir a falsificação da assinatura da livrança, na qualidade de avalista, quando nos seus Doutros embargos de executado já tinha confessado, no artigo 7.º do respetivo articulado, ter avalizado a livrança.

E) A Recorrida, na sua contestação, aceitou a confissão aduzida pelo Recorrente, nos termos dos artigos 574.º e 465.º, ambos do CPC.

F) Assim, a confissão realizada já não pode ser retirada.

G) Não obstante, cumpre salientar que o Recorrente, em momento algum das suas alegações de recurso coloca em causa os factos dados como provados na sentença proferida pelo Tribunal a quo.

Ou seja,

H) O Recorrente aceitou que tivesse sido dado como provado, o facto de este ter avalizado a livrança apresentada como título executivo nos autos de execução.

I) Isto só demonstra a incoerência inerente às alegações aduzidas pelo Recorrente.

Vejamos,

J) A Recorrida celebrou um contrato de locação financeira mobiliária n.º 48837 com a sociedade C... , Lda.

K) O contrato supra referido foi assinado pelo Recorrente, tanto na qualidade de gerente da sociedade já mencionada, como na qualidade de avalista.

L) A assinatura aposta no contrato, na qualidade de gerente da sociedade C... , Lda., foi devidamente reconhecida por uma entidade competente para o efeito.

M) Acresce que o Recorrente também assinou o contrato na qualidade de avalista, facto este que o mesmo não contesta e encontra-se assente, como facto provado, no ponto 6 na sentença proferida pelo Douto Tribunal a quo.

N) Nas condições particulares e gerais do dito contrato, é possível constatar que a garantia dada é uma Livrança subscrita pelo cliente e avalizada pelos sócios.

O) Tratando-se o gerente da sociedade C... , Lda. e o avalista da livrança a mesma pessoa, não pode o Recorrente pretender fazer crer a este Douto Tribunal que se tratam de personalidades diferentes.

P) Em suma, o Recorrido aceita e admite que assinou um contrato de locação financeira com a Recorrida, no qual este figura como gerente da sociedade locatária e avalista, confessando igualmente nos seus Doutos embargos de executado que avalizou a livrança dada como garantia do respetivo contrato.

Q) No entanto, já alega que não foi ele a assinar a livrança, enquanto gerente da sociedade C... , Lda.

R) Posteriormente, em sede de alegações de recurso já afirma que não assinou a livrança na qualidade de avalista.

S) No momento seguinte, e porque é deveras conveniente, aproveita-se da alegada falsificação das assinaturas apostas na livrança para invocar a nulidade do título executivo por vício de forma.

T) Ora, tal situação figura um autêntico abuso de direito, na vertente de venire contra factum proprium.

U) Uma vez que o Recorrente, para além estar impedido de invocar a falsificação da assinatura, na qualidade de gerente da sociedade subscritora, em virtude dos embargos de executado terem sido apresentados a título pessoal, aproveitou-se de tal situação para depois invocar um vício de forma.

V) Parece, à ora Recorrida, que se trata uma mera manobra dilatória.

W) Não obstante os argumentos já aduzidos nas presentes contra-alegações, sempre se poderá dizer que a eventual falsificação do subscritor da livrança, apresentada como título executivo nos autos de execução, não acarreta a nulidade da obrigação, por vício de forma.

X) A livrança, caracterizada pela sua abstração, literalidade e autonomia, constitui um direito cartular para as partes que figuram na mesma, não estando dependente do direito subjacente à constituição desse mesmo direito cartular.

Y) Os avalistas não são sujeitos materiais da relação contratual, não resultando qualquer relação imediata entre estes e o portador da livrança.

Z) Assim, estes não garantem o pagamento da obrigação do seu avalizado, mas sim o pagamento da livrança, pelo que a obrigação dos avalistas mantém-se mesmo no caso da obrigação que estes garantiram ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.

AA) Desta forma, as eventuais nulidades intrínsecas da obrigação avalizada não se comunicam à do avalista.

BB) No caso em apreço, o Recorrente é avalista da livrança apresentada como título executivo nos presentes autos de execução.

CC) Nos termos do artigo 32.º ex vi do artigo 77.º, ambos da LULL, o avalista responde da mesma maneira que a pessoa por ele avalizada.

DD) No entanto, o Recorrente tenta escudar a sua responsabilidade na nulidade da obrigação, por vício de forma, uma vez que alegadamente a assinatura do subscritor da livrança foi falsificada.

EE) Ora, a eventual falsidade da assinatura do subscritor da livrança não se traduz num vício de forma.

FF) Ao contrário do que sucede no regime geral da solidariedade passiva, prevista nos artigos 514.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código Civil, os avalistas não dispõem dos meios de defesa que atingem a relação obrigacional no seu todo.

GG) O próprio artigo 7.º da LULL traduz exatamente esta posição.

HH) Também o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo aponta nesse sentido quando este afirma “A falsidade da assinatura do subscritor da livrança, a existir, não consubstancia um vício de forma e, como tal, não está abrangida na parte final do artigo 32º da LULL.”.

II) O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 22-11-2011, proferido no âmbito do processo n.º 1056/08.3TBGRD-A.C1 também assume, na sua essência, a mesma posição.

JJ) Em suma, não assiste qualquer razão ao Recorrente, uma vez que o título executivo não é nulo, por vício de forma, ou seja, este permanece responsável pela obrigação avalizada.

