Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1066/12.6TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: USURPAÇÃO DE FUNÇÕES
INADMISSIBILIDADE
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
Data do Acordão: 04/24/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO CRIMINAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 68º Nº 1 A) E 358º CP
Sumário: 1.- No crime de usurpação de funções previsto no artigo 358.º do Código Penal, o bem jurídico protegido consiste na integridade ou intangibilidade do sistema oficial de provimento em funções públicas ou em profissões de especial interesse .

2.- Nos processos crime por usurpação de funções, não é admissível a constituição de assistente.

Decisão Texto Integral: Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

No encerramento do inquérito n.º 1066/12.6TALRA que correu termos pela 2ª Secção dos Serviços do Ministério Público de Leiria, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento nos termos do artigo 277.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

Discordando desse despacho, o denunciante A... veio requerer a sua constituição como assistente e a abertura de instrução, tendo os autos sido remetidos ao Tribunal Judicial de Leiria, onde foram distribuídos ao 1º Juízo Criminal, após o que, por despacho de 23.11.2012, o Sr. Juiz de Instrução Criminal decidiu indeferir a constituição como assistente do denunciante A....

Notificado deste despacho, o denunciante veio interpor recurso para este Tribunal da Relação, concluindo a sua motivação nos seguintes termos (transcrição):

«1.- O Recorrente constituiu-se arguido no estrito cumprimento das regras estatuídas no artigo 68° do Código de Processo Pena;

2.- O Recorrente é o titular dos interesses que a lei penal especialmente quis proteger com a incriminação deste tipo de crime;

3.- O Recorrente tem legitimidade para se constituir assistente uma vez que o crime o atinge directa e particularmente;

4.- O Recorrente tem a qualidade de Ofendido, pelo que tem legitimidade para intervir como Assistente.

NESTES TERMOS e nos melhores de Direito que V. Ex.as doutamente suprirão, deverá o Douto Despacho recorrido ser revogado e substituída por outro que admita o Recorrente a intervir como Assistente, a fim de sanar os vícios invocados e constantes da decisão de que se recorreu.

Termos em que se fará Justiça.»

                                                        *

O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência.

                                          *

Nesta instância, o Exmo. Procurador – Geral Adjunto, acompanhando a resposta apresentada pelo Ministério Público em 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso e confirmado o despacho recorrido.

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Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não houve resposta.

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Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

                                          *

II - Fundamentação

1. É o seguinte o teor do despacho recorrido na parte que ora releva (transcrição):

«Requerimento de constituição de Assistente de fls. 59:

O MP pronunciou-se a fls. 71

Cumpre apreciar e decidir

Em sede de requerimento de fls. imputa-se a prática dos seguintes factos:

Ao requerente A... foi indeferido um pedido de Apoio Judiciário pelo Centro de Segurança Social IP Centro Distrital de Leiria.

O referido requerimento foi assinado por B....

B... alega ter delegação de poderes para indeferir ou deferir pedidos de Apolo Judiciário, através do Despacho 13520/2010, publicado no Diário da República II Série de 23 de Agosto.

Alega ainda que quem lhe conferiu estes poderes foi o anterior Director do Centro de Segurança Social IP Centro Distrital de Leiria C...

Sucede que, desde Novembro de 2011, que exerce funções do Centro de Segurança Social IP Centro Distrital de Leiria D... .

Ora a delegação de poderes efectuada a B..., pelo anterior Director C..., extinguiu-se por mudança dos titulares do órgão delegante, de acordo com o disposto o artigo art.º 40 e seguintes do Código do Procedimento Administrativo.

Sendo que os actos praticados por B..., após a mudança dos titulares do órgão delegante são nulos.

Os actos praticados por B..., após a mudança dos titulares do órgão delegante sã nulos, sendo que tais actos não são suscetíveis de serem ratificados pela lei, mais concretamente art.º 137º do Código do Procedimento Administrativo.

A arguida B..., agiu consciente e livremente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Com tais factos imputa à arguida a prática de um crime de usurpação de funções previsto e punido pelo art.º 358º, alínea a) do Código Penal.

