Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2654/08.0PBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: MEDIDA DE COACÇÃO
PRISÃO PREVENTIVA
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 10/27/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 191º,193º,202ºE 204º DO CPP
Sumário: 1 O facto de o arguido ter sido condenado em 1ªinstância, ainda que por sentença não transitada em julgado, confere maior consistência aos indícios da prática de infracção por que aquele vinha acusado.
2 Existe perigo de continuação de actividade criminosa que só pode ser acautelado pela medida de coacção de prisão preventiva, quando o agente, condenado em 1ª instância, se bem que por decisão não transitada um julgado, pela prática de um crime de violência doméstica, em pena de prisão efectiva, não respeitando anteriores medidas de coacção, continua a perseguir, injuriar e ameaçar a ofendida, sua ex..namorada.
Decisão Texto Integral: 15
Proc. nº 2654/08.0PBAVR.C1
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO


Em processo comum singular da Comarca do Baixo Vouga, Aveiro, juiz 1, por sentença de 10.07.21, foi o arguido F, condenado como autor material de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152º nº 1 b) CP, na pena de dois anos e seis meses de prisão.
Mais foi decidido na mesma altura sujeitar o arguido à medida de coacção de prisão preventiva, com a seguinte fundamentação:
“ Ao arguido acaba de ser aplicada uma pena de prisão efectiva pela prática de factos que constituem um crime de violência doméstica p. e p. artº 152 nº1 ai d) do CPP.
Conforme resulta da sentença que antecede, a conduta do arguido é grave e altamente perturbadora da vida da ofendida, sendo que o arguido persiste nas perseguições à mesma. É assim patente que existe perigo da continuação da actividade criminosa.
O crime em causa, embora seja punido com pena de prisão até 5 anos, enquadra-se no âmbito da criminalidade violenta - artº 202 nº 2 al. b) e artº 1 al. j) do CPP. É, por isso, possível a aplicação da medida de prisão preventiva.
Como resulta, à exaustão, de todo o processo as restantes medidas aplicadas foram insuficientes para acautelar a continuação da actividade criminosa. Tal perigo está agora potenciado pela aplicação de uma pena de prisão efectiva que poderá levar o arguido, atentas as características da sua personalidade, a intensificar e agravar a sua conduta em relação à ofendida.
Assim pelo exposto, nos termos dos artº 191, 193, 202 nº1 al. b) e 204 al. c) determino que o arguido aguarde os ulteriores trâmites processuais, nomeadamente trânsito em julgado da sentença, sujeito à medida de coação de prisão preventiva…”.
Inconformado, o arguido recorre para este Tribunal da Relação, concluindo que:

“a) Entende-se que a medida aplicada é manifestamente exagerada, violenta, desnecessária e desproporcional.
b) Existem outras medidas com a almejada virtualidade de acautelar e impedir a continuação de qualquer eventual "actividade criminosa".
c) Cumpre antes de mais, em análise da fundamentação vertida no despacho que determinou a aplicação da prisão preventiva, dizer que, não obstante ter sido aplicada ao arguido uma pena de prisão efectiva, a sentença condenatória ainda não transitou em julgado.
d) Apesar de se alegar no douto despacho que a conduta do arguido é grave e altamente perturbadora da vida da ofendida, sendo que o arguido persiste nas perseguições à mesma sendo patente que existe perigo da continuação da actividade criminosa, omite-se, no entanto, o especial contexto em que os factos foram praticados.
e) O arguido namorou com a ofendida J cerca de 2 anos.
f) Ambos viveram em relativa paz e harmonia até ao mês de Agosto de 2008.
g) Altura em que o arguido constatou que a ofendida deixara de gostar dele, querendo pôr fim à relação.
h) Como referiu o arguido no seu depoimento (13:47s) prestado em audiência de julgamento, U (...) senti que tinha sido traído (...) apanhei-a com outra pessoa (...) ".
i) A partir dessa altura, o arguido ficou totalmente transtornado, fora de si, envolvido por um sentimento de revolta e de consternação, pois havia depositado muitas expectativas na sua relação com a ofendida, de tal forma que chegou a recusar propostas de trabalho em Lisboa para ficar perto da ofendida, conforme resulta do depoimento do arguido (14:40s) e também do depoimento da ofendida prestados em audiência de julgamento.