Mais,

KK) As alegações de litispendência apresentadas pelo Recorrente encontram-se totalmente desprovidas de fundamento, uma vez que a obrigação do Recorrente não se extingue pelo facto de a sociedade subscritora da livrança ter sido declarada insolvente e a aqui Recorrida ter reclamado créditos no dito processo de insolvência

LL) A natureza da livrança permite ao credor ver-se ressarcido do seu crédito, através de qualquer um dos responsáveis, em virtude de qualquer um destes ser solidariamente responsável pela dívida.

MM) Sendo o avalista um devedor solidário, a aqui Recorrida, enquanto credora, pode demandar qualquer um dos co-devedores, com vista ao ressarcimento do seu crédito.

NN) O artigo 32.º da LULL aponta nesse sentido.

OO) Também os artigos 519.º do CC e 88.º do CIRE nos permitem concluir que a declaração de insolvência não impede o credor de recorrer a uma ação executiva contra os demais codevedores.

PP) Por outras palavras, o CIRE permite ao credor reclamar os seus créditos, no âmbito do processo de insolvência e, mesmo assim, tentar obter o ressarcimento do seu crédito, através do prosseguimento da ação executiva contra os restantes devedores.

QQ) No caso em apreço, a Recorrida não podia instaurar uma ação executiva contra a sociedade C... , Lda., face à sua declaração de insolvência.

RR) Contudo, a ratio do preceito legal mantém-se, a Recorrida podia reclamar o seu crédito no processo de insolvência e executar a livrança contra o avalista, ora Recorrente.

SS) Os Tribunais da Relação de Coimbra e Lisboa perfilham este entendimento, conforme se verifica nos seus Acórdãos de 01-07-2014 e 26-02-2015, respetivamente.

TT) Resolvida a questão da litispendência, e apesar da autonomia subjacente à livrança, cumpre esclarecer a diferença dos valores reclamados no processo de insolvência da sociedade C... , Lda. e o valor aposto na livrança, a qual o Recorrente é avalista.

UU) O valor reclamado, em sede do processo de insolvência, reportava-se a duas rendas vencidas e não pagas, referentes aos meses de novembro e dezembro de 2011.

VV) Por sua vez, o valor aposto na livrança, preenchida por EUR 13.586,20 e com data de vencimento de 15-12-2015, corresponde à soma das rendas vencidas e não pagas – EUR 1.724,83, às despesas – EUR 158,00, aos juros de mora sobre as rendas vencidas e não pagas – EUR 361,28, ao capital vincendo até ao termo da locação financeira, vencido em 25-02-2012, diante da falta de restituição da viatura – EUR 8.320,14, aos respetivos juros de mora legais – EUR 2.216,35, às despesas de contencioso para recuperação de valores em dívida, conforme preçário da Recorrida em vigor – EUR 738,00 e o imposto de selo da livrança – EUR 67,59.

WW) Pelas alegações ora aduzidas pela Recorrida é fácil compreender que o Recorrente se limitou a utilizar os meios processuais ao seu dispor, como mera manobra dilatória, com vista a tentar eximir-se da responsabilidade que previamente assumiu, perante a Recorrida.

XX) De tudo o exposto, resulta que o Tribunal a quo procedeu corretamente, quando julgou improcedentes os embargos de executado.

YY) Razão pela qual, no entendimento da ora Recorrida, não deverão ser procedentes as alegações de recurso aduzidas pelo Recorrente, devendo manter-se a decisão proferida pelo Tribunal a quo.

Conclui pela improcedência do recurso.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

- A nulidade, por vício de forma, do título e da obrigação do Apelante/avalista: saber se a falsidade da assinatura da subscritora da livrança corresponde a um vício de forma que invalide também a obrigação do respectivo avalista;

- Implicações da insolvência da subscritora da livrança (e da reclamação do crédito efectuada no processo de insolvência) na obrigação do avalista, aqui Apelante: saber se a reclamação do crédito nesse processo impedia o credor de demandar o respectivo avalista.


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III.

Na 1ª instância, julgaram-se provados os seguintes factos:

1. A exequente deu à execução uma livrança emitida em Faro, em 15 de Dezembro de 2015, com vencimento em 15 de Dezembro de 2015, onde se lê “no seu vencimento pagarei(emos) por esta única via de livrança à A... , S.A, ou à sua ordem, a quantia de treze mil e quinhentos e oitenta e seis euros e vinte cêntimos”.

2. Em tal livrança e no lugar reservado à aposição do nome e morada dos subscritores consta o seguinte: “ C... Lda(...) Reguengo do Fetal”.

3. No local destinado à assinatura do subscritor encontra-se aposta uma assinatura em nome da gerência da sociedade C... Lda com o seguinte nome: “ B... ”.

4. Na face anterior da descrita livrança encontra-se aposto o seguinte dizer: “Bom para o aval ao subscritor” e a assinatura “ B... ”.

5. A assinatura referida em 4. foi aposta pelo embargante.

6. Exequente e a sociedade referida em 3 celebraram um acordo (subscrito também pelo executado) identificado com o n.º 47837.

7. Da cláusula 15 do acordo referido em 6. consta: “O locatário e os respectivos avalistas autorizam expressamente o locador a preencher a livrança em branco por aqueles subscrita nesta data, designadamente no que se refere à data de vencimento, ao local de pagamento e ao seu montante, até ao limite das responsabilidades assumidas pelo locatário e não pagas”.

