Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
490/19.8JAVRL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: MEDIDA DE COACÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
SUBSTITUIÇÃO
REVOGAÇÃO
Data do Acordão: 12/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO CENTRAL DE VISEU – JUIZ 3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 212.º, N.ºS 1 E 3 DO CPP
Sumário: I. A autorização judicial a conceder a arguido sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, de se ausentar desta, pode ter por objecto necessidades pontuais, designadamente, necessidades de tratamento médico, suas ou de familiares consigo conviventes e que necessitem de acompanhamento para esse efeito, ou o cumprimento de relevantes obrigações sócio-familiares, tais como, visitas a ascendente ou descendente gravemente doente ou a comparência em cerimónias fúnebres, pelo decesso dos mesmos.

II. Tal autorização não pode, em circunstância alguma, pôr em causa os fins cautelares visados com o decretamento da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação.

III. In casu, tendo sido aplicada ao arguido e ora recorrente, a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, com fundamento, além do mais, na existência de perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, por a transcrição das intercepções de conversações telefónicas revelarem as suas tentativas de interferência, pressionando as testemunhas a produzirem depoimentos favoráveis, a concessão de autorização para frequentar aulas teóricas e, depois, práticas, numa escola de condução, quando se aproxima a fase do julgamento, agravaria esse perigo, proporcionando ao arguido oportunidades várias para novas abordagens a testemunhas, assim frustrando os fins visados pela dita medida de coacção quando foi decretada.

Decisão Texto Integral:



Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

No processo nº 490/19.8JAVRL que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Juízo Central de Viseu – Juiz 3, e tem como arguido, VD, com os demais sinais nos autos, em 20 de Agosto de 2020, foi proferido o seguinte despacho:

O arguido VD veio requerer autorização para se inscrever e frequentar as aulas de condução de veículos automóveis, na "Escola de Condução (...) ", com sede na Rua (...) .

Pronunciou-se o Ministério Público no sentido de ser indeferido o requerido.

Vejamos.

O arguido encontra-se sujeito à medida de coação de obrigação de Permanência na Habitação, com vigilância eletrónica desde 7.01.2020, por se ter entendido existir, nomeadamente perigo de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade pública.

O arguido encontra-se acusado nos presentes autos em autoria material e na forma tentada, um crime de homicídio qualificado, previsto e punível nos termos dos artigos 131º e 132º n.º 1 e 2 al. e), 22º e 23º todos do Código Penal.

Confrontando os fundamentos que levaram a que fosse aplicada a medida de coação ao arguido e com a qual se visa salvaguardar as exigências cautelares do caso em apreço, com os motivos invocados pelo arguido para se lhe seja concedida autorização, facilmente se conclui pela prevalência dos primeiros.

Os motivos apresentados pelo arguido não se mostram consentâneos com os interesses que se pretendem salvaguardar com a aplicação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação a que o arguido se encontra sujeito.

As autorizações que o Tribunal poderá conceder terão certamente que ter como fundamento/motivações mais prementes.

Concorda-se com a douta promoção que antecede, pelo que, face ao exposto, indefere-se o requerido pelo arguido.

Notifique e comunique.


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            Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            1º - O Ministério Público reconhece o “meritório o esforço do arguido com vista ao início do seu processo de reinserção social numa fase prévia á discussão em julgamento (…)”;

2º - Entende, contudo, “(…) que a frequência com a qual o arguido teria que se ausentar da sua habitação e os períodos temporais alargados em que essas ausências ocorreriam, são incompatíveis com os perigos que se visam acautelar com a aplicação da medida de coação de OPHVE”;

3º - Parece ao arguido que ficou demonstrado supra (nas motivações) que não existem perigos que se visem acautelar “(…) com a aplicação da medida de coação de OPHVE”;

4º - Desde logo, porque os pressupostos que levaram à aplicação da OPHVE, já foram substancialmente alterados, até pelo normal decurso do processo;

