Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4200/18.9T8VIS.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: PROVA DOCUMENTAL
CONFISSÃO DE DÍVIDA E FIANÇA
PROVA PLENA
PROVA POR TESTEMUNHAS
Data do Acordão: 05/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – J.C. CÍVEL DE VISEU – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 371º, Nº 1, 376º, Nº 1 E 377º DO C. CIVIL .
Sumário: 1. Relativamente a documento particular de “confissão de dívida” e “fiança” autenticado por notário (com o correspondente “termo de autenticação”) consideram-se plenamente provados os factos referidos como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como os factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora, e bem assim as declarações atribuídas aos seus autores (cf. os art.ºs 371º, n.º 1, 1ª parte; 376º, n.º 1 e 377º do CC).

2. Quanto aos factos que se não passaram na presença do notário e quanto às declarações que lhe foram feitas, pode demonstrar-se por qualquer meio que não correspondem à verdade, independentemente de arguição de falsidade do documento.

3. O documento faz assim prova plena quanto à ´materialidade` (prática, efectivação) de tais actos e declarações; mas não quanto à sua sinceridade, à sua veracidade ou à falta de qualquer outro vício ou anomalia.

4. As AA., fiadoras, terceiras em relação à pretensa declaração confessória de dívida (que beneficia o 1º Réu e obriga o 2º Réu), não obstante aquela autenticação e a inerente prova plena, sempre poderiam impugná-la nos termos gerais (pugnando pela declaração da sua invalidade) e invocar quaisquer eventuais divergências entre a realidade e a declaração documentada ou quaisquer perturbações (vícios) do processo formativo da vontade.

5. Provando-se que o 1º Réu não entregou ao 2º Réu, e nem este recebeu determinada quantia, ou seja, comprovada a não entrega (empréstimo) de dinheiro (sendo o contrato de mútuo, um contrato real, que só se completa pela entrega da coisa - cf. os art.ºs 1142º e 1144º do CC), não se poderá afirmar a relação contratual subjacente à questionada confissão de dívida e correlativa fiança.

Decisão Texto Integral:





            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Em 18.9.2018, M...[1], D... e A... intentaram a presente acção declarativa comum contra L... (1º Réu) e A... (2º Réu)[2], pedindo que sejam declaradas a nulidade por simulação da confissão de dívida (constante dos documentos n.ºs 5 e 6) e/ou a anulação por erro-vício das declarações das 1ª e 2ª Autoras na confissão de dívida constante do documento n.º 5 e das declarações das Autoras na confissão de dívida constante do documento n.º 6.

Alegaram, em síntese: a 1ª A. é mulher do 2º Réu, com quem vive, e as restantes são suas filhas; no dia 26.6.2018 e nas demais circunstâncias indicadas na petição inicial (p. i.) o 2º Réu disse à A. M... que o 1º Réu lhe havia emprestado dinheiro para pagar uma dívida referente a um crédito à habitação, já em fase de execução judicial, pelo que pretendia que “assinasse uma confissão de dívida relativa à mesma, com fiança a ser prestada pela sua mulher e filhas”; no dia 27.6.2018, o 1º Réu enviou um documento designado “confissão de dívida”; no dia 28.6.2018, as AA. deslocaram-se a um Cartório Notarial, em ..., onde foi autenticado notarialmente documento de “confissão de dívida”, cujo conteúdo reproduziram no art.º 16º da p. i.; o dito documento surgiu em razão do circunstancialismo descrito nos art.ºs 17º e seguintes da p. i. e porque o 2º Réu, que se sentia “angustiado e moralmente responsável” por ter apresentado determinado negócio “ao 1º Réu e à D.ª M...”, “assentiu no pedido do 1º Réu, para que este pudesse pagar a sua dívida ao cunhado e (…) à D.ª M...”; jamais foi entregue ao 2º Réu qualquer quantia para que este a fizesse sua, fosse a que título fosse; o dito documento designado “confissão de dívida” era apenas para justificar o pedido de dinheiro do 1º Réu a um seu cliente sem dizer que era para si próprio; a vontade declarada por todos os outorgantes no documento autenticado não correspondeu à sua vontade real, pois nem existia qualquer dívida do 2º Réu ao 1º Réu e muito menos qualquer mútuo; quer o teor das “confissões de dívida” apresentadas às AA., da lavra do 1º Réu, quer a justificação transmitida pelo 2º Réu às AA. não correspondiam ao real objecto do negócio subjacente, destinando-se a obter das AA. a prestação de “fiança” em relação a tal suposta dívida emergente de mútuo, que não existiu.

O 1º Réu contestou, referindo, nomeadamente, que o 2º Réu vezes sem conta lhe solicitou diversos empréstimos, sendo as entregas em numerário, e, de modo livre e esclarecido, foi acordado entre ambos a elaboração de uma declaração confessória de dívida, a subscrever por ele e pelas AA. como fiadoras e com a autenticação do documento, de modo que o 1º Réu ficasse munido de “título executivo”; foi neste contexto que surgiu a “confissão de dívida” e a “autenticação” também referidas pelas AA., sendo falsos os factos de sentido contrário alegados na p. i.. Concluiu pela improcedência da acção e pela condenação das AA. por litigância de má fé em conluio com o 2º Réu.

A fls. 78 foi proferido despacho que julgou verificada a excepção dilatória de ilegitimidade por preterição do litisconsórcio necessário activo, decisão revogada por acórdão desta Relação de 08.10.2019.

Foi proferido despacho saneador que identificou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, a Mm.ª Juíza a quo, por sentença de 16.11.2020, julgou a acção totalmente provada e procedente e, em consequência, declarou nulo o contrato de confissão de dívida com fiança (por ser apenas um) datado de 27.6.2018 celebrado entre as AA. e os Réus; absolveu as AA. e o 2º Réu do pedido de litigância de má fé.

Inconformado, o 1º Réu apelou formulando as seguintes conclusões:

...

As AA. responderam concluindo pela improcedência do recurso.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir: a) impugnação da decisão sobre a matéria de facto (erro na apreciação da prova); b) decisão de mérito, cuja modificação depende, sobretudo, do sucesso da impugnação de facto (questiona-se a validade da “confissão de dívida” subscrita pelo 2ª Réu e afiançada pelas AA.).


*

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

...

3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

a) O 1º Réu/recorrente insurge-se contra a decisão sobre a matéria de facto, ciente de que (apenas) a sua eventual modificação poderá levar a um diferente desfecho dos autos.

Com esse desiderato, considera que em substituição da factualidade dada como provada em II. 1. 45), supra, deverá ser dado como provado que ´o 1º Réu efectuou diversos empréstimos ao 2º Réu no montante global de €110.000 em quantias de €2.500 em numerário, sendo a última em Julho de 2017` (cf. as “conclusões 1ª e 18ª”, ponto I., supra), baseando-se, para o efeito, sobretudo, nos depoimentos de duas testemunhas, conjugados com alguns dos documentos juntos aos autos.

Daí, importa averiguar se outra poderia/deveria ser a decisão do Tribunal a quo quanto àquela factualidade.

b) Esta Relação procedeu à audição integral da prova pessoal produzida em audiência de julgamento, conjugando-a com a prova documental.

c) Pese embora a maior dificuldade na apreciação da prova (pessoal) em 2ª instância, designadamente, em razão da não efectivação do princípio da imediação[3], afigura-se, no entanto, que, no caso em análise, tal não obstará a que se verifique se os depoimentos e as declarações de parte foram apreciados de forma razoável e adequada.

