Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
78/13.7TBNLS-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: INSOLVÊNCIA
CRÉDITO
IMPUGNAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
FORÇA PROBATÓRIA
DOCUMENTO AUTÊNTICO
MÚTUO
Data do Acordão: 03/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 1142º DO CC
Sumário: 1 - Impugnado um crédito constante da lista (apresentada pelo administrador de insolvência) de credores reconhecidos, o ónus da prova dos factos constitutivos de tal crédito pertence ao credor reclamante; porém, uma coisa é saber quem tem o ónus da prova dos factos constitutivos do crédito, outra, um pouco diferente, saber como tal ónus se cumpre.
2 - Assim, dispondo o credor reclamante duma escritura pública de mútuo com hipoteca, o seu ónus fica cumprido com o que consta da escritura, se e na medida em que as arguições dirigidas contra o que da mesma consta não forem demonstradas, ou seja, em face do que consta da escritura, é quem quer opor-se ao que da mesma consta que tem o ónus de demonstrar (sendo terceiro, por qualquer meio) os factos constitutivos das suas arguições.

3 – Arguições (para “destruir” negócios jurídicos formalizados por escrituras públicas), em que o terceiro pode colocar em causa a sua veracidade/sinceridade – através da invocação de vícios da vontade (erro, dolo, coacção) ou de divergência entre a vontade e a declaração (falta da vontade, erro na declaração, simulação, etc.) – ou pode, no caso do negócio jurídico de mútuo, por ser um contrato real quoad constitutionem, colocar em causa a completude do negócio (isto é, invocar e provar que não houve a efectiva entrega/empréstimo de qualquer quantia).

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório
Por apenso à acção especial de insolvência – em que foram declarados em tal situação A... e B... – o Administrador apresentou a lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos, nos termos do art. 129º do CIRE.
Entre os créditos reconhecidos, incluiu o crédito no montante de € 159.071,49 (€ 117.818,58 de capital e os restantes € 41.252,91 de juros) reclamado por C... , com os sinais dos autos, decorrente dum mútuo com hipoteca de € 119.711,50 concedido, segundo a reclamante, em 07/04/2004, aos insolventes.
Cumprido o disposto no art. 129.º/4 do CIRE veio a Caixa D..., CRL, com os demais sinais dos autos, apresentar impugnação nos termos do art. 130.º do CIRE, dizendo, em síntese, que, não existe tal crédito reclamado pela C...; que nunca houve qualquer mútuo, sendo o mesmo e a hipoteca acto fictícios e simulados; acrescentando que a C... é irmã do insolvente A..., o qual, em 2004, atravessava dificuldades económicas devido ao facto de ter garantido pessoalmente empréstimos da empresa da qual era gerente e que estavam em incumprimento desde 2003, tendo, inclusivamente, à data da escritura de mútuo, sido já contactado para pagar as dívidas para com a Caixa D... e estando iminente a execução, pelo que reclamante e insolvente tiveram unicamente em vista proteger o património pretensamente dado em hipoteca.

A reclamante C... respondeu, defendendo a veracidade do mútuo e a entrega aos insolventes da quantia mutuada.

Foi proferido despacho saneador – em que a instância foi declarada totalmente regular, estado em que se mantém – e, já nos termos do NCPC, fixado o objecto do litígio e os temas da prova.

Instruído o processo e realizado o julgamento, a Exma. Juíza proferiu sentença de Verificação e Graduação de todos os créditos (art. 140.º do CIRE), sentença em que não reconheceu/verificou o crédito da reclamante C... (não o tendo, em consequência, graduado) e em que determinou a sua exclusão da listagem do Sr. Administrador de Insolvência.

Inconformada com tal segmento da sentença, interpôs a reclamante C... recurso, visando, nessa parte, a sua revogação e a sua substituição por outra que o verifique e gradue no lugar que lhe pertence (em razão da hipoteca de que beneficia).

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

I- Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos autos e que julgou procedente a impugnação da credora impugnante D... CRL e determinou a exclusão do crédito da ora recorrente (credora reclamante) da listagem do senhor AI de fls. 4 do apenso B, por inexistência do mesmo e da garantia de hipoteca que o acompanhava.

II- Os concretos pontos de facto que a recorrente considera como incorrectamente julgados são os seguintes:

- Não deveria ter sido considerado provado o seguinte facto, que a sentença recorrida aponta como sendo da "base instrutória": 3) Nessa data estes (insolventes) encontravam-se a atravessar uma fase economicamente difícil ...

- Não deveria ter sido considerado provado o seguinte facto, que a sentença recorrida aponta como sendo da "base instrutória": 4) e Temiam perder o imóvel acima referido em H)".

- Não deveria ter sido considerado provado o seguinte facto, que a sentença recorrida aponta como sendo da "base instrutória": 5) celebrando o negócio descrito em E), F) e H) com o objectivo de salvaguardar tal imóvel dos credores.

- Não deveria ter sido considerado provado o seguinte facto, que a sentença recorrida aponta como sendo da "base instrutória": 6) Pelo menos no ano de 2004 que o insolvente A... foi contactado por entidades bancárias em virtude de incumprimentos contratuais por parte da sociedade F... . nos quais ele e o outro gerente eram garantes pessoais das obrigações daquela, tendo sido informados de que a execução estava iminente.

- Não deveriam ter sido considerados como provados os seguinte factos, que a sentença recorrida aponta como sendo da "base instrutória": 11) Sociedade que se encontrava em dificuldades económicas em Abril de 2004; 12) Situação que se verifica ainda hoje.

- Deve ser alterada a data referida no facto assente constante em B) da matéria assente constante da sentença recorrida, pois que não é 27 de Março de 2004, mas 27 de Maio de 2004, como resulta dos documentos juntos com o requerimento executivo que serviu de base à execução com o n.º de Processo 376/0S.3TBNLS.

- Deveria ter sido considerado como provado o seguinte facto, enunciado em -4.1) Factos não provados na sentença recorrida: a) As entregas referidas no facto 1) dos factos provados foram por conta do empréstimo descrito em E). F) e G).

- Deveria ter sido considerado como provado o seguinte facto enunciado em 4.1) Factos não provados na sentença recorrida: b) A importância descrita em E) foi entregue pelo credora reclamante aos insolventes.

- Deveria ter sido considerado como provado o seguinte facto, enunciado em -4.1) Factos não provados na sentença recorrida: e) A reclamante emprestou ao irmão até à data da escritura referida em E) o quantia nela referida ou outra.

