Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
16/11.1GDCNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
REGIME DE SEMI-DETENÇÃO
Data do Acordão: 01/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CANTANHEDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGO 46º CP
Sumário: 1.- O tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária, ou em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas
2.- Chegando à conclusão que a pena de prisão é a adequada ao caso, e que o arguido nunca sentiu o efeito da reclusão, mostrando-se proporcionado aplicar-lhe um regime de cumprimento mais flexível, que lhe permita, nomeadamente, exercer uma atividade e retirar todas as consequências da anterior condenação de suspensão condicionada da prisão, pode a pena ser executada em regime de semidetenção.
Decisão Texto Integral: I.
Após audiência pública de discussão e julgamento foi proferida sentença na qual o tribunal de 1ª instância decidiu:
- Condenar o arguido, A..., como autor material, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. no art.º 3.º, nºs 1 e 2 do Decreto Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de um ano e dois meses de prisão.
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Recorre o arguido da aludida sentença, formulando na respectiva motivação as seguintes CONCLUSÕES:
I – Na sua medida a pena é excessiva e não se conforma o recorrente quanto á escolha da mesma.
II - Foram valorados em demasia os antecedentes criminais do arguido.
III - A situação familiar do arguido é frágil, exigindo de si quer uma contribuição económica quer um acompanhamento permanente (nascimento e crescimento de 1 filho).
IV - A companheira está grávida, não trabalhando de momento, necessitando de um acompanhamento permanente, bem como a criança que irá nascer na pendência deste recurso.
VI - A pena aplicada de deve ser reduzida para um período inferior a um ano.
VII - Deverão prevalecer as medidas de substituição da pena em detrimento da prisão.
VIII - O interesse da comunidade e o da manutenção da vigência das normas não se alcança em casos que estão em causa delitos de circulação com a aplicação de penas curtas de prisão.
IX - Deve prevalecer a reeducação e aculturação do infractor às regras de convivência e observância dos parâmetros regulamentadores em que se expressa o tecido comunitário organizado segundo modelos sociais devidamente estabilizados e aceites.
X - Só em ultima ratio deve ser aplicada a pena de prisão.
Pede-se a revogação da douta sentença, aplicando uma pena de substituição que assegurará a punição do arguido e sendo salvaguardados os seus interesses sociais e familiares.
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Respondeu o digno magistrado do MºPº junto do Tribunal recorrido manifestando a sua concordância integral com os fundamentos da decisão recorrida, sustentando que a mesma não merece qualquer reparo.
Neste Tribunal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta no sentido da total improcedência do recurso.
Corridos vistos, após conferência, cumpre decidir.
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II.
1. De acordo com as conclusões, que definem o objecto do recurso, são colocadas à consideração deste tribunal as seguintes questões: - aplicação de pena de prisão inferior a 1 ano (conclusões I a VI, síntese na conclusões VI) e a aplicação de uma pena de substituição (conclusões VII a X e remate das conclusões).
Considera-se ainda objecto do recurso o cumprimento da prisão em regime de permanência em habitação ou de semi-detenção, referenciados pelo recorrente na motivação do recurso (artigo 10º) ainda que não de forma explicita nas conclusões.

A apreciação destas questões obriga a recapitular a matéria de facto provada.


2. A matéria de facto provada é a seguinte:
No dia 4 de Fevereiro de 2011, pelas 03h15, na EN 234-1-Rossio, localidade de Ançã, área desta comarca, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula … .
Não estava habilitado a conduzir o veículo referido em 1).
Sabia que tal conduta era proibida por lei e que não era possuidor de habilitação legal para conduzir o referido veículo.
Agiu de forma livre e consciente.
O arguido foi condenado:
- por decisão transitada em julgado em 08/09/2008, por um crime de Condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, n.º 1, do DL 2/98, de 03/01, praticado em 05/08/2008, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de €5, perfazendo o total de €400,00;
- por decisão transitada em julgado em 24/05/2010, por um crime de Condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, n.º 2, do DL 2/98, de 03/01, praticado em 22/04/2010, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €8, perfazendo o total de €960,00;
- por decisão transitada em julgado em 07/06/2010, por um crime de Condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, do DL 2/98, de 03/01, praticado em 05/05/2010, na pena de 170 dias de multa, à taxa diária de €6, perfazendo o total de €1.020,00;
- por decisão transitada em julgado em 07/01/2011, por um crime de Condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, do DL 2/98, de 03/01, praticado em 17/11/2010, na pena de 3 meses de prisão, substituída por 90 horas de trabalho;
- por decisão transitada em julgado em 11/01/2011, por um crime de Condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, do DL 2/98, de 03/01, praticado em 08/12/2010, na pena de 9 meses de prisão, suspensa por um ano, sob condição de o arguido, durante esse período, comprovar nos autos a sua inscrição, frequência de aulas e apresentação a exame na escola de condução.
O arguido vive em união de facto, sendo que a sua companheira trabalha na indústria hoteleira, auferindo cerca de €400 mensais.
Vivem em casa arrendada, pagando €500 de renda mensal.
