Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2157/04.2PCCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: CARTA ROGATÓRIA
VALOR PROBATÓRIO
Data do Acordão: 07/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - 4º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 355º, N.º 2 E 356º, N.º 2, AL. C), DO C. PROC. PENAL
Sumário: A carta rogatória, uma vez junta aos autos, é considerada um documento (à semelhança do que acontece com as cartas precatórias), pelo que a sua leitura em audiência não é obrigatória, considerando-se “examinada” e produzida em audiência independentemente de nesta ter sido feita a respectiva leitura e menção em acta, sendo, contudo, a respectiva leitura permitida, à semelhança do que acontece com as cartas precatórias, pois comungam da mesma natureza – cfr. artigo 356º, n.º 2, al. c), do C. Proc. Penal.
A não leitura em audiência das declarações constantes da carta rogatória previamente junta aos autos não viola nenhum princípio, designadamente, o do contraditório.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
A) No âmbito do processo comum (tribunal singular) n.º 2157/04.2PCCBR que corre termos na Vara de Competência Mista e Juízos Criminais de Coimbra, 4.º Juízo Criminal, por Sentença de 21/12/2010, o arguido R... foi condenado, como autor material da prática de um crime de extorsão, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º e 223.º, n.º 1 e n.º 3, al. a), do C. Penal, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, na condição de o mesmo pagar à demandante a quantia de dois mil euros.
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B) Inconformado com a decisão recorrida, dela recorreu, em 3/2/2011, o arguido, pedindo a sua revogação, com a inerente absolvição, quer na vertente criminal, quer na vertente cível, extraindo da motivação as seguintes conclusões: 1. A sentença recorrida equimozou o sentido profundo da coerência, apreensibilidade, operacionalidade e justeza dos meios e das soluções de que a actividade interpretativa deve servir-se para encontrar a justa e correcta resolução do caso concreto.
2. E atento o manadeiro fáctico e probatório carreado aos autos, impunha-se uma decisão diversa, no sentido da absolvição do arguido.
3. A convicção do julgador há-de formar-se após uma ponderação serena de todos os meios de prova produzidos, guiado sempre por padrões de probabilidade, num processo lógico-dedutivo de montagem do mosaico fáctico, perspectivado pelas regras da experiência comum.
4. Andou mal a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo ao dar como provados os factos descritos nos Pontos G, K, L, N, P, Q, R, S, T, U e Z da douta sentença recorrida que estão incorrectamente julgados, impondo-se decisão diversa, atenta a prova documental existente nos autos, bem como o depoimento testemunhal de:
- C..., gravado no sistema integrado digital da aplicação informática do Tribunal, à passagem dos minutos 03:50 e 07:50.
- Declarações do arguido, gravadas no sistema integrado digital da aplicação informática do Tribunal, à passagem dos minutos 02:21 e 03:55.
5. Não há qualquer lastro probatório das alegadas ameaças com um mal importante perpetradas pelo arguido.
6. No que tange aos danos não patrimoniais, limitou-se a demandante a desbobinar um cenário de medo e pavor que, no entanto, não encontra qualquer guarida no seu comportamento efectivo após os factos e que se deixa enrodilhar na teia das contradições e incongruências, pelo que não merecem tutela jurídica.
7. Retirados os factos supra indicados da matéria de facto dada como provada, resulta patente a insuficiência para a decisão de facto provada. Na verdade, é notória a insuficiência da prova para fazer abalroar o princípio do in dubio pro reo, como a douta decisão o fez, impondo-se a absolvição do arguido.
7-A. No caso sub judice, torna-se evidente a violação de tal princípio in dubio pro reo e, consequentemente, do princípio da presunção de inocência, tornando a decisão condenatória nula, o que para os devidos efeitos aqui expressamente se invoca.
8. O depoimento da Ofendida/Demandante está ferido de vício procedimental que o inquina fatalmente.
9. As declarações das partes civis podem ser tomadas, desde que haja requerimento da parte nesse sentido, do arguido ou oficiosamente pela autoridade judiciária (cfr. artigos 145.º e 347.º, do CPP).
Constata-se que, em passo algum dos autos, foi lavrado qualquer requerimento nesse sentido, pelo que a tomada de declarações à parte civil foi oficiosamente determinada pelo Tribunal a quo.
Porém, esta decisão de tomar declarações às partes civis deve obrigatoriamente revestir a forma de Despacho e obviamente revestido de fundamentação que o Tribunal a quo postergou, tornando este meio de prova ilrgal e, como tal, vedada a sua valoração pelo Tribunal no processo de formação da sua convicção e posterior decisão.
10. O Tribunal a quo ancorou a sua Motivação sobre a decisão da matéria de facto relativo ao pedido civil, nuclearmente, nas declarações da própria demandante cível.
Ora, isto é trazer para o rito processual uma guisa de depoimento de parte que se impõe ao demandado, fazendo-se prova em causa própria, o que de todo não é legítimo à luz do nosso Ordenamento Jurídico.
11. Ao arrimar-se na sua fundamentação no depoimento da demandante cível, o Tribunal a quo valorou um meio de prova ilegal e, ipso facto, deve expurgar-se da Decisão, com os devidos efeitos legais.
12. O tribunal a quo não procedeu à leitura em Audiência do depoimento da testemunha H... . que foi obtido por carta rogatória, valorando-o como prova na formação da sua convicção.
Assim procedendo, o tribunal a quo estribou-se numa verdadeira prova proibida, o que para os devidos efeitos aqui expressamente se invoca.
13. O limite máximo da pena aplicável ao arguido, in casu, deveria fixar-se em 3 anos e 3 meses, nos termos do artigo 73.º, do C. Penal, fazendo o Tribunal a quo uma equívoca aplicação das regras da atenuação especial da pena na punibilidade da tentativa.
14. Ressalta a desproporcionalidade do quantum indemnizatório atribuído à demandante cível.
Na verdade, o acervo probatório que serve de ancoradouro à pretensão ressarcitória da demandante foi tão frugal e perfunctório que não se perfilou um elenco de danos morais que justificasse tutela jurídica.
15. Violou, assim, a douta sentença em análise o plasmado nos artigos 74.º, n.º 2, 97.º, n.º 5, 145.º, 347.º, 355.º e 356.º, todos do CPP, e os artigos 23.º, n.º 2 e 73.º, do C. Penal.
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C) O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu, em 9/3/2011, ao recurso, defendendo a sua improcedência total, apresentando as seguintes conclusões:
1. Pretendendo o arguido impugnar a matéria de facto dada como provada em julgamento, deveria o mesmo ter dado cumprimento ao preceituado no artigo 412.º, do CPP.
2. Não o tendo feito, deveria o recurso ser rejeitado.
3. Não se entendendo assim, defendemos ainda que a douta sentença recorrida fez uma correcta subsunção jurídica e aplicação do direito.
4. Por último, alegou ainda o arguido ter havido violação do princípio in dubio pro reo.
5. Porém, só estaremos perante uma violação deste princípio “quando o tribunal, colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir, em tal situação, contra o arguido” 6. Contudo, atento o teor da douta sentença condenatória, não resulta que alguma vez o tribunal se tenha visto na situação de dúvida insuperável e, muito menos, que, perante ela, tenha decidido contra o arguido.
7. Assim, ponderando tudo o que fica dito, a douta sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada, de facto e de direito, não merecendo, por isso, em nossa modesta opinião, e a esse nível, qualquer espécie de censura.
8. Termos em que deverá, por conseguinte, negar-se provimento ao recurso.
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D) A demandante cível, em 14/3/2011, respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões:
1. As doutas alegações do recorrente baseiam-se em conceitos e concepções erradas, não consentâneas com a lei, motivo pelo qual não poderão surtir efeito favorável ao que requer e apresenta a título de conclusões.
2. A matéria dada por provada nos pontos G, K, L e N foi correctamente assim considerada, porquanto houve prova produzida nesse sentido, designadamente, com base no depoimento prestado pela ofendida e com base no depoimento prestado pela testemunha H..., os quais foram absolutamente consentâneos e demonstrativos dos factos que foram dados por provados.
3. O mesmo se diga quanto à prova testemunhal produzida acerca dos pontos P, Q, R, s e T da douta sentença, não colhendo qualquer efeito útil o considerando de que os danos só ficariam provados se apresentado atestado médico e facturas nesse sentido.
4. No ponto Z o que interessa não é o “genericamente”, o que interessa é que o arguido confessou, a final, sendo até instado pela sua defesa no sentido de querer, saber e ter consciência do que estava a admitir, ao que respondeu afirmativamente e sem quaisquer reservas.
5. A matéria dada por provada foi-o muito justamente, com profunda e admirável esquematização e demonstração na douta sentença, já para não falar no facto do arguido ter admitido que tentou extorquir dinheiro à ofendida e que até a ameaçou, apenas não tendo admitido que lhe disse que a regava com ácido sulfúrico se ela não lhe desse o dinheiro.
6. Relativamente aos vícios do depoimento da ofendida, mais uma vez não assiste razão ao recorrente e não assiste na medida em que o recorrente esquece-se de que aquela depôs como testemunha de acusação, arrolada como foi oportunamente pelo Ministério Público, sendo ouvida nessa qualidade quanto à matéria da acusação, nenhum vício ou ilegalidade havendo quanto a isto.