III- Os concretos meios probatórios que impõem decisão sobre aqueles pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida, são os seguintes (…):

IV - A ora recorrente deu cumprimento ao ónus de prova que sobre si recaía, provando a existência do seu crédito sobre os insolventes, sendo forçoso concluir que dos elementos constitutivos do contrato de mútuo, a ora recorrente logrou demonstrar verificação integral dos mesmos. E, por isso, o contrato de mútuo e a respectiva hipoteca, que servem de causa à reclamação, existiram efectivamente, devendo o crédito reclamado pela ora recorrente ser julgado reconhecido, verificado e graduado no lugar que lhe competir.

V - Tendo a impugnante/recorrida, na impugnação que apresentou, alegado uma excepção, como seja a simulação do negócio, impendia sobre ela o ónus de prova dos requisitos dessa simulação, devendo concluir-se que a impugnante/recorrida não logrou demonstrar a verificação de qualquer daqueles requisitos, pelo que, também por aí, deve ser reconhecido, verificado e graduado o crédito reclamado pela ora recorrente,

VI- Com a sentença proferida. violou o tribunal a quo as disposições conjugadas dos artigos 1142° cc. 601° CC. 604°, n.º 2 cc. 686° cc. 693.0 cc, 47.º, 48° e 174° CIRE.

A D... respondeu, terminando a sua contra-alegação sustentando, em síntese, que a sentença recorrida não violou qualquer norma, designadamente, as referidas pela recorrente, pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – “Reapreciação” da decisão de facto

Como “questão prévia” à enunciação dos factos provados, importa – atento o âmbito do recurso da reclamante C..., delimitado pelas conclusões da respectiva alegação – analisar as questões a propósito da decisão de facto colocadas a este Tribunal.

No caso vertente, os diversos depoimentos prestados em audiência, nos quais a 1ª instância se baseou para decidir a matéria de facto, foram gravados; constando assim do processo todos os elementos probatórios com que aquela instância se confrontou, quando decidiu a matéria de facto, pelo que e é possível modificar aquela decisão, se enfermar de erro de julgamento[1].

Faculdade – de modificar a decisão de facto – em cujo uso, costumamos “avisar”, é nosso dever ser contidos, cautelosos e prudentes, uma vez que existem elementos intraduzíveis e subtis, como a mímica e todo o processo de exteriorização e verbalização dos depoentes, não importados para a gravação, susceptíveis de influir, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhes. O que, porém – salienta-se e enfatiza-se, para que não haja quaisquer equívocos interpretativos sobre o que se acabou de dizer – não significa que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto apenas envolve a correcção de pontuais, concretas e excepcionais erros de julgamento; efectivamente, a Relação, quando aprecia as provas – e pode para tal atender a quaisquer elementos probatórios – faz um novo julgamento da matéria de facto, vai à procura da sua própria convicção, assegura o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto (ou seja, a actividade da Relação não se pode/deve circunscrever a um mero controlo formal da motivação efectuada na 1.ª Instância).

Efectuados tais prévios e “tabelares” esclarecimentos, debruçando-nos sobre as concretas questões – tendo presente as posições assumidas pelas partes nos articulados, analisados os documentos juntos e ouvido o registo, efectuado em CD, das várias sessões de julgamento – concluímos, antecipando desde já a solução, que não assiste razão à apelante.

Vejamos:

Estamos perante um caso em que a apreciação/valoração da prova é relativamente cristalina; não pretendemos dizer – não temos essa veleidade – que temos a certeza absoluta sobre o que real e efectivamente aconteceu, porém, dizemos que a prova produzida nos autos – a verdade intra-processual – é de apreciação/valoração relativamente pacífica, isto é, que aprova produzida não suscita dúvidas no que diz respeito aos factos fulcrais (sobre que incide a impugnação/reapreciação da decisão de facto) que, em termos de direito, relevam para o reconhecimento/verificação do crédito reclamado pela apelante.

E é justamente apenas sobre tais factos fulcrais que nos vamos debruçar e pronunciar; tudo o que é meramente instrumental apenas será tomado em conta, focado e chamado à liça para fazer raciocínios e retirar ilações (ou não) tendo em vista a fixação da facticidade fulcral/essencial.

É que, como já se referiu no relatório inicial, o julgamento dos autos decorreu à luz do NCPC, tendo a sentença sido elaborada nos termos do art. 607.º, segundo o qual (n.º 4) “ (…) o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção”; o que significa que não temos que nos pronunciar, ponto por ponto, sobre quesitos da base instrutória (efectuada no âmbito do apenso de reclamação de créditos da anterior execução, suspensa com a declaração de insolvência dos devedores, nos termos do art. 88.º/1 do CIRE) referidos como incorrectamente julgados pela apelante; o que temos, isso sim, é que nos pronunciar sobre o que, tendo em vista o objecto do litígio e os temas da prova, for essencial/fulcral.

E o que é decisivo/essencial/fulcral para o litígio dos autos/recurso, enfatiza-se, é saber se a apelante entregou/emprestou (como declarou à notária na escritura de 07/04/2004) ou não a verba de € 119.711,50 aos insolventes; não queremos com isto dizer – acrescenta-se ainda, para que não subsistam dúvidas – que os diversos factos instrumentais referidos nos autos (dados como provados e ora impugnados) não possam/devam deixar de ser analisados e ponderados, porém, não têm que ser colocados (e não o faremos) no elenco dos factos provados e não provados[2].

Isto dito, sobre o que é factualmente decisivo/essencial/fulcral, importa ainda, como questão prévia, efectuar/verbalizar a seguinte reflexão:

É indiscutível, em tese, que o ónus da prova do crédito pertence à reclamante/apelante ou, talvez mais correctamente, o ónus da prova dos factos constitutivos do crédito pertence à reclamante/apelante – ponto em que, com tal precisão, a decisão recorrida merece a nossa concordância – mas suscitam-se-nos dúvidas sobre o modo como o cumprimento de tal ónus se preenche/satisfaz na presente reclamação da mutuante/apelante.

Dúvidas que decorrem da força probatória material dos documentos autênticos; no caso, da força probatória material da escritura de mútuo com hipoteca em que a reclamante/apelante alicerça a seu crédito.

Expliquemo-nos:

Os documentos autênticos, de acordo com o art. 371.º/1, do CC “fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora”.

Significa isto que ficam cobertos pela força probatória plena[3]:

1.º - Os factos praticados pela entidade documentadora, ou seja, a parte em que na escritura se menciona que a notária a leu e explicou;

2.º - Os factos atestados pela entidade documentadora com base nas suas percepções, ou seja, a parte em que, na escritura de mútuo, se diz que a outorgante/apelante declarou perante a notária conceder o empréstimo nos precisos termos que da escritura consta e em que os outros outorgantes/insolventes declararam aceitar tal empréstimo e tê-lo já recebido e se confessaram solidariamente devedores do mesmo[4].