5º - Entendendo -se que há indícios suficientes de que o arguido cometeu o crime pelo qualquer está acusado, dando – se como certa a qualificação feita (o que só por mera hipótese de académica, se admite) e que ao arguido, vai, muito provavelmente, ser aplicada uma pena de prisão efetiva (algo que, na humildade opinião do recorrente, está longe de ser previsível ou esmo provável), constata -se, sem grande esforço, que as finalidades da pena estão atingidas e os objetivos punitivo do Estado esta a produzir efeitos, ainda numa fase muito precoce do processo;

6º - Pois o arguido, consciencializou a gravidade dos atos que foi acusado e consciencializou as consequências dos mesmos, começando desde logo a preparar a sua reintegração na sociedade, preparando-se para adotar um estilo de vida responsável e compatível com a paz pública;

7º - A autorização requerida, destina- se ao arguido tirar a carta de condução, um instrumento fundamental para fazer frente às exigências de um mercado de trabalho, em grave crise, que exige, conhecimentos, competências, capacidades e responsabilidades, tudo o que o arguido demonstrar;

8º - São saídas pontuais, curtas (no tempo ena distância), perfeitamente determinadas e vigiadas pelos meios electrónicos;

9º - Pelo que, com todo o respeito por melhor opinião, deve ser concedida;

Termos em que, julgando-se o presente, provado e procedente, seja a decisão ora recorrida, revogada e substituída por uma outra que autorize o arguido/recorrente a sair de casa e ir à escola de condução “ (...) – ESCOLA DE CONDUÇÃO” sita na Rua (...) , para assistir às aulas de teóricas e práticas, necessárias para tirar a carta de condução.

Decidindo desta forma, estão V. Exas. A habitual JUSTIÇA.


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            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público alegando, em síntese, que com a aproximação do julgamento se adensou o perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, face à natureza do crime, às circunstâncias do seu cometimento, ao bem jurídico tutelado, a vida humana e à pena previsivelmente será aplicada, pelo que, a medida de coacção aplicada tem que ser eficaz no acautelamento das necessidades preventivas requeridas pelo caso, não podendo as autorizações para o exercício de qualquer actividade conduzir ao seu esvaziamento, que no caso concreto, o pedido de frequência de escola de condução significava a presença do arguido em várias dezenas de aulas, não estando em causa deslocações pontuais e de curta duração, o que seria, de certo, incompreensível para a comunidade onde se insere, estando em causa um crime de homicídio qualificado na forma tentada, que os meios técnicos de vigilância electrónica não poderiam monitorizar o arguido no período em que estivesse em aulas na escola e, muito menos, quando estivesse em aulas práticas de condução, e concluiu pelo indeferimento da pretensão do recorrente.


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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador da República emitiu parecer, subscrevendo integralmente a resposta do Ministério Público e realçando ainda que, no âmbito dos fundamentos para a alteração de uma medida de coacção já aplicada, a jurisprudência vêm entendendo que só a superveniência de circunstâncias que alterem as exigências cautelares ou os seus pressupostos, podem a tanto conduzir, o que, no caso, não acontece, e concluiu pelo não provimento do recurso.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.


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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se é, ou não, compatível com a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, a que se encontra sujeito o recorrente, com a autorização para o mesmo frequentar aulas para obtenção de título habilitante de condução de veículos automóveis.


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Com relevo para a questão proposta, colhem-se dos autos os seguintes elementos:

i) A promoção do Ministério Público referida no despacho recorrido tem o teor seguinte:

Não obstante meritório o esforço do arguido com vista ao início do seu processo de reinserção social numa fase prévia à audiência de discussão em julgamento, entende o Ministério Público que a frequência com a qual o arguido teria que se ausentar da sua habitação e os períodos temporais alargados em que essas ausências ocorreriam, são incompatíveis com os perigos que se visam acautelar com a aplicação da medida de coacção de OPHVE.

Face ao exposto, promovo se indefira o requerido.