7. Se o recorrente se está a referir ao pedido de indemnização civil, então, como é óbvio, assim foi entendido pelo Tribunal a quo por conveniente, de acordo com o n.º 1 do artigo 145.º, do CPP, não se reconhecendo, mais uma vez, qualquer legitimidade ao recorrente para criar leis, regras ou outras, digamos, imposições processuais, mormente, quando refere que tal deveria ter sido alvo de um despacho, o que não é minimamente consentâneo com a lei processual que em momento algum expressa tal imposição.
8. Acerca da pretensa falta de validade do depoimento da testemunha H..., invocada pelo recorrente, trata-se de uma inequívoca falsa questão, não se trata de prova produzida em fase processual anterior ao julgamento. Foi produzida já na fase em que estava encerrada qualquer das fases processuais anteriores à audiência de julgamento e portanto nenhum dispositivo legal tendo sido violado ao ser tido como meio legal de prova sem que tenha ocorrido a sua leitura no dia da audiência de julgamento, havendo, inclusivamente, jurisprudência neste sentido, veja-se, a título meramente exemplificativo, o Ac. do STJ de 23 de Março de 1994.
9. Da moldura penal aplicável e do quantum indemnizatório, ambos são consentâneos com a lei aplicável, nenhum normativo legal tendo sido violado, pelo que impõe-se a sua manutenção fixada pelo Tribunal a quo, porque adequados, proporcionais e justos atenta toda a matéria factual dada por provada e a matéria de direito inerente aos autos.
10. Mercê do que deverá ser mantida, integralmente, a mui douta sentença recorrida, assim se fazendo a costumada Justiça.
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O recurso foi, em 22/3/2011, admitido.
Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, em 11/4/2011, emitiu douto parecer em que defendeu a improcedência total do recurso.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Decisão Recorrida:
“(…) II. Fundamentação de facto
Da prova produzida, resultaram os seguintes: 1.Factos Provados: A. Em dia não concretamente apurado de Agosto de 2004, pelas 10h00, o arguido dirigiu-se ao domicílio de B..., sita na …, Coimbra.
B. Nessa altura foi atendido por H..., amiga e colega de residência de B..., a quem o arguido perguntou se a B... estava.
C. Face ao conhecimento do nome pelo qual a sua colega é conhecida pelos amigos, H... abriu a porta. D. Nesta altura, deparou-se com o arguido a quem disse que a B...não estava em casa, tendo-lhe o arguido entregue um papel onde se encontrava escrito um número de telemóvel, identificando-se como … e dizendo a H... que precisava falar com a B....
E. Quando o arguido saiu do prédio H... aproximou-se da janela e viu-o dentro de um veículo automóvel de mercadorias marca Ford, modelo Fiesta, de cor cinzenta. F. H... contactou B..., dando-lhe conta do que havia sucedido e, assim que esta regressou a casa, entregou-lhe o número de telemóvel que o arguido havia deixado. G. Quando B...contactou o arguido por telemóvel, este exigiu o pagamento de 70.000.000$00, em virtude de saber que a B...tinha “dado um golpe” e que caso não lhos entregasse, a regaria com ácido sulfúrico. H. Pela forma insistente como o arguido colocou a questão, a visada B...sentiu grande receio pelo que comunicou imediatamente com a PSP dando conhecimento do estranho telefonema ao Chefe D.... I. Em dia posterior de Agosto de 2004, de manhã, o arguido regressou à residência de B..., desta vez aguardando dentro do veículo.
J. Na sequência de B...ter avisado a PSP que o arguido se encontrava nas proximidades da sua residência para com ela se encontrar, o mesmo foi interceptado pela PSP nas bombas de gasolina GALP sitas no Loreto, em Coimbra. K. Durante o contacto telefónico mantido entre B...e o arguido este insistiu pelo pagamento de 70.000.000$00 anunciando que regaria B...com ácido sulfúrico, caso B...não efectuasse o pagamento desse valor. L. Por levar a sério tais expressões intimidatórias, a B...deu conhecimento do telefonema à PSP. M. O arguido só não logrou atingir os seus objectivos por razões alheias à sua vontade.
N. O arguido agiu de forma livre e consciente, com intenção de obter montante em dinheiro que bem sabia não lhe ser devido, para tanto intimidando a visada B..., assim a constrangendo a entregar-lhe o montante pretendido, como forma de por termo às pressões exercidas.
O. Não se absteve de tais atitudes, não obstante saber que a sua conduta lhe estava vedada por lei. P. Em consequência da conduta do arguido, B... teve medo.
Q. Andava nervosa, com medo de andar sozinha, temendo que o arguido concretizasse actos atentatórios da sua integridade física e até mesmo da sua vida. R. Teve dificuldade em dormir, tomando medicamentos para o efeito. S. Na sua vida profissional como delegada de informação médica, evitava reuniões com médicos em consultórios mais isolados. T. Nos meses seguintes ao sucedido temeu pela sua integridade física e pela própria vida, em consequência directa do que o demandado disse que faria se ela não entregasse o dinheiro que ele exigia. U. Recorreu a ajuda médica, tomando medicamentos para controlar o sistema nervoso. V. O arguido foi condenado, por acórdão de 04-07-2003, transitado em julgado em 13-12-2003, na pena de 2 anos de prisão, suspensa pelo período de 3 anos, na condição de, em 6 meses, pagar ao ofendido a quantia de €10.979,56 e na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de €5,00, pela prática, em 21-12-2001 de um crime de burla qualificada e, em 08-04-2002, de um crime de falsidade de depoimento ou declaração. W. O arguido é vendedor de automóveis, por conta própria. X. Recebe, de ordenado, € 600,00 mensais, a que acrescem, em média, mais €500,00, dependendo do volume de vendas. Y. Encontra-se divorciado, vivendo com um filho menor, em casa própria, não possuindo despesas de relevo. Z. No final da audiência o arguido admitiu, na generalidade, ter praticado os factos descritos. b) Factos Não Provados
1. Os factos descritos de A a H tivessem ocorrido no dia 10 de Agosto de 2004. 2. O veículo automóvel mencionado em E e I tivesse a matricula …. 3. Que foi em virtude do arguido ter revelado um comportamento estranho e de H... não o conhecer que foi atentar nos elementos descritos em E.
4. O contacto mencionado em F, foi feito via telefone. 5. B...contactou o arguido através do n.º ….
6. No telefonema mencionado em G o arguido tenha referido que era uma pena, pois B...era muito bonita.
7. Na conversa mencionada em G o arguido anunciou à ofendida que, caso não pagasse o montante exigido, iria enfrentar outras pessoas o que seria, em seu entender, ainda mais grave, colocando-a ainda perante a hipótese de vir a exercer represálias não especificadas sobre qualquer outro membro da família, em particular o pai. 8. O golpe que o arguido imputou à ofendida era de € 900.000,00. 9. O arguido tenha estipulado o prazo de 24 horas para entrega do dinheiro. 10. Por indicação do Chefe D... da PSP de Coimbra e já no comando da PSP a B...efectuou nova chamada para o arguido, colocando o telemóvel em alta voz, por forma a que a conversa fosse audível. 11. Nessa altura, a B...combinou encontrar-se com o arguido no dia seguinte, logo pela manhã, a fim de falarem sobre o assunto, sendo que antes a B...contactaria novamente o arguido para aquele telemóvel. 12. Os factos descritos em I e J tivessem ocorrido no dia 11, pelas 09:00 horas.
13. Em I, o arguido estivesse a aguardar pelo contacto de B.... 14. A B..., para fazer compras, solicitava a companhia de um amigo. 15. Assustava-se com qualquer barulho não identificável de imediato. 16. B... nunca pretendeu entregar as quantias exigidas pelo arguido. 17. A ofendida tivesse sentido medo durante mais de um ano. 18. Não conseguia estar sozinha em casa, nem tomar um café sozinha.
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c) Motivação

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida, a qual, cotejada com as regras da experiência foi suficiente para considerar provados os factos acima descritos.
O arguido optou, inicialmente, por remeter-se ao silêncio, tendo, a final, prestado declarações, admitindo, na generalidade, os factos.
Assim, o tribunal teve em consideração as declarações da ofendida, B... que relatou o sucedido, tendo, na generalidade, tais afirmações sido corroboradas pela testemunha inquirida através de carta rogatória, H... .
Em suma, do depoimento de H... resultou provado que o arguido se deslocou a casa de B..., tendo sido atendido por H..., que recebeu do arguido um contacto de telemóvel, com a advertência que o senhor … pretendia falar com a B.... H... confirmou ter visto o carro, confirmando os elementos constantes em E, com excepção da matrícula do mesmo, pelo que este ponto foi considerado não provado. O arguido, a final, negou, ainda que não de forma peremptória, ter ido a casa da ofendida, afirmando que teria colocado o seu número de telefone na caixa de correio. O tribunal não atendeu a esta versão apresentada pelo arguido, uma vez que a mesma, para além de contrariada pelo depoimento da testemunha H..., não se mostra coerente ou lógica, do ponto de vista das regras da experiencia, uma vez que não faz sentido a ofendida ligar para um número deixado, ao acaso, na sua caixa de correio, sem qualquer explicação.