            Na reapreciação do material probatório disponível por referência à factualidade em causa, releva igualmente o entendimento de que a afirmação da prova de um certo facto representa sempre o resultado da formulação de um juízo humano e, uma vez que este jamais pode basear-se numa absoluta certeza, o sistema jurídico basta-se com a verificação de uma situação que, de acordo com a natureza dos factos e/ou dos meios de prova, permita ao tribunal a formação da convicção assente em padrões de probabilidade[4], capaz de afastar a situação de dúvida razoável.

d) Depois de aludir, largamente, e principalmente, à problemática do “valor probatório do documento particular autenticado e da admissibilidade da prova testemunhal e por declarações de parte”, contextualizado com o preceituado nos art.ºs 347º, 371º, 376º, n.ºs 1 e 2, 377º e 394º do CC e, ainda, com o concluído e/ou fundamentado sobre a matéria nalguns arestos dos Tribunais Superiores[5], e havendo salientado, também, designadamente, que “as AA. invocam a simulação e/ou vício da vontade ao assinarem o referido documento autenticado, podendo para tal, fazer prova da inverdade do conteúdo do documento, e sendo certo que é seu o ónus da prova” e que “a declaração confessória relativa ao mútuo não é delas, mas apenas do 2º Réu, por ter sido um facto pessoal deste - elas apenas outorgam na qualidade de fiadoras e garantes das obrigações que aquele assume, ou seja, relativamente ao que é referido nesse contrato quanto à quantia mutuada e sua origem e motivo o declarante confitente é o Réu nesta ação e não as AA.” -, pelo que “é licito a estas demostrar por qualquer meio de prova, a inveracidade dessas declarações”, a Mm.ª Juíza a quo apresentou a seguinte motivação de facto [naturalmente, destacam-se os excertos com relevo para a impugnação em apreço]:

«(…) No caso em apreço, analisando conjugada e criticamente toda a prova produzida (documental, testemunhal, depoimento e declarações de parte) são muito poucas as certezas a que se chegou e são poucas as convicções profundas, devidamente sustentadas na prova. / (…) / E, na dúvida, o tribunal deu a factualidade como não provada. / Explicando, / As certezas do tribunal prendem-se com a confissão das partes nos articulados, em conjugação com o documento autenticado junto ao processo. / (…) Do mesmo modo, está confessado que ambos os RR se deslocaram a Madrid no dia anterior à assinatura da confissão de dívida, datada de 27 de junho, e que aqui ocorreu um episódio “cinematográfico” de troca de notas verdadeiras por falsas e que levou à apresentação de queixa nas autoridades policiais de Madrid. / Para além destes factos, o tribunal teve ainda convicções fortes e seguras. / Ficou-se a convicção segura de que o 2º Réu tomou conhecimento desta possibilidade de ganhar algum dinheiro com a troca de notas pequenas por notas de 500 € porque lhe foi sugerido em junho, em Milão, pelo tal Jacob que, alegadamente, estava interessado em investir em Portugal. / Não obstante o negócio da venda da casa de Cascais ter ficado sem efeito logo na visita à casa, ainda em junho, após a deslocação a Milão (como referiu o proprietário e seu genro, testemunhas no processo), o 2º Réu quis ir posteriormente a Madrid por causa deste negócio das notas. / Daí que tenha falado à testemunha ... deste negócio, sendo que eram conhecidas as dificuldades financeiras da mesma e, por isso, a sua propensão para poder “ganhar algum”, aliado à circunstancia de ter um posto de abastecimento de combustíveis e ter consigo, habitualmente, várias quantias em numerário, provindas dos pagamentos. / (…) / Mas o tribunal também acreditou na A. M..., quando relatou o que o marido lhe disse a ela e às filhas (…), pela forma espontânea com que o disse. / Mais concretamente, acredita-se que o marido lhe tenha dito, na noite que regressavam de Madrid, que o 1º Réu lhe havia emprestado 110.000€ para pagarem as dívidas e que exigia a garantia pessoal da mulher e filhas. / Todavia, já não se teve essa convicção quanto à alegação de que só depois de assinarem como fiadoras tiveram conhecimento pelo 2º Réu que, segundo este, não teria havido qualquer empréstimo, mas um negócio mal sucedido de troca de notas onde foram “roubados” (…). / Com efeito, o tribunal tem dúvidas se a nova versão do R. para as AA tenha ocorrido depois ou ainda antes da assinatura do documento. / (…) a convicção do tribunal é que as AA quiseram assumir a responsabilidade apenas para ajudar o pai, independentemente do negócio subjacente. Fizeram-no, cremos, apenas porque o marido/pai lhes pediu, ainda que na sua base estivesse o tal negócio de troca de notas, que correu mal. / (…) No que respeita ao mútuo que vem referido na confissão de dívida e que é sustentado na contestação, o tribunal ficou convencido que não existiram quaisquer entregas em numerário ao longo dos anos em tranches de 2.500€ (…), pela inexistência de prova documental e pela restante prova produzida, em conjugação com as regras da normalidade e da experiência comum. / E embora a nossa convicção é de que na base desse documento esteve o que aconteceu no dia antes em Madrid, com a entrega de notas falsas, não há prova suficiente para que se conclua que o 1º Réu tenha emprestado dinheiro nessa altura e qual o montante.

Diz o 1º Réu: - que emprestava dinheiro ao 2º, devido a uma forte relação de amizade e confiança que não se provou. - que foi emprestando ao longo de 7/8 anos, quando se não demostra que o seu relacionamento fosse tão antigo. - que o fez em numerário, sem exigir qualquer documento comprovativo das entregas, o que, de acordo com as regras da normalidade, não é consentâneo ou coerente, ainda para mais sendo o alegado mutuante advogado de profissão. - que foram tranches que rondavam os 2.500€ ao longo de 7/8 anos, o que significa que teria de ter emprestado, para alcançar os 110.000€ referidos nas confissões de dívida, no mínimo, 13.750€ por ano, ou seja, o mínimo de 1145,83€/mês, quantia esta elevada de mais para qualquer cidadão médio para que não seja comprovada documentalmente. / Por outro lado, não é normal que tal quantidade de entregas e de elevado montante não fosse exigido durante anos. / E nem que só houvesse necessidade do reconhecimento da dívida e compromisso de pagamento, com garantias pessoais, passados anos das alegadas entregas de dinheiro e, curiosamente, logo no dia seguinte à ida de ambos para Madrid, no veículo do 1º Réu, onde ocorreu a burla e perda de mais de 90.000€. / Assim, o tribunal acredita na versão das AA. de que o que foi declarado na confissão de dívida não ocorreu na realidade, por não terem existido os tais empréstimos. / É certo que está assente que, após a outorga do documento de “confissão de dívida” foram pagas 4 prestações. / Mas o que não se compreende, também, é porque razão foi enviado um e-mail pelo 2º ao 1º Réu a pedir autorização para pagar os primeiros seis meses (…) / Estas questões levam-nos a crer que de facto houve algo acordado entre os RR mas não o que consta da confissão de dívida e que o pagamento dessas 4 prestações teve por base outro negócio distinto do declarado ou visou apenas dar uma aparência de veracidade do que não existiu e não uma assunção da dívida (aliás contrariada pelo emails juntos). / Quanto ao tipo de envolvimento do 1º Réu (…) no negócio da “troca de notas”: / Leva a concluir pelo seu envolvimento: - A circunstância da confissão de dívida ter sido elaborada e subscrita logo no dia seguinte à viagem a Madrid, - Onde ambos se deslocaram no carro do 1º Réu, - A inexistência dos mútuos declarados na confissão de dívida do 1º ao 2º Réu. - A incoerência na alegação de ir participar na elaboração de um contrato-promessa em Madrid, confessando não saber nada desse negócio, incluindo a identificação das partes e do imóvel, o preço, etc. - A resposta dada ao e-mail de 12 julho, junto em audiência, não contrariando o que era referido pelo 2º Réu e confirmando o recebimento de dinheiro que efetivamente não recebeu (…) / Contudo, e por outro lado: - O 1º Réu também referiu que a ida a Madrid seria uma possibilidade de conhecer e angariar potenciais clientes que queriam investir em Portugal, o que é uma explicação lógica e razoável. - ... negou ter entregue dinheiro a este e que tenha sido este a pagar-lhe, só sabendo que o mesmo tinha ido a Madrid porque o ouviu ao telefone, quando ligou ao segundo R. - O seu cunhado negou que alguma vez lhe tenha emprestado dinheiro. - a ausência de prova de onde provinha a totalidade do dinheiro em numerário, que era transportado naquele dia 26 (…). - a obscuridade e estranheza das razões para que o 1º R. tenha exigido a confissão de dívida, para exibir a um tal cliente J... de forma a que este lhe emprestasse dinheiro. / Tudo isto, e perante a negação do 1º R. neste negócio, ficámos com dúvidas acerca desse envolvimento, se só soube do negócio durante a viagem, se sabia antes e foi acompanhar o 2º Réu ou se levou também dinheiro seu e quanto. / (…) Quando a signatária confrontou o Réu A... (…) sobre a origem dessa confissão de dívida, concretamente se não seria pelo facto do 1º Réu ter levado dinheiro seu, aliciado por ele, para conseguir algum lucro, e pelo facto de ter corrido mal, lhe ter exigido a restituição desse dinheiro, (ou até se depois desse negócio o 1º Réu lhe ter emprestado o dinheiro) o 2º Réu não o admitiu, insistindo no tal negócio com o dito cliente “J...” e que, tal como a Autora mulher, também não percebemos. / A prova produzida não foi, por isso, suficiente para que se tivesse a convicção segura de que o 1º Réu só tenha ido a Madrid para beneficiar nesse “negócio das notas” embora também não se tenha feito prova suficiente de que o tenha feito para assessorar juridicamente o 2º, ou como forma de conseguir clientela. / Em suma, nenhuma das versões se demostrou quanto ao envolvimento e sua extensão, por parte do 1º Réu.