Embora, quanto a esta segunda espécie de factos, a força probatória plena só vá até onde alcançam as percepções do notário; ou seja, apenas fica plenamente provado que os outorgantes declararam o que dos documentos consta, mas já não se tem como plenamente provado que a apelante quis realmente emprestar e emprestou e que os insolventes quiseram realmente aceitar o empréstimo e receberam o dinheiro[5].

Significa isto que as declarações negociais – de empréstimo, de aceitação, de entrega e de recebimento do capital – constantes da escritura, na sua sinceridade e veracidade, não ficam, com a mera apresentação das escrituras, “automaticamente” plenamente provadas.

Mas também significará – é este o ponto a que pretendemos chegar – que talvez tais declarações negociais não possam ser “destruídas/alteradas” de qualquer maneira e por mera “impugnação” (ainda que de terceiros, em relação aos outorgantes do negócio).

Entre os outorgantes – a apelante e os insolventes – estabelece a lei, caso os mesmos tenham em vista a destruição do negócio, “limitações” nos meios de prova; na medida em que, de acordo com o art. 394.º/1 do CC, é inadmissível a prova por testemunhas se tiver por objecto “convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos autênticos ou autenticados”, embora, chama-se mais uma vez a atenção, tal limitação é apenas em relação à parte que está coberta pela força probatória plena[6], o que significa – acrescenta-se e esclarece-se – que tal proibição da prova testemunhal contra ou praeter scriptum não impede o recurso a testemunhas para prova quer dos vícios da vontade (erro, dolo, coacção) quer das divergência entre a vontade e a declaração (falta da vontade, erro na declaração, etc.[7]), assim como não obsta à prova por testemunhas do sentido e alcance atribuídos ao texto do documento (prova juxta scripturum).

Sucede – não se ignora – que a impugnante/apelada não é outorgante da escritura, pelo que, de acordo com o art. 394.º/3 do CC, a inadmissibilidade da prova por testemunhas não se lhe aplica.

Mas – é a questão – se pretender contrariar o conteúdo de documentos autênticos ou autenticados, basta-lhe impugnar tal conteúdo para a sua força probatória (nos estritos e limitados termos supra referidos) ficar, em relação a si, totalmente destruída/abalada?

É exactamente aqui que se situam as nossas dúvidas; e, tendo que decidir, propendemos para uma resposta negativa à questão enunciada.

A declaração (por parte dos insolventes/mutuários) de recebimento da quantia emprestada, constante da escritura, consubstancia confissão extrajudicial que, uma vez que dirigida à contraparte (apelante/mutuante) e enquanto não arguida de nulidade ou anulabilidade por falta de vícios de vontade, é dotada, nas relações mutuários/mutuantes, de força probatória plena (cfr. 376.º/2 e 358.º/2 do C. Civil); e em função disso não são mutuante e mutuários admitidos a provar o contrário por testemunhas (cfr. 393.º/2 do C. Civil)[8].

Não sendo a impugnante/apelada parte/outorgante no mútuo, temos como seguro que tem que ser admitida a fazer a prova do contrário (de tal declaração de recebimento) por qualquer meio de prova (cfr., identicamente, art. 394.º/3 do C. Civil); mas – é a questão – será que nem tal prova do contrário (por qualquer meio) necessita de fazer, uma vez que ao contrariar/impugnar o conteúdo de documentos autênticos ou autenticados (outorgados por terceiros) toda a sua força probatória (nos estritos e limitados termos supra referidos) fica destruída/abalada, passando a ser aquele que se quer valer de tais documentos (v. g., um dos outorgantes) que tem que demonstrar a realidade/sinceridade que dos mesmos consta?

Temos, como vimos referindo, dúvidas, tanto mais que a propósito dos vícios de vontade suscitados por terceiros (como é aqui o caso do credor impugnante) – no caso, recorrente, da simulação – é aceite pacificamente que são tais terceiros que têm que demonstrar (embora por qualquer meio de prova) que houve negócio simulado, não sendo aos outorgantes do negócio “atacado” de simulação que se exige que demonstrem a veracidade e sinceridade das suas declarações negociais.

E quer-nos parecer, claro está (é aqui que está o fulcro das nossas dúvidas), que a contestação/impugnação da confissão extrajudicial de recebimento da quantia emprestada (quer se veja aqui uma declaração unilateral quer uma convenção), constante da escritura de mútuo, não é substantivamente diferente (e não merece, por isso, um tratamento diferente) da invocação da simulação negocial: em ambos os casos, está apenas plenamente provado que os outorgantes declararam o que da escritura consta, mas já não está plenamente provado que a apelante quis realmente emprestar e entregou o dinheiro e que os insolventes quiseram realmente aceitar o empréstimo e receberam o dinheiro[9].

E o que vimos de dizer – as nossas dúvidas sobre quem tem de provar e o que tem de provar – não é uma reflexão gratuita, ociosa e fora de contexto (por estarmos ainda na reapreciação da decisão de facto).

A admissão de tais dúvidas – na sede em que nos encontramos de reapreciação da decisão de facto – tem como consequência necessária o alargamento do que é factualmente decisivo/essencial/fulcral, ou seja, a decisão de facto não pode/deve ter em vista, como resultado final, fixar tão só se a mutuante/apelante emprestou/entregou os € 119.711,50 aos mutuários/insolventes; deve também fixar, caso for esta a convicção resultante da prova produzida, os factos respeitantes à simulação negocial e/ou à circunstância da mutuante/apelante não ter efectiva e realmente entregue os € 119.711,50 aos mutuários/insolventes.

É para nós indiscutível – repetimos o que começámos por referir – que o ónus da prova dos factos constitutivos do crédito pertence à reclamante/apelante, porem, uma coisa é saber quem tem o ónus da prova dos factos constitutivos, outra, um pouco diferente, saber como, no processo, facto a facto, os vários ónus se preenchem/satisfazem e articulam; é que pode dizer-se – como explicámos, recenseando as dúvidas que se colocam e o modo como nos inclinamos para as solucionar – que a parte a cargo da reclamante/apelante fica preenchida com o que consta da escritura de mútuo, se e na medida em que as arguições dirigidas contra o que da mesma consta não forem demonstradas; o mesmo é dizer, em face do que consta da escritura, é quem quer opor-se ao que da mesma consta que tem o ónus de demonstrar os factos constitutivos das suas arguições.