           

ii) Por despacho da Mma. Juíza de instrução de 7 de Janeiro de 2020 e por se ter entendido estar suficientemente indiciada a prática, pelo arguido, de um crime de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 131º e 132º n.º 1 e 2 al. e), todos do Código Penal, ao mesmo foi aplicada, além de termo de identidade e residência, a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com fiscalização através de meios técnicos de controlo à distância.

iii) No referido despacho, no que respeita aos requisitos gerais das condições de aplicação das medidas de coacção, escreveu-se:

“(…).

Na situação concreta, parece manifesto o perigo de continuação da atividade criminosa, nomeadamente que volte a praticar factos idênticos.

De facto, o modo de atuação do arguido é bem demonstrativo do perigo concreto que existe do arguido praticar factos idênticos, bastando para tal uma nova rixa num espaço de divertimento noturno.

Aliás, é o próprio arguido que confessa ter atuado da forma que confessa porque se passou da cabeça e era o álcool a falar mais alto.

O arguido apesar de reconhecer que atingiu o ofendido, e que puxou da navalha, admitindo ter picado a vitima, não interioriza os factos, dizendo mesmo que não altura não sabia se o tinha atingido, só admitindo alguns dos factos.

Demonstra uma personalidade violenta não dominando os seus impulsos não se inibindo de utilizar um objeto como o dos autos, contra terceiros no decurso de uma discussão, o que igualmente é bem demonstrativo do perigo de continuação da atividade criminosa.

Além disso, tendo em conta a natureza do crime em causa e as vítimas do mesmo o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas é manifesto.

Na verdade, frequentemente são noticiados factos idênticos aos dos autos que terminam com a morte da vítima.

Igualmente é manifesto o perigo para a aquisição e conservação da prova, resultando tal de forma evidente das interceções.

Na verdade, o arguido tenta de toda a forma interferir na obtenção da prova, pressionando as testemunhas a prestarem depoimentos que lhe sejam favoráveis.

Como já referimos os factos em causa nestes autos são graves e o tipo em causa punido com uma elevada pena de prisão.

A criminalidade em causa provoca grande alarme social, ainda mais quando acontece em cidades pequenas.

Tendo em conta a gravidade dos factos, e os perigos em causa, só uma medida privativa da liberdade é capaz de acautelar tais perigos.

Dentro destas medidas consideramos que a prevista no artigo 201 do CPP, com VE é suficiente, optando-se pela mesma sendo certo que a prisão preventiva, só deve ser aplicada com todas as outras se mostrarem inadequadas.

(…)”.


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            Da (im)compatibilidade da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, com a autorização para o arguido frequentar aulas de escola de condução auto

            1. A medida de coacção de obrigação de permanência na habitação [doravante, OPH] visa, como aliás, todas as demais medidas de coacção, com excepção do termo de identidade e residência, prevenir os perigos enunciados no art. 204º do C. Processo Penal.

           

            É requisito específico da sua aplicação a existência de fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de superior a três anos (art. 201º, nº 1 do C. Processo Penal), sendo ainda necessário, para o mesmo efeito, como requisito geral, a verificação, no caso concreto, de um ou mais do que um dos perigos elencados no art. 204º referido.

A substituição da OPH – como, em geral, de todas as medidas de coacção, com a excepção, supra, mencionada – está sujeita à cláusula rebus sic stantibus, isto é, só pode ter lugar, sendo substituída por outra menos grave, se e quando tenha ocorrido uma alteração dos pressupostos, de facto ou de direito, que determinaram a sua aplicação (art. 212º, nº 3 do C. Processo Penal).

Por outro lado, a sua revogação terá lugar quando tenha sido aplicada fora das hipóteses e ou condições previstas na lei, ou tenham deixado de existir as circunstâncias justificantes da sua aplicação (nº 1 do mesmo art. 212º).