j) E foi nesse contexto, dominado por esse sentimento de revolta, que o arguido praticou os factos constantes dos autos.
k) Fê-lo, porém, não com o intuito de prejudicar ou ofender a sua ex-­namorada mas de reatar a relação com a pessoa que amava.
l) Os factos praticados pelo arguido, apesar de graves, não assumiram, objectivamente, contornos violentos, nem foram praticados sem motivo ou pretexto, conforme consta do parágrafo 6. ° da fundamentação da sentença proferida e do depoimento do ofendido prestado em audiência de julgamento.
m) Os factos praticados pelo arguido parecem melhor se enquadrarem na chamada "briga" de namorados do que no crime de violência doméstica.
n) Mal seria do sistema judicial se todas as "brigas" de namorados, que não raras vezes abrangem violência sobretudo psicológica, terminassem sempre em tribunal ao abrigo da previsão cada vez mais abrangente do crime de violência doméstica.
o) Diga-se, inclusive, que a própria ofendida contribuiu, e muito, para o sentimento de revolta e confusão de sentimentos do arguido, potenciando a prática dos factos.
p) Quando na fundamentação do despacho que determinou a aplicação da prisão preventiva se refere que o arguido fazia perseguições constantes à ofendida e que as medidas de coação aplicadas se mostraram insuficientes, esquece-se, todavia, que não raras vezes o arguido encontrava-se e procurava a ofendida a pedido desta, conforme resulta de forma inequívoca do conteúdo de todas as mensagens escritas que a ofendida remeteu ao arguido no período da prática dos factos, e que se encontram devidamente documentadas nos autos (fls. 244 a 288).
q) Foi o comportamento da ofendida que manteve "viva" a esperança do arguido no reatar da relação de namoro e foi o condão para que o mesmo não se afastasse definitivamente da ofendida, tendo violado as medidas de coação impostas.
r) Este comportamento da ofendida, de dar esperança com uma mão e tirar com a outra, foi prejudicial para a estabilidade emocional do arguido e potenciou a pratica dos factos.
s) De tal forma que, actualmente o arguido encontra-se em prisão preventiva e com acompanhamento psicológico/psiquiátrico, conforme resulta dos autos.
t) O comportamento da ofendida não será, certamente, alheio ao facto de no período da prática dos factos a mesma namorar com um agente da Guarda Nacional Republicana, conforme resulta do depoimento prestado em sede de julgamento pela testemunha T
u) Com o seu comportamento a ofendida demonstrou ter perfeito conhecimento do "terreno que pisava", marcando encontros com o arguido em locais que, por coincidência ou talvez não, sempre compareciam elementos da Guarda Nacional Republicana para atestar a violação das medidas de coação impostas (proibição de contacto com a ofendida).
v) No despacho que determinou a aplicação da prisão preventiva o tribunal "a quo" não podia ignorar estes factos, maxime o consentimento da ofendida na violação das medidas de coação impostas ao arguido.
w) O tribunal "a quo" também não poderia ignorar que o princípio da liberdade é uma das traves mestras do nosso ordenamento constitucional, pelo que a prisão preventiva tem natureza excepcional e subsidiária.
x) A prisão preventiva não deverá ser decretada sempre que possa ser substituída por caução ou qualquer medida mais favorável na Lei (art.28°, nº 2 C.R.P.).
y) Para aplicação da medida de prisão preventiva, os pressupostos de aplicação dessa medida devem verificar-se e ser sujeitos a um escrupuloso exame da sua verificação, já que aquela medida é excepcional.
z) A decisão recorrida não logra alcançar, face aos respectivos pressupostos legais, justificação para a aplicação da prisão preventiva do recorrente, nomeadamente por falta da indispensável fundamentação em factos que demonstrem a existência dos requisitos gerais de aplicação de qualquer medida de coacção (art. 204/CPP) e estabeleçam, como conclusão, face aos princípios da adequação e da proporcionalidade, a indispensabilidade da medida de prisão preventiva, com exclusão de qualquer outra medida de coacção;
aa) E também não se verificam os requisitos processuais de que a lei faz depender a aplicação da mais grave medida de coacção, que é a prisão preventiva.
