Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
243/15.2GASPS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: INJÚRIA
Data do Acordão: 09/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (SECÇÃO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA INSTÂNCIA LOCAL DE S. PEDRO DO SUL - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 181.º DO CP
Sumário: A expressão “Estás cada vez melhor! Comia-te toda! És toda boa! Pagavas o que me deves!”, dirigida pelo arguido à assistente, constituindo linguagem grosseira, boçal e ordinária, susceptível de ferir a sensibilidade subjectiva da visada, não atinge, no seu todo, o patamar mínimo de dignidade ético-penal apto a fazer intervir o tipo de crime previsto no artigo 181.º do CP.
Decisão Texto Integral:







ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

            Nos autos de inquérito que, sob o número 243/15.2GASPS, correram termos pelos Serviços do DIAP de S. Pedro do Sul, da Comarca de Viseu, a encerrar aquela fase processual, a assistente A.... formulou acusação particular contra B....., imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de injúria, p.p. pelo artº 181º, 1, do Código Penal.
            Por entender não serem suficientes os indícios recolhidos, o MP não acompanhou a acusação particular.
            Remetidos os autos a juízo, com vista ao seu julgamento em processo comum e distribuídos pela Secção de Competência Genérica, da Instância Local de S. Pedro do Sul – J1, daquela referida comarca de Viseu, viria a ser proferido despacho do seguinte teor:

            «Fls. 72/74: comunique, outrossim, à delegação distrital da OA a cessação de funções da Dra.C.... (cfr. fl. 66).
            Autue como processo comum, com intervenção do tribunal singular.
            O tribunal é competente e o processo válido. Instância regular.
            Têm os presentes autos, como objecto, o conteúdo da acusação particular de fls. 50/51, deduzida pela assistente A.... contra o arguido B.....
            Em parecer plasmado a fls. 57 a 59, a Digna Magistrada do MP não acompanhou aquela referida acusação por entender, em síntese, que os factos nela vertidos não configurariam a prática de qualquer crime, incluindo por isso o crime de injúria.
            Ora, adiantando conclusões, afigura-se-nos assistir razão e bom fundamento à posição assumida pelo MP.
            Assim, dispõe o artº 311º, nº 2 do CPP (diploma ao qual pertencerão as ulteriores menções legislativas sem indicação de origem) que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente tem a possibilidade “a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”, sendo que tal peça considera-se como tal, ou seja, manifestamente infundada quando, além de outras causas prevenidas na lei, os factos não constituírem crime – artº 311º, nº 3, al. d).
            Vejamos por isso esses factos: acusa a assistente o arguido de, numa via pública desta cidade de S. Pedro do Sul, se lhe ter dirigido e, referindo-se a si, assistente, ter proferido as seguintes expressões: “Estás cada vez melhor! Comia-te toda! És toda boa! Pagavas o que me deves!”. Em função de tal alegada conduta imputa ao arguido a prática de um crime de injúria, da previsão do artº 181º, nº 1 do CP, o qual dispõe que é punido aquele que “… injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração…”.
            Na decorrência da ausência de qualquer restrição legislativa, tem-se entendido o bem jurídico-penal protegido pela norma incriminadora, precisamente plasmado no conceito de honra, como assumindo uma natureza complexa, que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua fundamental dignidade, quer a sua reputação ou consideração exterior – cfr. o Comentário Conimbricense do CP, t. I, 607.
            De uma forma mais lata a honra consiste numa síntese do apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade de cada indivíduo, e pelos demais valores espirituais e morais que em si existem e que lhe determinam a sua forma de pensar, de viver e de conviver, fazendo de cada qual um ser dotado de concretos atributos, capacidades e qualidades que se reflectem, também, no mundo exterior – cfr. Capelo de Sousa, in O Direito Geral de Personalidade, 303; ainda António Jorge Oliveira Mendes, in O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, 18.

            Honra esta que se poderá perspectivar enquanto estima pessoal, ou seja, enquanto resultado do auto-reconhecimento ou da auto-avaliação daqueles apontados valores e qualidades, como consciência daquilo que se é ou daquilo que se vale, ou pelo menos daquilo que se pensa ser ou valer. Nesta perspectiva desponta o conceito de honra como dignidade pessoal, de estima que cada qual tem por si mesmo. É aquilo que se costuma identificar como honra interna.

            Mas também, como contraposição àquela, e muitas das vezes não coincidente com a mesma, podemos falar na honra externa, não já enquanto estima ou dignidade pessoal, mas antes como imagem ou percepção, pelos outros, daquele conjunto de valores ou qualidades, emergindo então dessa imagem ‘externa’ a reputação e o bom nome, ou seja, a consideração social em que se é tido – do que se vem de expor vide António Jorge Oliveira Mendes, idem, 18 a 21.

            Aquela honra, enquanto ‘substância’ que se acabou por sintetizar, é susceptível dos mais variados danos ou ameaça de dano. A sua lesão – a desonra –, quando incidente sobre a honra interna, isto é, o apontado sentimento de estima pessoal, traduz-se fundamentalmente numa perturbação, numa perda da paz ou da tranquilidade individuais – cfr. Capelo de Sousa, idem, 302. Quando da perspectiva da honra externa, traduz-se a desonra na diminuição da consideração com que se é tido pelos outros e pela comunidade em geral.
            Conforme a propósito expende Pedro Pais de Vasconcelos, in Direito de Personalidade, 76, “É a honra um direito inerente à qualidade e à dignidade humana. Mas as pessoas podem perder a honra ou sofrer o seu detrimento em virtude de vicissitudes que tenham como consequência a perda ou a diminuição do respeito e consideração que a pessoa tenha por si própria ou de que goze na sociedade. As causas de perda ou detrimento da honra – de desonra – são, em termos muito gerais, acções da autoria da própria pessoa ou que lhe sejam imputadas, e que sejam considerações reprováveis na ordem ética vigente, quer ao nível da própria pessoa, quer ao nível da sociedade”.

