Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
86/17.9YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: INVENTÁRIO
NOTÁRIO
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
PEDIDO
INDEFERIMENTO
RECURSO
TRIBUNAL COMPETENTE
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DE HIERARQUIA
Data do Acordão: 05/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA – TRIBUNAL DA RELAÇÃO, SECÇÃO CENTRAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
Legislação Nacional: ARTIGO 16.º, N.º 4, CONJUGADO COM O DISPOSTO NO ARTIGO 76.º, N.º 2, AMBOS DO RJPI.
Sumário: 1. Uma vez que a sentença homologatória da partilha é proferida pelo juiz territorialmente competente, cf. artigo 66.º, n.º 1 do RJPI, à luz das regras gerais – artigo 68.º, n.º 2, do CPC – mesmo na ausência do disposto no n.º 3 do supra citado artigo 66.º, a competência para o julgamento do recurso interposto contra a sentença homologatória da partilha sempre caberá ao Tribunal da Relação.

2. Relativamente às decisões interlocutórias cuja recorribilidade está expressamente prevista – como se trata da decisão do notário que indeferir o pedido de remessa das partes para os meios judiciais comuns, cf. artigo 16.º, n.º 4 do RJPI – dúvidas não podem existir de que a competência em razão da hierarquia para o conhecimento do recurso delas interposto cabe ao tribunal de 1.ª instância, como resulta das previsões legais que regulam as decisões interlocutórias ora em apreço, in casu, o citado artigo 16.º, n.º 4, conjugado com o disposto no artigo 76.º, n.º 2, ambos do RJPI.

Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A..., residente em (...) , França, instaurou no Cartório Notarial, a cargo do Ex.mo Notário B... , sediado na (...) , em Leiria, inventário para realização da partilha na sequência de divórcio, figurando como requerido, C... , já identificado nos autos.

No decurso dos mesmos e depois de apresentada a relação de bens, reclamou da mesma a requerente, A... , visando a exclusão da mesma da verba n.º 1, um imóvel, identificado nos autos, com o fundamento em o mesmo lhe ter sido doado pelos seus pais, tendo-se estipulado na competente escritura que “era para entrar na actual comunhão conjugal”.

Defendendo a mesma que, por virtude do disposto no artigo 1791.º do Código Civil, na sequência do divórcio, o seu ex-marido, perde o benefício que recebeu com a doação.

Na sequência do que o Ex.mo Notário, cf. despacho, aqui junto de fl.s 4 a 6, indeferiu a aludida reclamação, decidindo que o imóvel em causa, deveria continuar relacionado, em resumo, por considerar que inexiste cláusula expressa que determine que a doação deixou de ter efeitos, relativamente ao ex-cônjuge, com a dissolução do casamento.

Notificada de tal despacho, a interessada A... , cf. requerimento aqui junto a fl.s 7, dirigido ao Ex.mo Notário, veio “requerer a remessa dos autos para os meios comuns para dirimir a questão de saber se o imóvel arrolado na Relação de Bens pelo cabeça-de-casal deverá ou não permanecer arrolado, por via do facto de o mesmo ter sido doado à requerente, pelos seus pais, para entrar na comunhão conjugal, cotejando com o disposto no artigo 1791.º, n.º 1 do C. Civil.

(…)

A remessa para os meios comuns implica a suspensão dos termos do presente inventário, nos termos do disposto no artigo 16.º, n.º 1, do RJPI, o que se requer.”.

Conclusos os autos ao Ex.mo Notário, foi proferido o despacho aqui junto a fl.s 8 (ora recorrido), que tem o seguinte teor:

“Salvo melhor opinião, não nos parece que a remessa de uma questão para os meios comuns possa fazer-se depois de a mesma estar decidida.

Naturalmente que, antes da decisão, podem os interessados requerê-lo tal como pode o notário determiná-lo se a complexidade da questão o justificar.

Mas proferida a decisão já não é viável tal remessa. Se assim fosse todas as decisões do notário seriam inócuas pois a parte vencida trataria sempre de remeter a seguir o processo para os meios comuns. Não nos parece ter sido essa a ideia do legislador. O mesmo impôs ao notário a decisão das questões mais simples permitindo apenas a remessa para tribunal de questões específicas e com complexidade que o justifique.

Pelos motivos expostos indefere-se o requerimento da interessada A... .”.

Inconformada com a mesma, interpôs recurso a requerente, A... , recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito suspensivo (cf. despacho de fl.s 3), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

I - Estamos em frontal desacordo com o douto despacho recorrido, o qual indeferiu a remessa dos presentes autos para os meios comuns para apreciação da reclamação efetuada pela interessada, em 23/12/2016, contra a relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal.

II - A verba relacionada sob o n.º 1 dos imóveis, que consiste no prédio urbano, sito em (...) , União das freguesias de (...) , concelho de Leiria, composto por casa de habitação de rés-do-chão e logradouro, inscrito na matriz sob o artigo 3092.º e descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o n.º 3137, constitui bem próprio da interessada ou bem comum do dissolvido casal.