B..., por seu lado, confirmou ter sido advertida por H... de que tinha estado em sua casa um senhor …, a perguntar pela B..., nome pelo qual a queixosa é conhecida entre os amigos, confirmou ainda ter ligado para esse número (que não soube precisar, facto que é absolutamente natural, atento o extenso lapso temporal decorrido) tendo falado com uma voz masculina, que lhe exigiu o pagamento da quantia de 70.000.000$00. A ofendida relatou ainda a ameaça feita pelo arguido, salientando que o mesmo lhe disse que a regaria com ácido sulfúrico.
Por seu lado o arguido admitiu ter feito telefonemas para a ofendida, exigindo-lhe o pagamento de uma quantia em dinheiro, que não soube precisar, afirmando “não lhe parecer” ter ameaçado a ofendida que a regaria com ácido sulfúrico. Ora, as declarações da ofendida, prestadas de modo sério, convencido e convincente afiguram-se mais críveis, atentas as incertezas demonstradas pelo arguido.
B... esclareceu ainda o tribunal acerca do contacto efectuado com a PSP e dos motivos que a levaram a contactar as autoridades, esclarecendo o receio que sentiu, facto que foi aliás confirmado também pelo Chefe D..., que a viu muito nervosa no dia em que foi ao Comando.
B..., o Chefe D... e o arguido confirmaram a detenção e as circunstâncias em que a mesma ocorreu.
O elemento subjectivo adveio a concreta actuação do arguido, conjugada com as suas declarações e com as regras de experiencia comum. Na realidade, o mesmo afirmou pretender obter dinheiro, sendo óbvio, quer da sua conduta, quer da normalidade do acontecer, que o mesmo sabia que tal dinheiro não lhe era devido, sendo também evidente que a ameaça proferida visava cercear a liberdade da ofendida, por forma a que a mesma lhe entregasse o dinheiro reclamado.
B... relatou o receio que sentiu, nomeadamente que o arguido concretizasse a ameaça proferida, razão pela qual evitava deslocar-se sozinha, pedindo a amigos e colegas que a acompanhassem nas deslocações que fazia, relatando ainda que sofreu uma depressão, necessitando de ajuda médica e medicamentosa, tendo, inclusivamente, trocado a porta de casa para uma mais segura, factos que foram confirmados, na generalidade por Luís Santos e Marília Monteiro, nomeadamente o estado psicológico de B..., a visível dificuldade em dormir e o receio de se deslocar sozinha, não sendo, no entanto, possível apurar o concreto período temporal em que tal sucedeu.
Atendeu ainda o tribunal ao teor do certificado do registo criminal junto aos autos, emitido em 14-12-2010, para considerar provados os factos descritos em V.
Relativamente às condições económicas do arguido, na falta de outros elementos, foram atendidas as declarações do próprio, sendo certo que os autos não contêm elementos que as contrariem.
Relativamente aos factos constantes dos pontos 1 a 5 o tribunal considerou-os não provados, por não terem sido mencionados por qualquer testemunha, uma vez que atento o lapso temporal decorrido, as mesmas já não recordavam estes pequenos detalhes. Na realidade, da prova produzida não resultou qual a concreta data dos eventos, qual a matricula do carro, o local em que se encontrava inicialmente estacionado, o motivo pelo qual H... atentou nos elementos descritos em E ou qual o número de telemóvel utilizado pelo arguido.
Também os factos mencionados de 6 a 9 foram considerados não provados uma vez que não foram confirmados pela ofendida ou pelo arguido, tendo este negado ter ameaçado o pai da ofendida, não tendo nenhum dos dois mencionado os restantes factos.
Considerou o tribunal não provada a realização da chamada em alta voz, do Comando da PSP (facto 10) uma vez que a mesma só foi relatada pela ofendida, já que o Chefe D... afirmou não se recordar da chamada efectuada ou de ter ouvido o conteúdo da conversa tida pela ofendida e pelo arguido. Por outro lado, a testemunha H... afirmou que essa chamada teve lugar, sem, no entanto, se perceber a sua razão de ciência, já que do seu depoimento não resulta que tenha acompanhado a ofendida ao comando, tendo o Chefe D... afirmado que a ofendida foi à esquadra, uma vez sozinha e uma vez acompanhada, mas da irmã, não fazendo qualquer referência a H... . O facto 11 foi considerado não provado uma vez que não foi confirmado por qualquer testemunha, tendo o arguido e a ofendida afirmado não se recordar se combinaram, ou não, encontrar-se.
Quanto aos factos mencionados em 12 e 13, salientamos que, mais uma vez nenhuma testemunha conseguiu mencionar com precisão o dia ou hora dos eventos.
Relativamente aos factos mencionados de 14 a 18 salientamos que os mesmos não foram confirmados quer pela depoente, quer pelas testemunhas ouvidas.
III. Enquadramento jurídico-penal dos factos Sendo esta a matéria dada como provada, façamos o seu enquadramento jurídico-penal.
O arguido vem acusado de ter praticado, como autor material, na forma tentada, um crime de extorsão, p. e p. artigo 223º, n.º 1 e 3, al. a) do Código Penal.
Dispõe a referida norma que 1 — Quem, com intenção de conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, constranger outra pessoa, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete, para ela ou para outrem, prejuízo é punido com pena de prisão até cinco anos. (…) 3 — Se se verificarem os requisitos referidos: a) Nas alíneas a), f) ou g) do n.º 2 do artigo 204.º, ou na alínea a) do n.º 2 do artigo 210.º, o agente é punido com pena de prisão de três a quinze anos; b) No n.º 3 do artigo 210.º, o agente é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos.
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O artigo 223º do Código Penal visa garantir a liberdade de disposição patrimonial. A extorsão apresenta-se, assim, em primeiro lugar, como um crime contra o bem jurídico património porquanto o objectivo directo da extorsão é a obtenção de uma vantagem patrimonial à custa de um prejuízo do extorquido. Para além disso, tutela-se ainda o bem jurídico liberdade de decisão e de acção, cuja lesão é conatural à extorsão (cfr. Assim, Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, páginas 343, Coimbra Editora, defendendo PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in Comentário do Código Penal, p. 613, Universidade Católica Portuguesa, que o bem jurídico protegido é apenas o património de outra pessoa).
Pode ser agente do crime de extorsão qualquer pessoa – “Quem”- sendo assim um crime comum. Já o sujeito passivo deste crime é o titular do interesse patrimonial afectado, coincidindo, em regra, mas não necessariamente, com a pessoa vítima da acção de coacção. E dizemos, em regra, uma vez que o agente pode exercer a violência ou a ameaça de mal importante sobre uma terceira pessoa como meio de constranger o sujeito passivo à disposição patrimonial.
O crime de extorsão é um crime de processo típico, sendo executado apenas “por meio de violência ou de ameaça com mal importante”. Necessário é que entre a violência ou ameaça e o acto de disposição patrimonial haja uma relação de adequação.
O objecto do crime de extorsão é o acto de disposição patrimonial, podendo esta consubstanciar uma acção ou uma omissão. “A acção (acto positivo) pode, por sua vez, traduzir-se num “dare” (p. ex., uma determinada quantia em dinheiro ou determinado objecto) ou num “facere” (p. ex., vender ou doar um bem, rescindir um contrato). A omissão (acto negativo) pode consistir, por exemplo, na não exigência de um crédito, na não proposição de uma acção judicial, na não apresentação de uma queixa-crime” (cfr. Assim, Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, páginas 345, Coimbra Editora). Essencial para que se verifique o tipo de extorsão (que, como salientámos supra, é um crime contra o património) é que a disposição patrimonial constitua um enriquecimento ilegítimo (para o agente ou para terceiro) e um prejuízo (para a vítima da coacção ou para terceiro).
Subjectivamente, trata-se de um crime doloso, em qualquer uma das suas modalidades.
Em suma, são elementos constitutivos do crime de extorsão:
- o emprego de violência ou ameaça com um mal importante, podendo esta ser exercida contra a pessoa cujo prejuízo patrimonial se visa ou contra outra pessoa a quem essa esteja ligada de tal forma que o receio da produção do mal ameaçado na mesma provoque no lesado o constrangimento a determinada acção querida pelo agente;
- o constrangimento a uma disposição patrimonial, entendida esta no sentido amplo de abranger qualquer meio juridicamente apto a transferir um valor pecuniário de uma esfera jurídica para outra, por via directa ou indirecta;
- a produção de um prejuízo para o ofendido na sequência da disposição patrimonial efectuada;
- a nível de tipo subjectivo, a intenção do agente de conseguir, com a sua actuação, um enriquecimento ilegítimo.
Por outro lado, a 1ª parte da al. a) do n.º 3 do artigo 223º do Código Penal estabelece como circunstância qualificativa agravante do crime de extorsão, o valor consideravelmente elevado do prejuízo (204, n.º 2, a).
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In casu, constatamos que o arguido disse à ofendida que a regaria com ácido sulfúrico se esta não lhe entregasse 70.000.000$00. Ora, dúvidas não existem que tal afirmação constitui não só uma ameaça, mas uma ameaça com mal importante.
