Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1642/10.1TBVIS-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
LISTA DE CREDORES
FALTA
IMPUGNAÇÃO
EFEITO COMINATÓRIO PLENO
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
COMINATÓRIO SEMI-PLENO
Data do Acordão: 04/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - INSTÂNCIA CENTRAL - SECÇÃO DE COMÉRCIO - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 9.º DO CÓDIGO CIVIL, ART.º 17.º E N.º 3 DO ART.º 131.º DO CIRE
Sumário: Apelando aos critérios interpretativos plasmados no n.º 3 do art.º 9.º do Código Civil, “sobretudo à unidade do sistema jurídico”, o preceituado no n.º 3 do art.º 131.º do CIRE deverá ser interpretado restritivamente, no sentido de consagrar um cominatório semi-pleno, solução harmónica com a inequívoca natureza e estrutura declarativa do processo de graduação de créditos, com importação da disciplina do processo declarativo comum (cf. art.º 17.º do CIRE).
Decisão Texto Integral:

1. Relatório

No processo especial de insolvência instaurado por B..., sendo requerida “A..., L. da”, foi a devedora declarada insolvente por sentença proferida em 21 de Junho de 2010, transitada em julgado.

Tendo sido apreendidos para a massa os bens identificados no respectivo auto, foram reclamados créditos, tendo a Sr.ª Administradora de Insolvência elaborado a lista dos créditos reconhecidos (fls. 9 a 19 deste apenso de reclamação) e não reconhecidos (fls. 3 a 8).

Incluído na lista dos créditos reconhecidos, e para o que aqui releva, foi indicado o titulado por C..., no valor de €26 797,65 (vinte e seis mil, setecentos e noventa e sete euros e sessenta e cinco cêntimos), qualificado como estando dotado de privilégio mobiliário geral e imobiliário especial, dado que o credor reclamante, trabalhador da insolvente, nela exercia funções como trolha, daí ter esclarecido a Sr.ª AI ter considerado que o privilégio incidia sobre os imóveis apreendidos que pela devedora haviam sido construídos.

A credora reclamante E... veio impugnar o crédito em causa, alegando desconhecer a factualidade alegada pelo identificado reclamante em suporte do indicado privilégio imobiliário especial, designadamente se, como refere, trabalhava como trolha por conta da insolvente e em que locais ou imóveis foram tais funções exercidas, acrescentando que, conforme consta do documento junto com a reclamação, à data da declaração de insolvência já o contrato de trabalho se encontrava extinto (cf. fls. 133).

O credor titular do crédito objecto de impugnação não respondeu.

                                                                                *

Foi proferido despacho saneador, prosseguindo os autos com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória, peças que se fixaram após decisão das reclamações de que foram objecto (cf. fls. 1661 e ss.).

Procedeu-se a julgamento com observância do legal formalismo, vindo a final a ser proferida douta sentença por cujos termos, e para o que releva no âmbito do presente recurso, foi julgado reconhecido o crédito reclamado pelo trabalhador C... no valor de €26.797,65 e, bem assim, que o mesmo se encontrava dotado de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário especial sobre os prédios descritos nas verbas 1, 2, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14 e 15 do auto de apreensão.

Em conformidade, foi o mesmo crédito graduado antes do crédito titulado pela credora E... garantido por hipoteca incidente sobre os imóveis descritos na Conservatória do Registo Predial de Viseu sob os n.ºs 5477-B da freguesia de (...) , verba n.º 1 do auto de apreensão; 5477-A da freguesia de (...) , verba n.º 2; 1501-M da freguesia de (...), verba n.º 8; 1501-E da freguesia de (...), verba n.º 9; 1501-C da freguesia de (...), verba n.º 10; 1459 da freguesia de (...), verba n.º 12.

Inconformada, apelou a credora reclamante E... e, tendo apresentado as razões da sua discordância com o decidido, rematou as alegações apresentadas com as seguintes necessárias conclusões:

“1.ª A aqui Recorrente reclamou, oportunamente, créditos no âmbito dos presentes autos de insolvência, invocando garantia hipotecária, entre outros, sobre os seguintes imóveis apreendidos:

i. Fracção designada pela letra B, integrante do prédio urbano descrito na CRP de Viseu sob o nº 5477, freguesia de (...) , identificada sob a verba nº 1 do auto de apreensão;

ii. Fracção designada pela letra A, integrante do prédio urbano descrito na CRP de Viseu sob o nº 5477, freguesia de (...) , identificada sob a verba nº 2 do auto de apreensão;

iii. Fracção designada pela letra M, integrante do prédio urbano descrito na CRP de Viseu sob o nº 1501, freguesia de (...), identificada sob a verba nº 8 do auto de apreensão;

iv. Fracção designada pela letra E, integrante do prédio urbano descrito na CRP de Viseu sob o n.º 1501, freguesia de (...), identificada sob a verba n.º 9 do auto de apreensão;

v. Fracção designada pela letra C, integrante do prédio urbano descrito na CRP de Viseu sob o nº 1501, freguesia de (...), identificada sob a verba nº 10 do auto de apreensão;

vi. Prédio urbano descrito na CRP de Viseu sob o nº 1459, freguesia de (...), identificada sob a verba n.º 12 do auto de apreensão;

2.ª- O crédito reclamado pela aqui Recorrente foi reconhecido, quer na lista elaborada ao abrigo do art.º 129º CIRE, quer na presente sentença sob recurso, como garantido por hipoteca sobre os mencionados imóveis;

3.ª- Também na mesma lista elaborada pela Sr.ª Administradora da Insolvência ao abrigo do art.º 129º do CIRE, foi reconhecido, entre outros, a C... , um crédito de natureza laboral no montante de 26.797,65€, ao qual foi reconhecido privilégio imobiliário especial sobre os imóveis apreendidos nestes autos;

4.ª- Tal privilégio – imobiliário especial - foi tempestivamente impugnado nos termos do art.º 130º CIRE pela aqui Recorrente em relação os supra referidos imóveis apreendidos melhor identificados na alínea AA);

5.ª- À referida impugnação da aqui Recorrente não houve qualquer resposta, nos termos do art.º 131º CIRE;

6.ª- Apesar do exposto, a douta sentença reconheceu tal crédito, e graduou-o antes do crédito hipotecário da aqui Recorrente, e em relação aos imóveis supra identificados, (…)