ab) Se o escopo visado pelo tribunal "a quo” com a aplicação da medida de prisão preventiva era acautelar a "continuação da actividade criminosa", não ficou, porém, demonstrada nem fundamentada a razão pela qual a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação (art. 201º do CPP) não almejaria tal intento.
ac) Nos termos do disposto no art. 202° nº 1 do CPP, a medida de coacção prisão preventiva só deverá ser aplicada se o tribunal "a quo" considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as demais medidas referidas nos artigos anteriores.
ad) Pelo que se impunha que da decisão recorrida constassem as razões, devidamente fundamentadas, da inaplicabilidade ao caso concreto das demais medidas de coacção, maxime a obrigação de permanência na habitação, ainda que com fiscalização através de meios técnicos de controlo à distância, cumulada com a obrigação de não contactar, por qualquer meio, com a ofendida.
ae) O despacho recorrido encontra-se ferido de nulidade, nos termos conjugados dos artigos 194°, nº 4, al. d) e 193, nº 3, do CPP. Porquanto,
af) Prescreve o art. 194°, nº 4, al d) do CPP que, "A fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade a referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193° e 204°."
ag) Acrescentando o nº 3 do art. 193° do CPP que, "quando couber ao caso medida de coacção privativa da liberdade nos termos do número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares. "
ah) O tribunal "a quo" não esclarece porque razão a obrigação de permanência na habitação ainda que com fiscalização através de meios técnicos de controlo à distância cumulada com a obrigação de não contactar por qualquer meio com a ofendida é insuficiente para satisfazer no caso concreto as exigências cautelares.
ai) O despacho recorrido decretou assim a medida de prisão preventiva fora das condições em que ela é legalmente permitida e sem curar sequer de saber se outras medidas mais favoráveis eram adequadas ou suficientes com o que violou os art.s 27° e 28° C.R.P.
aj) O despacho recorrido - contra o disposto no art. 97° C.P.P. - não enuncia sequer repete-se os fundamentos de facto de que dependeria a indispensabilidade da medida de prisão preventiva.
ak) Em qualquer hipótese as medidas de coacção previstas nos artigos 197°, 198° e 200° C.P.P. ainda que cumuladas e a prevista no art. 201 ° 1 ainda que cumulada com a obrigação de não contactar com a ofendida sempre seriam adequadas para acautelar o perigo de continuação da actividade criminosa. “.
O MP na sua resposta conclui que deverá ser negado provimento ao recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, no seu douto parecer conclui igualmente no sentido do improvimento do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

Entende o recorrente que o despacho recorrido omite a factualidade que preenche os pressupostos da aplicação da medida de prisão preventiva, para além de ser omissa quanto à razão de não se ter dado preferência à obrigação de permanência na habitação, o que integrará a nulidade prevista no artº 194°, nº 4, al. d) e 193, nº 3 CPP.
Mas pensamos que não tem razão.
Na verdade o referido despacho foi proferido imediatamente após a leitura da sentença que condenou o arguido como autor material de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152º nº 1 b) CP, na pena de dois anos e seis meses de prisão, sendo que quanto à factualidade concreta subjacente a tal despacho a Srª juiz remete expressamente para essa decisão, concluindo que a conduta dada como provada “ é grave e altamente perturbadora da vida da ofendida, sendo que o arguido persiste nas perseguições à mesma”.
Ora exigir-se-lhe nessa circunstância que copiasse para o despacho a matéria de facto que anteriormente havia fixado na sentença, constituiria uma repetição sem qualquer vantagem prática.
Satisfaz pois a fundamentação a remessa para a matéria dada como provada na sentença.
Basta lê-la, pois o processo não é constituído por peças estanques e blindadas, designadamente quando se aprecia a aplicação de uma medida de coacção.
Nada obsta pois à fundamentação dos actos decisó­rios por remissão.
Por outro lado é certo que a Srª juiz não ponderou expressamente no despacho a possibilidade de aplicar ao arguido a obrigação de permanência na habitação.