8. A livrança não foi paga na data do seu vencimento, nem posteriormente.

9. Em finais de 2011 a sociedade “ C... , Lda” foi declarada insolvente.


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IV.

Tal como dissemos supra, são duas as questões suscitadas no presente recurso:

- A nulidade, por vício de forma, do título e da obrigação do Apelante/avalista;

- Implicações da insolvência da subscritora da livrança na obrigação do avalista, aqui Apelante.

Analisemos cada uma delas.

 No que toca à 1ª questão, a decisão recorrida considerou, em linhas gerais: que a responsabilidade do avalista não é afectada pela nulidade da obrigação assumida pelo avalizado na letra, a menos que essa nulidade resulte de um vício de forma; que a falsidade da assinatura do subscritor da livrança, a existir, não consubstancia um vício de forma e, como tal, não está abrangida na parte final do artigo 32.º da L.U.L.L. e que não sendo a alegada falsidade da assinatura do subscritor um vício de forma, não é uma excepção pessoal do avalista e, em obediência ao princípio da independência recíproca das obrigações cambiárias (art. 7.º da L.U.L.L), não poderia tal circunstância, a verificar-se, ser oposta pelo executado ao exequente.

Em desacordo com a decisão, sustenta o Apelante: que não subscreveu a letra de câmbio dada à execução; que a assinatura “ B... ” aposta nos locais destinados ao subscritor e ao avalista não é a sua assinatura, não foi feita pelo seu próprio punho e não passa de uma groseira falsificação; que, no domínio das relações imediatas, é-lhe lícito opor à exequente, portadora da livrança, todas as excepções que à subscritora seria lícito invocar e que a falsidade da assinatura no verso do título, mesmo no domínio das relações imediatas, afecta a obrigação cambiária, na medida em que não responsabiliza o seu presumível autor. Conclui dizendo que é nula, por vício de forma, a sua obrigação.

Sobre essa argumentação caberá fazer, em primeiro lugar, o seguinte esclarecimento:

O Apelante vem alegar, no presente recurso, que a assinatura aposta no local destinado ao avalista não lhe pertence e não foi feita pelo seu punho.

Mas, como é evidente, essa alegação é totalmente despropositada.

Em primeiro lugar, porque, resultando da matéria de facto provada, que a referida assinatura foi aposta pelo Apelante, aquela alegação só poderia ter alguma utilidade caso tivesse sido impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, o que não aconteceu.

Em segundo lugar, porque, no requerimento em que deduziu os embargos, o Apelante confessou expressamente que deu efectivamente o seu aval no verso da livrança, confissão que a Exequente aceitou expressamente e que, como tal, não mais poderá ser retirada – cfr. artigos 465º, nº 2, do CPC – circunstância que, aliás, também inviabilizaria qualquer impugnação que fosse deduzida contra a decisão que julgou provado esse facto.

E, em terceiro lugar, porque sempre estaria em causa uma questão totalmente nova que não havia sido suscitada em 1ª instância – onde o Apelante nunca impugnou a assinatura que lhe era imputada e que constava do verso da livrança – e que, não tendo sido apreciada na decisão recorrida, não poderia ser agora integrada no objecto do recurso.

O que o Apelante invocou para fundamentar os embargos – e continua a invocar – foi que não subscreveu a livrança enquanto sócio gerente da sociedade subscritora, sendo falsa – por não ter sido efectuada pelo seu punho – a assinatura que se encontra aposta no local destinado à assinatura da subscritora e, portanto, é apenas essa a questão que importa aqui analisar.

E, não estando ainda provado se tal assinatura foi (ou não) aposta pelo seu punho, o que importa saber é se esse facto podia ou não interferir com a obrigação que está a ser exigida nos presentes autos: a obrigação assumida pelo Embargante quando deu o aval à subscritora da livrança (sendo certo que, em caso afirmativo, os autos teriam que prosseguir para apuramento desse facto).

É isso que passamos a analisar.

Dispõe o artigo 32º da LULL (aplicável às livranças por força do disposto no artigo 77º do mesmo diploma):

O dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada.

A sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não um vício de forma.

”.

Visando garantir o pagamento da letra (ou livrança) por parte de um dos seus subscritores (cfr. artigo 30º da LU), o avalista responde, portanto, da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, sem que isso signifique, contudo, que a existência da sua obrigação fique efectivamente dependente da existência da obrigação do avalizado. Com efeito, e como decorre da norma citada, a obrigação do avalista é autónoma na medida em que existe e subsiste ainda que a obrigação garantida seja nula, o que, aliás, está em conformidade com o princípio da independência recíproca das obrigações cambiárias que está consagrado no artigo 7º da LU, onde se consigna que a invalidade de uma obrigação cambiária por força das razões ali mencionadas (que se reconduzem a situações em que a assinatura, por ser falsa ou irregular, não pode obrigar a pessoa que a fez ou em nome de quem foi feita) não afecta a validade das demais.

Ressalva-se, porém, no que toca ao aval, o caso de a obrigação do avalizado ser nula por vício de forma; se tal acontecer, ou seja, se a obrigação do avalizado for nula por vício de forma, esse vício arrasta e destrói a obrigação do avalista.

Impõe-se, portanto, saber o que é um vício de forma para os efeitos da citada disposição legal.