Mas façamos um resumo do que resultou da prova produzida:

Começando pelas partes, M... referiu, com simplicidade e espontaneidade, que o Dr. L... era só conhecido do marido, não amigo da família, nunca lá tendo ido a casa. / (…) Relativamente à assinatura da confissão de dívida, como fiadoras, contou que estavam com dificuldades financeiras, havendo dois créditos, um deles no M..., que depois passou “para outra empresa” de cerca de 4.000€ e outro do B... mais elevado mas que no total seria próximo de 110.000€ e, por isso, não estranhou quando o marido lhe disse que o 1º Réu lhe tinha emprestado esse dinheiro. / (…) Relativamente à deslocação a Madrid, disse que o marido e o Dr. L... foram tratar dos assuntos da venda de uma casa em Cascais que era cliente do escritório de contabilidade, onde ambos (ela e o marido, trabalham) e que antes o marido já tinha ido a Cascais e a Milão, sem o Dr. L... / Quando veio de Madrid chegou tarde a casa e disse-lhe que o L... lhe tinha emprestado dinheiro para resolver problemas da casa mas exigia, para não se pagar tudo de uma vez, que fossem, todos eles, reconhecer as assinaturas. / Depois desse reconhecimento das assinaturas, quando confrontado sobre se já tinha pago a dívida ao banco, o marido contou-lhe que era para fazerem um negócio de troca de notas e foram roubados e que o Dr. L... levou dinheiro, que tinha pedido emprestado a um cliente e ao cunhado. / O resto foi “uma embrulhada muito grande” não sabendo explicar.

Pois bem. / O Tribunal acredita no que a Autora relatou sobre o que o marido lhe disse quando chegou de Madrid, ou seja, que o Dr. L... lhe tinha emprestado dinheiro para pagar as dívidas. / Contudo, como a própria confessou e resulta da autenticação do referido documento junto sob doc. 6 da p. i., o conteúdo do mesmo foi-lhes lido, tendo ambas percebido o que lá constava e assinavam. / Ora, uma das coisas que lá consta, logo da cláusula primeira, é que o aqui 1º Réu “concedeu empréstimos em diversas tranches em numerário de dois mil e quinhentos euros cada, tendo a última de todas sido recebida em Julho de 2017 ”. / (…) Se assim é, assinaram algo distinto do que o Réu lhes disse inicialmente - que o 1º R. lhes havia emprestado dinheiro no dia anterior para pagarem a dívida ao Banco - e não o podiam ignorar. / Se o dinheiro já havia sido todo entregue ao 2º Réu em diversas tranches até Julho de 2017 o dinheiro não podia destinar-se a pagar a dívida aos Bancos que seria de cerca de 110.000€, em Junho de 2018, já que o dinheiro teria sido recebido até cerca de ano antes e não foi pagar aos bancos (pois caso contrario não havia essa dívida). / Por isso, a convicção do Tribunal é que as AA assinaram aquele documento como assinariam qualquer outro, desde que o marido/pai lhes pedisse, ainda que não ignorassem que o seu conteúdo não correspondia à verdade.

Ao primeiro Réu (…) foram questionados os factos constantes dos temas da prova com vista à confissão, e, como resulta da assentada, foram poucos os confessados. / Manteve que foi emprestando dinheiro ao 2º Réu (…) ao longo dos anos, em tranches de 2.500€, fruto da amizade e confiança que tinha, sendo que este lhe ia pagando alguns montantes e que foi isso que esteve na base da “confissão de dívida”. / Negou qualquer intervenção no dito negócio de troca de notas. / Questionado sobre o porquê desse documento ter sido redigido logo no dia seguinte a terem ido para Madrid, disse que já o havia solicitado antes, mas o episódio lá ocorrido com as notas falsas o deixou “desconfortável” e tinha um investimento (que não disse qual) para fazer.

O segundo Réu, (…) contabilista, cuja audição foi determinada, nos termos do art.º 411º do CPC, disse, relativamente ao relacionamento com o primeiro Réu, que tinham uma boa relação profissional. / Questionado, admitiu que também jogavam futebol, jogaram ténis e fizeram caminhadas, sozinhos, aos domingos. / (…) Quanto aos acontecimentos de Madrid e seu circunstancialismo e motivação, relatou que teve um contacto com um Sr. que lhe disse que comprava e vendia imóveis. O Sr. J... e o genro T... tinham um imóvel para venda por 1 milhão e oitocentos mil euros. / Foram a Milão encontrar-se com ele, porque ele dizia que não podia sair de lá. / Encontraram-se num café e ele disse que tinha de pagar dinheiro por fora. Dava 15 % a mais do valor do preço em notas de 500€ se entregasse notas pequenas. / Marcou-se, em Cascais, um novo encontro, tendo o J... baixado o preço da comissão para 10 %, porque os vendedores da casa disseram que não arranjavam notas pequenas. / Depois deu-lhe boleia para o Estoril e ele aí afirmou que o negócio de notas e mantinha e que as trocavam em Madrid. / Como não tinha dinheiro, falou com quem tinha, a D.ª M... e “combinaram dividir a comissão e 5 % para cada”. / Levava 41 mil e tal euros num saco de desporto da D.ª M... e iria receber mais 5 % e os outros 5 % era para dividir. / O Dr. L... levou dinheiro seu, numa caixa de sapatos. / Durante a viagem o J... ia falando com ele e acordaram que estariam à espera no café, onde se dirigiram, deixando o dinheiro no carro. Conhecerem-se como sendo R..., irmão do J.... / Beberam água e foram buscar o dinheiro ao carro. Lá chegados, pegou no saco de desporto e na caixa e depois atirou-os para dentro do carro, tendo-lhe sido entregue uma pasta preta. / Abriram, viram que eram falsas e, por ideia do Dr. L..., foram à polícia. Foi ele que apresentou a queixa e ele estava ao seu lado. / Ele disse que o dinheiro era do cunhado e não sabia como justificar o ocorrido. Disse que tinha um cliente que poderia ajudar mas teria de ser ele, A... a dar a cara. / Sentiu-se responsável por ter arranjado o negócio, sentiu desconforto e aceitou para o ajudar e à D. M... / Depois o Dr. L... deu-lhe o dinheiro (30.000€) para entregar à D. M... e ele foi depositar ao banco. / A mulher e filhas não sabiam de nada das notas. Disse que o Dr. L... lhe emprestou dinheiro para pagar B... já que a dívida era nesse valor. / (…) Questionado diretamente sobre se convenceu ou não o Dr. L... a levar dinheiro e, por ter ficado sem ele, assinou a confissão de dívida devido a esse “sentimento de responsabilidade ou desconforto” ou seja, porque assinou a declaração referiu, laconicamente “Estávamos todos envolvidos e eu queria ajudar a resolver e depois no futuro logo se via …” / Quando foram a Madrid já não havia negócio nenhum da casa de Cascais. / (…) No regresso o Dr. L... vinha de cabeça perdida porque tinha perdido 50.000€ e no dia seguinte deu-lhe 30.000€ para pagar àquela. (??) / O valor que estava envolvido eram 80.000€ mas puseram 110.000€ porque seria o valor de 5 % juros para justificar perante o tal cliente.