Na realidade, a ameaça com um mal importante implica um mal que tenha acentuado relevo, que a comunidade censure pelo dano relevante que poderá causar, podendo, em todo o caso, tratar-se de um mal de natureza ilícita como lícita. Será mal importante aquele que se revelar adequado "a constranger o ameaçado a comportar-se de acordo com o ameaçante" (cfr. Assim, Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 345, Coimbra Editora)
Sendo certo que a doutrina e a jurisprudência se têm pronunciado no sentido de que para o preenchimento do tipo legal plasmado no artigo 223º do CP, nem sequer é necessário – como no caso do crime de ameaça (artigo 153º do CP) – que o mal ameaçado seja injusto ou que o agente tenha ou não o direito de infligir esse mal (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, in Código Penal Anotado, volume 1.º, anotação ao art. 222º, pág. 586 e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 01 Fevereiro 2006, disponível in www.dgsi.pt, onde se esclarece que “O "mal importante" objecto da ameaça (..) não tem de constituir um ilícito, nem sequer um mal ilegítimo.”) A verdade é que tal questão nem sequer se coloca no caso sub júdice, uma vez que a ameaça verbalizada pelo arguido constitui, sem dúvida, um mal importante e ilegítimo, revelando-se adequada a constranger a ofendida.
Tanto basta para dizer que se preencheu o primeiro elemento típico do crime.
Visou o arguido, através de tal ameaça, pressionar a ofendida B... a entregar-lhe a quantia por si reclamada de 70.000.0000$00, acarretando tal disposição patrimonial um evidente prejuízo para a ofendida.
No entanto, o arguido não logrou provocar um prejuízo na esfera patrimonial de B..., uma vez que a mesma, em virtude de uma actuação da Polícia de Segurança Pública, não lhe entregou qualquer quantia.
Assim, no caso, não se produziu o enriquecimento intencionado e o consequente prejuízo da ofendida.
A nível subjectivo, dúvidas não restam que a descrita actuação foi animada pelo objectivo do arguido de obter um enriquecimento a que sabia não ter direito, agindo, portanto, com dolo directo, já que conhecia todos os elementos da factualidade típica e quis directamente a produção do resultado que tal tipo legal visa punir: a deslocação patrimonial sob constrangimento e o enriquecimento ilegítimo.
Por outro lado, dúvidas não restam que o arguido reclamava de B... o pagamento da quantia de 70.000.000$00. Ora, sendo o valor da UC de €102,00 constatamos que o valor reclamado preenche o conceito de valor consideravelmente elevado, uma vez que excede 200 unidades de conta. Verifica-se, assim, a circunstância qualificativa da 1ª parte da al. a) do n.º 3 do artigo 223º do Código Penal.
Ou seja, dos elementos típicos integradores do crime de extorsão de que o arguido vinha acusado (223º, n.º 1 e 3, al. a), apenas não se mostra verificada a produção do prejuízo na esfera jurídica patrimonial de ofendida. Não se consumou, assim, o crime de extorsão.
Dúvidas não restam, no entanto, de que houve começo de execução, que o arguido pôs em marcha o plano que concebeu, visando a prática do crime. Como salienta o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Abril de 1992 (in BMJ 416, p. 341) "A decisão de cometer um crime é o primeiro pressuposto de toda a tentativa punível. É o que desde logo resulta do nº 1 do artigo 22º do Código Penal ao dispor que: “1. Há tentativa quando o agente pratica actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se”.
A tentativa explica-se pela ausência de consumação, por não serem os propósitos criminosos inteiramente realizados, mas só em parte. Consumação e tentativa estão assim intimamente ligadas. Pode mesmo dizer-se que o dolo da tentativa é o mesmo do delito consumado; o bem jurídico violado ou simplesmente posto em perigo é também o mesmo.
A alínea a) do artigo 22º, nº 2 do Código Penal considera actos de execução os que preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime; no entanto, nem todos os tipos criminais descrevem contudo actividades a que possa subsumir-se a conduta do agente. Daí que ao lado de um critério puramente formal a lei adopte um critério objectivo definindo também como actos de execução: “os que são idóneos a produzir o resultado típico” (alínea b) do artigo 22º) e “os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, são de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores” (alínea c) do mesmo artigo).
In casu, resultou também provado que o arguido praticou actos de execução do referido crime, uma vez que praticou actos que constituem elementos constitutivos do tipo de crime (o arguido deslocou-se a casa da ofendida, contactou-a telefonicamente, proferiu a ameaça, exigiu o dinheiro).
O artigo 23º, nº 1 do Código Penal contém a regra fundamental da punibilidade da tentativa: “salvo disposição em contrário, a tentativa só é punível se ao crime consumado respectivo corresponder pena superior a 3 anos de prisão”. Constatamos assim que a tentativa é punível, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 23º e 223º do Código Penal.
Ou seja, em suma, cometeu o arguido o crime de extorsão, na forma tentada por que vinha acusado.
Estabelece, no entanto, o artigo 24º do Código Penal, que “1- A tentativa deixa de ser punível quando o agente voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime, ou impedir a consumação, ou, não obstante a consumação, impedir a verificação do resultado não compreendido no tipo de crime. 2 — Quando a consumação ou a verificação do resultado forem impedidas por facto independente da conduta do desistente, a tentativa não é punível se este se esforçar seriamente por evitar uma ou outra”.
Ao decretar o benefício da isenção pretende o legislador evitar a consumação material do crime mas exige que isso aconteça por "obra" do próprio agente, que fica obrigado a uma actividade própria.
No caso ora em apreço, constatamos que o arguido só não logrou levar a cabo a sua conduta atenta a intervenção da PSP. Não tem, assim, aplicação o preceituado no artigo 24º do Código Penal.
Não existe qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, pelo que concluímos que o arguido cometeu o crime de extorsão, na forma tentada por que vinha acusado, p. e p. pelos artigos 22º, 23º e 223º, n.º 1 e 3 do C. Penal, devendo pelo mesmo ser punido.

IV. DAS CONSEQUÊNCIAS JURIDICAS DO CRIME

A todo o crime corresponde uma reacção penal, pela qual a comunidade expressa o seu juízo de desvalor sobre os factos e a conduta realizada pelo arguido.
O crime de extorsão previsto no n.º 3 do artigo 223º é punido com pena de prisão de 3 a 15 anos.
“In casu”, cumpre, em primeiro lugar, determinar os limites da moldura penal aplicável ao crime de extorsão, na forma tentada.
Nos termos do preceituado no artigo 23º, n.º 2 do Código Penal, “a tentativa é punível com a pena aplicável ao crime consumado, especialmente atenuada”.
A atenuação da pena é feita de acordo com o artigo 73º do Código Penal, que estabelece, na parte que ora nos interessa, que “1 — Sempre que houver lugar à atenuação especial da pena, observa-se o seguinte relativamente aos limites da pena aplicável: a) O limite máximo da pena de prisão é reduzido de um terço; b) O limite mínimo da pena de prisão é reduzido a um quinto se for igual ou superior a três anos e ao mínimo legal se for inferior; (…)”, sendo certo que o limite mínimo da pena de prisão é o estabelecido no artigo 41º, n.º 1 do Código Penal (um mês).
Assim, de acordo com o supra exposto, concluímos que o crime de extorsão na forma tentada, é punível com a moldura penal abstracta de pena de prisão de 7 meses e 6 dias a 10 anos.
No entanto, salientamos aqui que o Ministério Público recorreu ao preceituado no artigo 16º, n.º3 do Código de Processo Penal, que estabelece que “3 — Compete ainda ao tribunal singular julgar os processos por crimes previstos na alínea b) do n.º 2 do artigo 14.º, mesmo em caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação, ou, em requerimento, quando seja superveniente o conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos. 4 — No caso previsto no número anterior, o tribunal não pode aplicar pena de prisão superior a 5 anos”. Assim sendo, não obstante o limite máximo da moldura penal ser superior, será, em função do preceituado no artigo 16º, n.º 3 do CPP, limitado a 5 anos de prisão.
Assim sendo, o crime de extorsão praticado pelo arguido é punível com a moldura penal abstracta de pena de prisão de 7 meses e 6 dias a 5 anos de prisão.

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Cumpre agora proceder à determinação da pena, a qual deve operar-se dentro dos limites da moldura abstracta aplicável aos tipos legais de crime em apreço, avaliando os comportamentos delituosos dentro desse enquadramento jurídico-legal, procurando adequar a sanção em função da culpa, tendo sempre em consideração as exigências de prevenção que o caso dita.
A pena graduar-se-á, nos termos do artigo 71.º do Código Penal, tendo em consideração “a culpa do agente e (d)as exigências de prevenção”, bem como todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele (cfr. n.º 2).
Em caso algum a pena pode exceder a medida da culpa do agente, sob pena de se postergar o fundamento último de toda e qualquer punição criminal, que é a dignidade da pessoa humana, tal como resulta do artigo 40º nº 2 do Código Penal. A culpa constitui assim, “o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Parte Geral - II, Lisboa, 1993).
Nas exigências de prevenção, estabelecidas no artigo 40º do Código Penal, incluem-se tanto a vertente da prevenção especial como as da prevenção geral.
A prevenção geral, que é positiva ou de integração visa reafirmar a confiança da comunidade na validade e vigência da norma que foi alvo de ataque pela conduta do agente, fixando o patamar mínimo da pena.
A prevenção especial é entendida como positiva, com vista a permitir ao agente a interiorização dos valores jurídico-penais com os quais a sua conduta não se conformou, através da execução da pena que lhe é aplicada, tentando que o agente não volte a cometer novos ilícitos criminais.