Segundo Ferrer Correia[1], “Esta fórmula é aqui manifestamente empregada no seu sentido jurídico comum, importando referência às condições de forma externa do acto de onde emerge a obrigação cambiária garantida, isto é, aos requisitos de validade extrínseca desta obrigação”.  

 Segundo Carolina Cunha[2],Estarão aqui em causa aquelas situações em que o simples exame do título, na sua aparência objectiva, permite concluir que a obrigação do avalizado não se constitui validamente ou, a fortiori, não se constituiu de todo”. E, explicando essa posição[3], diz que essa disposição constitui um desvio ao princípio geral da independência recíproca das obrigações cambiárias, consagrado no artigo 7º e reafirmado pela 1ª parte do artigo 32º II e diz que a chave para explicar esse desvio reside na aparência objectiva, ou, neste caso, na ausência dela. Ou seja, exigindo a lei que o aval seja dado «por alguém», “…se for patente e manifesto que esse alguém por quem se dá o aval não é, afinal, obrigado cambiário – justamente o que sucede nas hipóteses de «vício de forma» –, então é também patente e manifesto que não se verificou a condição legal de posicionamento do avalista no círculo cambiário. O que falha, portanto, são as próprias condições de aparência objectiva de um aval nos termos em que este negócio é recortado pela LU…”.

Um vício de natureza formal – reportando-se naturalmente à forma externa do acto – há-de ter alguma expressão (positiva ou negativa) no título cambiário (incluindo os anexos legalmente permitidos) uma vez que é essa a forma pela qual se constituem as obrigações cambiárias e, nessa medida, ele será necessariamente aparente em face do título, tendo-se por verificado, designadamente, quando as assinaturas dos obrigados não se encontram exaradas no título no local prescrito na lei; a validade formal das obrigações aí assumidas pressupõe o respeito pelas normas legais que impõe um determinado formalismo na sua constituição e será pela análise do título que há-de ser determinado se estão verificadas essas formalidades das quais depende a constituição de uma determinada obrigação cambiária.

Coloca-se, nos presentes autos, a questão de saber se a falsidade da assinatura do subscritor da livrança corresponde a um vício formal para efeitos do citado artigo 32º que, como tal, destrua ou invalide a obrigação do respectivo avalista.

Pensamos ser claramente dominante na doutrina e jurisprudência o entendimento de que tal falsidade não corresponde a um vício formal e que, como tal, a obrigação do avalista mantém-se ainda que seja falsa a assinatura do avalizado e, portanto, ainda que, por via dessa falsidade, o pretenso avalizado não tenha, na realidade, assumido qualquer obrigação.

Ferrer Correia[4] afirma que “A falsidade da assinatura não pode classificar-se como um vício de forma e, portanto, não está abrangida na parte final da alínea II do art. 32º. A pessoa cuja assinatura foi falsificada, não tendo de facto subscrito o título, não manifestou qualquer vontade de se vincular cambiariamente. Há, pois, falta de vontade, e não apenas vício ou irregularidade na exteriorização de uma vontade existente”.

No mesmo sentido se pronuncia Gonsalves Dias[5], quando afirma que “…a falsidade da assinatura do avalizado não destrói a eficácia do aval, porque este vício não é aparente no trânsito do título. Nem a destrói, mesmo que o suposto avalizado dê o alarme da fraude de que foi vítima e faça a sua prova em juízo” e idêntica posição assume Carolina Cunha em vários pontos da sua obra (supra citada) e, designadamente, a fls. 481 e 482.

Na jurisprudência, destacamos as seguintes decisões:

O Acórdão do STJ de 14/01/1998[6], em cujo sumário se lê que a obrigação do avalista se mantém válida mesmo que a assinatura do avalizado seja falsa ou, por qualquer motivo, insusceptível de criar uma obrigação para a pessoa a quem pertence ou pareça pertencer;

O Acórdão do STJ de 30/09/2004[7], onde se lê que a falsidade da assinatura, apesar de envolver a nulidade da obrigação a quem respeita, não gera o vício de forma previsto na 1ª parte do artigo 32º e na última parte do artigo 77º da LU;

O Acórdão do STJ de 28/09/2006[8], onde se lê que a assinatura de uma livrança por sócio gerente que não tinha, por si só, poderes para representar a sociedade, põe em causa a responsabilidade da subscritora da livrança mas não corresponde a um vício de forma que acarrete a invalidade da obrigação assumida pelo avalista;

O Acórdão da Relação de Coimbra de 22/11/2011[9], onde também se diz que “A falsidade da assinatura do subscritor da livrança, a existir, não consubstancia um vício de forma e, como tal, não está abrangida no 2º parágrafo do artigo 32º da LULL. Não sendo uma excepção pessoal do avalista, não pode tal circunstância ser oposta pelo mesmo ao portador/sacador da livrança, mantendo-se a sua obrigação cambiária”.

Temos, portanto, como certo que a falsidade da assinatura não corresponde a um vício de forma para os efeitos previstos no citado artigo 32º e para efeitos de desvincular o respectivo avalista.

Desde logo, porque a falsidade da assinatura não é susceptível de ser enquadrada na figura do vício formal da declaração; o vício formal pressupõe a emissão de uma determinada declaração, ainda que a lei não lhe atribua a susceptibilidade de produção de efeitos jurídicos por falta de observância de determinadas formalidades; a falsidade da assinatura pressupõe, ao invés, a inexistência de qualquer declaração emitida pela pessoa a cujo nome corresponde a assinatura; a pessoa a quem é atribuída a assinatura falsificada não emitiu, de facto, qualquer declaração no sentido de assumir a obrigação cambiária e, portanto, o que se configura, nessa situação, é a inexistência de qualquer declaração que possa determinar a constituição da obrigação e não a existência de uma declaração formalmente viciada.