O arguido tem 2 filhos, de 11 e 15 anos, que não vivem consigo, estando a correr em Tribunal processo referente às responsabilidades parentais.
O arguido encontra-se desempregado há pouco tempo mas já tem expectativas de ingressar num novo emprego, na área da construção civil.
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3. Apreciação
3.1. Sendo aplicável ao crime dos autos pena de prisão ou de multa, não é questionada a opção do tribunal recorrido pela pena de prisão.
Como se viu no enunciado das questões a decidir, sustenta o recorrente a aplicação de uma pena de prisão inferior a 1 ano (conclusão VI) e a aplicação de uma pena de substituição (remate das conclusões). Considerando-se ainda objecto do recurso o cumprimento da prisão em regime de permanência em habitação ou de semi-detenção - referenciados pelo recorrente no artigo 10º da motivação do recurso, ainda que não explicitado nas conclusões.

A pena de prisão aplicável em abstracto, no caso, é de prisão até 2 anos.
O art. 71º do CP estabelece no seu n.º1 o critério geral segundo o qual a medida da pena deve fazer-se “em função da culpa do agente e das exigência de prevenção”. Critério que é precisado no nº2, quando estabelece: na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele.
As referidas circunstância a ter em conta são exemplificadas (“nomeadamente”) ao longo das várias alíneas do citado nº2. Reconduzindo-se a três grupos ou núcleos fundamentais: factores relativos à execução do facto {alíneas a), b) e c) – grau de ilicitude do facto, modo de execução, grau de violação dos deveres impostos ao agente, intensidade da culpam sentimentos manifestados e fins determinantes da conduta}; factores relativos à personalidade do agente {alíneas d) e f) – condições pessoais do agente e sua condição económica, falta de preparação para manter uma conduta lícita manifestada no facto}; e factores relativos à conduta do agente anterior e posterior a facto {alínea e)}.
O modo como estes princípios regulativos irão influir no processo de determinação do quantum da pena é determinado ainda pelo programa político-criminal em matéria dos fins das penas, que se reconduz a dois princípios, enunciados no art. 40º do C. Penal (redacção introduzida pela Reforma de 95): 1 A aplicação da pena... visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. 2. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Disposição que consagra o entendimento mais recente do Prof. Figueiredo Dias sobre os fins das penas (cfr. Liberdade, Culpa e Direito Penal, Coimbra editora, 2ª ed., e Direito Penal Português, As Consequência Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, p. 227, este tendo já por referência o projecto que veio a ser plasmado no art. 40º da redacção actual do Código Penal): “A justificação da pena arranca da função do direito penal de protecção dos bens jurídicos; mas esta função de exterioridade encontra-se institucionalmente limitada pela exigência de culpa e, assim, por uma função de retribuição como ressarcimento do dano social causado pelo crime e restabelecimento da paz jurídica violada; o que por sua vez implica a execução da pena com sentido ressocializador – só assim podendo esperar-se uma capaz protecção dos bens jurídicos”.
Por outro lado, a segurança rodoviária é, indiscutivelmente, um valor ou um bem que deve preservar-se. Impõe-se, consequentemente, que a circulação seja pautada por regras que definam o comportamento dos utentes das vias.
Como a condução de veículos auto-motorizados não é, em regra, inata às faculdades humanas, requerendo, por isso, aprendizagem, quer das respectivas técnicas, quer das regras a que deve obedecer a circulação rodoviária, é facilmente aceitável a ideia de que ao Estado se imponham especiais cautelas para apurar da suficiência dessa aprendizagem, não permitindo que quem não seja detentor de tal suficiência possa livremente levar a efeito a condução. Se alguém a pratica, sem que o apuramento pelo Estado seja certificado, a presunção de que a prática da condução nessas condições não tem um mínimo de segurança não se antolha como um despropósito ou um excesso. E, para obviar ao acrescido risco decorrente dessa presunção (para além de se não poder, nem dever, escamotear que são inúmeros os casos de condução por quem legalmente não está legalmente habilitado para tanto e que é mui elevada a sinistralidade, mesmo atendendo aos que estão habilitados) não se mostra minimamente como implicando uma injusta medida a «desincentivação» dos comportamentos consistentes na condução sem título, «desincentivação» essa que é efectuada através da respectiva criminalização. Os interesses subjacentes à circulação rodoviária, acima enunciados, não se postam, desta arte, como desproporcionados e excessivos reportadamente à criminalização da condução de um veículo automóvel por quem não possua título legalmente bastante - cfr. Ac. TC nº 337/02.
No caso, as necessidades de prevenção geral são muito elevadas, uma vez que estamos perante um crime muito frequente.
Por outro lado, o arguido tem vindo a ser condenado, sucessivamente, pela prática do mesmo tipo de crime, em penas que têm vindo a endurecer, progressivamente.
Revelando uma personalidade insensível não só ao bem jurídico violado, como ainda às sucessivas penas que lhe têm sido aplicadas.
Assim, atentos os critérios referidos e a progressividade das sucessivas penas aplicadas, tem-se por ajustada a pena de 12 meses de prisão.