7.ª- Nos termos do art.º 130.º do CIRE a lista de créditos elaborada nos termos do art.º 129.º do mesmo diploma, pode ser impugnada, entre outros, quanto à “qualificação dos créditos reconhecidos” (sic);

8.ª- A aqui Recorrente impugnou, tempestivamente e ao abrigo do art.º 130.º do CIRE, a mencionada lista de créditos reconhecidos, entre outros, quanto ao privilégio (imobiliário especial) atribuído ao crédito reconhecido ao mencionado C... ;

9.ª- Por sua vez, dispõe o art.º 131.º do CIRE que “Pode responder a qualquer das impugnações o administrador da insolvência e qualquer interessado que assuma posição contrária, incluindo o devedor” e que a falta de resposta à impugnação tem como consequência a “impugnação ser julgada procedente” (sic, negrito nosso);

10.ª- Efectivamente, a resposta à impugnação é um ónus que recai sobre o interessado (neste caso sobre o credor cujo privilégio creditório foi impugnado) em ver, neste caso, a natureza do seu crédito reconhecida nos termos reclamados e reconhecidos na lista elaborada ao abrigo do art.º 129.º CIRE, ónus esse que se não for tempestivamente cumprido, tem como legal consequência o não reconhecimento do mencionado privilégio.

11.ª- À mencionada impugnação da natureza (privilégio imobiliário especial) atribuída ao mencionado crédito do citado C... , não houve qualquer contraditório, nos termos do art.º 131.º do CIRE.

12.ª- Consequentemente, não deveria ter sido reconhecido privilégio imobiliário especial ao crédito reclamado por C... e no que tange aos imóveis que garantem (com hipoteca) o crédito da aqui Recorrente, nem tal crédito ter sido graduado antes do crédito hipotecário da aqui Recorrente;

13.ª- Assim, mal esteve a douta sentença sob recurso ao reconhecer que “embora a E... tenha impugnado o privilégio imobiliário, a que nenhum interessado respondeu” não aplicou a sanção processual prevista no n.º 3 in fine do art.º 131.º do CIRE, qual seja a de a impugnação da aqui Recorrente (impugnação da natureza privilegiada reconhecida ao aludido crédito) ser julgada procedente;

14.ª- Termos em que se impugna, no presente recurso, a parte da douta sentença de verificação e graduação de créditos, na parte em que reconhece o privilégio imobiliário especial do crédito de C... e o gradua, antes do crédito hipotecário da aqui Recorrente, sobre os imóveis supra identificados na alínea AA);

15.ª- Requer-se que, em relação à aqui Recorrente e ao seu crédito reclamado e reconhecido como hipotecário, no que tange aos imóveis supra identificados na alínea AA), não seja reconhecido o privilégio imobiliário especial, reclamado e reconhecido ao crédito de C... , com as legais consequências, quais sejam, tal crédito de natureza laboral vir a ser graduado após o crédito hipotecário da aqui Recorrente, para pagamento pelo produto da venda dos citados imóveis”.

Com os aludidos fundamentos e indicando como violadas as normas dos art.ºs 130.º e 131.º, ambos do CIRE, e art.º 686.º Código Civil, requer a revogação da sentença apelada na parte impugnada e sua substituição por decisão que gradue a totalidade do crédito reclamado (e reconhecido) por C... após o crédito hipotecário da aqui Recorrente, para pagamento pelo produto da venda dos bens imóveis melhor supra identificados.

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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso -cf. art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, ambos do CPC- a única questão submetida à apreciação deste Tribunal consiste em indagar se o nº 3 do art.º 131.º do CIRE consagra um cominatório pleno, tendo o Mm.º juiz incorrido em erro de julgamento por errónea interpretação do ali preceituado quando considerou que o crédito reclamado pelo trabalhador C... se encontrava provido de privilégio imobiliário especial.

    *

A matéria de facto dada como assente na sentença sob recurso não foi impugnada. Todavia, constata-se ser a mesma completamente omissa quanto ao reclamante C... , cujo crédito, no que respeita à sua qualificação, é objecto do presente recurso.

Dispõe o art.º 607.º do CPC, no seu n.º 4, aqui aplicável ex vi do disposto no art.º 17.º do CIRE, que na sentença o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documento ou por confissão reduzida a escrito, imposição da lei que vale ainda para os acórdãos (cf. n.º 2 do art.º 663.º do mesmo diploma legal).

No caso em apreço, conforme se alcança dos termos da impugnação deduzida pela E... , não pôs a mesma em causa que o reclamante C... fosse credor da insolvente, não questionando tão pouco a natureza do seu crédito, tendo-se limitado a impugnar a factualidade alegada tendo em vista a sua qualificação. E por assim ser, deverão tais factos -existência do crédito, sua natureza e montante- sobre os quais existiu acordo, ser aqui considerados, pelo que serão aditados ao elenco dos factos constantes da sentença apelada, como permite o preceito que se deixou citado.

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II Fundamentação

De facto

São os seguintes os factos a atender (agora lógica e cronologicamente ordenados)

1. A insolvente “ A... , L. da”, pessoa colectiva n.º (...) , tem sede no (...) , Viseu, e como objecto social a construção civil e obras públicas, compra e venda e administração de imóveis, urbanizações e construção de prédios para venda.

2. São sócios e gerentes da insolvente, desde a sua constituição, L... e M... .

3. A sua insolvência foi requerida por B... em 25 de Maio de 2010, declarada por sentença de 21 de Junho de 2010, transitada em julgado no dia 21 de Julho de 2010.

4. No presente processo de insolvência de “ A... , L. da” foram apreendidos 15 imóveis, que constituem as verbas n.º 1 a 15 de fls. 4 a 8 do auto de apreensão (apenso B), dentre os quais a fração designada pela letra B, integrante do prédio urbano descrito na CRP de Viseu sob o nº 5477, freguesia de (...) , identificada sob a verba nº 1 do auto de apreensão; a fração designada pela letra A, integrante do prédio urbano descrito na CRP de Viseu sob o nº 5477, freguesia de (...) , identificada sob a verba nº 2 do auto de apreensão; a fração designada pela letra M, integrante do prédio urbano descrito na CRP de Viseu sob o nº 1501, freguesia de (...), identificada sob a verba n.º 8 do auto de apreensão; a fração designada pela letra E, integrante do prédio urbano descrito na CRP de Viseu sob o nº 1501, freguesia de (...), identificada sob a verba nº 9 do auto de apreensão; a fração designada pela letra C, integrante do prédio urbano descrito na CRP de Viseu sob o nº 1501, freguesia de (...), identificada sob a verba nº 10 do auto de apreensão; o prédio urbano descrito na CRP de Viseu sob o nº 1459, freguesia de (...), identificada sob a verba nº 12 do auto de apreensão, aqui se dando por reproduzido, quanto ao mais, o respectivo teor.