III - O referido prédio urbano foi construído sobre o prédio rústico composto de terra de semeadura com 18 oliveiras, com a área de 700 m2, sito em (...) , União das freguesias de (...) , concelho de Leiria, inscrito na matriz sob o artigo 7656.º e descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o n.º 3137, ocupando-o integralmente.

IV - O aludido prédio rústico foi doado à interessada pelos seus pais, D... e E... , por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de Leiria, de F... , de fls. 65 a fls. 66 verso, do livro 151-A, em 26 de fevereiro de 2009, “para entrar na comunhão conjugal”.

V - Estabelece o artigo 1791.º, n.º 1, do Código Civil que, por efeitos do divórcio “cada cônjuge perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior ou posterior à celebração do casamento”.

VI - Esta perda de benefícios é automática e opera pelo simples efeito do divórcio.

VII - O prédio dos autos (que incorpora, na íntegra, o prédio rústico que lhe foi doado pelos seus pais) é inequivocamente bem próprio da interessada, pelo que deverá ser excluído da relação de bens, devendo ser apenas relacionada, a título de benfeitorias, a construção da casa de habitação, levada a cabo pelo dissolvido casal, no mencionado prédio.

VIII - A referida questão, atenta a sua natureza e complexidade, não deve ser decidida no processo de inventário pelo Exmo. Notário, mas antes nos meios judiciais comuns.

IX - O entendimento do Exmo. Notário viola o principio do contraditório vertido no artigo 3.º do C.P.C. e, nomeadamente, a proibição de decisões surpresa prevista no n.º 3 de tal preceito legal.

X - A questão decidida pelo artigo 1791.º do C.C. é uma questão de especial complexidade, que se encontra completamente fora do âmbito da jurisdição do Exmo. Notário.

XI - Ao decidir pela comunicabilidade da dita verba n.º 1, o Exmo. Notário Dr. B... violou o artigo 1791.º do Código Civil, bem como os artigos 16.º, 17.º e 36.º, todos do Regime Jurídico do Processo de Inventário e o artigo 3.º, n.º 3 do C.P.C., razão pela qual, deve a dita decisão notarial ser revogada, e, em consequência, ser a decisão da referida questão remetida para os meios comuns, como foi requerido pela interessada, por serem esses os competentes para dirimir a supra-referida questão.

Nestes termos e nos melhores de direito, deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e revogado o despacho do Sr. Notário, datado de 20.02.2017 e, em consequência, ser a decisão da questão referida supra remetida para os meios comuns, por serem esses os competentes para dirimir a supra-referida questão.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação a fim de ser conhecido/decidido, o presente recurso.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a da de saber se deverá ser ordenada a remessa para os meios comuns, relativamente à verba n.º 1, da relação de bens.

A matéria de facto a ter em conta para a apreciação do recurso, é a que consta do relatório que antecede.

Como resulta do citado relatório, pretende a recorrente que, relativamente à verba n.º 1 da relação de bens apresentada no processo de inventário de que emana o presente recurso, se remetesse para os meios comuns a questão de saber se a mesma deve ou não, continuar relacionada.

Como acima já referido, a ora recorrente reclamou da relação de bens, pretendendo que a verba n.º 1, fosse excluída da relação de bens, o que o Ex.mo Notário indeferiu.

No seguimento, do que, a recorrente peticionou a remessa para os meios comuns, nos supra relatados termos, o que foi, igualmente, indeferido.

Estamos, pois, em face de uma reclamação em que se pretende a exclusão da verba n.º 1 da relação de bens por, alegadamente, se encontrar indevidamente relacionada, em consonância com o previsto no artigo 32.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 23/2013, de 05 de Março, (adiante referida como RJPI).

Estipula o artigo 36.º, n.º 1 da citada Lei que no caso de complexidade da matéria de facto ou de direito tornar inconveniente, nos termos do n.º 2 do artigo 17.º, a decisão incidental das reclamações previstas no artigo anterior, o notário abstém-se de decidir e remete os interessados para os meios judiciais comuns.

 In casu, está, precisamente, em causa, a decisão do Ex.mo Notário que indeferiu a remessa da questão da exclusão da relação de bens da verba relacionada, sob o n.º 1.

No entanto, somos de opinião, que o Tribunal da Relação não é o competente para a apreciação do presente recurso.

Efectivamente, conforme o artigo 16.º, n.º 4, do RJPI:

“Da decisão do notário que indeferir o pedido de remessa das partes para os meios judiciais comuns cabe recurso para o tribunal competente, no prazo de 15 dias a partir da notificação da decisão, o qual deve incluir a alegação do recorrente.”.

De igual modo, se prevê, expressamente, a possibilidade de interposição de recurso, do despacho sobre a forma da partilha, para “o tribunal da 1.ª instância competente” – cf. artigo 57.º, n.º 4, do RJPI.

Bem como se prevê a possibilidade de interposição de recurso da decisão homologatória da partilha, como de apelação, para o Tribunal da Relação territorialmente competente, cf. seu artigo 66.º, n.º 3.