A coordenação de todos estes factores na determinação da medida concreta da pena deverá fazer-se do seguinte modo: a prevenção geral determinará o mínimo abaixo do qual a intervenção punitiva do Estado seria de todo ineficaz para restabelecer a confiança comunitária na norma, e ao mesmo tempo o máximo, que será o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e de estabilização das expectativas comunitárias; a culpa, como referimos, funcionará sempre como limite máximo inultrapassável da pena, ainda que abaixo do óptimo encontrado quando operando com critérios de prevenção geral; por último, dentro da moldura assim encontrada, funcionará a prevenção especial positiva que determinará o quantum necessário para permitir ao arguido a sua ressocialização.

Impõe-se, então, no caso concreto, considerar as necessidades de prevenção geral, que são muito acentuadas, uma vez que se trata de um tipo de crime que provoca grande alarme social, gerando nas vítimas um forte sentimento de insegurança.
Por outro lado, são também elevadas as necessidades de prevenção especial, uma vez que o arguido foi já condenado pela prática de um crime de crime de burla qualificada, também um crime contra o património.

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A medida da pena determina-se em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção, no caso concreto (artigo 71º, n.º 1 do Código Penal), atendendo-se a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (n.º 2 do artigo 71º do Código Penal).
De acordo com os critérios do artigo 71.º, releva contra o arguido a intensa ilicitude da conduta do arguido, pois para além da propriedade, também a liberdade de determinação é atingida pela conduta do arguido. Tal intensidade revela-se ainda na gravidade da ameaça (regar a ofendida com ácido sulfúrico). bem como na circunstância de o crime ora em apreciação ter sido praticado no decurso do período de suspensão da execução de pena de prisão a que foi condenado.
Ilicitude intensa a que acresce o facto de o arguido ter agido com dolo directo. Salientamos ainda os antecedentes criminais que o arguido tem, em especial a condenação anterior por crime da mesma natureza (de burla qualificada). Por fim, também a culpa relevada no cometimento do crime se afigura grave, tendo-se ainda em consideração a gravidade da ameaça. Neste sede o tribunal não terá em consideração o valor elevado reclamado pelo arguido uma vez que o mesmo faz parte do tipo qualificado por que o arguido vem acusado.
A seu favor, atendemos à circunstância de ter, na generalidade e ainda que depois da produção de prova, admitido os factos de que vinha acusado, o que revela, naturalmente, uma atitude de cooperação com a Justiça e ao facto de se encontrar profissional e familiarmente inserido. Para além disso é também de valorar o comportamento posterior do arguido, inexistindo condenações ulteriores aos factos aqui apreciados que, note-se, são de 2004.
Assim, apontados os critérios gerais de determinação da medida concreta da pena e as especificidades do caso concreto, sabendo que a pena a aplicar ao arguido deverá ser o reflexo de todos os critérios, factores e elementos supra enunciados, afigura-se-nos justo e equilibrado condenar o arguido R...na pena de 1 ano e 8 meses (um ano e oito meses) de prisão pela prática, em autoria material, de um crime de extorsão, na forma tentada, por que foi acusado, adequando, assim, a pena à culpa do arguido, dentro da necessidade de tutela do bem jurídico e no quadro das exigências de prevenção geral.
Cumpre agora aferir se a pena concreta aplicada ao arguido pode ser substituída por alguma das previstas no Código Penal.
A pena substitutiva prevista no artigo 43º n.º 3 do mesmo preceito legal é desadequada ao caso sub júdice, na medida em que o crime em causa não foi cometido no exercício de profissão ou função.
Assim, ponderamos agora a aplicação da suspensão da execução da pena de prisão, prevista nos artigos 50.º e ss.
Dispõe o artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal (na redacção dada pela lei vigente à pratica dos factos) que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a três anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”.
Este preceito consagra um poder-dever, ou seja um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos. Para este efeito, é necessário que o julgador, reportando-se ao momento da decisão e não ao da prática do crime, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição. Este juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido pode assentar numa expectativa razoável de que a simples ameaça da pena de prisão será suficiente para realizar as finalidades da punição e consequentemente a ressocialização do arguido, ou dito de outro modo, a suspensão da execução da pena “deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao réu, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-06-2007, in www.dgsi.pt).
No caso vertente verifica-se que o arguido se encontra familiar e profissionalmente inserido, não existindo notícia de qualquer condenação posterior aos factos aqui apreciados, sendo de salientar que os mesmos se reportam a 2004.
Deste modo, entendemos que tais censura e ameaça desempenharão um papel pedagógico, forçando o arguido a consciencializar-se da gravidade da sua conduta, sem que, para tanto, necessite de sofrer os efeitos criminógenos resultantes do cumprimento de uma pena de prisão efectiva.
Pelo exposto, deverá a pena de prisão de 1 ano e 8 meses em que o arguido foi condenado, ser suspensa.
Contudo, quanto ao período de suspensão ter-se-á em conta a sucessão de leis penais entretanto ocorrida com a entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.
Ora, verificando-se uma verdadeira sucessão de leis penais, há que determinar qual das leis em confronto é concretamente mais favorável ao infractor. Tal decisão pressupõe que o tribunal realize todo o processo de determinação da pena concreta face a cada uma das leis (artigo 2º, n.º 4 do Código Penal).
Assim, à luz da lei vigente à data dos factos (texto anterior à Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, o n.º 3 do artigo 50º estabelecia que “o período de suspensão é fixado entre 1 e 5 anos a contar do transito em julgado da decisão”. E, avança o actual n.º 5 que “o período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão”.
Tendo em conta os factos supra mencionados, fixo ao arguido, nos termos do artigo da lei vigente à data dos factos, a suspensão em 1 ano e 8 meses e à luz da lei actual, em igual período. Ora, atento o disposto no art. 2º nº 1 do Código Penal, “as penas (…) são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto”, salvo se, em concreto, o regime posterior se mostrar mais favorável ao agente (cfr. n.º 4).
In casu, o regime posterior não se mostra mais favorável ao arguido, sendo o período de suspensão da pena exactamente o mesmo pelo que, recorrendo à regra geral estabelecida no n.º 1 do artigo 2º do Código Penal, se aplicará o regime vigente à data da prática dos factos.
Decido, assim, suspender a execução da pena de prisão de 1 ano e 8 meses aplicada ao arguido por igual período.
Por outro lado, estabelece o n.º 2 do mencionado preceito legal que “os deveres, regras de conduta e o regime de prova podem ser impostos cumulativamente”, estabelecendo o artigo 51º, sob a epigrafe “Deveres” que “A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente: a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea (…).
Assim, com os fundamentos supra expostos, entendo adequado suspender a execução da pena de prisão em que o arguido vai condenado, subordinando-a ao pagamento à ofendida da quantia que se vier a apurar em sede de pedido de indemnização civil.

V. Do Pedido de Indemnização Cível


A ofendida, B..., apresentou pedido de indemnização cível, peticionando a condenação do arguido no pagamento da quantia não inferior a € 5.000,00, a título de danos não patrimoniais.
Suscitou a defesa a questão da contradição entre o pedido e a causa de pedir, uma vez que os danos alegados são todos não patrimoniais, mas no pedido se fala apenas em danos patrimoniais. Dúvidas não restam a este tribunal que se trata de um mero lapso de escrita, uma vez que é evidente que os danos peticionados são não patrimoniais, já que, como bem salientou a defesa, não foram alegados, nem, em consequência, provados, danos patrimoniais.
Cumpre apreciar e decidir.
Da matéria de facto provada e da apreciação que dela foi feita no tocante à responsabilidade criminal do demandado resulta claro, face ao disposto nos artigos 483.º, n.º 1, e 487.º, n.º 1, ambos do Código Civil, ter-se o mesmo constituído na obrigação de indemnizar a demandante pelos danos causados pela sua conduta.
Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
São, assim, pressupostos da obrigação de indemnizar a existência de um facto voluntário do agente; a ilicitude desse mesmo facto consubstanciada na desconformidade entre a conduta devida e a efectivamente praticada; a imputação do facto ao agente; o dano e o nexo de causalidade entre a conduta e o dano.
Da matéria de facto dada como provada, resulta que o arguido actuou de forma voluntária e que a sua conduta é ilícita (conforme resulta, aliás, das conclusões elencadas a propósito da subsunção do comportamento do arguido à previsão e estatuição do artigo 223.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal).
Por outro lado, dos factos provados resulta também verificada a existência de danos (não patrimoniais) sofridos pela demandante, assim como a existência de um nexo de causalidade entre a conduta do demandado e os danos verificados.
No que diz respeito aos danos não patrimoniais, importa considerar que os mesmos se traduzem em prejuízos que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, atingem bens que não integram o património do lesado. Tais prejuízos, atenta a sua natureza, não são susceptíveis de reparação mediante reconstituição natural, nem sequer de indemnização, mas tão só de compensação (ANTUNES VARELA, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 9ª Edição, 1996, Almedina, pág. 935). Nesta medida, encontra-se prevista, em termos gerais, a sua ressarcibilidade, se bem que limitada àqueles danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito - cfr. artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil - devendo atender-se a um padrão objectivo em face das circunstâncias do caso em apreciação.
Concluindo-se pela ressarcibilidade de tais danos, o montante da respectiva indemnização, por outro lado, deverá ser fixado de modo equitativo, face ao caso concreto, considerando-se, designadamente, o grau de culpabilidade do agente, a sua situação económica e a do lesado – cfr. artigos 496.º, n.º 3, e 494.º, ambos do Código Civil. Devem igualmente ser considerados os padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência e as flutuações do valor da moeda (ANTUNES VARELA, in ob. cit., pág. 629.)