Poder-se-ia, no entanto, argumentar que, se o legislador entendeu desvincular o avalista quando a obrigação do avalizado é nula por vício de forma, por maioria de razão, o deveria ter feito (ou pretenderia fazer) caso a obrigação do avalizado nunca se tivesse constituído por não ter sido emitida qualquer declaração no sentido de a assumir.

Mas, na realidade, não é assim, uma vez que, ao admitir essa solução, seria colocada em causa a literalidade do título, ou seja, seria colocada em causa uma das características dos títulos de crédito que, garantindo a tutela de terceiros, visa assegurar a sua circulação. E será essa literalidade e a necessidade de tutela de terceiros de boa-fé que estará subjacente ao facto de a obrigação do avalista se manter intacta em caso de vícios ocultos ou não aparentes (como será o caso da falsidade da assinatura do avalizado ou qualquer outro vício de natureza material ou substancial), apenas sendo afectada quando a obrigação do avalizado está afectada de vício formal que, como tal, pode ser detectado pela análise do título. Chamando de novo aqui as palavras de Carolina Cunha[10], é a ausência de aparência objectiva quanto à válida constituição da obrigação do avalizado – detectável pelo título – que justifica o facto de a obrigação do avalista não se manter, por ser, então, evidente para qualquer terceiro de boa-fé que a pessoa por quem se deu o aval não é obrigado cambiário, situação que não ocorre quando está em causa um vício que, como acontece com a falsidade da assinatura, não é detectável pelo título.

Concluímos, portanto, que a falsidade da assinatura do avalizado não corresponde a um vício de forma para os efeitos previstos no citado artigo 32º, razão pela qual essa falsidade não afecta a obrigação do avalista que, como tal, se mantém.

Mas, se essa conclusão é aceite genericamente – na doutrina e na jurisprudência – quando o título entra em circulação e sai do âmbito das relações imediatas, o mesmo não acontece quando o título ainda se encontra nas relações imediatas e quando a assinatura em falta corresponde à assinatura do sacador da letra de câmbio ou do subscritor da livrança.

Relativamente a esta problemática, assume particular relevo o recente artigo publicado na RLJ, Ano 146º, págs. 340 e segs. da autoria de Cassiano dos Santos e Nogueira Serens a propósito do Acórdão da Relação de Évora de 21/01/2016 e que, embora se reporte a um caso em que a assinatura foi feita por quem não tinha poderes para vincular a pessoa em nome de quem assinou, tem aplicação aos casos em que – como acontece no caso sub judice – está em causa uma assinatura falsificada (pelo menos assim é alegado, embora – como referimos – isso ainda não esteja demonstrado e se pretenda apenas apurar se esse facto é ou não relevante e se, como tal, os autos devem prosseguir para esse efeito), já que, em qualquer dos casos, a assinatura não vincula a pessoa cujo nome figura no título.

 Registe-se, antes de mais, que, ainda que o artigo 78ºda LU determine que o subscritor de uma livrança é responsável da mesma forma que o aceitante de uma letra, a verdade é que essa subscrição importa, ela própria, a constituição do título e, portanto, o subscritor da livrança assume também uma posição semelhante à do sacador da letra de câmbio, no sentido em que são esses actos que criam e constituem o título de crédito.

No caso sub judice, está em causa uma livrança e a assinatura – pretensamente falsificada – é a do respectivo subscritor e, portanto, está em causa o acto por via do qual se constitui o título cambiário; daí que possa ser suscitada a questão – abordada no artigo supra mencionado de Cassiano dos Santos e Nogueira Serens – de saber se a falsidade da assinatura do subscritor impede a constituição do título que, por falta de subscrição, não poderia produzir qualquer efeito como livrança.

Com efeito, estando em causa a obrigação constitutiva do título (no caso, a subscrição da livrança) coloca-se a questão de saber se a aposição de uma assinatura falsa é suficiente para considerar verificado o requisito essencial da livrança a que alude o nº 7 do artigo 75º da LU (assinatura de quem passa a livrança (subscritor)) e sem o qual o documento não pode valer como livrança.

Consideram os referidos autores – no artigo supra citado – que a assinatura falta (para os efeitos da norma citada), não só quando falte em absoluto ou quando figura no título uma assinatura que ostensivamente não é a de um sujeito existente, mas também quando existe um vício que invalida ou torna ineficaz a assinatura existente; neste último caso – dizem[11] – “…a assinatura falta, pela razão simples, mas decisiva, de que não tem valor no plano jurídico, como vinculação cambiária, ou seja, embora esteja materialmente colocada no documento ela não existe juridicamente e falta no título”. Com efeito – dizem – é essa a solução que resulta da aplicação dos princípios e regras jurídicas gerais e, conjugando a aplicação desses princípios e regras com o regime especial cambiário, concluem dizendo que, apesar de as regras e princípios gerais não serem aplicáveis quando o título já entrou em circulação, nada justifica a sua não aplicação no âmbito das relações imediatas quando o título ainda não entrou em circulação. E – continuam – ainda que o artigo 7º pareça impor a conclusão de que as obrigações dos demais cambiários se mantêm ainda que esteja inquinada a subscrição, esta norma visa proteger a circulação do título e, portanto, não se aplica no âmbito das relações imediatas. Assim – concluem –, a invalidade ou ineficácia da assinatura do subscritor da livrança corresponde à falta de assinatura que, no âmbito das relações imediatas, impede que o título possa valer como livrança e, não havendo livrança, também não existe aval uma vez que este é uma obrigação cambiária que apenas existe nos títulos que se formam como tal.