Tudo isto para dizer, nesta sede, tendo o julgamento decorrido à luz do NCPC, que na fixação dos factos se deve atender a ambos os pontos de vista jurídicos: àquele para que propendemos e ao que a decisão recorrida encerra (e que as partes não contestam frontalmente).

Em síntese, caso fiquemos convencidos, em face da prova produzida, que as arguições da impugnante/apelada são verdadeiras, devemos dar isso mesmo como positivamente provado; não dando apenas como não provado o que consta da escritura, ou seja, os factos provados devem retratar positivamente toda a convicção – e a conclusão final da motivação de facto da decisão recorrida foi: “enfim, de toda a prova produzida o tribunal ficou convencido de que não houve qualquer empréstimo, muito menos o invocado, tendo a escritura sido feita apenas para preservar o património dos insolventes relativamente aos credores” – devem, se for o caso, enunciar o facto negativo de não ter havido a entrega/empréstimo de qualquer dinheiro e não apenas dizer que não se provou o facto positivo da entrega do dinheiro[10].

Aqui chegados, debrucemo-nos, com o âmbito alargado acabado de traçar, sobre o “fundo” da decisão de facto:

E vale a pena começar – quer por haver, no essencial, coincidência entre a nossa convicção e a da decisão a quo, quer para demonstrar que não estamos a ir além da convicção que suporta a decisão recorrida – por registar aqui a análise crítica das provas, efectuada na decisão a quo:

“ (…) o tribunal resume do seguinte modo a convicção com que se ficou:

A família da reclamante, do insolvente marido e das testemunhas inquiridas e oferecidas pela primeira é uma família conhecida da zona de (...) e de (...) , reconhecida pela generalidade da população como pessoas de bem, de trabalho e de sucesso pessoal e profissional.

O insolvente A... é o irmão mais novo de quatro irmãos. Ele e outro irmão H... , testemunha neste processo, eram os sócios gerentes da empresa F... Lda que se firmou mercado e criou, durante vários anos, lucros suficientes para permitir dar aos sócios e famílias uma vida estável.

Como os familiares aqui testemunharam, o insolvente habituou-se a viver bem e até acima das suas possibilidades o que o levou a ter de recorrer à ajuda da irmã C... para satisfazer tal modo de vida.

Vendo e ouvindo a reclamante C... ficámos com a certeza de que estamos perante uma pessoa bondosa e generosa e que sempre ajudou os irmãos, pelo menos este, e os sobrinhos, filhos dos irmãos.

Parafraseando a testemunha I... ela é a mais “permeável e influenciável de todos os irmãos”.

Nunca teve filhos, pelo que tem canalizado os afetos e o apoio financeiro para o irmão mais novo, para a filha deste,G... , que tem e trata como filha (como esta disse no seu depoimento) e para outros sobrinhos, nomeadamente o filho da irmã, a testemunha I... .

Quer enquanto o marido foi vivo, até 2000, quer posteriormente, e ainda hoje, a reclamante entrega ao irmão quantias em dinheiro para o ajudar.

A ideia com que se ficou foi que o insolvente nunca se obrigou efetivamente a restituir nada do que lhe foi entregue e nem a reclamante lhe cedeu dinheiro com intenção de o reaver.

Como a própria referiu, nunca lhe exigiu o dinheiro, nem antes nem depois da referida escritura de mutuo e nem exigirá, face ao bom relacionamento fraternal que entre eles existe. Mas também porque, cremos, com base nos depoimentos prestados, que, ao contrário do irmão, ela não necessita do dinheiro, tendo amealhado bom dinheiro durante a sua vida ativa e tendo o suficiente para si e para dar aos que lhe são próximos.

Em vida do marido da reclamante era ele quem geria e controlava os dinheiros, sendo o mais rigoroso nas contas e nos gastos e menos “permeável” do que a mulher.

Tinha “gosto pelo dinheiro” e transmitiu esse gosto ao sobrinho da mulher, I..., que o assumiu e revelou ao longo de todo o seu depoimento.

Foi este sobrinho, Ilustre Causídico na zona, quem passou a gerir as contas da reclamante, controlando movimentos, depósitos e aplicações após a morte do seu marido.

Foi também ele, como dito por todos, quem aconselhou e resolveu realizar a referida escritura de mutuo com hipoteca a favor da reclamante e de tudo tratou relativamente a ela, nomeadamente a redação e emissão dos documentos de quitação das quantias referidas no facto 1º. da b.i.

A sua intenção, cremos, foi garantir a situação dos tios, preservando o património da família de terceiros credores, mantendo-o no seio familiar.

Assim, quando surgissem os problemas, isto é, quando surgissem as execuções e penhoras em virtude de incumprimentos, como era já previsível, para todos, que viessem a existir, sempre se garantia a casa e/ou a situação dos devedores, sendo certo que a irmã C... não iria deixar ficar mal o irmão, face ao muito bom relacionamento entre ambos existentes e sendo que, na pior das hipóteses, por morte da mesma, os seus herdeiros são os irmãos.

Salientamos que todos os depoimentos prestados foram coincidentes no sentido de não ser verdade que a reclamante tenha mutuado no dia da escritura de mutuo ou sequer em datas próximas, a quantia aí referida.

Aliás, notificada várias vezes a reclamante, quer ainda em fase executiva no processo apenso (376/05.3TBNLS), quer já neste incidente de impugnação de créditos na insolvência para juntar aos autos documentos comprovativos da transferência para o outorgante mutuário do capital alegadamente mutuado, nunca esses documentos foram juntos.

E também manteve sempre a alegação de que o que foi dito na escritura foi real e a dita quantia foi mutuada.

Já em sede de julgamento, a versão então trazida genericamente pela reclamante e restantes membros da família foi que essa quantia foi sendo mutuada aos insolventes ao longo dos anos e até ao ano de 2000, quando o marido faleceu.

A escritura serviu, segundo disseram, para consolidar a divida até ai existente de modo a não prejudicar os demais irmãos, herdeiros da reclamante.

Todavia, o tribunal não ficou convencido desta versão e de que tivesse havido qualquer quantia entregue com a obrigação de restituir por parte dos insolventes.

É que, sendo o marido da reclamante mais exigente e rigoroso com as contas, se tinha amor ao dinheiro e não lhe agradando totalmente que a irmã desse dinheiro ao irmão (como referiu o Dr I...) o que faria sentido, se se tratassem de empréstimos, é que tivessem sido documentadas tais entregas à medida que iam acontecendo.