No caso concreto, resultou provado que a demandante, em consequência da conduta do arguido, teve medo, andava nervosa, com medo de andar sozinha, temendo que o arguido concretizasse actos atentatórios da sua integridade física e até mesmo da sua vida. Teve dificuldade em dormir, tomando medicamentos para o efeito e na sua vida profissional, evitava reuniões com médicos em consultórios mais isolados. Nos meses seguintes ao sucedido temeu pela sua integridade física e pela própria vida, em consequência directa do que o demandado disse que faria se ela não entregasse o dinheiro que ele exigia. Recorreu a ajuda médica, tomando medicamentos para controlar o sistema nervoso.
Nesta conformidade, atento o circunstancialismo do caso concreto, consideramos adequado e equitativo condenar o demandado a pagar à demandante uma indemnização a título de danos não patrimoniais no valor de €2.000,00 (dois mil euros).”
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III. Apreciação dos Recursos:
O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P.
Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais para se obter o reexame da matéria que foi sujeita à apreciação da decisão recorrida e não vias jurisdicionais para um novo julgamento.
As declarações oralmente prestadas em audiência foram documentadas em acta por referência aos respectivos suportes áudio, nos termos estipulados no artigo 363.º do C.P.P.
Deste modo, deverá conhecer este Tribunal de facto e de direito, de acordo com o artigo 428.º, n.º 1, do C.P.P. As questões a conhecer são as seguintes:
1. Saber se deve haver alteração da matéria de facto, por estarem incorrectamente julgados os factos descritos nos Pontos G, K, L, N, P, Q, R, S, T, U e Z.
2. Saber se há violação do princípio in dubio pro reo.
3. Saber se o tribunal recorrido valorou um meio de prova ilegal, ao levar em consideração o depoimento da demandante cível.
4. Saber se o tribunal recorrido fundamentou a sua decisão em prova proibida, ao valorar o depoimento da testemunha H..., obtido por carta rogatória, sem que o mesmo tivesse sido lido em Audiência.
5. Saber se há uma equívoca aplicação das regras da atenuação especial da pena na punibilidade da tentativa.
6. Saber se é exagerado o quantum indemnizatório atribuído à demandante cível. ****
1. Da impugnação da matéria de facto:
O recorrente considera que foram incorrectamente julgados os factos descritos nos Pontos G, K, L, N, P, Q, R, S, T, U e Z.
Pois bem, impõe-se deixar claro, para que fique clarificada a abordagem à questão suscitada no recurso, qual o tipo de impugnação trazido aos autos. O recorrente pretende, ao fim e ao cabo, invocar um dos vícios oficiosos do artigo 410º, do CPP, assim impugnando a matéria de facto dada como provada, ou pretende reapreciar a matéria dada como provada, nos termos do artigo 412º, n.º 3 do CPP? Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP. **** Estabelece o art. 410.º, n.º 2, do CPP, que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente. A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito. A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes). Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74). Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
O erro de julgamento, por seu turno, consagrado no artigo 412º, nº 3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP. Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P.P.: «3.Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar: a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c)-As provas que devem ser renovadas». A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Além disso, o n.º 4, do citado artigo 412.º contempla o seguinte:Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.Ora, no caso em apreço, o recorrente está claramente no âmbito do disposto no artigo 412.º, do CPP, na medida em que faz apelo a elementos exteriores ao teor da sentença recorrida (declarações do arguido, declarações da demandante cível, depoimentos de testemunhas)
**** Ora, pretendendo o recorrente impugnar a matéria de facto nos termos acabados de mencionar, tem de respeitar as regras previstas na lei, ou seja, há-de cumprir o ónus de impugnação especificada imposto no art. 412.º, n.º s 3 e 4, do Código de Processo Penal (redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto), de indicação pontual, um por um, dos concretos pontos de facto que reputa incorrectamente provados e não provados e de alusão expressa às concretas provas que impelem a uma solução diversificada da recorrida e às provas que devem ser renovadas - als. a), b) e c) do n.º 3 -, sendo certo que, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. b) e c) fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação (n.º 4). A especificação dos “concretos pontos de facto só se mostra cumprida com a indicação expressa do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que o recorrente considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente, tanto a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença e/ou da acusação, como a referência vaga e imprecisa da matéria de facto que se pretende seja reapreciada pelo Tribunal da Relação. Como todos sabem, uma vez que o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo, sem esquecer que, nesta especificação, serão totalmente inconsequentes considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão. Tenhamos presente, neste sentido, o Ac. do S.T.J. de 24/10/2002, proferido no Processo n.º 2124/02, em que pode ser lido o seguinte: “(…) o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida – art.º 412.º, n.º 3, als. a) e b) do C.P.P. e levam à transcrição (n.º 4 do art.º 412.º do C.P.P.).
Se o recorrente não cumpre esses deveres, não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique erros de julgamento que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes”.
Mais, como se observa no Acórdão do S.T.J. de 26/1/2000, publicado na Base de Dados da DGSI (www.dgsi.pt) sob o n.º SJ200001260007483: “Não são os sujeitos processuais (nem os respectivos advogados) quem fixa a matéria de facto, mas unicamente o Tribunal que apura os factos com base na prova produzida e conforme o princípio da livre convicção (artigo 127.º, do Código de Processo Penal), aplicando, depois, o direito aos mesmos factos, com independência e imparcialidade”. Acresce que a exigência legal de especificação das “concretas provas” impõe a indicação do conteúdo específico do meio de prova. Tratando-se de prova gravada, oralmente prestada em audiência de discussão e julgamento, deve o recorrente individualizar as passagens da gravação em que baseia a impugnação, ou seja, estando em causa declarações/depoimentos prestados em audiência de julgamento, sobre o recorrente impende o ónus de identificar as concretas provas que, em sua interpretação, e relativamente ao(s) ponto(s) de facto expressamente impugnados, impõem decisão diversa, e bem assim de concretizar as passagens das declarações (do arguido, do assistente, do demandante/demandado civil) e dos depoimentos (caso das testemunhas) em que se ancora a impugnação. Para atingir esse desiderato, aderimos à posição defendida no Acórdão de 14/7/2010, Processo n.º 508/07.7GCVIS.C1, deste Tribunal da Relação de Coimbra, relatado pelo Exmo. Desembargador Alberto Mira, in www.dgsi.pt, onde se considera que o recorrente, a par da indicação das concretas provas, há-de proceder de uma das seguintes formas: - Reproduzir o conteúdo da prova que, para o fim em vista (impugnação dos concretos pontos de facto), considere relevante; - Expor, ainda que em súmula, os segmentos pertinentes das declarações/depoimentos; ou - Situar objectivamente o segmento da declaração/depoimento em causa por referência a específicas circunstâncias ocorridas. Mas tal não basta. Na realidade, o recorrente deve explicitar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, visa precisamente obrigar o recorrente a relacionar o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado, conforme defende Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 1134/1135. Tudo o que vem de ser exposto significa, pois, que as menções exigidas pelo artigo 412.º, n.º s 3 e 4, do CPP, não traduzem um ónus de natureza puramente secundário ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Antes de avançarmos para a análise concreta do caso, importa, ainda, sublinhar que, no domínio da Lei n.º 59/98, de 25-08, impunha o artigo 412.º, n.º 4, do CPP, que as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 se fizessem por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição. E como decorria da lógica imediata da sequência dos procedimentos, só após a identificação, no recurso, dos suportes técnicos de gravação, haveria que proceder à transcrição do que fosse relevante – não transcrição de toda a prova, mas apenas dos elementos que se mostrassem previamente identificados e referidos pelo recorrente no cumprimento do ónus de especificação que se lhe impunha a referida norma do artigo 412.º, n.º 4. A transcrição era um acto posterior que incumbia, não ao recorrente, mas ao tribunal efectuar (cfr. Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º 2/2003, de 16-01-2003, in DR, I série-A, de 30-01-2003), nos termos e na medida delimitada previamente pelo recorrente, destinando-se a permitir (rectius, a facilitar) então ao tribunal superior a apreciação, nos limites do recurso, da prova documentada. A Lei n.º 48/2007, de 29-08, mudou radicalmente o regime de impugnação da matéria de facto e, entre outras alterações, afastou a transcrição da prova, no caso regra de utilização da gravação magnetofónica ou audiovisual (artigo 364.º, n.º 1, do CPP). A prova não deve ser transcrita, devendo o tribunal de recurso, uma vez cumpridas todas as formalidades previstas no artigo 412.º, n.º s 3 e 4, proceder ao controlo dessa prova por via da audição ou da visualização dos registos gravados (artigo 412.º, n.º 6), com base na indicação pelo recorrente das passagens da gravação em que funda a impugnação (artigo 412.º, n.º 4).
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No caso em apreço, não restam dúvidas de que o recorrente individualiza os factos que tem por indevidamente julgados, por referência à factualidade dada como provada pelo tribunal de 1.ª instância.
Assim, indica os pontos G, K, L e N (relativos à ameaça de mal importante), P, Q, R, S, T e U (respeitantes aos danos morais) e Z.
Vejamos.
Em primeiro lugar, o recorrente agrupa os pontos G, K, L e N.
Em seu entender, o depoimento da testemunha D... impõe alteração da matéria de facto.