Porém está implícito no mesmo que ao dar preferência pela prisão preventiva, face às razões que invocou e ao quadro factual apresentado, afastou a possibilidade de lançar mão daquela medida de coacção.
Daí que improceda o recurso neste ponto.
Vejamos então se tem justificação a substituição da medida de coacção do arguido anteriormente fixada pela medida de coacção mais gravosa da prisão preventiva, bem como se esta se mostra proporcional, necessária e ajustada.
Percorrendo os autos constatamos que:
Aquando do 1º interrogatório - 2 de Dezembro de 2009- o arguido ficou sujeito às obrigações decorrentes do TIR já então prestado e ainda de se apresentar mensalmente no posto policial mais próximo da sua residência e de não contactar, importunar ou sequer se aproximar da ofendida, sem causa justificativa, ou consentimento prévio e à revelia da vontade desta (fls. 154).
Porque o arguido não cumpria as medidas de coação impostas, continuando a ameaçar e a importunar a ofendida, como dão conta as peças de fls. 160 a161, 163 e 174, foi de novo o arguido interrogado – 4 de Janeiro de 2010 - e quando lhe foi perguntado se era sua intenção cumprir as medidas de coacção que lhe haviam sido impostas, respondeu “ num tom nítido de descontrolo, “pode-me prender já”. Nessa altura foi decidido pela Srª juiz sujeitar o arguido a tratamento psiquiátrico, para o que este deu o seu consentimento, mantendo as medidas de coacção anteriormente fixadas. (fls. 177 a182).
Entretanto o arguido continuou a não acatar a proibição de contactar a ofendida, como se colhe das informações de fls. 249, 256, 273, 278, 298, 301 e 302, perseguindo-a, pelo que foi de novo ouvido pela Srª juiz em 29 de Abril de 2010, tendo então sido determinado que o arguido aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito às medidas já impostas e ainda à medida de apresentação periódica a concretizar-se às segundas, quartas, sextas e domingos no posto policial da sua área de residência (fls. 304).
Não obstante tal decisão, o arguido continuou a não acatá-la, mantendo-se as perseguições, como se dá conta a fls. 319 e 323.
Entretanto procedeu-se ao julgamento, tendo ficado provado o seguinte:
O arguido namorou com a ofendida J cerca de 2 anos, dormindo às vezes em casa do arguido, fazendo refeições juntos, saindo juntos, socorrendo-se e auxiliando-se mutuamente e planeando vir a constituir família.
Ambos viveram em relativa paz e harmonia até ao mês de Agosto de 2008, altura em que o arguido constatou que a ofendida deixara de gostar dele, querendo pôr fim à relação.
Não aceitou tal facto e, desde aí, por todos os meios, tentou recuperar e reatar a relação harmoniosa que tinha tido com a J.
Começou então a perseguir a ofendida, de forma frequente, sistemática e doentia, controlando-lhe os movimentos.
No decurso dos meses de Setembro, Outubro e Novembro de 2008, o arguido enviou diversos SMS à ofendida dizendo-lhe, para além do mais, “…que não valia nada…, isto não ia acabar bem nem ficar assim…, já houve merda cá em casa…, já vem aí a polícia…, acabo com a vida de alguém…., estou passado e cego…, vou ao teu apartamento nem que tenha que meter a porta abaixo…, aproveita com esse cabrão…, eu vou fazer merda mas não vais ficar a rir…, vou-te ver a mal…, vai gozar
com o caralho…, chama a polícia para ver se eu me importo…, vou-te chamar puta à frente de toda a gente…, estou sem calma nenhuma…, já me estou a passar…, não me estejas a enervar mais do que já estou…”.
No dia 20/11/2008, pelas 17 hora, em plena via pública, na Rua …nesta comarca de Aveiro, o arguido dirigiu-se à ofendida, agarrou-a com força pelo braço, ao mesmo tempo que a impedia de sair daquele local e seguir o seu caminho. A ofendida dizia-lhe “Larga-me, larga-me, o que não foi concedido pelo arguido. No enquadramento desta situação, o arguido disse-lhe que caso não reatasse a relação que a haveria de matar, que ia incendiar-lhe a casa e o carro, que também a mataria caso não se afastasse do actual namorado, ao mesmo tempo que lhe puxava a mala que trazia a tiracolo.