2. Dispõe o art. 204º do C. Processo Penal, na parte em que agora releva.

1 – Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a obrigação de não se ausentar , ou de não se ausentar sem autorização, da habitação própria ou de outra em que de momento resida ou, nomeadamente, quando tal se justifique, em instituição adequada a prestar-lhe apoio social e de saúde, se houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos.

(…).

Como se vê, apesar de a OPH ser a segunda mais grave ou onerosa das medidas de coacção legalmente admissível, por contender, além do mais, com a liberdade dos cidadãos – obviamente, com menos intensidade do que a prisão preventiva – a lei prevê que a obrigação de o arguido não se ausentar do domicílio, que constitui o objecto da medida, possa, digamos assim, ser temporariamente suspensa, mediante prévia autorização do juiz.  

Já não diz a lei em que circunstâncias pode ser autorizada tal suspensão.

Temos por certo que aqui se incluirão, entre outras, necessidades de tratamento médico inadiável do arguido e de familiares consigo conviventes e que necessitem de acompanhamento para esse efeito, ou o cumprimento de relevantes obrigações sócio-familiares, como sejam, a visita de ascendente ou descendente gravemente doente ou a comparência em cerimónias fúnebres de tais parentes.

Mais difícil se nos afigura já a autorização para fins do exercício de uma actividade profissional regular ou para a frequência de um qualquer nível de ensino, não tanto ou apenas, pela circunstância de se tratarem de actividades duradouras e não, pontuais, mas sobretudo, porque poderão por em causa os fins que a medida de coacção visava acautelar, quando foi decretada, e que ainda, evidentemente, subsistem.

Em suma, a autorização judicial em questão não poderá contender, nunca, com os fins visados com o decretamento da medida de coacção, ou seja, não deverá afectar as exigências cautelares que o caso concreto requer.    

            Dito isto.

3. Diz o recorrente – conclusões 3 e 4 – que ficou demonstrado que não existem já os perigos que a medida de coacção visava acautelar quando foi decretada pois os pressupostos da sua aplicação foram substancialmente alterados pelo curso normal do processo. No corpo da motivação densifica a alegação, afirmando que está sujeito a OPH desde 7 de Janeiro de 2020 sem comportamento que indicie o propósito de se furtar ao julgamento, já foi acusado, estando o julgamento marcado para 24 de Setembro de 2020, e não há perigo de fuga nem perigo de perturbação do normal desenrolar do processo, até porque é o principal interessado na celeridade do mesmo.

Começamos por estranhar que, afirmando o recorrente que já não existem os perigos que a OPH pretendia acautelar, não tenha, pura e simplesmente, requerido a sua revogação, nos termos da alínea b), do nº 1, do art. 212º do C. Processo Penal. Quanto ao mais.

É verdade que por despacho de 7 de Janeiro de 2020 foi o arguido sujeito à medida de coacção de OPH e é igualmente verdade que esta medida não foi substituída por outra mais grave, o que significa que cumpriu a obrigação imposta.

Aceita-se a afirmação de que não existe um relevante perigo de fuga, devendo, no entanto, notar-se que a existência de tal perigo não consta no despacho referido, como fundamento para o decretamento da medida.

Com efeito, no mencionado despacho foi considerada a existência de perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova (parte final da alínea b), do art. 204º do C. Processo Penal), com expressa referência ao que é evidenciado pela transcrição das intercepções de conversações telefónicas, reveladoras da forma como o arguido procurou interferir na obtenção da prova, pressionando as testemunhas a produzirem depoimentos a si, favoráveis, bem como a existência de perigo, em razão das circunstâncias do crime e da personalidade do arguido, de continuação da actividade criminosa e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, com expressa referência ao consumo excessivo de álcool pelo arguido e à sua personalidade violenta e impulsiva, bastando para tanto outra rixa num estabelecimento de diversão nocturna, bem como, expressa referência à frequência com que ocorrem factos idênticos em que ocorre a morte da vítima.