(…) A testemunha M... (…) disse dar-se bem com ambos os RR. / Ao contrário destes, com manifesta parcialidade e interesse no desfecho da causa, esta foi a única testemunha que teve conhecimento pessoal e direto da maioria dos factos aqui em causa e, por isso, foi a mais relevante para a decisão da matéria de facto. / Contou, de forma escorreita, simples e frontal, e que se nos afigurou isenta e verdadeira, o seguinte: / O Réu era o seu contabilista. O Dr. L... foi seu advogado, quando tinha as bombas, ele tratou-lhe de vários assuntos financeiros, para ela pagar aos credores. Conheceu o Dr. L... através do Sr. A..., tendo sido este quem o indicou dizendo que era um bom Advogado (ao contrário do que referiu o R. A… dizendo que a conheceu porque o Dr. L... a apresentou). / Foi ao escritório do Dr. L... para tratar de assuntos seus, problemas financeiros. / Numa altura o Sr. A... foi ao escritório e sugeriu um negócio: se tivesse notas pequenas que lhas desse, e ele durante dois dias trocava as notas, recebendo ela algo mais. / Entregou o dinheiro ao Sr. A... e ele iria a Madrid para essa troca. / Nunca falou desse negócio com o Dr. L... e não sabia de nada relativamente a esse advogado envolvido. Não sabe se participou ou não, só sabe que o Dr. L... estava lá com ele em Madrid porque quando ligou ao Dr. A... para saber como tinha corrido o negócio o ouviu. Estavam os dois juntos e contaram-lhe que tinha corrido mal. / Em esclarecimentos disse que quem teria sido burlado foi ela e o próprio A..., que também, certamente, lá teria posto dinheiro. / Falou sempre e só com o A..., mas ouviu o Dr. L... porque estaria em voz alta quando telefonou a perguntar como teria corrido o negócio. / Mais tarde o Sr. A... contou-lhe que tinha sido o Dr. L... a emprestar-lhe o dinheiro para lhe pagar a ela, não sabendo se emprestou ou não. / Quem falou com ela foi só o A.... Ele apenas disse que lhe deram notas grandes, mas falsas. E que, como o Sr. A... se responsabilizou perante ela, dizendo que era seguro, o Sr. A... pagou-lhe tudo, num depósito na sua conta, achando que foi pouco tempo depois de ir a Madrid. / Ele pagou parte em dinheiro nessa altura e o resto em prestações. Dizia que tinha dinheiro em offshore e pagou-lhe tudo. / Mais disse que “isto não era bem “um negócio”. Estava com problemas financeiros. O Dr. A... apenas quis ajudar. O que ele disse foi que havia uma situação em que se desse um valor em notas pequenas conseguiria receber mais em notas grandes. / Como tinha notas pequenas das bombas entregou-lhe 30 e tal mil euros e ia receber mais, mas não sabe quanto mais. Já era bom qualquer coisa a mais, em 2/3 dias.

 Este depoimento afigurou-se-nos totalmente genuíno e isento e mereceu credibilidade, descredibilizando, sobretudo, a versão do 2º Réu (e que as AA fizeram sua na p. i.) quer quanto ao modo como se conheceram, quer quanto ao envolvimento do 2º Réu no tal esquema das notas. / Ao contrário dos RR que, com todo o respeito, não pretenderam contar toda a verdade, mas apenas “meias verdades”, certamente porque, deliberada e conscientemente (ou não), ambos se deslocaram a Madrid, onde ocorreu uma situação com contornos criminais em que intervieram, direta ou indiretamente. / Aliás, o ilícito criminal não residirá apenas na entrega de notas falsas, mas também na troca de notas pequenas por “grandes”, por poder estar em causa o envolvimento em branqueamento de capitais, fraude fiscal, etc. / Com base no depoimento da testemunha, o tribunal ficou com dúvidas quanto à extensão do envolvimento do 1º Réu neste “negócio”, se o mesmo sabia ou não do mesmo antes de se deslocar com o 2º Réu ou se este lhe mentiu, como fez à mulher e filhas, se levava ou não dinheiro seu e qual a proveniência deste dinheiro (para além do que foi entregue pela M... ao 2º Réu e que, segundo a mesma, ele lhe pagou porque lhe havia garantido que era um negócio seguro). / Como também se teve dúvidas se o 1º Réu assistiu a tudo e interveio no episódio em Madrid, ou seja, se também conheceu os outros intervenientes do negócio e entregou o dinheiro ou se, como ele disse, ficou sozinho na esplanada, à espera do 2º Réu, daí que se tenha dado essa factualidade como não provada, no que respeita ao envolvimento do 1º Réu. / A nossa convicção pessoal é que a confissão de dívida esteve relacionada com o que ocorreu no dia antes, com “a burla” de que foram, ou o 2º Réu foi “vítima(s)”.

As dúvidas que subsistem são: / O 1º Réu emprestou, nesse dia, ao 2º Réu uma quantia para que este pudesse pagar a M... e outros, tendo declarado que os mútuos ocorriam há muito em tranches de cerca de 2.500€ para ocultar o verdadeiro negócio de contornos pouco lícitos? / Ou a confissão de dívida deveu-se porque o 2º Réu se sentiu responsável pelo dinheiro que o 1º Réu e a testemunha investiram nesse negócio frustrado e quis devolver-lho? / Ou teve outra razão qualquer, não apurada? / Em suma, acredita-se convictamente que na base da confissão de dívida não existiu o mútuo aí alegado, mas não se sabe o que esteve na sua origem e nem qual a intenção real dos 1º e 2º Réus.

Mas continuando a análise dos depoimentos das testemunhas, J..., só conhece o Dr. A... porque lhe fez o IRS. / Tinha uma casa em cascais para vender. Foi a Milão com o Dr. A... e o genro A... e encontraram-se com um interessado que não sabe quem era. / Estiveram juntos nem mais de uma hora e na altura não houve acordo nenhum, mas chegaram a ir ver a casa de Cascais. Aí ficou tudo sem efeito, não houve sinais, dinheiro, nada. / Nunca combinaram mais nada, nem ida para Madrid nem nada.

A..., conhece o Dr. A... porque é o contabilista da sua empresa. / Com a mesma isenção e sinceridade do sogro, testemunha anterior, disse ter ido a Milão para negociar uma quinta que é do sogro (…), em Cascais. O Dr. A... identificou um potencial comprador, um Sr. J..., e foi com eles porque fala inglês. / Algum tempo depois foram informados que o Sr. queria ir ver a propriedade, o que até o admirou porque da primeira reunião não ficou essa ideia, e então marcou-se um encontro na propriedade de Cascais. / Ainda em Milão o Sr. J... identificou-se como intermediário de uma vasta carteira de clientes, a quem apresentava as propriedades e falou na possibilidade de incluir no negócio troca de notas grandes e pequenas. / Não deram credibilidade nenhuma e o assunto morreu logo. O tema nunca mais foi debatido. / Foi com surpresa que souberam que ele quis ver a casa e “os papéis” da mesma. / Quanto à casa disse que estava interessado, mas que depois se encontrariam em Madrid ou noutro sítio, mas nunca mais os viu.

Estes dois depoimentos relevaram apenas para explicar o momento em que o 2º Réu teve conhecimento do tal “negócio das notas”. Sem dúvida que tomou conhecimento do mesmo em Milão, depois foi novamente aflorado em Cascais e, não obstante o da casa ter por ali morrido (se é que alguma vez houve real interesse na compra da casa), foi agendada a sua concretização em Madrid. / De resto, o segundo Réu admite, nas suas declarações, que aquando desta última viagem já não havia nenhum negócio da casa, ao contrário do que é referido na p. i., tendo por base o que o próprio lhe relatou e ao contrário do que é referido pelo Co-Réu (…). / A viagem a Madrid visou apenas conseguir algum dinheiro “fácil”, convencido por alguém que tinha residência ou empresa com sede em Londres e que tem reuniões em Milão, Cascais e Madrid, transmitindo uma ideia de riqueza e poder aliciantes.

(…) O Dr. T..., Advogado e Colega de escritório do 1º Réu disse conhecer o 2º Réu do exercício das funções, há vários anos, já frequentava o anterior escritório do Dr. A..., com quem o depoente trabalhou 6 anos. / O 2º[6] Réu ia lá para falar com o L..., desde há cerca de 10 anos, não sabendo se nessa altura eram amigos. / Saiu do Dr. A... e abriu escritório com Dr. L... há cerca de sete anos. Depois o segundo R. passou a falar com o Dr. L.... Havia uma “parceria” com o Dr. A..., porque mandavam clientes reciprocamente. / (…) Tinham afinidade e tratavam-se por tu. / (…) Sabia que havia fluxos financeiros de dinheiros (empréstimos, mas não sabe quantias). / O Dr. A... chegava a entregar no escritório envelopes em dinheiro. Não os abriu mas pelo volume calculava que fossem notas. Isso ocorreu cinco/seis vezes ao longo do tempo e acha que era para pagar empréstimos. / (…) Com o devido respeito, o depoimento da testemunha T..., não convenceu o Tribunal. / (…) O depoimento também não convenceu, porque não corroborado por outro meio de prova, quanto à data em que se iniciou o relacionamento entre ambos, sendo que também não vemos grande relevo nesse facto para a decisão da causa, porquanto não se provou o grande grau de amizade e confiança e nem os mútuos ao longo do ano. / (…)

Em suma. / A convicção do Tribunal é que não existiram os mútuos invocados como causa da confissão da dívida e não se provou se existiu outro ou qual a razão de ser e qual a intenção dos dois Réus na outorga do dito documento. / Todavia, as Autoras assinaram a referida confissão de dívida porque o Réu A..., marido da primeira e pai das segundas, lhes pediu que o fizessem e para o ajudarem, independentemente da veracidade do conteúdo do documento. (…)»

e) Antolhando-se correcta a descrita análise crítica da prova, vejamos, ainda, o que releva dos depoimentos e declarações produzidos em julgamento:

- Depoimento do 1º Réu (fls. 147):