No dia 25/05/2009, pelas 14.40 horas, no largo da Estação, freguesia de Vera Cruz, nesta comarca, o arguido agarrou novamente a ofendida, por um dos braços, ao mesmo tempo que a impedia de se deslocar, tendo ainda pressionado a J para reatar a relação. Seguidamente agarrou-lhe nos pulsos que apertou com força ao ponto de lhe provocar dor.
No dia 22/11/2009, pelas 16 horas, na Avenida Lourenço Peixinho, nas Galerias do Vestuário, o arguido deslocou-se ao trabalho da ofendida, e em altos berros disse-lhe em tom sério e intimidatório “…o nosso caso vai ser notícia nacional pois tens visto as notícias (referindo-se aos homicídios por violência doméstica noticiados pelos média), mato-te, parto-te toda.
Também no decurso do mês de Dezembro de 2009, o arguido perseguiu a ofendida por onde esta fosse, de forma constante e muito frequente. Deslocou-se por diversas vezes ao local de trabalho da ofendida, nesta cidade de Aveiro, para onde igualmente telefonou incontáveis vezes, em alto escândalo e com verbalização de ameaças de morte.
Aliás, no decurso do fim de semana de 19/20 de Dezembro de 2009, a perseguição do arguido à ofendida era tanta e tão intensa que foi chamada ao local de trabalho daquela, a Polícia de Segurança Pública, temendo a ofendida perder o seu emprego devido ao escândalo causado.
O arguido também tem insultado diariamente a ofendida em todos os locais em que a encontra, tais como, na Universidade de Aveiro, residência, transportes públicos e local de trabalho, com expressões de “filha de puta”, “puta”, “porca”,“vaca” e outras de idêntico teor pejorativo, ao mesmo tempo que também lhe tem dito, da mesma forma exaustiva e frequente que a “há-de matar”, “não me importo de ir preso”, “se não for a bem vai ser a mal”.
De igual forma, para além de a perseguir e de lhe controlar os movimentos, o arguido devassou a vida e o núcleo de intimidade pessoal da ofendida.
Provocou uma situação de terror e aflição contínua e sempre que insultou ou ameaçou a queixosa, bem como, quando com ela discutia, sabia bem o arguido o que estava a fazer e nada o obrigava a adoptar esses comportamentos.
Causou grande humilhação e medo na ofendida, para além das dores e lesões decorrentes das agressões.
Por causa das agressões praticadas em 25/05/2009, resultaram para a ofendida Joana Rita, os ferimentos descritos e as lesões corporais examinadas no auto de exame pericial junto a fls. 6 e seguintes do processo apenso n.º 1289/09.5PBAVR que de forma directa, necessária e adequada lhe provocaram dores e 3 dias de doença sem impossibilidade para o trabalho ou quaisquer consequências ou lesões de carácter permanente, que provocassem alterações funcionais ou efeitos desfigurantes.
Aliás, por via dessas condutas a ofendida sofreu, de forma acentuada, física e psicologicamente e encontra-se ainda psiquicamente debilitada
Agiu deliberadamente, com intenção de maltratar e de infligir maus-tratos na queixosa, tendo-a agredido e insultado para melhor assegurar o êxito das suas intenções.
Com o seu comportamento e não ignorando demonstrar baixeza de carácter, pretendeu e conseguiu o arguido humilhar a ofendida, assustando-a com agressões e intimidando-a com o anúncio de males futuros e perseguições, conseguindo diminui-la no respeito que lhe era devido.
Agiu ainda livre e lucidamente, em obediência ao mesmo desígnio de crueldade e malvadez, com a perfeita consciência de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
O arguido vive sozinho, numa casa pertencente à mãe com quem não mantém contacto. Também não mantém contacto com o pai e os irmãos.
Apenas se relaciona com uma prima que lhe dá algum apoio logístico e psicológico.