5. Por escritura pública lavrada em 10/02/2010, a fls. 59 a 61, livro 112-A do Cartório da Notária F... , ao qual os reclamantes G... e H... e a insolvente atribuíram eficácia real e conferiram o direito de retenção, onde esta prometeu vender aos reclamantes e estes comprarem uma fracção autónoma, em construção, designada pela letra A, correspondente ao rés-do-chão esquerdo e primeiro andar, destinada a habitação, de tipologia T quatro, que faz parte integrante do prédio urbano em propriedade horizontal sito ao (...) , freguesia de (...) , concelho de Viseu, inscrito na matriz sob o artigo 3881, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Viseu sob o número 5.662, doc. 1 junto com a reclamação (fls. 104 a 109 do apenso V).

6. Por aquele contrato-promessa com eficácia real, a insolvente prometeu vender aos promitentes-compradores, e estes comprarem, o prédio já identificado, livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades, pelo preço de 200.000,00€, doc. 1 junto com a reclamação (fls. 104 a 109 do apenso V).

7. No momento da outorga da escritura do contrato-promessa, os reclamantes já tinham pago à insolvente o montante de 45.000,00 €, doc.1 junto com a reclamação (fls. 104 a 109 do apenso V).

8. A restante quantia do preço seria paga no acto da outorga do contrato definitivo de compra e venda, doc.1 junto com a reclamação (fls. 104 a 109 do apenso V).

9. No referido contrato ficou, ainda, estabelecido que o contrato definitivo de compra deveria ser celebrado até 15 de Março de 2010, para o que a promitente vendedora, ora insolvente, ficou obrigada a obter a necessária licença de utilização e assegurar o cancelamento de hipoteca e arresto que incidem sobre o prédio prometido vender, doc. 1 junto com a reclamação (fls. 104 a 109 do apenso V).

10. Em aditamento a este contrato promessa o prazo para realização do contrato definitivo foi alterado para 31 de Maio de 2010 por documento particular, doc. 3 junto com a reclamação, cujo teor, por brevidade de exposição se dá aqui por reproduzido (fls. 117 e 118 do apenso V).

11. Desde o dia 10 de Fevereiro de 2010 que a insolvente entregou aos promitentes-compradores G... e esposa H... as chaves do prédio prometido vender.

12. Desde data incerta do mês de Maio de 2010, altura em que os reclamantes G... e esposa H... concluíram grande parte dos trabalhos de construção do prédio prometido vender e o mobilaram, que nele têm instalada a sua habitação e dois filhos nascidos em Janeiro de 2010.

13. Sendo neste prédio que comem, que dormem, que recebem os seus amigos, que criam os seus filhos e onde guardam os seus haveres.

14. É neste prédio que os requerentes e seus filhos têm o seu domicílio fiscal e na segurança social doc. de fls. 372 a 379, desde pelo menos 01 de Outubro de 2010.

15. Em 9 de Julho de 2010 foi emitido pela Câmara Municipal de Viseu o alvará de utilização com o n.º (...) /2010, doc. 4 junto com a reclamação (fls. 119 e 120 do apenso V).

16. Até à presente data (6 de Outubro de 2010) a insolvente não celebrou o contrato definitivo de compra e venda relativo à promessa identificada na al. E).

17. Por carta datada de 7 de Julho de 2010, os reclamantes notificaram e interpelaram a Ex. Ma Senhora Administradora da insolvente para a celebração do contrato definitivo de compra e venda do prédio, livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades, doc. 5 junto com a reclamação (fls. 121 a 124 do apenso V).

18. A Ex.mª Senhora Administradora não celebrou a escritura pública de compra e venda.

19. A título de despesas judiciais e honorários de advogado, os reclamantes G... e H... gastaram a quantia de 5.000,00 €.

20. O crédito de G... e esposa sobre a massa insolvente, emergente do contrato promessa referido no facto 5 é de € 330.140,00, nada mais tendo a haver daquela massa.

21. A insolvente é proprietária do prédio urbano composto por um lote de terreno para construção, denominado lote 52, sito na (...) , freguesia de (...), concelho de Viseu, inscrito na matriz sob o artigo 1772 e descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Viseu sob o n.º 1500, da mesma freguesia, onde se encontra registada a aquisição a seu favor pela apresentação 16, de 28 de Maio de 2008 (doc. n.º 1 anexo à Reclamação de Crédito, constante de fls. 398 a 400 destes autos; constitui a verba n.º 11 do auto de apreensão, fls. 7 do apenso B).

22. Em 16 de Abril de 2009, foi outorgado um contrato promessa de compra e venda mediante documento particular, nos termos do qual a insolvente, “ A... , L. da”, prometeu vender a I... e J... , as seguintes fracções autónomas integradas no edifício que a mesma tinha em construção no referido lote 52:

- Fracção autónoma, designada pela letra “D”, correspondente ao primeiro andar, esquerdo, frente, com tipologia T-dois, destinado a habitação, com um espaço de garagem na sub-cave, designado por "D-um" no valor de 120.000,00 Euros (cento e vinte mil euros);

- Fracção autónoma, designada pela letra "G" correspondente ao segundo andar, esquerdo, frente, com tipologia T-dois, destinado a habitação, com um espaço de garagem na sub-cave, designado por "G-um", no valor de 120.000,00 Euros (cento e vinte mil euros) (cf. contrato-promessa anexo à Reclamação como doc. n.º 2, constante de fls. 403 a 405 destes autos, cujo teor, por brevidade de exposição, se dá aqui por reproduzido).

23. A conclusão da construção do edifício do referido lote 52 estava prevista até 14 de Julho de 2010), pelo que quer os reclamantes I... e J... , quer a sociedade “R... , L. da” constataram que os trabalhos estavam a decorrer com muita lentidão, acabando por ser suspensos.