O documento reproduzido a fls. 25 verso “foi numa primeira fase enviado ao Dr. A... para ele analisar o seu conteúdo e para ver se concordava com o mesmo. (…) seria feito um termo de autenticação que poderia ser feito num advogado ou notarialmente (…)”. “(…) eu pretendia era um documento que pudesse executar. (…) o documento foi lavrado por mim, para ser enviado para a Dr.ª L... (Notária); (…) o Dr. A... (…) transmitia-me que tinha dívidas, (…) tinha dívidas a um crédito à habitação e outras dívidas pessoais. (…) Ele disse-me que haveria um interesse numa propriedade de Cascais e transmitiu-me que inclusivamente já lá teria estado presente. (…) não me falou de sinais, o que ele me disse é que iria receber uma comissão desse negócio e daí o interesse dele nesse negócio. (…) conheço a Sr.ª (M...) porque (…) foi minha cliente através (…) do Dr. A..., porque na altura nós tínhamos uma forte relação de amizade profissional, que depois passou a uma relação pura, que para mim era uma relação pura de amizade (…); (…) a minha deslocação a Madrid foi quase repentina. O Dr. A... veio ter comigo, falou-me então deste indivíduo que estaria a querer adquirir propriedades em Portugal e nesse contexto perguntou-me se eu estaria interessado em lhe dar patrocínio ou apoio na elaboração do negócio, nomeadamente a elaboração do contrato-promessa; pediu-me para o acompanhar a Madrid para juridicamente o apoiar e prestar patrocínio quanto a este negócio. (…) quando chegámos a Madrid, (…) fomos a um café onde eu fiquei sentado e depois apareceu um indivíduo e o Dr. A... deslocou-se desse café e eu fiquei lá. (…) Não lhe vi nenhuma bolsa na mão, tinha uma pasta pequena. (…) (…) Entretanto o Dr. A... regressa ao café e traz uma pasta preta e diz-me que nessa pasta teria notas falsas e abre-me a pasta e eu pego numa das notas para me certificar disso, e achei aquilo muito caricato e muito estranho. (…) peguei numa dessas notas para me certificar e disse ao Dr. A... ´realmente as notas parecem-me falsas`. (…) eu perante isso aconselhei o Dr. A... a apresentar queixa… (…); (…) foi ele que apresentou a denúncia e formalizou a denúncia. (…) o Dr. A... deslocou-se com um oficial para uma sala onde fez o depoimento dele no qual eu não estive presente e a minha intervenção no processo (…) resulta de eu ter tocado nas notas, quer eu, quer o agente, que também tocou nas notas, fizemos a assinatura, pusemos a impressão digital num determinado documento, porque eu sinceramente não me lembro se o terei assinado ou não. (…) o que o Dr. A... me disse, no momento, é que tinha ido trocar umas notas pequenas, que transportaria consigo, por notas grandes - foi a explicação que ele me disse. (…) pediu-me para lhe prestar apoio jurídico, com ele, a Madrid, relativamente à elaboração de um contrato-promessa; (…)  foi quase de um dia para o outro, em que ele solicitou a minha presença. Eu disse, ´Oh Dr., olhe que eu vou consigo, porque a mim me interessa, naturalmente pode ser um cliente e a mim interessa-me clientes que tenham dinheiro e possam pagar, isso, se querem investir será um potencial cliente, a única coisa, a única condição que lhe imponho é eu levar o meu carro`. Pronto, foi esta condição e fomos os dois para Madrid. Durante a viagem o Dr. A... mostrou-me o contrato-promessa, deu-me o contrato-promessa para a mão para eu ver. Perante esse contrato eu disse ´oh Dr. A..., mas como é que você vai assinar este contrato quando não há uma procuração (…)` (…). Deste contrato não há uma procuração, não há um (…) prazo para a (…) escritura, portanto, aquele contrato nunca poderia ser assinado naquele dia, portanto eu disse-lhe ´eu vou consigo, vou-lhe dar o apoio, vou-lhe dizer o que penso sobre este contrato e vamos ver como é que corre o negócio`. (…) não levei dinheiro nenhum, nem percebo isso. (…) não pedi dinheiro emprestado. (…) Esta confissão de dívida (doc. de fls. 25 verso) apenas tem a ver com empréstimos pessoais, em numerário, que eu fiz ao Dr. A..., não tem a ver rigorosamente com mais nada. (…) sei que era para negociar um imóvel e ele (2º Réu) disse que iria receber um sinal (…). Eu e o Dr. A... acertámos os valores da dívida, este documento foi-lhe enviado para ele analisar; ele disse que o queria exibir e mostrar também à família, e relativamente aos prazos de calendarização da dívida e relativamente ao montante de pagamento eu pus o Dr. A... perfeitamente à vontade (…) e ele fez-me uma proposta de me pagar €1.750, disse que era o valor que conseguiria suportar. (…) Foi redigida por mim, com a total anuência do Dr. A... e, segundo ele me disse, da família, tanto que elas previamente foram exibidas, penso que terá sido ao Dr. L... ou ao Dr. S... para darem o aval relativamente às mesmas. (…) Esses empréstimos foram feitos nos últimos sete/oito anos, (…) sempre em numerário e também era mais fácil serem feitos em numerário (…). (…) sempre houve uma relação extrema de confiança, o Dr. A... além da relação profissional era uma pessoa que eu considerava como meu amigo que eu recebia em minha casa, era meu companheiro de ténis, era meu companheiro de caminhadas, era meu companheiro de futebol (…). Sempre houve total confiança nesses empréstimos, o Dr. A... pagou-me muitos empréstimos que eu lhe fazia, portanto, estes €110.000 foram empréstimos realizados nos últimos sete, oito anos, as tranches normalmente eram em dois mil e quinhentos euros. Eram tranches em numerário, em €2.500 normalmente, mas (…) por vezes eram dois mil, por vezes eram três mil, portanto, estas, e algumas destas tranches ele ia-me pagando, entretanto fizemos este acerto de contas os dois, até porque se não fosse assim a dívida era substancialmente maior. (…) quantas vezes por ano não lhe posso precisar isso, só vendo nos meus apontamentos…, mas…, sei lá…, para aí… umas cinco, seis vezes por ano…, sete vezes. O Dr. A... precisava…, dizia que precisava desse dinheiro porque tinha dívidas…, disse-me que tinha dívidas particulares… e que também tinha dívidas ao banco, disse, inclusivamente, que tinha (…) uma execução ao banco. Conheço o Dr. A..., seguramente, há quinze anos. (…) Portanto conheci-o no âmbito de um escritório onde trabalhei… ou vinha com clientes ou tratava de assuntos a eles. (…) esse valor não aparece de fora, eu falei com o Dr. A..., ele falou comigo, e sentámo-nos os dois no meu escritório e vimos contas por contas…; (…) foi tudo uma questão de confiança. Porquê agora? (…) por dois motivos, (…) já tinha falado com o Dr. A... que era altura de pormos no papel esses empréstimos… e disse-lhe que pretendia que ele me assinasse uma confissão de dívida. Portanto, neste momento oportuno, e também vou ser sincero (…), também é agora… porque esta situação que ocorreu em Espanha… me causou algum desconforto relativamente à pessoa do Dr. A... E, portanto, eu perante isso disse ao Sr. Dr. A... ´está na altura de me assinar uma confissão`, nunca lhe exigi qualquer garantia! (…) ele é que se predispôs a (…) assinar ele próprio e a dar-me a fiança da esposa e das filhas. (…) O meu objectivo era receber esse dinheiro o mais depressa possível, até porque eu tinha um investimento pessoal a fazer, avultado, e tinha urgência em receber esse dinheiro, embora tivesse calendarizado o acordo de acordo com os intentos do Dr. A... (…) ficou acordado com ele que se ele pagasse e demonstrasse… honrar os seus compromissos da forma mais célere e que fizesse um esforço para me pagar, eu faria um abatimento de dívida durante esse período, faria uma remissão de dívida… (…) e foi aceite por ele. (…) o Dr. A... o que me pediu foi para lhe dar patrocínio e assessoria num negócio que iria… que estaria já perto de ser finalizado e pediu-me para o acompanhar a Espanha nesse sentido. Relativamente ao contrato eu só tive conhecimento que se ia criar um contrato-promessa quando durante a viagem ele me exibe um contrato, tira-me o contrato - ´Sr. Dr. veja-me aqui este contrato que eu tenho aqui esta minuta` - e perante esse contrato (…), uma coisa muito mal amanhada, muito mal feita… (…), disse-lhe logo ´isto é impossível de assinar este contrato hoje, o Dr. A... tem uma procuração, este contrato não diz… não diz quando é que será realizada a escritura, não identifica cabalmente as partes…`; (…) pediu a minha presença para assessorar… para lhe dar apoio jurídico… relativamente ao negócio de compra e venda… de uma moradia. (…) provavelmente ver, ver… analisar…, eu até desconhecia que já se tinha um contrato naquele momento, eu só tive conhecimento que existia um contrato quando ele durante a viagem me tira o contrato e mo exibe. (…) fui com o Dr. A... a Madrid, o meu objectivo com o Dr. A… a questão do contrato para mim era uma questão secundária, porque o meu objectivo era também haver… haver um potencial cliente que poderia até me interessar, fazer uma angariação de clientes para o meu escritório. E por isso é que me predispus a ir com ele. (…) pensei até que iríamos a escritório de advogados, ou iríamos a algum sítio onde pudéssemos depois formalizar o contrato… ou, pelo menos, discutir os termos do contrato. (…) Não sabia de notas falsas, não sabia de nada, o que eu sabia no carro era que o Dr. A... me disse que levava… dinheiro… pequeno… para trocar por notas altas, foi o que ele me disse. (…)”