Não obstante a evidente pertinência dessa argumentação, entendemos não dever ser aqui acolhida.

Vejamos porquê.

O artigo 75º da LU enuncia os requisitos formais de que depende a constituição de uma livrança. E, confrontando essa disposição com o artigo 76º, verificamos que há requisitos cuja falta é suprida nos termos previstos nesta norma e há outros cuja falta não pode ser suprida e que impedem que o escrito possa valer como livrança.

Entre os requisitos essenciais – cuja falta determina que o título/escrito não possa valer como livrança – consta a assinatura de quem passa a livrança (subscritor), uma vez que é por via dessa assinatura que se estabelece a autoria da promessa pura e simples de pagar uma quantia determinada que obrigatoriamente também terá que constar da livrança.

Mas, conjugando essa norma com o artigo 7º - aplicável às livranças por força do disposto no artigo 77º –, parece impor-se a conclusão de que aquilo que releva para efeitos de constituição do título de crédito é a mera aparência da assinatura do subscritor, uma vez que, como resulta do disposto no artigo 7º, a falsidade de qualquer assinatura constante do título (incluindo a do subscritor porque não é ali excepcionada) – bem como qualquer outras das irregularidades que as afectem e que aí estão mencionadas – não interfere com a validade das obrigações que tenham sido assumidas no título por outros signatários.

Assim, como refere Carolina Cunha[12] - embora chamando a atenção para a opinião diferente de Cassiano dos Santos a que supra fizemos referência – “…o artigo 7º da LU permite que, pese embora a invalidade (ou inexistência) da declaração do sacador, de algum modo se considere criada a letra e constituído o direito cambiário, assim deixando intocada a “base” para as vinculações dos “demais obrigados””, reafirmando a págs. 481 que “Se a assinatura falsificada for a do sacador…o artigo 7º LU permite que se considere criado o título e constituído o direito cambiário, deixando intocada quer a validade de um futuro aceite, quer a constituição da obrigações de endossantes e avalistas”.

Também nesse sentido, refere Ferrer Correia[13] que “…a assinatura deve ser manuscrita e aparentemente autógrafa, isto é, do próprio punho do sacador. Dizemos aparentemente autógrafa porque, como já é sabido, a falsidade da assinatura, desde que não ressalte do título, não determina a invalidade deste, mas apenas a nulidade da obrigação cambiária a que se refere”.

Também Gonsalves Dias[14] afirma que “…uma subscrição falsa, mas formalmente regular, não vicia a criação da letra, embora a viciem as subscrições verdadeiras, mas irregulares. A ordem do pagamento e a aparência da subscrição têm um valor máximo de decisivo”, mais afirmando[15] que “A imitação ou o decalque, meios por que se opera a falsificação, também não invalida a letra de câmbio, embora invalide a obrigação do suposto devedor, como se estabelece no art. 7º da Lei Uniforme…”.

Refira-se que Cassiano dos Santos e Nogueira Serens – no artigo supra referido – não põem em causa essas conclusões; também eles admitem que o título possa ser criado com uma subscrição falsa e com base na mera aparência dessa subscrição emergente da aposição de uma assinatura (ainda que falsa). O que consideram estes autores é que isso apenas vale quando o título entra em circulação; se o título ainda se encontra no âmbito das relações imediatas – não tendo ainda entrado em circulação – aplicam-se os princípios e regras gerais e não o regime específico da LU e portanto, a invalidade da assinatura do subscritor impede que o título possa valer como livrança e, não havendo livrança, também não existe aval.

Mas vejamos.

Como refere Carolina Cunha[16], “…a emissão da letra ou livrança dá origem a uma especifica relação jurídica, separada e distinta de qualquer outra já existente; que cada assinatura aposta sobre a letra, seja qual for a qualidade em que o sujeito intervém (sacador, aceitante, endossante, avalista) faz nascer contra o subscritor uma obrigação nova, uma obrigação substantiva distinta de qualquer outra já existente”.

Subjacente à letra ou livrança encontra-se, por regra, uma outra relação jurídica – a relação jurídica subjacente ou fundamental – que constitui a fonte da obrigação causal, sendo certo, porém, que a obrigação cambiária tem natureza abstracta e autónoma, subsistindo, nos termos que resultam do título, independentemente da relação causal, sendo que a vinculação dos subscritores decorre da mera aposição da sua assinatura no título independentemente da relação causal que esteja subjacente a essa vinculação.

Não obstante a autonomia e abstracção da obrigação cambiária, admite-se que, quando o título ainda não entrou em circulação – encontrando-se ainda no âmbito das relações imediatas e dentro do círculo dos sujeitos que estão envolvidos na relação subjacente sem que se imponha a necessidade de tutelar quaisquer terceiros – possam ser invocadas quaisquer excepções baseadas na relação causal.