24. Em 30 de Julho de 2009, a sociedade “ R... , L. da” interpelou a “ A... , L. da” sobre as razões da paralisação dos trabalhos e das medidas previstas para retornar a sua normal execução, de modo a poderem cumprir-se os prazos previstos no atrás referido contrato de permuta (cf. carta anexa como doc. 3 à Reclamação de Crédito, constante de fls. 406/407 destes autos, cujo teor, por brevidade de exposição, se dá aqui por reproduzido).

25. Por carta de 18 de Setembro de 2009, a “ A... , L. da” não só confirmou à “ R... , L. da” a suspensão e paralisação dos trabalhos que atribuiu à crise do mercado imobiliário, como a informou de que não podia indicar qualquer prazo para o reinicio dos trabalhos (cf. carta anexa como doc. 4 da Reclamação de Créditos, constante de fls. 408 destes autos, cujo teor, por brevidade de exposição, se dá aqui por reproduzido).

26. Tendo em conta as circunstâncias refendas no facto 20, em sua consequência, no dia 2 de Dezembro de 2009, os representantes da “ A... , L. da” decidiram proceder à entrega do referido lote 52, com todas as construções nele existentes, aos reclamantes I... e J... , para que estes "possam concluir a empreitada ou vender, conforme entendam por mais conveniente", cf. declaração anexa à Reclamação de Créditos como doc. 5, constante de fls. 409/410 destes autos, cujo teor, por brevidade de exposição, se dá aqui por reproduzido.

27. Tendo, então, a “ A... , L. da” reafirmado a impossibilidade de cumprir o contrato promessa celebrado com os reclamantes I... e J... em 16/04/2009.

28. Com o acordo da insolvente, em 2 de Dezembro de 2009, os reclamantes I... e J... entraram na detenção material do lote 52, referido no facto 17, que ainda se mantém, com conhecimento e consentimento da insolvente, sendo que à data da entrega do prédio, o mesmo apresentava-se conforme consta da fotografia de fls. 1691, no canto superior direito.

29. No exercício dessa detenção, os reclamantes I... e J... iniciaram diligências para proceder à venda do referido lote e construções nele inseridas (estruturas, alvenarias, trabalhos de especialidade e reboco), o que não foi possível.

30. Por escritura pública lavrada em 10/02/2010, a fls. 65 e 66, livro 112-A do Cartório da Notária F... , ao qual os reclamantes S... (e esposa) e a insolvente atribuíram eficácia real e conferiram o direito de retenção, esta prometeu vender aos reclamantes e estes comprar um prédio urbano composto por parcela de terreno para construção sito ao (...) , freguesia de (...) , concelho de Viseu, inscrito na matriz sob o artigo 3693, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Viseu sob o número 5.425, doc. 1 junto com a reclamação (fls. 16 a 20 do apenso V).

31. Por escritura pública lavrada em 10/02/2010, a fls. 62 a 64, livro 112-A do Cartório da Notária F..., ao qual os reclamantes S... (e esposa) e a insolvente atribuíram eficácia real e conferiram o direito de retenção, esta prometeu vender aos reclamantes e estes comprar uma fração autónoma designada pela letra B, correspondente ao rés-do-chão direito e primeiro andar, destinada a habitação, de tipologia T quatro, que faz parte integrante do prédio urbano em propriedade horizontal sito ao (...) , freguesia de (...) , concelho de Viseu, inscrito na matriz sob o artigo 3881, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Viseu sob o número 5.662, doc. 4 junto com a reclamação (fls. 25 a 30 do apenso V).

32. Desde 10 de Fevereiro de 2010 que os reclamantes S... e esposa cultivam uma vinha e árvores de fruto que existem no prédio referido no facto 30.

33. Para tanto, lavram, fresam e adubam o terreno, realizam as podas, retiram as vides, fazem tratamentos às árvores e videiras, colhem as uvas e os frutos das árvores.

34. E com o conhecimento e consentimento da insolvente, os reclamantes S... e esposa têm realizado no prédio referido no facto 30. podas de árvores e videiras, limpeza de um poço, instalação de rega e vindimas.

35. Em 10 de Fevereiro de 2010 a insolvente fez a entrega do imóvel mencionado no facto 31. aos reclamantes S... e esposa, o que concretizou com a entrega das chaves.

36. Desde 10 de Fevereiro de 2010 os reclamantes S... e esposa usam o prédio mencionado em 30.

37. Sendo neste prédio que guardam materiais de construção, ferramentas, produtos agrícolas, viaturas, móveis e onde continuam a realizar trabalhos de construção para conclusão da obra.

38. O crédito de S... e esposa sobre a massa insolvente, emergente dos contratos promessa referidos nos factos 30. e 31. é de € 470.000,00, nada mais tendo a haver daquela massa.

39. No exercício da sua actividade comercial de construção civil, a insolvente celebrou com T... e marido U... um contrato relativo a uma moradia sita no (...) , Viseu (…)”.

40. A insolvente não concretizou o negócio por não ter chegado a construir o referido prédio.

41. Em 8 de Agosto de 2007, T... e marido U... entregaram à insolvente a quantia de 300.000,00€.

42. Sendo que 135.000,00€ são relativos a 3.5 lotes no denominado loteamento “ (...) ” e o restante é relativo a empréstimos concedidos por T... e marido U... à insolvente.

43. A insolvente remeteu a T... e marido U... , no dia 22 de Fevereiro de 2010, uma carta registada, com uma declaração anexa intitulada “DECLARAÇÃO DE CONFISSÃO DE DÍVIDA”, onde se confessa devedora a T... e marido U... da quantia de “300.000,00€, sendo que 135.000,00€ é relativo a 3.5 lotes no denominado loteamento “ (...) ” e o restante é relativo a empréstimos e outros negócios (…)”.

44. Ao documento referido em 37. a insolvente atribuiu força executiva.

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45. K... foi trabalhador da insolvente desde 1 de Novembro de 2007 até 1 de Julho de 2009.

46. A insolvente admitiu o reclamante K... para trabalhar como ajudante de carpinteiro, cujas funções inerentes desempenhou em várias obras que aquela tinha em carteira e que consistiam em construir, montar e reparar estruturas de madeira.