- M...:

Sobre o pretenso “negócio de troca de notas”, referiu que, estando a depoente com “problemas financeiros”, o 2º Réu, seu contabilista, disse “que havia uma situação que tinha chegado a ele” e sugeriu-lhe “se tinha algum dinheiro (em notas pequenas) para ele fazer durante dois dias essa troca de notas, e foi o que aconteceu…”; “(…) eu não sabia de nada, (…) a única coisa que eu sei é que havia esse negócio e que o dinheiro que eu entreguei foi ao Sr. A..., mais nada…”; quando telefonou, “preocupada”, para saber do “negócio” e apercebendo-se de que os Réus se encontravam juntos, o 2º Réu transmitiu-lhe “que tinham sido burlados com o negócio, que aquilo tinha corrido mal”; “(...) essa parte do dinheiro dos outros não sei, o meu dinheiro estava lá!”; o 1º Réu estava com o 2º Réu, “mas se participou, ou se não participou, não faço a mínima ideia”; o 2º Réu disse-lhe que a iria reembolsar de todo o dinheiro, o que veio a suceder; sobre o dito “negócio” falou apenas com o 2º Réu, o 1º Réu nada lhe disse (por exemplo, para entrar no negócio - “não, nunca, essa parte nunca!”); “(...) eu não considero isto bem um negócio, (…) eu tinha problemas financeiros, na altura, tinha-os apresentado ao meu contabilista, que é o Sr. A..., e ele que sempre foi uma pessoa muito leal e ajudava-me conforme podia na sua área, como ele chegou a esse negócio não faço a mínima ideia, ele apenas foi de me querer ajudar, a mim, a realizar algum dinheiro”; dando a depoente algum dinheiro “em notas pequenas (…) iria realizar mais dinheiro em dois/três dias, e o que viesse seria bem vindo”; entregou “trinta e poucos mil” euros, sabia “que ia receber algum dinheiro a mais (…) em dois/três dias”, mas nunca soube quanto (“para mim era como se fosse um empréstimo de dois/três dias…”); quando o 2º Réu telefonou “eu disse-lhe que queria o meu dinheiro e ele disse que ia resolver o problema o mais rápido possível e de certeza que o resolveu, não é’? (…) ele devolveu-me o dinheiro, devolveu e está tudo pago”; “(…) quem tinha emprestado dinheiro (“para pagar a mim”) que tinha sido o Dr. L...; o resto não sei de nada, não faço a mínima ideia”; “(…) apenas confiei o meu dinheiro ao Sr. A…, a mais ninguém”.  Aquando do mencionado telefonema, o 2º Reu “devia ter-se referido a mim que eu tinha lá o meu dinheiro, e se havia mais alguém lá com dinheiro, não faço a mínima ideia. Mas a mim ele disse-me que já tínhamos sido burlados. Nós. O meu dinheiro e o dele. De certeza que também tinha dinheiro dele. Não faço a mínima ideia do resto…”. “(…) devia estar em voz alta, eu ouvia falar. Sim, e ele (1º Réu) estava lá”; “(…) só falei com o Sr. A...”. O 2º Réu (e não o 1º Réu) transmitiu-lhe que o dinheiro que depois lhe entregou foi “emprestado” pelo 1º Réu.

- J...:

“Tinha uma casa. Em Cascais. Fomos… fomos a Milão, eu, o A... o Dr. A... Nós, em Milão, encontrámo-nos com um interessado. Não (recorda o nome do mesmo), eu estive com ele, se tanto, uma hora, não estive mais. (…) Não se chegou a acordo nenhum. (…) ele depois de ir à casa de Cascais… e ficou o negócio praticamente sem efeito porque não houve sinais, não houve dinheiro, não houve absolutamente nada.” Nada mais se fez ou combinou.

- A...:

Como genro da anterior testemunha e porque esta tinha, e tem, “casas para vender”, acompanhou-o a Milão, com o 2º Réu, para “negociar uma quinta”. “(…) fomos, tal qual estava combinado, o meu sogro pediu-me ajuda (…) nesse processo, porque havia uma hipótese de venda de uma propriedade que ele tinha em Cascais…”. O 2º Réu “era e continua a ser contabilista da empresa, houve uma altura eu sabia que o meu sogro estava interessado em vender uma propriedade que tinha em Cascais, e identificou um potencial comprador; falou connosco e o meu sogro pediu-me (…) para os acompanhar, (…) porque falavam inglês e tal… pronto, e eu acompanhei-os, para ver essa possibilidade de negócio, a Milão, fomos ter com um tal senhor J… com quem nós nos reunimos lá, e depois viemos embora. (…) mais tarde, (…) talvez um mês (…), fomos informados que esse Sr. tinha ficado realmente interessado em ver a propriedade, marcou-se um encontro, um dia, em Cascais, onde foram vistas (…) a documentação da propriedade, (…) também a propriedade (…). (…) quando nós estivemos em Milão juntos, o Sr. J... identificou-se não como sendo um comprador, mas como sendo um intermediário, supostamente ele teria uma vasta carteira de clientes (…) asiáticos e do médio Oriente e por aí fora… e que, segundo ele, (…) era a essa carteira de clientes que ele apresentava (…) os negócios que tinha em carteira. E na altura, em Milão, ele falou connosco, na possibilidade de que os clientes dele (…), que tinham muitos negócios (…) e falou-nos dessa possibilidade, se nós poderíamos eventualmente, no negócio, incluir valores em numerário que seriam trocados notas pequenas por notas grandes, ou notas grandes por pequenas, … já não me lembro muito bem, mas também era um bocado indiferente porque nós achámos isso tudo assim um bocado estranho, e como tal, não demos qualquer credibilidade a isso, aliás, eu até comentei com o meu sogro na altura e disse ´olhe, prontos, viemos fazer (…) um belo passeio aqui a Milão, a cidade é bonita, mas daqui não levamos nada!, porque isto não me parece nada de jeito`; (…) surpresa nossa, passado algum tempo, ele contactou-nos a dizer que estava interessado e veio a Portugal ver a propriedade, e ver a documentação, (…) e nessa altura, já em Portugal, depois de falarmos sobre isso, esse tema nunca mais foi debatido porque nós dissemos logo na altura que os valores teriam de ser feitos por transferência, (…) e a partir daí o assunto morreu aí. (…) o negócio da quinta, ele, depois, (…) quando nós nos reunimos em Portugal, ele disse-nos que estava muito interessado na propriedade, (…) falámos de valores de venda, aos quais ele acedeu, disse-nos que lhe pareciam estar dentro daquilo que era o mercado, (…) o negócio estaria fechado e que, depois, então, iria combinar connosco, ou em Madrid ou em Cascais, (…) e a verdade é que ele (…), depois, nunca mais disse nada…”. “(…) Eu achei aquilo muito estranho (…), mas eu não achei estranho só na história das notas, já estava a achar estranho há algum tempo antes; (…) até fiquei muito surpreso como é que ele, passado algum tempo, veio a Portugal para vir ver a propriedade, (…) sinceramente, pensei que aquilo era assim uma coisa sem jeito nenhum! (…) falei com ele (o tal J...) duas vezes na vida, (…) uma vez em Itália e foi uma vez em Cascais, de resto nem nunca mais soube de nada.