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3.2. Substituição
No caso sub judice, para além de 3 penas de multa, aplicadas por outros tantos crimes de condução sem habilitação legal, o arguido viu já aplicada - sempre pela prática do mesmo tipo de crime de condução sem habilitação legal – uma pena de prisão substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade. E viu ainda aplicada, sempre pela prática do mesmo tipo de crime, uma pena de suspensão da prisão, condicionada ao cumprimento de determinados deveres. Aliás sofreu duas condenações transitadas em julgado pouco mais de um mês antes da prática do crime dos autos.
Todas as referidas penas se revelaram insuficientes para prevenir a prática de novos crimes, da mesma natureza, pelo arguido. Demonstrando a prática do crime dos autos que nem a suspensão da prisão constituiu advertência suficiente para prevenir a comissão deste novo crime.
Não se justificando, assim, aplicar nem substituição por prestação de trabalho nem a suspensão, por já aplicadas e porque a sua ineficácia preventiva, para o arguido, se mostra comprovada pela prática do presente crime.
Resta porém indagar da aplicação de algum dos regimes de cumprimento menos gravosos a que o recorrente se refere – permanência em habitação ou semi-detenção.
Em termos abstractos, uma pena de prisão não superior a um ano pode ser, por um lado, substituída por multa (artigo 43.º do Código Penal), pode ser suspensa na sua execução (artigo 50.º do Código Penal), v.g sujeita ao cumprimento de obrigações e/ou regras de conduta ou até complementada com regime de prova (artigos 50.º a 54.º do Código Penal) ou ser substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade e, por outro lado, pode ser executada em regime de permanência na habitação (artigo 44.º do Código Penal), em prisão por dias livres (artigo 45.º do Código Penal) ou em regime de semi-detenção (artigo 46.º do Código Penal).
A sentença recorrida não faz referência ao cumprimento da pena aplicada em regime de permanência em habitação ou de semi-detenção. Porque, atenta a medida da pena aplicada, acima de 1 ano de prisão, falecer um pressuposto da sua aplicação.
Daí que o tribunal recorrido não tenha indagado sobre o consentimento do arguido, necessário á aplicação do regime de permanência em habitação, prisão e/ou de semi-detenção, exigido pelos artigos 44º, n.º1 e 46, nº 1, respectivamente.
Consentimento que, sendo aplicada pena não superior a 12 meses, devia ter sido indagado.
Daí que a pretensão formulada no recurso seja tida como evidenciadora desse consentimento.
Importa assim averiguar a aplicabilidade de um regime de cumprimento que, fazendo sentir o efeito da prisão, permita ao arguido o exercício de uma actividade, o único fundamento identificável invocado pelo recorrente como suporte da sua pretensão.
Ora esse fundamento afasta, desde logo, a aplicação ao caso da permanência em habitação, por incompatível com o mesmo. Aliás, verdadeiramente, nem o recorrente pretende a sua aplicação.
Por outro lado, “são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam e impõem a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua aplicação” – cfr. Figueiredo Dias, Consequências, § 497.
E “o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária, ou em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas; coisa que só raramente acontecerá se não se perder de vista o já tantas vezes referido carácter criminógeno da prisão, em especial de curta duração” – idem § 501
“A prevenção geral deve aqui surgir unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz das exigências de socialização, a pena alternativa ou de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias” – cfr. Figueiredo Dias, cit., § 501 e Anabela Rodrigues, Critérios de Escolha de Penas de Substituição no Código Penal BFDUC, 1988, p. 30.
Ora, no caso dos autos, o crime praticado é eticamente neutro.
Por outro lado, da actuação do arguido não resultou qualquer perigo para os demais utentes da via pública.
Entende-se assim que as necessidades de tutela do mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico ficam satisfeitas com a aplicação da prisão em regime de semi-detenção.
A aplicação de sucessivas penas pela prática do mesmo tipo de crime, não surtiu o efeito preventivo espacial desejado.
Em contrapartida, sendo a pena de prisão a adequada ao caso, o arguido nunca sentiu o efeito da reclusão, mostrando-se proporcionado aplicar-lhe um regime de cumprimento mais flexível, que lhe permita, nomeadamente, exercer uma actividade e retirar todas as consequências da anterior condenação de suspensão condicionada da prisão.
As exigências de prevenção especial de socialização ficarão satisfeitas, uma vez que o arguido irá sentir (pela primeira vez) o efeito da reclusão.
Acresce que tal regime, além da socialização, é compatível com o exercício de uma actividade que o recorrente diz pretender desenvolver.
Constituindo assim um regime educativo e prospectivo que salvaguarda todos os interesses em conflito.
Acresce que tal regime não inviabiliza, por efeito necessário ou automático, o efeito da ultima pena aplicada ao arguido - suspensão condicionada da prisão.
Tudo justificando, pois, no caso, no entender deste tribunal, a aplicação do regime de semi-detenção.
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III.
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se conceder parcial provimento ao recurso, fixando a pena em 12 (doze) meses de prisão, a qual será cumprida em regime de SEMI-DETENÇÃO. ---
Sem custas, atento o decaimento apenas parcial.

Belmiro Andrade (Relator)
Abílio Ramalho