47. O reclamante K... era destacado pelos encarregados das obras para prestar o seu serviço nas obras que se encontravam em execução, e que eram várias, fazendo-o de forma alternada em cada uma delas.

48. Durante o decurso do seu contrato de trabalho o reclamante K... prestou o seu serviço na (...) , ajudando a construir os imóveis identificados nas verbas n.º 8, 9 e 10 do auto de apreensão, no (...) , em (...) , ajudando a construir os imóveis identificados nas verbas n.º 14 e 15, em (...) , ajudando a construir os imóveis identificados nas verbas n.º 1 e 2.

49. N... foi trabalhador da insolvente desde 1 de Abril de 2002 até 1 de Julho de 2009.

50. A insolvente admitiu o reclamante N... para trabalhar como encarregado de obras cujas funções inerentes desempenhou em todas as obras que aquela tinha em carteira.

51. O reclamante N... Credor prestou o seu serviço nas obras que se encontravam em execução, e que eram várias, fazendo-o de forma alternada em cada uma delas.

52. Durante o decurso do seu contrato de trabalho o reclamante N... prestou o seu serviço na (...) , ajudando a construir os imóveis identificados nas verbas n.º 8, 9, 10 e 11 do auto de apreensão, no (...) , em (...) , ajudando a construir os imóveis identificados nas verbas n.º 14 e 15, em (...) , ajudando a construir os imóveis identificados nas verbas n.º 1 e 2.

53. V... foi trabalhador da insolvente desde 1 de Janeiro de 2008 até Abril de 2010.

54. A insolvente admitiu o reclamante V... para trabalhar como engenheiro civil, cujas funções inerentes desempenhou em várias obras que aquela tinha em carteira.

55. O... foi trabalhador da insolvente desde 1 de Fevereiro de 2006 até 18 de Março de 2009.

56. A insolvente admitiu o reclamante O... para trabalhar no escritório da empresa.

57. Q... foi trabalhador da insolvente desde 1 de Novembro de 2006 até 1 de Julho de 2009.

58. A insolvente admitiu o reclamante Q... para trabalhar como trolha de 1.ª, cujas funções inerentes desempenhou em todas as obras que aquela tinha em carteira e que consistiam em executar alvenarias de tijolos ou blocos, assentamento de manilhas, tubos, mosaicos, azulejos, rebocos, estuques e outros trabalhados similares e que necessários fossem para a construção de imóveis.

59. O reclamante Q... era destacado pelos encarregados das obras para prestar o seu serviço em diversas obras que a insolvente tinha em execução, fazendo-o de forma alternada em cada uma delas.

60. Durante o decurso do seu contrato de trabalho o reclamante Q... prestou o seu serviço na (...) , ajudando a construir os imóveis identificados nas verbas n.º 8, 9, 10 e 11 do auto de apreensão, no (...) , em (...) , ajudando a construir os imóveis identificados nas verbas n.º 14 e 15, em (...) , ajudando a construir os imóveis identificados nas verbas n.º 1 e 2.

61.P... foi trabalhador da insolvente desde 1 de Abril de 2006 até 1 de Julho de 2009.

62. O reclamante P... desempenhou as funções inerentes à categoria profissional de carpinteiro por conta da insolvente.

63. O trabalhador era, juntamente com o K... , os responsáveis pela aplicação de artigos de carpintaria e madeiras em todas as obras executadas pela insolvente.

64. Desenvolveu as funções de carpinteiro em diversas obras a decorrer em imóveis propriedade da insolvente e localizados nas localidades de (...) , na freguesia de (...) , bem como nas freguesias de (...) ( (...) ) e (...) ( (...) ) e que se encontram melhor descritos e localizados no auto de apreensão, verbas 1, 2, 8, 9, 10, 11, 14 e 15.

65. B... foi trabalhador da insolvente até 3 de Julho de 2009.

66. O reclamante B... desempenhou as funções de trolha por conta da insolvente.

61. Exerceu as suas funções em diversas obras da insolvente, levadas a cabo por esta, como as situadas em (...) , na (...) , em (...) , em (...) , (...) e na “ (...) ”, designadamente nas de construção dos prédios relacionados no auto de apreensão sob as verbas 1, 2, 8, 9, 10, 11, 14 e 15.

62. C... foi trabalhador da insolvente, sendo titular de um crédito sobre esta com origem na aludida relação laboral, no valor de €26.797,65 (facto aditado ao abrigo do disposto no art.º 607.º, n.º 4 do CPC).

63. Os bens imóveis apreendidos sob as verbas 1, 2, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14 e 15 achavam-se afectos à actividade da insolvente, a construção civil e obras públicas, compra e venda e administração de imóveis, urbanizações e construção de prédios para venda, fazendo parte da unidade empresarial a que aqueles trabalhadores pertenciam.

*

De Direito

Reconhecida a existência e natureza do crédito titulado pelo reclamante C... no indicado valor de € 26 797,75, decidiu ainda o Mm.º juiz “a quo” no sentido do mesmo estar provido de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário especial sobre os prédios descritos nas verbas 1, 2, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14 e 15 do auto de apreensão. E justificou deste modo o seu entendimento “(…) embora a E... tenha impugnado o privilégio imobiliário, a que nenhum interessado respondeu, o tribunal deve servir-se de todos os elementos constantes dos autos, mormente em sede de qualificação dos créditos; cremos que isso mesmo deriva do disposto no art. 130.º, n.º 3 do CIRE, em que é cometida ao juiz a função de correcção do erro manifesto “… salvo o caso de erro manifesto …”, além de que o reconhecimento deste privilégio constitui mera aplicação do direito aos factos apurados, temática em que o tribunal goza de inteira liberdade – art. 5.º, n.º 3 do NCPC, aplicável por força da remissão do art. 17.º do CIRE; finalmente, a justiça material deve prevalecer sobre a justiça formal; adoptando procedimentos semelhantes, veja-se o Ac. da RC de 16.10.2007, relatado pelo Desembargador Hélder Almeida, processo n.º 3213/04.2TJCBR-AL.C1, www.dgsi.pt).

Ao entendimento expresso opõe a credora impugnante, como vimos, que o n.º 3 do art.º 131.º do CIRE consagra o cominatório pleno pelo que, atenta a ausência de qualquer resposta, tal como reconhecido na sentença recorrida, deveria a impugnação ter sido julgada procedente, com a consequente desqualificação do crédito impugnado.