Ora dispõe este diploma:

     Usurpação de funções

Artigo 358.º

Quem:

a) Sem para tal estar autorizado, exercer funções ou praticar actos próprios de funcionário, de comando militar ou de força de segurança pública, arrogando-se, expressa ou tacitamente, essa qualidade;

b) Exercer profissão ou praticar acto próprio de uma profissão para a qual a lei exige título ou preenchimento de certas condições, arrogando-se, expressa ou tacitamente, possuí-lo ou preenche-las, quando o não possui ou não as preenche; ou

c) Continuar no exercício de funções públicas, depois de lhe ter sido oficialmente notificada demissão ou suspensão de funções;

é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

No caso vertente e quanto ao segmento normativo da alínea a) refere Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense, tomo III, p. 445 que o tipo em causa ressalva a possibilidade de o agente que não possui a qualidade requerida para a prática de determinados actos, agir licitamente ao praticá-los se quem de direito o tenha autorizado acrescentando «Não porque a autorização não deva surtir o seu efeito de sanar in radice o que de outro modo seria intromissão em esfera de competência alheia, mas porque se torna difícil excogitar uma situação em que o agente autorizado a praticar o acto possa, simultaneamente enganar. Como se sabe, sem engano não há crime de usurpação de funções e o engano relevante para este efeito traduz-se num engano funcional, que tem por objecto uma capacidade de acção que não se possui»

Compulsado o teor da Informação da Segurança Social de fls. 15 verifica-se que os despachos de delegação de competências no âmbito da protecção jurídica se encontram em fase de publicação em Diário da República e os que não foram ainda publicados foram já remetidos para publicação encontrando-se a aguardar a mesma. Mais se referindo que todos os actos entretanto praticados serão ratificados nos termos da lei.

Acresce que da documentação junta resulta que por força do despacho 13520/2010, datado de 6 de Agosto de 2010 – cfr. fls. 16 – B... tem competência para praticar actos designadamente os referidos na queixa e nas declarações que antecedem cumprindo referir que os actos praticados pela mesma foram ratificados por despacho 4312/2012 de 13 de Março de 2012, em conformidade com o Despacho 3416/2012 de 3 de Fevereiro de 2012.

Por efeito do instituto da ratificação de actos administrativos, com o seu efeito retroativo B... tem capacidade funcional e de competência para os concretos actos. Se o instituto em causa não opera perante actos nulos como pretende o requerente em face do disposto no art.º 137º do Código de Procedimento Administrativo tal pode constituir um ilícito com reflexos no Âmbito do Direito Administrativo, mas já fora do Âmbito do Direito Penal e do crime de usurpação de funções.

Em todo o caso não se pode considerar que o requerente perante o crime de usurpação de funções figure como titular dos interesses que a lei quis proteger em face de o bem jurídico em causa que se analisa «na integridade ou intangibilidade do sistema oficial de provimento em funções públicas ou em profissões de especial interesse público» - cfr. Libano Monteiro, ob cit. p. 441.

Por sua vez os crimes ditos de acção popular previstos no art.º 68º, n.º 1 alínea e) do CPP não englobam o criem de usurpação de funções.

*

Pelo exposto, e salvo o devido respeito por opinião em sentido contrário, por os factos imputados não integrarem a prática de qualquer crime, e por falta de legitimidade indefere-se a requerida constituição como Assistente.

 Custas que se fixam em 2 Ucas, sem prejuízo do apoio judiciário.

Registe e Notifique o MP, e o requerente

Com cópia do requerimento de abertura de instrução e do presente despacho notifique-se a Dr.ª B....»

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2. Apreciando.

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Atenta a conformação das conclusões formuladas, a única questão a decidir consiste em saber se o recorrente tem legitimidade para se constituir assistente relativamente a um eventual crime de usurpação de funções previsto no artigo 358.º do Código Penal.

Atendendo a que se mostra, à partida, afastada a verificação de qualquer das hipóteses de legitimação à constituição de assistente por parte do recorrente previstas nas restantes alíneas do n.º 1 do artigo 68.º do Código de Processo Penal, importa, para efeitos da alínea a) do n.º 1 do mesmo preceito, ajuizar se o recorrente deve ou não ser considerado ofendido no sentido técnico-jurídico relativamente ao crime em apreço.