Ora, durante a vida do marido, que era quem controlava o dinheiro, nunca tiveram o cuidado de registar quaisquer entregas, ainda para mais quando, como disseram todos, as mesmas (em quantias que nunca precisaram) terão sido feitas em notas, já que o malogrado tinha uma cave na loja cheia de notas, como disseram, e não por cheques ou transferências.

Nessa altura não houve qualquer preocupação de documentar os alegados empréstimos em tranches. Todavia, após quatro anos do falecimento do marido da reclamante, e quando as dificuldades da empresa eram notórias e a responsabilização dos gerentes uma consequência, é que sentiram necessidade de documentar as alegadas entregas.

Salvo devido respeito, esta versão contraria as regras da logica e da normalidade.

Do mesmo modo, não se entende como é que durante o momento das alegadas entregas não há qualquer papel comprovativo e depois surge não apenas uma escritura pública como os três cheques, os talões de depósito das primeiras três alegadas prestações, exatamente com aa quantias acordadas, e, como se não bastasse, recibos dando quitação e com as assinaturas de ambos.

Sempre com o devido respeito, é convicção deste tribunal que tudo isso foi pensado justamente de forma a dar uma ideia de veracidade e credibilidade, tal a quantidade de meios probatórios em posse da reclamante e familiares.

Não é também normal que entre irmãos, que tão bem se davam e dão, fossem feitas tamanhas formalidades.

Se a intenção fosse não prejudicar os demais herdeiros (os outros irmãos) seria suficiente uma declaração dos insolventes assumindo ou confessando uma dívida, para que oportunamente fosse o montante descontado do seu quinhão hereditário.

Por outro lado, sendo o pagamento feito por cheque, as declarações de quitação das prestações juntas revelam um excesso e desproporcional formalismo ou exigência, só explicável para que os mesmos viessem a servir como meio de prova, como serviram, em futura execução.

É igualmente contraditório que um casal com um rendimento de cerca de 1.000€ por mês na altura, assumisse o pagamento de prestações de valor superior a tais rendimentos, ainda que a contar com a ajuda de terceiros.

Finalmente, se empréstimos houvesse, aos poucos e durante os anos, o normal seria que a restituição fosse sendo feita nos mesmos termos, ou seja, em montantes irregulares e espaçados.

Enfim, de toda a prova produzida o tribunal ficou convencido de que não houve qualquer empréstimo, muito menos o invocado, tendo a escritura sido feita apenas para preservar o património dos insolventes relativamente aos credores (…)”.

Observações, raciocínios, reflexões – enfim, análise crítica da prova produzida – que, repete-se, merecem a nossa concordância; e a que, em resumo, podemos acrescentar o seguinte:

Ao contrário do que prima facie parece resultar da escritura de mútuo, os € 119,711,50 não teriam sido emprestados naquela data e duma vez só; sendo antes, como os 6 familiares (mutuante, mutuários, filha dos mutuários e irmão e sobrinho da mutuante e do mutuário) referiram, a consolidação dos inúmeros empréstimos feitos ao longo dos anos e ainda em vida do marido (E...) da mutuante e cunhado dos mutuários.

Reconhece-se que a verosimilhança de empréstimos em dinheiro vivo é inversamente proporcional ao montante que se diz que se empresta, isto é, quanto mais alto é o montante que se diz que se empresta em “cash” mais baixa é a apetência para se acreditar na veracidade dum tal empréstimo em dinheiro vivo.

Salvo razões especiais e explicitamente invocadas, não é normal ter-se em casa o montante de € 119.711,50 em cash; não é evidentemente impossível – pode dar-se o caso de se demonstrar que, por aquela ocasião, se levantou tal montante no sistema bancário e aí, evidentemente, a normalidade perde força[11] – mas não é normal.

Mas, com todo o respeito, também é algo estranho, no plano do que é a normalidade da vida, que dos € 119.711,50, caso tenham sido emprestados por várias vezes e ao longo de anos, não haja sequer um único documento demonstrativo do fluxo monetário dos mutuantes para os mutuários.

Os € 119.711,50, na versão dos outorgantes do mútuo, terão sido emprestados por várias vezes e ao longo de anos, mas não se sabe nem as datas nem os montantes dos empréstimos parcelares[12] e, principalmente, não há/houve em tudo isso um único cheque, uma única transferência bancária, uma vez que, segundo se quer fazer crer, tudo aconteceu com dinheiro vivo.

E tal anormalidade, devidamente contextualizada, firma a convicção de não ter ocorrido, real e efectivamente, qualquer empréstimo.

É traçado um perfil do pretenso mutuante, o falecido E..., nada compatível com sucessivos e contínuos empréstimos; sem que alguma vez a quantia emprestada haja diminuído.

Como resulta de diversos documentos juntos aos autos, os mutuários tinham, à época da escritura de mútuo (ou de consolidação de mútuos anteriores, se preferirmos), créditos em incumprimento quer com a Caixa impugnante[13] quer com a CGD[14].

Daí que o presente/pretenso mútuo – em que pretensamente se consolidam quantias facultadas ao longo de anos, sempre em “cash” – obrigue a suspeitar, até pela garantia que o acompanha, que podemos estar perante um estratagema para deixar os credores bancários dos mutuários sem bens livres para satisfazer os seus créditos; até porque os mutuários só disporiam, como garantia patrimonial para os seus credores, do imóvel dado em garantia à mutuante/irmã.

É verdade que os 6 familiares (mutuante, mutuários, filha dos mutuários e irmão e sobrinho da mutuante e do mutuário) ouvidos como testemunhas confirmaram, em uníssono, os empréstimos ao longo dos anos e sempre em “cash”.

Sucede, enfatiza-se, que não é por uma testemunha referir um certo facto que o tribunal passa a ficar adstrito a incluir tal facto na sua “reconstituição do passado”; a prova testemunhal, é sabido, é apreciada livremente pelo tribunal, o que significa que o tribunal não está vinculado, na sua apreciação, a quaisquer regras legais estritas, sendo antes recorrendo a todas as circunstâncias envolventes, a todos os detalhes, munindo-se de todo o seu sentido crítico e analítico, fazendo uso de toda a sua perspicácia, argúcia e experiência, que o tribunal avalia o depoimento das testemunhas, só “validando” para a sua “reconstituição do passado” o que lhe possa/deva merecer valor e crédito.

E os detalhes dos depoimentos testemunhais confirmaram o que o contexto da situação já indiciava fortemente.

Caracterizaram-se os depoimentos, com todo o respeito, uns pela insegurança e outro pela ausência de espontaneidade.