Vejamos da razão que lhe assiste.

A questão suscitada pela apelante não é nova e sobre ela já teve este colectivo oportunidade de se pronunciar[1].

Tal como então se fez consignar, não se discute que as soluções adoptadas pelo CIRE[2] obedecem, em primeira linha, a preocupações de celeridade, orientando-se inequivocamente no sentido da desjudicialização, subtraindo ao juiz matérias cuja apreciação tradicionalmente lhe era cometida e ensaiando consagrações do princípio do cominatório, neste âmbito se inscrevendo inequivocamente as soluções preconizadas pelo n.º 3 do art.º 130.º e n.º 3 do art.º 131.º.

A fase da verificação dos créditos inicia-se, conforme resulta do disposto no art.º 128.º, com a reclamação, dispondo a propósito o art.º 128.º que, declarada a insolvência, devem os credores reclamar a verificação dos seus créditos. Ao administrador de insolvência cabe elaborar e apresentar uma lista dos créditos por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos, consoante prevê o art.º 129.º, listas que podem ser alvo de impugnações nos termos prevenidos pelo art.º 130.º.

Dispõe, por seu turno, o n.º 3 deste último preceito que “Se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação de créditos em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista”.

Não obstante a redacção dada ao normativo em causa, vem o mesmo suscitando larga controvérsia doutrinária e jurisprudencial, inexistindo consenso quanto à amplitude dos poderes que, nesta sede, podem ser exercidos pelo juiz. Assim, enquanto uns defendem uma interpretação literal do preceito, restringindo a intervenção oficiosa do juiz aos casos em que a lista apresentada pelo administrador revele um erro -nessa medida manifesto ou aparente- de facto ou de direito na qualificação e/ou quantificação dos créditos[3], não lhe cabendo pois realizar quaisquer indagações oficiosas tendentes a confirmar a natureza, montante e qualidade dos créditos relacionados e não impugnados, outros entendem que “o juiz não deve abrir mão dos poderes inquisitórios, enquanto garante da legalidade, devendo acautelar uma correcta verificação e graduação dos créditos, com respeito pelos pressupostos formais e substanciais”. Tal é a solução que vem obtendo acolhimento por banda do nosso STJ[4], devendo “interpretar-se em termos amplos o conceito de erro manifesto, não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar, para o que pode [deve, dizemos nós][5], solicitar ao administrador os elementos de que necessite[6], fazendo-se ainda notar que o erro de que aqui se fala pode respeitar “à indevida inclusão do crédito na lista, ao seu montante ou às suas qualidades[7].

E se tal entendimento se vem afirmando no que respeita à interpretação mais correcta da solução consagrada no n.º 3 do art.º 130.º, de contornos semelhantes à adoptada no n.º 3 do art.º 131,º também aqui será de refutar ter o legislador acolhido e feito consagrar o cominatório pleno.

Sob a epígrafe “Resposta à impugnação”, dispõe-se no art.º 131.º que pode responder a qualquer das impugnações o administrador da insolvência e qualquer interessado que assuma posição contrária, incluindo o devedor (vide o n.º 1). Todavia, se a impugnação se fundar na indevida inclusão de certo crédito na lista de credores reconhecidos, na omissão da indicação das condições a que se encontra sujeito, ou no facto de lhe ter sido atribuído um montante excessivo ou a atribuição de uma qualificação de grau superior à correcta, só o próprio titular do crédito impugnado poderá responder, no prazo de 10 dias, para o que só ele será notificado (art.º 131.º n.ºs 2 e 3 e 134.º n.º 4).

Do regime legal assim desenhado resulta que, tendo a impugnação por fundamento alguma das situações previstas no n.º 2, só o titular desse crédito pode responder à impugnação “o que, realmente, se compreende, pois nessas hipóteses só o titular tem verdadeiro interesse em contradizer”[8]. Caso o titular não responda, expressa o n.º 3 do preceito que “a impugnação é julgada procedente”.

Face ao assim preceituado, há efectivamente quem perfilhe o entendimento de que o legislador optou pela consagração de um cominatório pleno, operando quanto à existência, montante e natureza dos créditos e, bem assim, quanto às garantias de que gozem. Prevaleceria aqui o princípio da auto-responsabilização dos interessados que, não cumprindo o ónus que a lei sobre eles faz impender, suportariam as consequências desvantajosas[9].

Em reforço do entendimento exposto faz-se apelo ao Preâmbulo do Dec. Lei 200/2004 de 18/08, que modificou a redacção original do preceito, no qual o legislador fez consignar expressamente “Quanto às reclamações de créditos, esclarece-se que todas as impugnações das reclamações de créditos serão imediatamente consideradas procedentes quando às mesmas não seja oposta qualquer resposta, assim obviando a eventuais dúvidas que a anterior redacção pudesse suscitar”.

A enunciada interpretação, assente, para além do mais, numa lógica de desconsideração das reclamações, em que a impugnação seria a peça introdutória[10], desencadeando a falta de resposta, sem mais, um julgamento de procedência, não a podemos secundar, pelas razões que se passam a expor.

Antes de mais, basta atentar nos termos da impugnação deduzida nos presentes autos -na qual a ora apelante se limitou a impugnar, por desconhecidos, os factos invocados pelo credor reclamante que suportam os privilégios reivindicados- para concluir que a reclamação, contrariamente ao que a solução legal, no entendimento que se repudia, pressupõe, é uma peça essencial, não podendo ser desconsiderada. Deste modo, pergunta-se, como pode associar-se o efeito cominatório pleno à ausência de resposta a uma impugnação quando o teor desta se encontra antecipadamente contrariado pelos termos da própria reclamação? Como impor ao credor reclamante, para mais numa lógica de celeridade, que venha reiterar, em resposta à impugnação, aquilo que já antecipadamente invocou em sede de reclamação, assim consagrando como necessária a prática de um acto que só podemos qualificar de inútil?