Dispõe o artigo 68.º, n.º 1, a) do Código de Processo Penal que se podem constituir assistentes em processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de dezasseis anos.

Como escreve o Prof. Figueiredo Dias – em perfeita consonância com o actual CPP – a nossa lei parte do conceito estrito de ofendido na determinação do círculo de pessoas que têm legitimidade para intervirem como assistentes em processo penal([i]).

Para efeitos do disposto no artigo 68.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime mas unicamente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime relativamente ao qual se põe a questão da constituição de assistente.

Os titulares de interesses mediata ou indiretamente protegidos não podem ser englobados na abrangência do conceito de ofendido para os efeitos consignados no artigo 68º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal.

Nem todos os crimes têm ofendido particular, só o tendo aqueles cujo objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou um direito de que é titular um particular([ii]).

Daqui resulta que, nos casos de crimes públicos em que o interesse tutelado é exclusivamente público, a regra é a de que ninguém poderá constituir-se assistente, sendo que o direito de constituição como assistente só existirá se for conferido por lei especial, conforme expressamente dispõe o artigo 68.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

No caso em apreço estaria em causa a eventual prática do crime de usurpação de funções previsto no artigo 358.º do Código Penal.

Este crime pertence ao grupo dos chamados crimes contra o Estado que constitui o Título V do Livro II do Código Penal e, dentro dele, insere-se no Capítulo II que se ocupa “Dos crimes contra a autoridade pública” sendo entendimento pacífico que o bem jurídico protegido é o interesse do Estado “no respeito pelo desempenho regular das funções públicas ou profissionais que exigem título bastante para tal ou a conjugação de requisitos ou condições especiais de exercício”([iii]) ([iv]).

Dito de outro modo, o bem jurídico protegido pelo tipo legal consiste na integridade ou intangibilidade do sistema oficial de provimento em funções públicas ou em profissões de especial interesse público([v]).

Trata-se de um crime através do qual o Estado “emprega a sua autoridade e define os pressupostos que lhe parecem garantir a competência no exercício das funções do Estado e de certas profissões que, pela sua importância, repercussão e melindre julga carecerem de formação especializada (…). Pune-se alguém que engana outrem quanto à sua habilitação legal para exercer actos próprios de funcionário ou de certa profissão, não por causa desse outrem (ao menos de modo imediato) mas porque o Estado entende que deve exigir uma fidelidade inquebrantável ao sistema de reconhecimento de competências (necessariamente formal) que ele próprio instituiu. No horizonte último do legislador não podem deixar de estar tantos bens jurídicos pessoais patrimoniais, supra individuais que devem ser acautelados. Mas a construção deste ilícito-típico faz-se – o Código já a isso nos habituou – em torno de um bem jurídico - meio que leva em certos casos a quase perder de vista os bens jurídicos-fim que o legitimam”([vi]).

Assim, uma vez que o bem jurídico especialmente protegido pela norma incriminadora é um interesse público, um interesse do Estado e só por este titulado, o recorrente carece de legitimidade para se constituir assistente nos presentes autos.

Não merecendo, portanto, censura o despacho recorrido, improcede o presente recurso.

                                          *

III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao interposto recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.

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Fernando Chaves (Relator)

Jorge Dias


[i] - Direito Processual Penal, Primeiro Volume, pág. 512.
[ii] - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, 1994, pág. 303.
[iii] - Cfr. Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, volume II, pág. 1544.
[iv] - No mesmo sentido de que é o Estado o titular do bem jurídico protegido podem citar-se, entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 6/2/1985, BMJ 344, pág. 459, do Supremo Tribunal de Justiça de 7/2/1990, Processo n.º 40520, da Relação do Porto de 9/6/1999, CJ, Ano XIV, Tomo III, pág. 240, da Relação de Lisboa de 16/10/2001, Ano XXVI, Tomo IV, pág. 146, e da Relação do Porto de 17/1/2007, in www.dgsi.pt/jtrp.
[v] - Cfr. Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág. 441; Esta definição coincide no essencial com a apontada por Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, pág. 929.
[vi] - Idem, Ibidem, págs. 439 a 440.