- T...:

Na ligação entre os Réus “(…) houve múltiplos clientes comuns…; (…) o Dr. A... solicitava, em função da amizade que tinha, dinheiros, quantias, eu não sei, porque nunca (…) me intrometi nesse tipo de questões, sabia que havia esses fluxos financeiros (…). “(…) o Dr. A... ia muitas vezes ao escritório e depois o Dr. L... ia-me confidenciando: ´olha, emprestei aqui um montante ao Dr. A...`. E para além disso, o Dr. A... chegou a entregar-me envelopes com dinheiro, que eu calculava que fosse dinheiro (…)”; “(…) ele entregava-me a mim, porque era a pessoa que fisicamente estaria no escritório, ou porque o Dr. L... teria saído; (…)  nunca me foi mencionado, mas pela textura, pelo volume, às vezes, envelopes fechados (…). Eu calculava que seriam dinheiro, entregava ao Dr. L... ou deixava na secretária dele e depois em tom de conversa, ele dizia: ´olha, o A... veio aqui pagar, entregar-me algum dinheiro`. Sabia que existia empréstimos, agora em montantes, objectivamente, eu não sabia. E isto ocorreu cinco, seis vezes, (…) ao longo dos anos”; “(…) Não posso dizer quais eram os montantes, como é que era, mas ele pedia-me ´olhe, o Dr. L... está? Não está. Então, faça-me um favor e entregue-lhe isto`. Entregava-me um envelope lacrado, fechado. É esse o conhecimento objectivo que eu tenho”. “Eu desconheço, isso não sei (em resposta à pergunta ´sabe se alguma vez houve transferências ou cheques?`)”.

- Declarações de parte do 2º Réu:

O 1º Réu “nunca” lhe ´emprestou dinheiro` e apenas lhe “entregou uma quantia para entregar à D.ª M... quando foi deste processo, €30 000”; “houve um envolvimento para esse efeito…” (negócio da troca de notas). “O relacionamento (com o 1º Réu) era profissional, que se foi estreitando, mas pela via profissional…”. O 1º Réu não frequentava a casa do depoente (“nunca sequer lá entrou”); “(…) nunca pedi dinheiro às pessoas, é uma questão de vida, de princípio…”. Quanto à compra e venda da ´casa de Cascais` “(…) o negócio ficou abortado em Cascais porque o Sr. não vinha prevenido para dar entradas nem assinar contratos…”, pelo que não foram a Madrid dar continuidade a essa negociação. Para o negócio da “troca de notas”, em Madrid, a D.ª M... entregou-lhe uma quantia superior a €41.000 e o 1º Réu levou uma caixa de sapatos que disse conter a quantia de €50.000 (dinheiro que “não disse se era todo do cunhado ou não”); “por ideia do Dr. L...” foram participar à Polícia a ocorrência do recebimento de “notas falsas”; “(…) na altura, senti-me um bocado responsável por arranjar este negócio”. O depoente e o 1º Réu decidiram elaborar o documento reproduzido a fls. 25 verso “para ele (1º Réu) recuperar dinheiro através de mim…”, “para o ajudar (…) a ele e à D.ª M...”. “Ninguém” era responsável perante a M...

4. Com a elaboração do documento referido em II. 1. 37), supra, o 1º Réu pretendeu ver constituído um título executivo segundo a previsão do art.º 703º, n.º 1, alínea b) do CPC.

Relativamente à dita (pretensa) confissão de dívida, as AA. assumiram-se como fiadoras e principais pagadoras, renunciando ao beneficio da excussão prévia [cf. II. 1. 38), supra] [7], ou seja, obrigaram-se para com o (pretenso) credor (1º Réu) a cumprir a obrigação de outra pessoa (2º Réu), no caso de esta o não fazer, sabendo-se que a A fiança é o vínculo jurídico pelo qual um terceiro (fiador) se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito deste sobre o devedor (art.º 627º, n.º 1 do CC).  

Por exigência do 1º Réu, o mencionado documento particular de “confissão de dívida” foi autenticado por notário, mediante termo de autenticação [cf. II. 1. 35), 36) e 39) supra e documento de fls. 25 verso], pelo que consideram-se plenamente provados os factos referidos como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como os factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora, e bem assim as declarações atribuídas ao seu autor (cf. os art.ºs 371º, n.º 1, 1ª parte; 376º, n.º 1 e 377º[8] do CC).

5. A propósito do regime do art.º 458º do CC (sob a epígrafe “promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida”) - invocado pelo recorrente, mas que não releva ou interessa para a dilucidação da situação em análise - veja-se que não há verdadeiramente a confissão dum facto desfavorável ao autor da declaração, mas uma mera confissão de dívida, presumindo-se até prova em contrário a existência da relação fundamental (causal); permite-se ao autor da declaração, portanto, que ilida a presunção (art.º 350º, n.º 2, do CC) mediante a prova de que nenhuma relação negocial existe na base da declaração de reconhecimento emitida.

Porém, na confissão inserida em documento particular cuja veracidade esteja reconhecida, os factos compreendidos na declaração e contrários aos interesses do declarante valem a favor da outra parte nos termos da declaração confessória efectuada.[9]

O preceituado no referido art.º da lei civil substantiva envolve a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental[10] (que subjaz à promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida), valendo nas relações estabelecidas entre o devedor e o credor originários (relações imediatas)[11].

6. Retomando o explanado em II. 4., supra, no âmbito do direito probatório material, importa destacar que, quanto aos factos que se não passaram na presença da autoridade ou funcionário público e quanto às declarações que lhe foram feitas, pode demonstrar-se por qualquer meio que não correspondem à verdade, independentemente de arguição de falsidade do documento; o documento faz prova plena quanto à verdade dos factos praticados pela autoridade ou funcionário público (documentador) e quanto à verdade dos factos que se passaram na sua presença ou de que ele se certificou e podia certificar-se, mas não prova plenamente a sinceridade desses factos ou a sua validade ou eficácia jurídica, pois disto não podia aperceber-se o documentador.[12]

O documento faz assim prova plena quanto à ´materialidade` (prática, efectivação) de tais actos e declarações; mas não quanto à sua sinceridade, à sua veracidade ou à falta de qualquer outro vício ou anomalia.[13]

Por conseguinte, as AA., terceiras em relação à pretensa declaração confessória de dívida (que beneficia o 1º Réu e obriga o 2º Réu), não obstante aquela autenticação e a inerente prova plena, sempre poderiam impugná-la nos termos gerais (pugnando pela declaração da sua invalidade, v. g., a inexistência do mútuo subjacente à confissão de dívida ou a nulidade da declaração) e invocar quaisquer eventuais divergências entre a realidade e a declaração documentada ou quaisquer perturbações (vícios) do processo formativo da vontade.

Daí a presente acção!

7. Como se adiantou [cf. II. 3. e), ab initio, supra], a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, elaborada pela Mm.º Juíza a quo, afigura-se correcta.

            Na verdade, face à mencionada prova pessoal e documental, apenas podemos dizer que a factualidade dada como provada (e não provada) respeita a prova produzida nos autos e em audiência de julgamento, sendo que, até em razão da exigência de (especial) prudência na apreciação da prova pessoal[14], a Mm.ª Juíza não terá desconsiderado regras elementares desse procedimento, inexistindo elementos seguros que apontem ou indiciem que não pudesse ou devesse ponderar a prova no sentido e com o resultado a que chegou, pela simples razão de que não se antolha inverosímil e à sua obtenção não terão sido alheias as regras da experiência e as necessidades práticas da vida[15]

            A Mm.ª Juíza analisou criticamente as provas e especificou os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, respeitando as normas/critérios dos n.ºs 4 e 5 do art.º 607º do Código de Processo Civil (CPC), sendo que a Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

Dir-se-á, ainda, que não ficou demonstrada a existência de “erro de julgamento” quanto ao facto aludido em II. 1. 45), supra; não se vê como sustentar qualquer “contradição” entre tal materialidade e o facto não provado mencionado em II. 2. tt), supra, o que se alegou, apenas, na “fundamentação”, omitindo-o nas “conclusões” da alegação de recurso![16]; não foram desrespeitados quaisquer preceitos legais.

            Improcede, assim, a pretensão do apelante de ver modificada a decisão de facto.

8. O Réu/recorrente não logrou ver modificada a decisão de facto proferida em 1ª instância e não coloca quaisquer questões relacionadas com a decisão de mérito (que não tenham sido ponderadas ao nível da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto).

Não contesta o apelante o enquadramento jurídico dos factos apurados.

A Mm.ª Juíza a quo concluiu que a responsabilização das AA. só existiria na medida em que a obrigação do 2º Réu fosse válida e eficaz.[17]

Provando-se que o 1º Réu não entregou ao 2º Réu, e nem este recebeu o montante global de €110.000 em quantias de €2.500 em numerário, sendo a última em Julho de 2017 [cf. II. 1. 45), supra], ou seja, comprovada a não entrega (empréstimo) de dinheiro (sendo o contrato de mútuo, um contrato real, que só se completa pela entrega da coisa – cf. os art.ºs 1142º e 1144º do CC)[18], não se poderá afirmar a relação contratual[19] subjacente que “justificaria” a questionada confissão de dívida e a correlativa fiança.