A considerar, ainda, o disposto no artigo 76.º, n.º 2, de acordo com o qual:

“Salvo nos casos em que cabe recurso de apelação nos termos do Código de Processo Civil, as decisões interlocutórias proferidas no âmbito dos mesmos processos devem ser impugnadas no recurso que vier a ser interposto da decisão de partilha.”.

Por último, de chamar à colação o disposto no artigo 67.º do CPC, que estipula:

“Compete aos tribunais de 1.ª instância o conhecimento dos recursos das decisões dos notários, dos conservadores do registo e de outros que, nos termos da lei, para eles devam ser interpostos.”.

Parece-nos que, resulta das disposições ora transcritas que das decisões proferidas por notário, expressamente passíveis de recurso (como o é in casu, cf. artigo 16.º, n.º 4, do RJPI), cabe recurso para o Tribunal da 1.ª instância que for o territorialmente competente, a interpor no prazo e regimes ali fixados, ao passo que o recurso da sentença homologatória da partilha, porque proferido pelo Juiz desse Tribunal de 1.ª instância, é dirigido ao Tribunal da Relação territorialmente competente, como o determina o citado artigo 66.º, n.º 3, uma vez que vem interposto de decisão judicial e não do notário.

Como referem Eduardo Sousa Paiva e Helena Cabrita, in Manual do Processo de Inventário à Luz do Novo Regime, Coimbra Editora, 2013, pág. 230, “o regime de recursos previsto no RJPI e no CPC (…) apenas se aplica a decisões tomadas pelo tribunal e não pelo notário, uma vez que as decisões tomadas por este último apenas poderão ser objecto de impugnação para o Tribunal de 1.ª instância territorialmente competente nos casos especialmente previstos na lei ou nas situações que temos vindo a apontar.”.

Augusto Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, 6.ª edição, Almedina, 2015, escreve a pág.s 83 e 84 o seguinte:

“Dir-se-á, pois, que – muito mais do que um paralelismo excessivo com o Contencioso Administrativo, a despeito da natureza jurídica dos actos decisórios do Notário – deve ser aqui aplicado o regime subsidiário dos recursos civis (ex vi do cit. Art. 82.º do RJPI) vale dizer que a discordância da decisão notarial interlocutória deve manifestar-se através dum requerimento de impugnação para o Juiz dirigido ao Notário (CPCiv., art. 637.º-1).

Do exposto deve deduzir-se que, não estando previsto que a impugnação das «decisões interlocutórias» que não são autónomas suspendam o andamento do processo de inventário, também não se justifica que subam imediatamente ao Juiz do processo, pelo que, preparada a impugnação com a respectiva alegação, aquela irá aguardar o momento em que o processo seja remetido a Tribunal para a prolação da decisão homologatória da partilha.”.

Também Tomé D´Almeida Ramião, in O Novo Regime do Processo de Inventário, Quid Juris, 2014, a pág.s 194 e 195, defende que o artigo 76.º, n.º 2 do RJPI, se refere às decisões judiciais, decorrendo do artigo 644.º, n.º 2, do CPC, que o recurso de apelação tem por objecto uma decisão proferida por um tribunal de 1.ª instância, concluindo que “Não é admissível uma espécie de recurso “per saltum” para o Tribunal da Relação de uma decisão proferida pelo notário. O recurso para este tribunal superior tem necessariamente de ter por objecto uma decisão jurisdicional.”.

Assim, parece-nos, ser de concluir o seguinte:

Uma vez que a sentença homologatória da partilha é proferida pelo juiz territorialmente competente, cf. artigo 66.º, n.º 1 do RJPI, à luz das regras gerais – artigo 68.º, n.º 2, do CPC – mesmo na ausência do disposto no n.º 3 do supra citado artigo 66.º, a competência para o julgamento do recurso interposto contra a sentença homologatória da partilha sempre caberia ao Tribunal da Relação.

Relativamente às decisões interlocutórias cuja recorribilidade está expressamente prevista – como se trata in casu, cf. artigo 16.º, n.º 4 do RJPI – dúvidas não podem existir de que a competência em razão da hierarquia para o conhecimento do recurso delas interposto cabe ao tribunal de 1.ª instância, como resulta das previsões legais que regulam as decisões interlocutórias ora em apreço, in casu, citado artigo 16.º, n.º 4, conjugado com o disposto no artigo 76.º, n.º 2, ambos do RJPI.

Por tudo isto é, pois, de concluir ser este Tribunal da Relação incompetente, em razão da hierarquia, para conhecer do presente recurso, cabendo a mesma ao Tribunal da Comarca de Leiria, Juízos Locais Cíveis de Leiria.

Nestes termos se decide:      

Declarar este Tribunal da Relação incompetente, em razão da hierarquia, para conhecer do presente recurso, cabendo a mesma ao Tribunal da Comarca de Leiria, Juízos Locais Cíveis de Leiria.

Sem custas.

Coimbra, 09 de Maio de 2017.

Relator:
Arlindo Oliveira

Adjuntos:

1º -
Emidio Francisco Santos
2º -
Catarina Gonçalves