Isso não significa, porém, a nosso ver, que o obrigado cambiário, demandado enquanto tal, possa eximir-se à sua responsabilidade com base em circunstâncias/excepções que, não decorrendo da relação causal, também não relevam – ou não são oponíveis – no âmbito da obrigação cambiária. Dizendo de outro modo: se um obrigado é demandado com base na obrigação cambiária, ele poderá – se o título ainda se mantiver no âmbito das relações imediatas – convocar a relação subjacente ou fundamental para, com base nela, deduzir a defesa ou invocar as excepções que lhe sejam permitidas; mas, a pretexto de o título não ter entrado em circulação, não poderá limitar-se a invocar circunstâncias que, não obstante encontrarem apoio nos princípios e regras gerais de direito, não têm qualquer ligação à relação subjacente e que, interferindo apenas com a constituição da obrigação cambiária, não encontram qualquer apoio no regime cambiário. De facto, a resposta à questão de saber se foi ou não validamente constituído um título de crédito e uma obrigação cambiária terá que ser procurada no regime específico que regula essa matéria (o regime cambiário) e não no regime geral.

Por isso nos parece que, ainda que o título não tenha entrado em circulação, o avalista, não tendo convocado a relação subjacente e não tendo invocado qualquer excepção dela decorrente, não poderá invocar a invalidade (não aparente) da assinatura do subscritor do título para o efeito de sustentar que o título não pode valer como livrança e que, não havendo livrança, também não existe aval. Com efeito, essa circunstância não corresponde a qualquer meio de defesa que pudesse invocar relativamente à obrigação causal e também não corresponde a qualquer meio de defesa que possa invocar relativamente à obrigação cambiária. A constituição do título de crédito e as formalidades para o efeito exigidas são reguladas pela lei cambiária – independentemente de o título entrar ou não em circulação – e, de acordo com a lei cambiária, o título constitui-se – conforme já dissemos – com a mera aparência da assinatura de quem o emite (o sacador na letra de câmbio e o subscritor na livrança) e, portanto, ainda que a assinatura seja falsificada; conforme também já dissemos, a falsificação dessa assinatura não impede a formação/constituição do título de crédito, não invalida as demais obrigações que aí sejam assumidas (cfr. artigo 7º da LU) e não invalida, designadamente, a obrigação do avalista que deu o seu aval àquela obrigação, porquanto a inexistência dessa obrigação por efeito da falsificação da assinatura da pessoa a quem se atribui não corresponde a um vício de forma e, como decorre do disposto no artigo 32º da LU, apenas a nulidade da obrigação garantida por vício de forma teria aptidão para destruir ou invalidar a obrigação do avalista. A pretensa invalidade da constituição do título de crédito por falta de requisitos essenciais corresponde a um meio de defesa que apenas se reporta à obrigação cambiária e que nada tem a ver com a relação causal e, portanto, independentemente de o título ter entrado (ou não) em circulação, é em função da lei cambiária que deve ser apurado se o título se constitui validamente.  

É certo, portanto, em face do exposto, que a pretensa falsificação da assinatura do subscritor de uma livrança (ou do sacador da uma letra de câmbio) não releva para efeitos de desonerar o respectivo avalista do cumprimento da obrigação cambiária.

No caso sub judice, o Embargante – ora Apelante – não invocou qualquer excepção baseada na relação subjacente; limitou-se a invocar a falsificação da assinatura da subscritora da livrança (no caso, a falsificação da sua própria assinatura, uma vez que é o gerente da subscritora e é ao seu nome que corresponde essa assinatura) e a sustentar que tal correspondia a um vício de forma e que, como tal, essa nulidade se estende ao aval. Note-se que, não obstante referir que a aludida livrança tem subjacente um contrato de locação financeira (contrato que, aliás, foi junto com o requerimento que deu origem à execução), o Embargante não invocou a falsidade da assinatura da subscritora da livrança e a sua própria assinatura que também constam desse contrato. Ou seja, o Embargante não pôs em causa a obrigação subjacente que decorria daquele contrato para a subscritora da livrança; a sua defesa restringiu-se à obrigação cambiária com alegação do vício que, no seu entender, tornava nula a obrigação cambiária da subscritora e que também implicava a nulidade do aval, sendo certo – como vimos – que a eventual falsificação da assinatura da subscritora não interfere com a válida constituição do título de crédito e com a obrigação cambiária que o Embargante ali assumiu dando o seu aval pela subscritora.

Em face do exposto, não releva apurar se aquela assinatura foi (ou não) falsificada; ainda que o tenha sido, tal circunstância não interfere com a obrigação do Embargante (avalista) que está a ser exigida nos presentes autos.

Improcede, portanto, a primeira questão colocada no recurso.

Relativamente à segunda questão, sustenta o Apelante – em desacordo com a decisão recorrida e sem que apresente qualquer argumentação para apoiar a sua posição – que, tendo sido declarada insolvente a sociedade “ C... , Lda.” e tendo sido reclamado no processo de insolvência um crédito no valor global de €968,98 contra a referida sociedade, referente ao contrato de locação financeira que está subjacente à livrança em causa nos presentes autos, nada mais haverá a peticionar, devendo declarar-se extinta a execução.    

Tal como referimos, o Apelante não apresenta qualquer argumentação jurídica para apoiar a posição que vem aqui sustentar e a verdade é que a mesma não tem fundamento legal.