Frequenta um curso de formação no Centro de Formação Galileu Norte SA auferindo um subsídio de cerca de 500 €
Tem tido acompanhamento psiquiátrico
O arguido foi já condenado:
- em pena de multa pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, remontando os factos a 02/08/2003 e a decisão a 09/02/2005;
- em pena de prisão de dezoito meses suspensa por dezoito meses pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada remontando os factos a 10/07/2009 e a decisão a 14/09/2009;
- em pena de prisão de um ano suspensa por um ano pela prática de um crime de violência doméstica, remontando os factos a 13/12/2007 e a decisão a 11/02/2010
O arguido continua a procurar a ofendida, tentando manter contacto com a mesma.
Vejamos então.
Estabelece-se no artº 202º nº 1 a) CPP que “ se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando houver fortes indícios de prática de crime doloso de …criminalidade violenta ou altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos”
Assim face à definição de "criminalidade violenta", contida na al. j) do art. 1º CPP, a prisão preventiva é aplicável ao crime previsto no artº 152º nº 1 CP.
Sobre o que se entende por “ fortes indícios”, escrevem Simas Santos e Manuel Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, I Volume, pág. 995. “ Quando a lei fala em fortes indícios há que ter em conta a compreensão ou abrangência exacta dessa realidade, pois que o legislador se não limitou a falar em indícios, mas em fortes indícios, o que inculca a ideia da necessidade de que a suspeita sobre a autoria ou participação no crime tenha uma base de sustentação segura. Isto é: não basta que essa suspeita assente num qualquer estrato factual, mas antes em factos de relevo que façam acreditar que eles são idóneos e bastantes para imputar ao arguido essa responsabilidade, sob pena de se arriscar uma medida tão gravosa como esta em relação a alguém que pode estar inocente ou sobre o qual não haja indícios seguros de que com toda a probabilidade venha a ser condenado pelo crime imputado”.
Ora face aos elementos de prova recolhidos, designadamente a prova produzida em julgamento que lhe confere uma maior consistência, pese embora esteja ainda pendente da apreciação do recurso, resulta haver fortes indícios do arguido ter cometido o crime por que foi condenado.
É que à data da fixação da anterior medida de coacção esses indícios não tinham a segurança que lhes advém agora da resultante da sua apreciação através do tribunal de julgamento, designadamente o forte convencimento do receio da continuação da actividade criminosa
Por outro lado verifica-se igualmente que o arguido tem feito letra morta da medida de coação anteriormente vigente e que lhe impunha que não contactasse com a ofendida, obrigando a frequentes intervenções da autoridade policial, o que revela bem que o arguido não é capaz de respeitar a proibição que lhe foi imposta de não contactar com a ofendida.
Demonstrou desse modo ser-lhe completamente indiferente que o tribunal o proíba de contactar a ex-namorada, pois a sua vontade é que impera, o que é simplesmente intolerável, já que as decisões judiciais têm de ser acatadas.
Assim é de concluir que não só se verificou uma alteração a nível de indícios, os quais passaram a ser mais consistentes, mas fundamentalmente também se apreendeu a dimensão grave e persistente da conduta do arguido.
Ora não sendo o arguido capaz de respeitar a medida de coacção anteriormente decretada, tem o tribunal de lançar mão da aplicação de outras medidas de coacção que afastem a probabilidade de repetição de comportamentos similares, até porque é o próprio recorrente que não mostra vontade de acatar a medida anteriormente fixada (cfr. fls. 181). Digamos que, como ele próprio reconhece não consegue ultrapassar o fim da relação com a ofendida (fls. 301).
Defende ainda o recorrente que não se verificam os requisitos gerais de aplicação da prisão preventiva, na previsão do artº 204º CPP.
Também aqui entendemos que não lhes assiste qualquer razão.
Na verdade o Código de Processo Penal, para além de acentuar a natureza excepcional e residual da prisão preventiva (arts. 193º, nº 2, e 202º, nº 1), consignou um regime exaustivo sobre a posterior execução desta medida de coacção, obrigando ao reexame dos respectivos pressupostos, de três em três meses (artº 213º) e reafirmando a ideia da sua necessidade pela inadequação ou insuficiência de outras medidas de coacção menos gravosas, revelando-se como uma medida residual.