Estamos perante uma causa debendi inexistente e que, por falta de objecto, torna inválidos os demais actos que a pressupõem ou implicam.

Por conseguinte, não podia haver confissão e garantia pessoal pelo cumprimento de algo que inexiste (cf., nomeadamente, os art.ºs 280º e 627º, n.º 2, 632º, 634º, 637º e 651º do CC), com a consequente invalidade (inexistência/nulidade) da mencionada confissão de dívida com fiança.

Fica assim prejudicado o conhecimento de (eventuais) vícios da vontade.

9. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.

III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo 1º Réu/apelante.


11.5.2021


                                                           ***


[1] Cf. o documento de fls. 18.
[2] Idem.

[3] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 284 e 386 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, 4ª edição, 2004, págs. 266 e seguinte.
[4] Refere-se no acórdão da RP de 20.3.2001-processo 0120037 (publicado no “site” da dgsi): A prova, por força das exigências da vida jurisdicional e da natureza da maior parte dos factos que interessam à administração da justiça, visa apenas a certeza subjectiva, a convicção positiva do julgador. Se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça.   

[5] Mais propriamente, os acórdãos do STJ de 31.5.2011-processo 4716/10.5TBMTS-A.S1 [assim sumariado: «I. Tem força probatória plena a confissão extrajudicial de dívida, na qual se alude ao empréstimo que foi concedido em determinado montante, confissão essa exarada em documento autêntico (escritura pública) em que outorgaram o ora exequente, destinatário da confissão (art.º 358º, n.º 2, do CC) e os executados, documento que constitui título exequível de harmonia com o disposto no art.º 46º, n.º 1, al. b), do CPC. II. A força probatória plena dessa confissão significa, nestas circunstâncias, que a prova do facto confessado – o empréstimo da referida quantia a restituir em determinada data – pode ser ilidida só com base na falsidade do documento (art.ºs 347º e 372º, n.º 1, do CC) ou mediante a invocação de factos integrativos de falta ou de vício da vontade que determinem a nulidade ou anulação da confissão”»] e da RC de 23.6.2015-processo 1534/09.7TBFIG.C1 [tendo-se concluído: «a) A Relação deve formar uma convicção verdadeira - e fundamentada - sobre a prova produzida na 1ª instância, independente ou autónoma da convicção do juiz a quo, que pode ou não ser coincidente com a deste último – não se devendo limitar a controlar a legalidade da produção da prova realizada naquela instância e a aceitar o resultado do exercício dessa prova, salvo os casos em que esse julgamento seja ilógico, irracional, arbitrário, incongruente ou absurdo. b) O documento autêntico prova plenamente os factos atestados que se passaram na presença do documentador, v. g., as declarações, mas já não prova de pleno a sinceridade desses factos ou a sua validade ou eficácia jurídicas, pois de uma coisa e de outra não pode aperceber-se a entidade documentadora, podendo, assim, demonstrar-se que a declaração inserta no documento não é sincera nem eficaz, sem necessidade de arguição da falsidade dele. c) A confissão extrajudicial, comunicada por documento autêntico ou documento particular genuíno que tiver sido feita à parte contrária, tem força probatória plena, mas o declarante é admitido a provar que a declaração não correspondeu à verdade ou que foi afectada por algum vício de consentimento, vício para cuja demonstração é admitida a prova testemunhal e – e por extensão de regime – a prova por declarações de parte. d) Existindo um princípio de prova escrita, suficientemente verosímil, fica aberta a possibilidade de complementar, por recurso à prova testemunhal, a prova do facto contrário objecto da declaração confessória, ou seja, de demonstrar não ser verdadeira a afirmação produzida na presença do documentador. e) É admissível a valoração do depoimento de parte, no segmento em que não produz confissão, à luz da livre apreciação do tribunal. f) A apreciação da prova deve ocorrer sob o signo da probabilidade lógica - de evidence and inference -, i. é, segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente, portanto, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis.»] e de 24.4.2018-processo 4/13.3TBCVL-B.C1, publicados o “site” da dgsi.
[6] Rectifica-se lapso manifesto.
[7] Cf. a “nota 9”, supra.

[8] Preceitua este último normativo: «Os documentos particulares autenticados nos termos da lei notarial têm a força probatória dos documentos autênticos, mas não os substituem quando a lei exija documento desta natureza para a validade do acto.»

[9] Cf. o acórdão do STJ de 22.01.2013-processo 376/08.1TBOFR-A.C1, publicado no “site” da dgsi.
[10] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. I., 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 412.
[11] Cf., designadamente, o acórdão do STJ de 27.5.2014-processo 780/13.3TBEPS.G1.S1, publicado no “site” da dgsi.

[12] Cf., de entre vários, os acórdãos da RP de 24.11.2020-processo 1524/19.1T8OVR-A.P1 e da RC de 24.4.2018-processo 4/13.3TBCVL-B.C1, publicados no “site” da dgsi.
[13] Vide, nomeadamente, Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material, BMJ 111º, págs. 121 e seguintes e Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 227.
[14] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 277.
[15] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 192 e nota (1) e Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ, 110º, 82.
[16] Tendo presente que:
   - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou a anulação da decisão (art.º 639º, n.º 1 do CPC), ou seja, ao ónus de alegar acresce o ónus de concluir - as razões ou fundamentos são primeiro expostos, explicados e desenvolvidos no curso da alegação; hão-de ser, depois, enunciados e resumidos, sob a forma de conclusões, importando que a alegação feche pela indicação resumida das razões por que se pede o provimento do recurso (a alteração ou a anulação da decisão).     
   - Ora, o tribunal superior tem de guiar-se pelas conclusões da alegação para determinar, com precisão, o objecto do recurso; só deve conhecer, pois, das questões ou pontos compreendidos nas conclusões, pouco importando a extensão objectiva que haja sido dada ao recurso, no corpo da alegação - vide, entre outros, Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. V (reimpressão), Coimbra Editora, 1984, págs. 308 e seguintes e 358 e seguintes; J. Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, CPC Anotado, Vol. 3º, Coimbra Editora, 2003, pág. 33 e os acórdãos do STJ de 21.10.1993 e 12.01.1995, in CJ-STJ, I, 3, 84 e III, 1, 19, respectivamente. -, sendo que tudo o que conste das conclusões sem corresponder a matéria explanada nas alegações propriamente ditas, não pode ser considerado e não é possível tomar conhecimento de qualquer questão que não esteja contida nas conclusões das alegações, ainda que versada no respectivo corpo - cf. o citado acórdão do STJ de 12.01.1995.
[17] Cf., a propósito, ainda, a “nota 9”, supra.

[18] Vide, nomeadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, 1997, págs. 761 e seguinte.

  O contrato de mútuo, atenta a sua natureza real quoad constitutionem, exige a entrega da coisa como elemento integrante do contrato, pressuposto da sua conclusão (art.º 1142º do CC) - o momento culminante da vinculação contratual é o desapossamento efectivo da coisa, a ponto de as coisas mutuadas se tornarem propriedade do mutuário com o acto da entrega (art.º 1144º do CC).
[19] No acórdão do STJ de 13.02.2007-processo 07A079 (publicado no “site” da dgsi) concluiu-se que «sendo o contrato de mútuo um contrato real ´quod constitutionem`, isto é, um contrato que só se completa com a entrega da coisa, e não tendo havido qualquer entrega, então tal "contrato" é nulo por falta de objecto, nos termos do art.º 280º do CC
   Idêntico o entendimento seguido, por exemplo, no acórdão da RP de 25.11.2013-processo 4316/11.2TBVFR-A.P1 [assim sumariado: «II - Demonstrando os oponentes que não assumiram qualquer obrigação para com o oposto/exequente, estando apurado nos autos factos que sustentam a não existência do contrato que deu origem à exequenda escritura pública de mútuo com hipoteca, retirando qualquer credibilidade à aparência da existência ou da exigibilidade do direito do credor/exequente, temos de reconhecer que a execução não deve prosseguir devendo ser julgada extinta, porque inexistente a reclamada divida. III - Sendo o contrato de mútuo, um contrato real, determinando, neste sentido, que só se completa pela entrega da coisa, temos de admitir que na falta de entrega desta, ocorrerá, necessariamente, a nulidade do contrato de mútuo por falta de objecto nos termos do art.º 280º, do Código Civil, pois, apesar do que foi escrito na respectiva escritura, não ocorreu, nem na data da sua celebração, nem antes nem depois, a entrega de qualquer quantia pecuniária, devendo reconhecer-se, outrossim, que por tal motivo, ocorrerá a extinção da prestada garantia hipotecária.»], publicado no “site” da dgsi.