Estranhamente, a mutuante e os mutuários não revelaram ter um conhecimento preciso do que fizeram; remetendo para o “sobrinho Zé”, a quem atribuíram a iniciativa da escritura de mútuo e o cálculo/determinação dos montantes emprestados.

Curiosamente, repetiram como justificação para a realização da escritura uma mesma expressão: “há viver e morrer”, acrescentando que a escritura foi feita para segurança dos outros herdeiros[15], embora também tenham dito (os insolventes, um pouco sem dar conta da “inconveniência”) que foi “para segurar a casa”.

Fora de toda a dúvida, a mutuante transmitiu a ideia[16] de ser muito amiga do irmão/insolvente, dizendo que sempre o ajudou e continua a ajudar (e que ele, agora que ela está viúva, é “que lhe vale”), deixando passar claramente a ideia de que as ajudas que lhe fez (e que nunca terá verdadeiramente apontado/computado) foram a fundo perdido e que a escritura de mútuo com hipoteca terá sido mais uma ajuda.

A filha e o irmão dos mutuários/insolventes, de relevante e seguro, nada disseram que mereça especial registo.

Resta pois o testemunho do “sobrinho I...” (Dr. I...), que assumiu ser dele a ideia da escritura e ter tratado de tudo para a celebração da mesma; tendo para tudo explicações e histórias circunstanciadas[17], como a transcrição do seu depoimento o revela, mas que, com todo o respeito, se nos afigurou pouco natural, espontâneo e credível.

Podemos dizer, fazendo a síntese, que como prova do mútuo apenas temos “palavras”, “palavras” e “mais palavras”: as palavras ditas à notária, as palavras da mutuante, as palavras dos mutuários, as palavras do “sobrinho zé”, que foi o da ideia e que tratou de tudo; agora, outras provas, “dinheiro a sério”, documentos fidedignos e coevos demonstrativos dos fluxos financeiros (não dizemos de todos, mas ao menos de alguns)[18], nem vê-las.

Enfim, com todo o respeito, a nossa convicção final – já o dissemos e repetimos – é exactamente igual à da decisão recorrida, ou seja, “de toda a prova produzida o tribunal ficou convencido de que não houve qualquer empréstimo, muito menos o invocado, tendo a escritura sido feita apenas para preservar o património dos insolventes relativamente aos credores.”

Em face de tudo o que se referiu – que a motivação da decisão de facto a quo, supra transcrita, também refere – e das atinentes regras da experiência, o sentido e a avaliação da prova produzida, em termos de análise crítica, não poderia ser outro senão o que enformou a decisão de facto.

É quanto basta para afirmar a improcedência do recurso de facto, o mesmo é dizer, que os factos constantes das alíneas a), b) e c), reproduzidas na conclusão II da alegação da apelante, foram bem dados como não provados; mas, mais, é também quanto basta para afirmar – tendo presente o que supra se referiu: que, se as arguições da impugnante/apelada forem verdadeiras, devemos dar isso mesmo como positivamente provado, não dando apenas como não provado o que consta da escritura, ou seja, os factos provados devem enunciar o facto negativo de não ter havido a entrega/empréstimo de qualquer dinheiro e não apenas dizer que não se provou o facto positivo da entrega do dinheiro – que a improcedência do recurso de facto vai ao ponto de se ter que dar como provado que a importância constante da escritura (os € 119.711,50) não foi real e efectivamente entregue pela reclamante/apelante aos insolventes.


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III. – Fundamentação de Facto:

Lógica e cronologicamente alinhados (sem os que não têm a ver com o objecto do recurso e sem aqueles, meramente instrumentais, que, na lógica do NCPC, não têm necessariamente que ser colocados ao lado e a par dos factos essenciais) são os seguintes os factos provados:

A) A... e B... apresentaram-se à insolvência, tendo sido declarados insolventes por sentença de 19/02/2013.

B) Dentro do prazo fixado, veio C... reclamar um seu crédito, decorrente dum mútuo, com hipoteca, da quantia de € 119.711,50.

C) Por documento escrito, denominado de “escritura pública de mútuo com hipoteca”, datada de 07 de Abril de 2004, a credora reclamante C... declarou perante notário do Cartório Notarial de (...) emprestar aos insolventes A... e B..., os quais, por sua vez, declararam aceitar o empréstimo, da quantia de € 119.711,50 (cento e dezanove mil setecentos e onze euros e cinquenta cêntimos), sobre a qual recai a taxa de juro de cinco por cento ao ano, a título de retribuição, declarando-se aqueles devedores solidários de tal importância, sendo tal empréstimo concedido pelo prazo de doze anos, e mais declararam os insolventes que tal empréstimo seria pago àquela em cento e quarenta e quatro prestações mensais, sucessivas e iguais, constantes de capital e juros, no montante de € 1.127,15 (mil cento e vinte e sete euros e quinze cêntimos), cada uma, vencendo-se a primeira no dia 21 de Abril de 2004 e as restantes em igual dia dos meses subsequentes.

D) Mais declararam que a credora reclamante se “reserva ao direito de considerar imediatamente vencido o empréstimo se o imóvel hipotecado for alienado, desvalorizado ou por qualquer outro modo onerado sem o seu consentimento escrito, ou ainda se os mutuários deixarem de cumprir pontualmente quaisquer das obrigações assumidas, nomeadamente, deixarem de pagar tempestivamente qualquer uma das prestações a que estão obrigados”.

E) Declararam igualmente que no “caso de mora estabelece-se cláusula penal moratória de três por cento, a qual acresce aos restantes direitos da credora derivados de tal facto, não podendo, porém ultrapassar o montante de dez mil euros e que em caução e garantia do referido empréstimo, dos juros contados à taxa de cinco por cento, da sobretaxa de três por cento em caso de mora e a título de cláusula penal e das despesas judiciais e extrajudiciais que se fixam em quatro mil setecentos e oitenta e oito euros e quarenta e seis cêntimos, pelo que o montante máximo de capital e acessórios garantido é de cento e cinquenta e três mil duzentos e trinta euros e setenta e dois cêntimos”.

F) Como garantia de tal obrigação, os insolventes declararam ainda que davam em hipoteca a favor da credora reclamante o prédio urbano sito na Rua (...) , n.ºs 7 e 9, freguesia e concelho de (...) , inscrito na matriz sob artigo 1730 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número 4923, para garantia de pagamento da quantia mutuada e de juros à taxa de 5% ao ano, acrescido de 3% em caso de mora, a título de cláusula penal, garantindo no máximo € 153.230,72 (cento e cinquenta e três mil duzentos e trinta euros e setenta e dois cêntimos).