Do exposto resulta que deve recorrer-se à prisão preventiva como extrema ratio, isto é, só quando as demais medidas se revelarem inadequadas ou insuficientes e houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos.
Como refere Teresa Beleza Apontamentos de Direito Processual Penal, AAFDL, pág. 125 e ss., “em princípio, qualquer medida de coacção e, sobretudo a mais, gravosa de todas que é a prisão preventiva, só deve ser aplicada para fins relativos àquele processo e àquela pessoa em concreto e fundamentalmente, devem ter, neste sentido, fins de segurança, isto é, a prisão preventiva não deve, ao contrário do que acontecerá na realidade, funcionar como uma medida punitiva adiantada, mas deve funcionar, como qualquer medida de coacção....como uma garantia de segurança no sentido de que o arguido não se eximirá a estar presente no processo e não irá perturbar o decurso das investigações, destruindo a actividade na suspeita da qual ele está a ser sujeito a um processo crime”.
Porém, nem a prisão preventiva nem qualquer outra medida de coacção (com excepção do termo de identidade e residência) poderão ser aplicadas se, em concreto, se não verificar (artº 204º CPP):
a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição conservação ou veracidade da prova;
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e tranquilidade públicas.
Estes requisitos ou condições gerais são alternativas, bastando a existência de um deles para, conjuntamente com os especiais de cada medida, legitimar a aplicação desta.
Ora no caso sub judice entendeu-se existir o requisito da alínea c).
Tal perigo decorre claramente dos factos acima referidos os quais estão fortemente indiciados, sendo que a situação de instabilidade e descontrole em que o arguido vive derivada do facto da ofendida não querer continuar a relação, o perturba de tal modo que o incapacita de se controlar, pondo assim em risco a integridade física e mesmo a vida da vítima, face às frequentes ameaças de morte de que esta tem sido alvo.
Com efeito o crime em causa indiciariamente praticado pelo arguido, constitui hoje um problema social, de que se destacam, entre outros, recentes homicídios praticados na pessoa de ex-namoradas apenas porque estas puseram fim à relação de namoro e que, curiosamente ele próprio terá já lembrado à vítima conforme se alcança da matéria provada na decisão recorrida.
Trata-se de um crime muito grave por força da crescente importância que o mesmo vem assumindo, que levou o legislador a enquadrá-lo na criminalidade violenta que causa sérias perturbações no tecido social, revelando, por esse modo, um elevado grau de perigosidade do arguido, para além do que, uma vez em liberdade e estando condenado em pena de prisão não transitada, poderia levar ao agravamento da sua conduta em relação à ofendida, isto é prosseguir a sua actividade criminosa, concretizando mesmo as ameaças.
Todas estas razões permitem ainda concluir que a sua sujeição à medida de obrigação de permanência na habitação, jamais impediria a continuação dessa actividade criminosa, pelas razões anteriormente referidas, já que o arguido poderia ausentar-se da sua residência para concretizar a ameaça que tão frequentemente vem fazendo. E depois disso, o que restaria? A aplicação de medida mais gravosa? Para quê? Se o mal já estava feito.
Não pode pois o tribunal correr esse risco, quando sabe que a vontade do arguido é a de concretizar as ameaças que persistentemente vem fazendo à ex-namorada, agravada agora pela sua condenação.
Por isso a necessidade, adequação e a proporcionalidade da prisão preventiva resultam quer das exigências cautelares que o caso impõe, quer da gravidade do crime e personalidade do agente, que a justificam e impõem.
Deste modo, atento o disposto nos artºs 202º nº 1 a), 204º c) e 193º CPP, a Exmª juiz não podia deixar de aplicar a prisão preventiva ao recorrente.
Daí que o despacho recorrido não nos mereça qualquer censura.
É pois de concluir que a prisão preventiva aplicada se deverá manter.


DECISÃO

De harmonia com o exposto, os Juízes desta Relação acordam em negar provimento ao recurso, confirmando-se o douto despacho recorrido.
O recorrente vai condenado na taxa de justiça de quatro Ucs.
Notifique.

ESTEVES MARQUES (RELATOR)
JORGE DIAS