Baseia-se no seguinte:
a) A testemunha disse que a ofendida, quando falou consigo, na esquadra da PSP, não estava acompanhada por H..., mas sim por sua irmã, como afirmado por aquela em audiência de julgamento;
b) A testemunha disse que, na esquadra da PSP, não houve qualquer chamada telefónica em alta voz, assim como não chegou a ouvir qualquer referência a ácido sulfúrico;
c) O arguido negou que tenha ameaçado a ofendida com ácido sulfúrico.
Quanto a isto, é preciso deixar claro que a análise da prova feita pelo arguido revela pouca consistência.
De facto, a testemunha D..., ao longo do seu depoimento, disse que a ofendida se deslocou por várias vezes à esquadra da PSP, bastante perturbada, nervosa, demonstrando medo, sendo certo que nem sempre com ela falou directamente.
Na gravação (05:42:06:00), a referida testemunha esclarece, até, que a ofendida tinha estado na esquadra com uma amiga, mais tarde voltou com a irmã, e, depois disso, regressou só, o que denota que existiram vários contactos com elementos policiais diferentes.
Logo, não é verdade que D... tenha afirmado que só a irmã da ofendida a tenha acompanhado à esquadra da PSP.
Além disso, também não é verdade que esta testemunha tenha afirmado que não houve chamada telefónica em alta voz.
Na realidade, ao ser interrogado sobre tal assunto, D..., limitou-se a responder que “não posso precisar” e “admito que possa ter havido, mas não me lembro” (04:40).
Tais afirmações não configuram uma exclusão absoluta quanto à existência da mencionada chamada, antes manifestam uma possibilidade de ela ter existido, não podendo ser esquecido que a audiência de julgamento decorreu cerca de seis anos depois dos factos.
Por fim, no que tange às declarações do arguido, certamente que não podem justificar uma alteração da matéria de facto.
Com efeito, o arguido entendeu por bem só prestar declarações sobre a matéria constante da acusação produzida que estava a prova testemunhal.
Quando o fez, embora salientasse que já não se lembrava bem do sucedido, efectuou quase uma confissão integral dos factos, chegando a admitir que telefonou à ofendida para exigir dinheiro através de ameaças – “coisas que a gente faz na vida”, chegou a dizer.
A propósito das ameaças, declarou “posso ter dito outras coisas quaisquer, agora ácido sulfúrico…não”.
Estamos, nitidamente, perante uma negação algo tímida e desconexa, no tocante à concretização das expressões utilizadas. O arguido admite que ameaçou, mas, ao mesmo tempo, curiosamente, afirma que a ameaça constante da acusação não chegou a existir…
Em resumo, nada de assertivo, nesta matéria, existe que possa impor uma alteração da matéria de facto.
Em segundo lugar, o arguido reúne os pontos P, Q, R, S, T e U.
No que diz respeito a estes factos, é entendido que impõe-se uma alteração dos factos porque só a ofendida falou sobre eles, nada mais existindo que os prove.
Não há muito a dizer sobre isto, a não ser que as testemunhas LS… e MM… prestaram depoimentos que, em resumo, confirmaram a matéria de facto ora em causa.
E não se diga que o ponto Q está em contradição com o ponto 18 dos factos não provados. Uma coisa é “ter medo de andar sozinha”, outra coisa é “não conseguir estar sozinha em casa, nem tomar um café sozinha”. No primeiro caso, estamos face a um estado de espírito, em sentido lato, no segundo caso, estamos face a um aspecto concreto da conduta da arguida.
Também aqui não assiste, pois, razão ao recorrente.
Em terceiro lugar, o arguido indica o ponto Z.
Segundo o recorrente, este ponto retrata matéria de direito e impõe-se que, por isso, seja expurgado da factualidade provada.
Não faz sentido, salvo o devido respeito, esta posição.
Este facto (não estamos perante matéria de direito) acaba por ser favorável ao arguido, na medida em que dele resulta, em resumo, uma confissão parcial dos factos, ainda que produzida em momento tardio e pouco relevante.
Por isso, nada há para alterar.
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2) Do princípio in dubio pro reo:
Não se argumente que o Tribunal devia ter assumido haver dúvida razoável, por força do princípio in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP.
Não estamos perante qualquer violação do princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP.
De acordo com Cavaleiro Ferreira, «Lições de Direito Penal», I, pág. 86, este princípio respeita ao direito probatório, implicando a presunção de inocência do arguido que, sendo incerta a prova, se não use um critério formal como resultante do ónus legal de prova para decidir da condenação do arguido que terá sempre de assentar na certeza dos factos probandos. O julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência, tiver dúvidas sobre qualquer facto. Como todos sabem, um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, conforme ensina Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, I, pág. 213 – já Ulpiano dizia “é melhor um crime impune do que um inocente castigado”. Ora, o alegado processo não pode ser uma válvula de escape para um “buraco negro”, devendo assentar em alicerces bem precisos e fundamentados. Todavia, não é qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido. Na realidade, a dúvida tem que assumir uma natureza irredutível, insanável, sem esquecer que, nos actos humanos, nunca se dá uma certeza contra a qual não haja alguns motivos de dúvida – cfr., a este propósito, Cristina Monteiro, “In Dubio Pro Reo”, Coimbra Editora, 1997. Não obstante o que acabamos de referir, importa ter bem presente, conforme é referido por Germano Marques da Silva, “ Curso de Processo Penal”, pág. 82, que é clássica a distinção entre prova directa e prova indiciária. Aquela refere-se ao tema da prova, enquanto a prova indirecta se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência comum, uma ilação quanto ao tema da prova. De acordo com André Marieta, “La Prueba em Processo Penal”, pág. 59, são dois os elementos de prova indiciária: a) o indício, que será todo o facto certo e provado com virtualidade para dar a conhecer outro facto que com ele está relacionado. O indício, em resumo, constitui a premissa menor do silogismo que, associado a um princípio empírico ou a uma regra de experiência, vai permitir alcançar uma convicção sobre o facto a provar; b) a presunção, que é a inferência que, obtida do indício, permite demonstrar um facto distinto. A presunção, em síntese, é a conclusão do silogismo constituído sobre uma premissa maior – a lei baseada na experiência, na ciência ou no sentido comum – que, apoiada no indício – premissa menor – permite a conclusão sobre o facto a demonstrar. Acontece que nada impede, antes impõe o bom senso da comunidade que, devidamente valorada, a prova indiciária, por si, na conjugação dos indícios, permita fundamentar a condenação – cfr. Mittermaier, “Tratado de Prueba em Processo Penal”, pág. 389.
Caso contrário, o julgador seria um interveniente acrítico no processo, um mero receptor de mensagens…
Significa isto que o julgador, alicerçando-se em factos certos, pode fazer apelo às denominadas presunções materiais ligadas à normalidade da vida e às regras da experiência – cfr. Eduardo Correia, “Revista de Direito e Estudos Sociais”, XIV, pág. 24 e Cavaleiro Ferreira, “Curso de Processo Penal”, pág. 314. Estas presunções, como é evidente, não são presunções de culpa. Constituem, antes, parcelas de um processo de pensamento lógico de que o julgador não pode prescindir, sob pena de não ser a prova apreciada e valorada em toda a sua extensão.
Lendo a fundamentação da decisão ora em crise, facilmente é constatado que o tribunal a quo não ficou com qualquer dúvida sobre a matéria de facto, tendo feito apelo, com ponderação, às aludidas presunções materiais associadas à normalidade da vida e às regras da experiência comum, em conjugação com toda a prova produzida em audiência.
A fundamentação de facto acima transcrita é consistente e racional.
O princípio geral do processo penal ora em análise é aplicável apenas nos casos em que, apesar de toda a prova recolhida, continuam os factos relevantes para a decisão a não poderem considerar-se como provados por continuar a subsistir dúvida razoável do Tribunal.
O princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos. É, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.
No caso vertente, o Tribunal “a quo” não se quedou por um non liquet de facto, ou seja, não permaneceu na dúvida razoável sobre os factos relevantes à decisão, pelo que não há lugar a qualquer aplicação do princípio in dubio pro reo (a dúvida reside apenas no recorrente e não no Tribunal).
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3. Das declarações da demandante cível:
O recorrente começa por defender que, quando o tribunal a quo determina, oficiosamente, a tomada de declarações à parte civil, deve obrigatoriamente tal decisão revestir a forma de despacho, devidamente fundamentado.
No nosso caso, a acusação foi deduzida em 13/1/2009 (fls. 137-139), tendo sido indicada a seguinte prova testemunhal: a) Chefe D..., PSP de Coimbra; b) B...; c) H… .
Mais tarde, em 2/2/2009, B... , ofendida nos autos, veio deduzir, pedido de indemnização civil.
Durante a audiência de julgamento, em 13/12/2010, conforme acta de fls. 370-374, antes de ser inquirida B..., a Meritíssima Juiz proferiu o seguinte despacho:
Constata-se agora que a testemunha B... foi indicada como testemunha, no entanto a mesma é demandante, pelo que será ouvida nessa qualidade (cfr. artigos 347º e 145º, do CPP).
Dito isto, não vislumbramos qualquer vício.
Não se complique o que é fácil.