O art. 47º da LULL – aplicável às livranças, por força do disposto no art. 77º do mesmo diploma – dispõe nos seguintes termos:

Os sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas de uma letra são todos solidariamente responsáveis para com o portador.

O portador tem o direito de accionar todas estas pessoas, individualmente ou colectivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que elas se obrigaram.

O mesmo direito possui qualquer dos signatários de uma letra quando a tenha pago.

A acção intentada contra um dos co-obrigados não impede de accionar os outros, mesmo os posteriores àquele que foi accionado em primeiro lugar”.

 É certo, portanto, que o avalista – assumindo uma obrigação cambiária que é autónoma e independente da relação jurídica subjacente ou fundamental – obriga-se, perante o titular da livrança a pagar a quantia nela titulada e, como se diz expressamente na norma citada, responde solidariamente com os demais intervenientes por esse pagamento, podendo ser demandado individualmente ou em conjunto com os demais responsáveis.

Estando em causa uma responsabilidade solidária, a Exequente poderia demandar apenas o avalista sem necessidade de demandar a subscritora e, portanto, sem necessidade de esgotar o património desta; por outro lado, ainda que tenha reclamado o seu crédito à subscritora (no âmbito do processo de insolvência) também podia instaurar nova acção com o objectivo de reclamar o crédito ao avalista, como se diz expressamente na norma supra citada.

Assim sendo, não vislumbramos qual seja o fundamento legal da alegação do Apelante.

Enquanto não obtiver o efectivo pagamento do seu crédito – e, no caso sub judice, não foi alegado que tal pagamento tenha sido efectuado – o credor pode reclamar o seu crédito de qualquer um dos obrigados; pode fazê-lo individual ou colectivamente e a circunstância de ter demandado apenas um deles não o impede de, posteriormente, vir a accionar os demais. É isso que dispõe a norma supra citada e, portanto, apesar de ter reclamado o crédito na insolvência (respeitante à subscritora da livrança), a Exequente podia accionar – como accionou – o avalista sem necessidade de aguardar o desfecho do processo de insolvência. 

Assim, também no que toca a esta questão, improcede o recurso.

Em face do exposto, improcede o recurso e confirma-se a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – A constituição de um título de crédito e as formalidades para o efeito exigidas são reguladas pela lei cambiária – independentemente de o título entrar ou não em circulação – e o que resulta da conjugação do disposto nos artigos 1º e 75º da LULL com o disposto no artigo 7º do mesmo diploma é que a constituição do título de crédito se basta a mera aparência da assinatura de quem o emite (o sacador na letra de câmbio e o subscritor na livrança), uma vez que a falsidade de qualquer assinatura constante do título (incluindo a do sacador ou subscritor porque não é ali excepcionada) – bem como qualquer outras das irregularidades que as afectem e que aí estão mencionadas – não interfere com a validade das obrigações que tenham sido assumidas no título por outros signatários;

II – A falsidade da assinatura do subscritor da livrança, não impedindo a formação/constituição do título de crédito, não invalida as demais obrigações que aí sejam assumidas e não invalida, designadamente, a obrigação do avalista que deu o seu aval àquela obrigação;

III – A obrigação do avalista apenas fica invalidada quando a obrigação avalizada é nula por vício de forma (artigo 32º da LU), como tal se considerando o vício reportado à forma externa do acto e que, como tal, tenha expressão e seja detectável no título de crédito; os vícios ocultos ou não aparentes – como é o caso da falsidade da assinatura de um obrigado cambiário – não correspondem a vícios formais e, como tal, não invalidam a obrigação do respectivo avalista;

IV – Assim, ainda que o título não tenha entrado em circulação, a falsificação da assinatura do subscritor de uma livrança (ou do sacador da uma letra de câmbio) não releva para efeitos de desonerar o respectivo avalista do cumprimento da obrigação cambiária.

V – A circunstância de estar pendente um processo de insolvência referente à subscritora de uma livrança onde foi reclamado o respectivo crédito (ou parte dele) não obsta a que o portador do título venha a reclamar do avalista o crédito que nele está titulado; estando em causa uma responsabilidade solidária, o portador da livrança, enquanto não obtiver o pagamento do seu crédito, pode reclamá-lo de qualquer um dos obrigados cambiários; pode fazê-lo individual ou colectivamente e a circunstância de ter demandado apenas um deles não o impede de, posteriormente, vir a accionar os demais.


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do Apelante.
Notifique.

Des. Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Des. Adjuntos: Helder Almeida

                               António Magalhães

                    


[1] Lições de Direito Comercial, Vol. III, Letra de Câmbio, 1975, pág. 216.
[2] Letras e Livranças, Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime, pág. 114.
[3] Ob. cit., págs. 115 e 116.
[4] Ob. cit., pág. 218.
[5] Da Letra e da Livrança, pág. 559.
[6] Proferido no processo nº 97A964, disponível em http://www.dgsi.pt.
[7] Proferido no processo nº 04B2776, disponível em http://www.dgsi.pt.
[8] Proferido no processo nº 06A2377, disponível em http://www.dgsi.pt
[9] Proferido no processo nº 1056/08.3TBGRD-A.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[10] Ob. cit., págs. 114 a 116.
[11] Fls. 346.
[12] Ob. cit., pág. 406..
[13] Ob. cit., pág. 121.
[14] Ob. cit., págs. 355 e 356.
[15] Ob. cit., pág. 502.
[16] Ob. cit., pág. 152.