G) Encontra-se descrita na referida descrição predial essa hipoteca pela apresentação 5 de 2004.04.15.

H) A importância referida em B) e C) - a quantia de € 119.711,50 - não foi entregue pela credora reclamante aos insolventes nem antes nem depois da escritura pública de mútuo com hipoteca.


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IV – Fundamentação de Direito

O mútuo é, na noção legal oferecida pelo art. 1142º do CC, “o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.

Assim, para se estar perante um tal contrato, têm o dinheiro ou a coisa fungível de ser emprestados com o objectivo de atribuir tão só o seu uso, devendo ser restituídos em género, qualidade e quantidade.

Além disto, porém, tal tipo contratual, como se apresenta regulado no art. 1142.º do C. Civil, apenas contempla o contrato real quoad constitutionem, ou seja, o contrato só se completa, só fica perfeito, pela entrega/empréstimo do dinheiro ou coisa fungível.

Significa o que se acaba de dizer – tendo-se provado que a importância de € 119.711,50 não foi entregue pela credora reclamante aos insolventes nem antes nem depois da escritura pública de mútuo com hipoteca – que não ficaram provados todos os elementos constitutivos do contrato de mútuo (entre apelante e insolventes) e, sendo assim, não se provou o negócio jurídico de mútuo, não estão os insolventes adstritos à obrigação de restituir (decorrente de tal contrato), não é a apelante credora dos insolventes, não tem a mesma qualquer crédito que mereça ser reconhecido/verificado/graduado, pelo que, é a conclusão final, bem andou a sentença recorrida ao julgar procedente a impugnação da credora D... e ao determinar a exclusão do crédito da apelante da listagem do Sr. Administrador da Insolvência.

O que, só por si, é suficiente para julgar improcedente a presente apelação.

Em todo o caso, em linha com o que supra se expôs para justificar o “alargamento” na reapreciação da decisão de facto e respondendo directamente ao que se diz na conclusão V da alegação da apelante, importa acrescentar o seguinte:

Reconhecendo que a questão/solução não será pacífica, inclinamo-nos para entender, como já referimos, que as declarações constantes da escritura – as declarações negociais convergentes do mútuo e da hipoteca e as declarações também convergentes de entrega e recebimento da quantia emprestada – têm força probatória, ou seja, o ónus da prova (dos factos constitutivos do crédito) que pertence à reclamante/apelante fica preenchida com o que consta da escritura de mútuo, se e na medida em que as arguições dirigidas contra o que da mesma consta não forem demonstradas; o mesmo é dizer, em face do que consta da escritura, é quem quer opor-se ao que da mesma consta que tem o ónus de demonstrar os factos constitutivos das suas arguições[19].

E quem quer opor-se ao que da mesma consta, sendo terceiro, pode provar os factos constitutivos das suas arguições por qualquer meio de prova; arguições que, porém, tendo em vista “destruir” declarações negociais, têm à partida que consubstanciar invocações de vícios da vontade (erro, dolo, coacção) ou de divergência entre a vontade e a declaração (falta da vontade, erro na declaração, simulação, etc.).

Vem isto a propósito da simulação absoluta.

Diz a apelante, na referida conclusão V, que a D.../apelada “invocou a simulação do negócio, razão porque impendia sobre ela o ónus da prova dos requisitos da simulação, devendo concluir-se que não logrou demonstrar a verificação de qualquer daqueles requisitos, pelo que, também por aqui deve ser reconhecido, verificado e graduado o seu crédito

Exceptuando a conclusão, concorda-se com a apelante.

Embora imperfeitamente[20], a D... na sua impugnação invoca nitidamente a simulação absoluta do negócio de mútuo com hipoteca; simulação não devidamente perguntada na BI da primitiva execução e não devidamente reflectiva nos factos provados da decisão recorrida.

Não temos pois, entre os factos provados, facticidade que preencha os requisitos da simulação absoluta, divergência entre a vontade e a declaração que, como vimos de referir, é uma daquelas arguições que pode/deve ser feita e cujo ónus da prova cabe a quem – no caso, a impugnante/apelada – pretende “destruir” declarações negociais convergentes constante duma escritura pública.

É justamente neste ponto que a característica do mútuo contemplado no C. Civil – ser um contrato real quoad constitutionem – se revela decisiva para o desfecho dos presentes autos/recurso.

Se o mútuo fosse um negócio consensual, apenas estaríamos neste momento a dizer que a D.../impugnante não provou os factos constitutivos da arguição invocada para “destruir” as declarações negociais e os efeitos pelas mesmas visados; subsistindo, assim, a força probatória das declarações negociais constantes das escrituras e os efeitos pelas mesmas produzidos.

Só que – é o ponto – o mútuo contemplado no C. Civil é um negócio real, que só se completa, só fica perfeito, pela entrega/empréstimo da coisa; pelo que temos que acrescentar que, embora as declarações negociais constantes da escritura subsistam, não ocorrendo (como se provou não ter ocorrido) o “plus” que a lei também exige para o negócio ficar completo, não temos provado o negócio jurídico de mútuo, não tendo a apelante qualquer crédito sobre os insolventes que mereça ser reconhecido/verificado/graduado (razão porque dissemos que, exceptuando a conclusão, concordávamos como que a apelante diz na conclusão V da sua alegação recursiva).

Enfim, para destruir negócios jurídicos formalizados por escrituras públicas, pode o terceiro colocar em causa a sua veracidade/sinceridade – através da invocação de vícios da vontade (erro, dolo, coacção) ou de divergência entre a vontade e a declaração (falta da vontade, erro na declaração, simulação, etc.) – ou pode, no caso do mútuo, colocar em causa a completude do negócio (dizer/provar, como é o caso, que não houve a efectiva entrega/empréstimo de qualquer quantia).

É quanto basta para dizer que improcede “in totum” o que a apelante invocou e concluiu na sua alegação recursiva, o que determina o naufrágio da apelação e a confirmação do sentenciado na 1ª instância.

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V - Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar totalmente improcedente a apelação e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida (mais exactamente, o segmento da sentença recorrida sob recurso).

Custas, em ambas as instâncias, pela A/apelante.


Coimbra, 24/03/2015

(Barateiro Martins – Relator)

 (Arlindo Oliveira)

 (Emídio Santos)



[1] Cfr. Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 2000, pág. 154 e António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume, 1997, pág. 254.