Estando já marcada a data para a audiência de julgamento – é, aliás, provável que já se tenha iniciado, e isso mesmo refere a Digna Magistrada do Ministério Público, na resposta ao recurso – e sendo evidente que nessa audiência serão ouvidas testemunhas que presenciaram os factos, existe a probabilidade séria de o arguido, tal como já havia feito, abordar essas testemunhas por forma a delas obter versões dos acontecimentos que o beneficiem.

Assim, não só se mantém o perigo para a conservação e veracidade da prova, como o mesmo, atenta a fase fulcral em que o processo se encontra, pode aumentar de intensidade.

Na verdade, sendo evidente que a frequência de aulas teóricas na escola de condução implicaria a saída do arguido, vários dias por semana e, necessariamente, por mais de uma hora, da sua habitação, situação que, com o tempo – se, porventura, o julgamento viesse a sofrer atrasos – tenderia a agravar-se, com o início das aulas práticas de condução, uma vez que tais saídas, contrariamente ao que parece ser o entendimento do arguido, não seriam controláveis pelos meios técnicos [estes estão circunscritos ao controlo da presença do arguido na habitação em causa], fácil é concluir que a pretendida autorização de frequência de aulas na escola de condução facultaria ao recorrente as oportunidades necessárias para contactar as testemunhas e deste modo, frustrar um dos fins visados pela aplicação da OPH.

4. Diz ainda o recorrente – conclusões 5 a 7 – que, a entender-se que existem indícios suficientes da prática dos factos, que os mesmos estão correctamente qualificados como crime tentado de homicídio qualificado e que vai ser condenado em pena de prisão efectiva, estão já a ser atingidas, numa fase bem precoce do processo, os fins das penas, pois que, interiorizou o desvalor dos factos e suas consequências, e está já a preparar a sua reintegração na sociedade e a revelar a sua capacidade para pautar a sua vida futura de forma responsável, através da obtenção de um instrumento fundamental – a carta de condução – para fazer face às exigências do mercado de trabalho.

Com ressalva do respeito devido, temos alguma dificuldade em perceber o argumento, na medida em que, não existindo ainda uma pena aplicada, não se vê que finalidades da mesma possam ser atingidas.

Por outro lado, o que nesta fase do processo está em causa não é a ressocialização do arguido, mas a necessidade de, pelas razões sobreditas, prevenir a conservação e veracidade da prova, relativamente a qualquer conduta sua, facilitada pela pretendida autorização.


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            Em síntese conclusiva:

- A autorização judicial a conceder a arguido sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, de se ausentar desta, pode ter por objecto necessidades pontuais, designadamente, necessidades de tratamento médico, suas ou de familiares consigo conviventes e que necessitem de acompanhamento para esse efeito, ou o cumprimento de relevantes obrigações sócio-familiares, tais como, visitas a ascendente ou descendente gravemente doente ou a comparência em cerimónias fúnebres, pelo decesso dos mesmos;

- Tal autorização não pode, em circunstância alguma, por em causa os fins cautelares visados com o decretamento da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação;

- Tendo, in casu, sido aplicada ao arguido e ora recorrente, a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, com fundamento, além do mais, na existência de perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, por a transcrição das intercepções de conversações telefónicas revelarem as suas tentativas de interferência, pressionando as testemunhas a produzirem depoimentos favoráveis, a concessão de autorização para frequentar aulas teóricas e, depois, práticas, numa escola de condução, quando se aproxima a fase do julgamento, agravaria esse perigo, proporcionando ao arguido oportunidades várias para novas abordagens a testemunhas, assim frustrando os fins visados pela dita medida de coacção quando foi decretada;

- Deste modo, não merece censura o despacho recorrido que, por isso, deve ser mantido.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação, em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.


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            Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (arts. 513º, nºs 1 e 514º, nº 1, do C. Processo Penal e 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).


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Coimbra, 17 de Dezembro de 2020

Acórdão integralmente revisto por Vasques Osório – relator – e Helena Bolieiro – adjunta