Por outro lado, a entender-se que a ausência de resposta à impugnação, em quaisquer circunstâncias, determinaria sempre a procedência pura e simples da impugnação, estaríamos perante solução cuja constitucionalidade, em nosso entender, seria mais do que duvidosa. Com efeito, ainda a aceitar-se a vinculação judicial à matéria da impugnação que não é respondida no que respeita à existência, origem e montante do crédito, já no que concerne ao reconhecimento das garantias e privilégios “ad substantiam” não pode recusar-se pertencerem inequivocamente ao domínio da actividade jurisdicional. Não é assim de todo consentâneo com a evolução legislativa que aboliu, também por razões de ordem constitucional -tutela efectiva do direito de defesa-, o efeito cominatório pleno do nosso direito processual civil, a admissão desse efeito em matéria atinente aos direitos dos credores, cuja protecção e satisfação, afinal, são o desígnio primeiro do procedimento falimentar (cf. art.º 1.º), não procedendo a invocação de razões de celeridade que se lhe sobreponham[11].

Atento o que vem de se expor, apelando aos critérios interpretativos plasmados no n.º 3 do art.º 9.º, “sobretudo à unidade do sistema jurídico”, defendemos que a referida disposição legal deverá ser interpretada restritivamente, no sentido de consagrar um cominatório semi-pleno, solução harmónica com a inequívoca natureza e estrutura declarativa do processo de graduação de créditos, com importação da disciplina do processo declarativo comum (cf. art.º 17.º do CIRE).

No caso em apreço, e como decorre do relatado em I., na reclamação apresentada o credor reclamante aqui em causa alegou os factos que, em seu entender, sustentavam os pretendidos privilégios, os quais foram igualmente invocados pela Sr.ª AI na lista dos créditos reconhecidos que fez apresentar em juízo. Deste modo, a despeito da impugnação deduzida pela E... -impugnação, repete-se, dos factos alegados pelo credor na reclamação apresentada- não ter merecido resposta, a verdade é que tais factos não poderiam ser dados como assentes, já que se encontravam subtraídos ao efeito cominatório por força do preceituado nos art.ºs 490.º, n.º 2 e 505.º do CPC em vigor à data da apresentação da reclamação e da impugnação (574.º, n.º 2 e 587.º do NCPC). Daí que tal factualidade, que se mostrava controvertida, devesse ter sido incluída na base instrutória, à semelhança do que ocorreu com aquela que foi alegada pelos restantes trabalhadores. Não o tendo sido, poderíamos estar perante eventual insuficiência da matéria de facto para a decisão a proferir, a determinar a anulação da decisão nos termos da n.º 2 do art.º 662.º do CPC e remessa dos autos à 1.ª instância para ampliação.

Sucede, porém, que atendendo à interpretação feita na sentença apelada do teor do art.º 333.º do CT, que aqui se sanciona e a recorrente, de resto, não questiona, não é relevante apurar onde é que o trabalhador prestou trabalho, uma vez que se encontra adquirido nos autos que “os bens imóveis apreendidos sob as verbas 1, 2, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14 e 15 achavam-se afectos à actividade da insolvente -a construção civil e obras públicas, compra e venda e administração de imóveis, urbanizações e construção de prédios para venda-, fazendo parte da unidade empresarial a que aqueles trabalhadores pertenciam” (facto 63).

Não se discutindo ser aplicável aos autos o aludido art.º 333.º do Código do Trabalho aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro[12], em vigor à data do trânsito em julgado da sentença que declarou a insolvência[13], dele resulta que para efeitos de atribuição do privilégio creditório ali previsto é essencial a alegação e demonstração de que o trabalhador prestou a sua actividade no imóvel apreendido, ónus que sobre ele recai (art. 342.º, n.º 1, do CC).

No caso em apreço, não se apurou se o trabalhador C... prestou a sua actividade exactamente nos imóveis identificados em 4. No entanto, aqui se acompanhando a sentença apelada, também nós defendemos a interpretação extensiva do referido preceito, de modo a que o privilégio imobiliário nele consagrado abranja todos os imóveis do insolvente afectos à sua actividade empresarial.

Antes de mais, há que ter em mente que o legislador não define o que seja o local de trabalho. Do labor doutrinário emerge o conceito, que se tem por aceite, que se trata do centro estável ou permanente da prestação de certo trabalhador, sendo certo que a sua determinação obedece essencialmente ao intuito de se dimensionarem no espaço as obrigações, direitos e garantias que a lei, enquanto tal, lhe reconhece.

Por outro lado, o preceito em análise, regendo sobre as garantias dos créditos dos trabalhadores, veio dotá-los, para o que aqui releva, de privilégio imobiliário especial. Não obstante, e justamente, ficou excluído “o património do empregador não afecto à sua organização empresarial, notadamente os imóveis exclusivamente destinados à fruição pessoal do empregador tratando-se de pessoa singular, ou de qualquer modo integrados em estabelecimento diverso daquele em que o reclamante desempenhou o seu trabalho”, sendo este o sentido com que o ali preceituado deve valer[14]. E se tais bens ficam excluídos do âmbito da garantia, razões de justiça e igualdade entre os trabalhadores impõem que se considere abrangida “a universalidade dos bens imóveis existentes no património da falida (insolvente) e afectos à sua actividade industrial, e não apenas sobre um específico prédio onde trabalham ou trabalharam, v.g., um escritório, um armazém, um prédio destinado à produção, etc., supondo que o património da empresa é constituído por vários prédios (…)”[15].

Tal interpretação extensiva, assente nos enunciados princípios da igualdade e não discriminação injustificada dos trabalhadores, vem sendo persistentemente defendida pela nossa jurisprudência, dando resposta às situações -e em particular ao caso dos trabalhadores da construção civil, cuja actividade implica que não disponham de um local de trabalho habitual, tal como se deixou definido- em que uma interpretação meramente literal do preceito, sem atender aos critérios plasmados no n.º 1 do art.º 9.º do CC, conduziria a uma iníqua situação de desprotecção de uns trabalhadores face a outros da mesma entidade patronal[16].

Isto dito, e em conclusão, encontrando-se as fracções apreendidas afectas à organização empresarial da insolvente, satisfazendo o conceito estendido de local de trabalho, tal como se deixou definido -interpretação do art.º 333.º do CT mais consentânea com os critérios interpretativos consagrados no art.º 9.º, este do CC- face à factualidade apurada e resultante do acordo das partes, impunha-se o reconhecimento do privilégio imobiliário especial de que goza o crédito do trabalhador C... , tal qual foi decidido.

Em suma, improcedendo todos os argumentos invocados pela recorrente, é de manter a sentença apelada.