[2] Estamos, concreta e nomeadamente, a falar dos factos 3, 4, 5, 6, 11 e 12 da sentença recorrida, referidos em II das conclusões da apelante, factos que esta sustenta que devem ser dados como não provados; factos que não têm senão uma remota instrumentalidade em relação ao que é essencial/fulcral: a real sinceridade e veracidade do mútuo e a efectiva entrega da quantia mutuada; efectivamente, quer os referidos factos sejam provados, quer sejam não provados, não traçam em nada o desfecho dos autos/recurso (tanto podem ser dados como provados e o mútuo ser real, como, inversamente, ser considerados não provados e o mútuo ser “simulado”).
[3] Assunto em que seguimos de perto o ensinamento de Antunes Varela, Manual, 1.ª ed., pág. 504 e ss.

[4] Assim como a parte em que os mutuários dizem que “dão” de hipoteca e em que a mutuante aceita a hipoteca.
[5]O documento autêntico faz prova plena em relação à materialidade das afirmações atestadas; mas não quanto à sinceridade, à veracidade ou à validade das declarações emitidas” - Antunes Varela, obra citada, pág. 506.
[6] Lembra-se, mais uma vez, que apenas fica plenamente provado que, perante o notário, os outorgantes “proferiram as palavras” que a escritura lhes atribui; não a veracidade, sinceridade e validade de tais “palavras”.
[7] Com a excepção, respeitante à prova da simulação entre os próprios simuladores (art. 394.º, n.º 2, do CC).
[8] Podendo, todavia, é uma repetição, recorrer à prova testemunhal para prova quer dos vícios da vontade (erro, dolo, coacção) quer das divergência entre a vontade e a declaração (falta da vontade, erro na declaração).

[9] Em linguagem comum, será que pode dizer-se que para a impugnante o mútuo só passa a existir no momento em que no processo for demonstrada a sinceridade/veracidade do mesmo? Se é assim – insistimos na pergunta – porque é que é necessário invocar, em relação a uma compra e venda, a uma doação a uma dação em pagamento em que não se tomou parte e cujos feitos não se quer aceitar, a simulação? Se é assim, porquê um preceito como o art. 394.º/3 do C. Civil (cuja previsão pressupõe justamente que os terceiros estão em situação de ter algo para provar)?

No caso, até houve uma hipoteca voluntária (resultante de contrato), ou seja, um negócio jurídico de oneração de bens, registada (cfr. 687.º do C. Civil) e publicitada, pelo que, seguindo a mesma lógica, será que pode dizer-se que para a impugnante a hipoteca só passa a existir no momento em que no processo for demonstrada a sinceridade/veracidade da mesma?
[10] Parecerá a mesma coisa a um leigo – ou seja, uma filigrana jurídica sem sentido – mas é processualmente bem diferente.

[11] Pode dar-se o caso do mutuante ter uma qualquer actividade ilícita e por isso subtrair ao conhecimento do sistema bancário as verbas com que gira, porém, naturalmente, isso é ainda uma maior excepcionalidade, que só invocada/comprovada pode entrar nos raciocínios lógicos da apreciação da prova.
[12] Falou-se num ou noutro, de modo avulso e ilustrativo, durante os depoimentos testemunhais.

[13] No apenso da primitiva execução, com o articulado da impugnação do crédito, a impugnante junta uma carta de Abril de 2003 dirigida aos aqui insolventes A... e B..., em que solicita a regularização da dívida à D..., de que os executados são fiadores, até ao final desse mês, sob pena de acção executiva; e o insolvente A... e o irmão tiveram contactos na D... tendo em visa a reestruturação dos seus débitos (o que aconteceu em Abril e Maio de 2004).

[14] Da declaração e cartas da CGD de fls 379 e de fls 451 e segs conclui-se que desde Abril de 2004 a sociedade F... Lda começou a ter prestações de um empréstimo celebrado com aquela entidade bancária atrasadas, os quais a partir de Dezembro de 2004 deixou de pagar.
[15] O que não se percebe completamente sendo os outros herdeiros, uma vez que a mutuante (com mais de 70 anos de idade) não tem filhos, irmãos ou sobrinhos; aliás, se essa foi/é a preocupação, tendo a mutuante, como referiu, 100 mil contos (ainda falou em contos), os quinhões dos outros dois irmãos (além do insolvente) ainda podem ser compostos sem qualquer prejuízo (mais, dos 100 mil contos, ainda sobram cerca de € 90 mil para compor o quinhão do insolvente).
[16] De modo “tocante”, o que registamos, embora tenhamos que permanecer insensíveis.

[17] Como a do tio ter uma loja, na cave da papelaria, cheia de notas.

[18] Aproveita-se para referir que os documentos que vêm depois da escritura – as três declarações escritas datadas de Abril, Maio e Junho de 2004 assinadas por A... e por C..., acusando o recebimento de cada uma das prestações a que se refere a escritura de 7 Abril de 2004 e a cópia dos três cheques no montante de 1.127,15€ cada um – não são demonstrativos do que quer que seja, ou melhor, na nossa lógica, apenas demostram que se procurou dar credibilidade ao que se tinha antes feito.

[19] A questão da força probatória duma escritura pública em relação a terceiros, pode ser comparada, “mutatis mutandis”, com a eficácia duma sentença em relação a terceiros; questão esta em que é usual distinguir os terceiros juridicamente indiferentes dos terceiros juridicamente interessados, entendendo-se que são “juridicamente indiferentes” todos os terceiros que são titulares duma situação jurídica que não pode, pela sua natureza, ser atingida pelo caso julgado, mas cuja consistência prática o caso julgado pode afectar (como é o caso do credor, em relação a uma sentença que determine o desaparecimento de um bem do património do seu devedor ou que faça diminuir a sua garantia patrimonial); hipótese em que, em relação a tais terceiros (juridicamente indiferentes), a sentença se impõe, tendo estes, para “destruir” o decidido numa tal sentença, que fazer uso do recurso extraordinário de revisão (cfr. art. 696.º/g) do NCPC).

Ou seja, levando a nossa comparação até ao fim, em caso de mútuo simulado, a solução parece que deve ser semelhante independentemente do “manto da mentira”; não deve ser uma se o “manto” for uma escritura pública e outra se o “manto” for uma sentença (é quem quer opor-se ao “manto da mentira”, seja ele qual for, que tem o ónus de demonstrar os factos constitutivos das suas arguições).

[20] Sendo três os elementos que integram o conceito civilista de simulação – a) Intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração; b) Acordo entre declarante e declaratário; c) - Intuito de enganar terceiros – não se vêm os mesmos perfeitamente alinhados na impugnação da D...; embora tal pudesse ser alvo de aperfeiçoamento e, inclusivamente, do “complemento e concretização” a que se refere o art. 5.º/2/b) do NCPC.