Estamos face a uma situação frequente no quotidiano dos tribunais. Alguém que figura como testemunha de acusação, em dado momento, deduz pedido de indemnização civil, o que vem a ser constatado em audiência de julgamento, motivo pelo qual lhe são tomadas declarações, ao abrigo dos citados artigos, ficando isso a constar de simples despacho em acta.
No caso em apreço, há despacho e há fundamentação.
Importa ter presente o disposto no artigo 97.º, n.º 5, do CPP.
Nele pode ler-se o seguinte:
5 – Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.”
A matriz que, do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, se decantou para os artigos 97.º, n.º 5, 194.º, n.º 3 e, no caso da sentença, para o artigo 374.º, n.º 2, estes do CPP, a induzir a necessidade de autoridade e convencimento das decisões dos tribunais, consente um modo sumário de fundamentar de que, em conjugação lógica com precedentes actos processuais, se possa concluir: a) que o julgador ponderou os motivos de facto e de direito da decisão, não agiu discricionariamente; b) que a decisão tem virtualidade para convencer os interessados e os cidadãos em geral da sua correcção e justiça; e c) que o controlo da legalidade do decidido, nomeadamente por via de recurso, não é prejudicado ou inviabilizado pela forma que tomou. No caso em apreço, resulta do texto da decisão (despacho que ordenou a tomada de declarações) que o Tribunal não decidiu discricionariamente, não impediu o controlo da legalidade da decisão, nem frustrou a apreciação, designadamente pelo destinatário, da correcção e justiça do acto decisório.
Com efeito, ainda que de uma forma algo lacónica, a decisão cumpre o seu dever de fundamentação.
Aliás, nos tempos que correm, cada vez mais é exigida celeridade processual, a qual não se compadece com decisões judiciais exaustivas, sempre que a simplicidade da questão não é posta em causa, como é o caso.
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Ainda quanto às declarações da demandante cível, o recorrente adianta que o tribunal a quo ancorou a sua Motivação da matéria de facto relativo ao pedido civil, nuclearmente, nas declarações da própria, o que é trazer para o rito processual uma guisa de depoimento de parte.
É evidente que a prova dos factos alegados em sede de pedido cível não pode passar por aquilo que é dito, em exclusivo, pelo demandante.
Tal não merece sequer discussão.
Simplesmente, esquece o recorrente que a prova dos factos respeitantes ao pedido cível (só danos não patrimoniais) se baseou, também, nos depoimentos das testemunhas LS… e MM…, ou seja, não se cingiu ao que foi afirmado pela ofendida, indo para além disso.
Por conseguinte, não assiste razão ao arguido.
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4. Da valoração do depoimento da testemunha H... , obtido por carta rogatória, sem que o mesmo tivesse sido lido em Audiência:
Neste campo, o arguido defende que o tribunal a quo não procedeu à leitura em audiência de julgamento do depoimento da indicada testemunha, contido em carta rogatória (fls. 273 e seguintes), pelo que se estribou numa verdadeira prova proibida.
Fundamenta a sua argumentação no disposto nos artigos 355º e 356º, ambos do CPP.
Dos citados artigos, pode concluir-se apenas que é permitida, em audiência, a leitura de declarações de partes civis obtidas mediante rogatórias legalmente permitidas. O Tribunal teve em consideração o teor da carta rogatória junta aos autos (o que foi devidamente notificado aos sujeitos processuais, de forma a garantir-se o contraditório, cfr. despacho de fls. 347 dos autos, os quais nada requereram – ver, também, fls. 348, 350 e 352), na qual o depoimento da testemunha H... se encontra. Tal meio de prova, nos termos do disposto no artigo 355.º, n.º 2, e 356.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, é um meio de prova permitido. Na verdade, se a regulamentação do processo penal não previsse alguma excepção aos princípios da oralidade e da imediação iriam criar-se situações impeditivas de se chegar aos elementos do crime. O processo ter-se-ia desenvolvido, eventualmente, conforme à sua dialéctica própria, ainda assim, seria uma dialéctica destituída de conteúdo (Tonini, Cade la concezione massimalista dell’immediateza, in RIDPP, 1992, 1137). Objectivo do legislador não é o de afirmar princípios abstractos, mas o de construir um instrumento aceitável que dê garantias no apuramento dos factos criminosos e fazer justiça aos cidadãos. Um processo completamente oral é uma utopia irrealizável, a não ser com custos sociais insuportáveis. Nos termos do art. 230º, nº 2, do CPP, “ As rogatórias às autoridades estrangeiras só são passadas quando a autoridade judiciária competente entender que são necessárias à prova de algum facto essencial para a acusação ou para a defesa” pelo que, respeitados os pressupostos aludidos, tem fundamento legal a expedição de uma carta rogatória necessária à prova de um facto essencial para o processo criminal. O art. 318º, do CPP, prevê a possibilidade das declarações não serem prestadas presencialmente podendo, nesse caso, ser solicitadas por meio de carta, nomeadamente rogatória, cfr art. 111º, nº 3, al. b), do CPP. Aliás, a lei nº 144/99 de 31.8 (LCJMP) prevê o auxílio judiciário mútuo em matéria penal que compreende, designadamente, a audição de testemunhas - cfr. artigo 145º, nº 2 al. d) -, pelo que a carta rogatória aludida, como se referiu, tem como pano de fundo um determinado contexto legal que torna legitima a sua expedição e consequente valoração. A carta rogatória, uma vez junta aos autos, é considerada um documento (à semelhança do que acontece com as cartas precatórias) pelo que a sua leitura em audiência não é obrigatória (considera-se “examinada” e produzida em audiência independentemente de nesta ter sido feita a respectiva leitura e menção em acta, sendo, contudo, a respectiva leitura permitida, à semelhança do que acontece com as cartas precatórias pois comungam da mesma natureza - cfr artigo 356º, nº 2, al. c), do CPP). Consequentemente, a não leitura em audiência das declarações constantes da carta rogatória em causa não viola nenhum princípio, designadamente o do contraditório, na medida em que tal leitura não é obrigatória e o recorrente teve prévio conhecimento do conteúdo da mesma como resulta dos autos.
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5. Da equívoca aplicação das regras da atenuação especial da pena na punibilidade da tentativa:
O Tribunal a quo fixou como limite máximo da pena aplicável 5 anos de prisão e limite mínimo 7 meses e 6 dias, nos termos que constam da sentença recorrida (fls. 392-393).
O recorrente não concorda com isso, alegando que, uma vez que o Ministério Público pugnou pela não aplicação de pena superior a 5 anos, o limite máximo deveria ser fixado em 3 anos e 3 meses, nos termos do artigo 73º, do C. Penal.
Dispõe o n.º 3, do artigo 16.º, do C.P. Penal. «Compete ainda ao tribunal singular julgar os processos por crimes previstos no artigo 14º, nº 2, alínea b), mesmo em caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação ou, em requerimento, quando seja superveniente o conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a cinco anos.» O n.º 4 do mesmo artigo, por sua vez, preceitua que, nesse caso, o tribunal não pode aplicar pena de prisão superior a cinco anos. É sabido que chegaram a ser objecto de alguma controvérsia as normas do artigo 16.º, n.º3 e 4, do C.P.P., defendendo alguns autores que violam os princípios do juiz natural, da jurisdição, da legalidade e da igualdade. O Tribunal Constitucional, porém, tem considerado que elas não colidem com qualquer das garantias do processo criminal consagradas na Constituição (o B.M.J. 394 contém, nas páginas 188 e 189, uma relação de Acórdãos do T. C. proferidos neste domínio, nos anos de 1989-1990, que mantém o seu interesse). A lei consagra, pois, no artigo 16.º, n.º3, os termos em que ocorre a determinação in concretum da competência do tribunal singular, por iniciativa do Ministério Público.
Nada mais do que isso. Trata-se de uma realidade de natureza adjectiva, estranha ao conceito de atenuação especial.
O artigo 23.º, n.º 2, do C. Penal, estabelece que a tentativa é punível com a pena aplicável ao crime consumado, especialmente atenuada, ou seja, remete para o tipo de ilícito em causa e não para critérios de fixação de competência.
Fazer incidir a atenuação especial da pena sobre o limite máximo de 5 anos a que alude o artigo 16.º, n.º 3, do CPP, não encontra, portanto, apoio na letra da lei.
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6. Do quantum indemnizatório atribuído à demandante cível:
Por último, o recorrente considera que deve ser reduzido o montante fixado a título de indemnização por danos não patrimoniais, em virtude de o mesmo ser desproporcional e exacerbado.
O valor em causa é de dois mil euros.
Como é consabido, só é admissível impugnação da parte da sentença relativa à indemnização civil se o valor do pedido for superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada for desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada – artigo 400.º, n.º 2, do CPP.
Ora, o montante que o recorrente foi condenado a pagar é, desde logo, inferior a metade da alçada – cinco mil euros, de acordo com o artigo 24.º, n.º 1, da Lei 3/99, de 13/01, pelo que não é admissível o recurso da parte da sentença relativa à matéria cível.
Termos em que, porque irrecorrível, não se admite o recurso nesta parte – artigo 414.º, n.º 2, do CPP.
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IV – DECISÃO:
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em rejeitar o recurso, no que tange ao pedido de indemnização civil, nos termos dos artigos 414.º, n.º 2, e 420.º, n.º 1, al. b), ambos do CPP, e em negar provimento ao mesmo, quanto ao mais.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro UC.

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José Eduardo Martins (Relator)
Isabel Valongo