*

III. Decisão

Em face a todo o exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão apelada.

Custas a cargo da apelante E... .


Maria Domingas Simões (Relatora)
Nunes Ribeiro
Helder Almeida

        *


[1] No acórdão desta mesma Relação de Coimbra de 26/11/2013, processo n.º 2534/09.2 TBVIS-F.C1, acessível em www.dgsi.pt.
[2] Diploma ao qual pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.

[3] Em reforço desta posição a consideração de que os requerimentos de reclamação são endereçados ao administrador da insolvência (artigo 128.º, n.º 2), não tendo este de os fazer juntar aos autos respectivos (artigo 129.º n.º 1). Deste modo, o apenso não inclui as reclamações de créditos que, assim, e no desenho legal, podem nem chegar ao conhecimento do juiz, sendo certo ainda que a matéria do reconhecimento e graduação dos créditos está subtraída ao inquisitório, como se vê do preceituado no art.º 11.º CIRE.

[4] V. aresto de 25/11/2008, revista n.º 3102/08, 6.ª secção, sumários do STJ da responsabilidade dos Srs. Juízes assessores, de 15/5/2013, proferido no processo n.º 3057/11.5 TBGDM-A.P1.S1 e, mais recentemente, acórdão de 30/9/2014, processo n.º 3045/12.4 TBVLG-B.P1, assim sumariado: I A ausência de impugnação da lista definitiva de créditos não implica sem mais a produção de uma sentença homologatória «cega» por um eventual efeito cominatório pleno.

II O artigo 130º, nº3 do CIRE conjugado com os princípios processuais gerais que conferem ao juiz poderes de gestão e de direcção do processo, permite e impõem que este afira da bondade formal e substancial dos créditos constantes da lista apresentada pelo Administrador de Insolvência.
III O conceito de «erro manifesto» a que alude o mencionado normativo não se reduz apenas à categoria do mero erro formal, podendo abranger razões ligadas à substância dos créditos em apreço o que poderá ser objecto de censura por parte do Tribunal mesmo que os aludidos créditos não tenham sido objecto de qualquer impugnação, acessíveis em www.dgsi.pt.
[5] Neste sentido, o acórdão desta Relação de 25/2/2014, processo n.º 902/12.1 TBACB-B.C1, no qual a ora relatora interveio como 1.ª adjunta.
[6] Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, 2.ª edição, pág. 555.
[7] Idem.
[8] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 557.
[9] Neste sentido ../../../../../../Documents and Settings/fa00140/Os meus documentos/Jurisprud├¬ncia/C├¡vel/1┬¬ Sec/Dr┬¬ Maria Domingas Sim├Áes/Apela├º├úo 2534-09.doc - _ftnref9parece ir Maria do Rosário Epifânio, in “Manual de Direito da Insolvência”, pág. 189 e nota 533, assim tendo decidido a Relação de Évora em aresto de 3 de Maio de 2012, processo n.º 733/09.6 TBABT-R.E1, e mais recentemente, a Relação do Porto, em acórdão de 26711/2013, proferido no processo n.º 710/11.7TJPRT-C.P1, assim sumariado “I - A falta de resposta à impugnação de um credor sobre a qualificação que o seu crédito merecera na lista de créditos elaborada pelo administrador da insolvência nos termos do art. 129º, nºs 1 e 2 do CIRE tem o efeito cominatório pleno prescrito pelo nº 3 do art. 131º do mesmo diploma.”, ambos acessíveis no identificado sítio.
[10] Chamando a atenção para este aspecto e criticando a solução, cf. Mariana França Gouveia, “Verificação do Passivo”, in Themis, 2005, Revista da Faculdade de Direito da UNL, ed. especial, págs. 158-159.
[11] Aflorando apenas a questão, Mariana França Gouveia, ob. e loc. citados

[12] Que assim dispõe:

Privilégios creditórios

1 – Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios:

a) Privilégio mobiliário geral;

b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.

2 – A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:

a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes de crédito referido no n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil;

b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes de crédito referido no artigo 748.º do Código Civil e de crédito relativo a contribuição para a segurança social.
[13] Cf., a título de exemplo, os acórdãos do STJ de 22 de Outubro de 2009, proc. nº 6054/04.0TJVNF-A-S1, de 8 de Junho de 2010, proc. nº 3147/04.0TBSTS-A.P1.S1 e, mais recentemente, de 7/2/2013, proc. n.º 148/09.6 TBPST.F.L1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.

[14] Acórdão desta mesma RC de 16.10.2007-processo 3213/04.2TJCBR-AL.C1- acessível em www.dgsi.pt.
[15]Cf., para além dos arestos citados na decisão recorrida, o acórdão da RC de 27.02.2007-processo 530/04.5TBSEI-X.C1, acessível no mesmo site. Neste mesmo sentido, e por todos, aresto do STJ de 13/9/2011, revista n.º 504/08.7 TBAMR-D.G1.S1-1.ª secção, in sumários do STJ, de que se destacam os seguintes pontos do sumário respectivo “ (…) II - Num processo de insolvência, a reclamação de créditos não pode dissociar-se desse processo global de liquidação universal em que se insere, pelo que, se nele está documentada a identificação dos imóveis onde laborava a empresa de construção insolvente, constituídos por um conjunto de edifícios onde eram exercidas as actividades comerciais e industriais, e imóveis destinados à construção ou construídos para revenda, deve considerar-se processualmente adquirido esse facto e ser valorado pelo juiz na graduação de créditos. III - Os trabalhadores reclamantes gozam do privilégio relativamente a todos os imóveis integrantes do património da insolvente afectos à sua actividade empresarial, e não apenas sobre um específico prédio onde trabalham ou trabalharam (v.g., edifício destinado às instalações administrativas, edifício de armazenamento de stocks, ou o ocupado com a linha de produção), e independentemente do seu particular posto e local de trabalho ser no interior ou exterior das instalações (operário fabril, operador de bancada, informático ou porteiro). IV - Mas apenas sobre os prédios que integram a mesma actividade e não sobre outros que, porventura, a insolvente tenha afectos a diferente e diversa actividade empresarial ou para sua fruição pessoal (…).
[16] Cf., aresto desta Relação de 28 de Junho de 2011, processo n.º 494/09.9 TBNLS.C.C1, acessível em www.dgsi.pt.