*
            Feito este excurso a propósito da honra, poder-se-á concluir, em face das palavras alegadamente dirigidas à assistente pelo arguido, que aquela perdeu ou viu prejudicados aquele conjunto de valores ou qualidades, isto é, que perdeu e diminuiu o respeito que tivesse e/ou tenha por si própria, ou que gozasse e/ou goze na comunidade?
            Neste ponto cumpre lançar a debate dois relevantes aspectos.
            Por um lado a circunstância de a integração dos elementos do tipo de injúria não poder ficar ao critério subjectivo de cada um (maxime do ofendido ou do julgador), sob pena de se cair na mais completa arbitrariedade. E embora se possa partir de considerações de ordem subjectiva, tal critério pode e deve ser temperado por um critério objectivo, em última instância reconduzível ao sentimento médio de honra (naquela) comunidade em concreto. Como apontado por Beleza dos Santos, citado no Ac. da RG de 30.6.14 (processo 377/13.8GCBRG.G1), in www.dgsi.pt, “… não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem tudo aquilo que o queixoso entenda que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores” relacionados com a honra.
            Por outro lado, cumpre não olvidar que nos encontramos em ‘ambiente penal’, cuja intervenção, reconhecidamente, constitui a ultima ratio da política social tendente à defesa da livre realização da personalidade de cada um na comunidade.
            Vem este segundo aspecto a propósito do princípio da proporcionalidade que inere ao conceito do próprio Estado de Direito, e do qual se extraem duas emanações, dois princípios relacionados com a intervenção penal, que acabam por derivar da norma constitucional do artº 18º, nº 2, 2 parte (“devendo as restrições – aos direitos, liberdades e garantias – limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”): por um lado o princípio da dignidade penal; por outro o da necessidade ou carência de tutela penal. Do primeiro decorre a restrição da protecção jurídico-criminal aos bens jurídicos fundamentais de uma comunidade, ao passo que o segundo impõe o afastamento dessa intervenção sempre que exista outro meio ou via menos gravosa de produzir o mesmo resultado, isto é, a protecção do bem jurídico – cfr., do que se vem de expor, o supra mencionado aresto.
            Do conjunto de tais dados interpretativos, e ainda como se conclui naquele aresto, vem-se sedimentando, na doutrina e na jurisprudência, o entendimento de que “… o respeito pelo princípio constitucional do artº 18, nº 2 da Constituição… e do princípio do mínimo de intervenção penal, estabelecem um efectivo critério limitador, por forma a restringir a protecção penal na injúria “àquelas situações em que é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que deve existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros”.
*
            Ora, que as expressões imputadas ao arguido, num contexto como aquele retratado na acusação, mais que indelicadas, são rudes e destituídas de qualquer polidez, é conclusão que se nos afigura incontornável (para nós ou para qualquer outra pessoa minimamente (re)conhecedora das normais regras de convivência social). Foi o arguido descortês (pressupondo-se aqui a veracidade de tais factos). Mas que atinjam aquele núcleo de qualidades morais que ponham em crise o apreço da assistente por si própria, ou o seu reconhecimento ou consideração junto dos outros, não vemos, salvo o devido respeito, qualquer virtualidade em tais palavras.
            De facto, e de um modo, como apontado, rude, o arguido tece considerações a propósito do aspecto físico da pessoa da assistente, considerando-a portadora de atributos físicos susceptíveis de ocasionarem (no arguido) algumas ideias libidinosas. Pode a assistente julgar-se melindrada e incomodada com tais expressões? Certamente que sim. Que se possa sentir de algum modo diminuída na auto-estima? Obviamente que não. Nem se perspectiva como é que tais expressões, ainda que porventura escutadas ou sabidas por terceiros, possam colocar em crise a consideração que a assistente goze junto da comunidade: eventuais terceiros poderão comentar o sucedido, concordar ou discordar da alegada atitude descortês do arguido, concordar ou discordar da ‘opinião’ veiculada pelo arguido mas, com tal, não se vê como a reputação ou consideração social da assistente possam ser afectados com tal episódio.
            Ora, em jeito de conclusão, “A Ofensa à honra ou consideração não é susceptível de confusão com a ofensa às normas de convivência social, ou com atitudes desrespeitosas ou mesmo grosseiras…” - cfr. o Ac. da RC de 6.1.10 (processo 862/08.3TAPLB.C1), na apontada base de dados. Ou, como paradigmaticamente vem plasmado em Acórdão da RP citado no Ac. da RG de 17.2.14 (processo 1500/10.0GBGMR.G1), na mesma base de dados, “… o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros”. Mas tais consequências não são razoavelmente susceptíveis de poderem ser alcançadas (independentemente de ser essa a intenção do agente) pelas palavras do arguido.
            Termos em que, ao abrigo do disposto no artº 311º, nºs 2, al. a) e 3, al. d) do CPP, rejeito a acusação particular de fls. 50/51 deduzida pela assistente A.....
            Custas pela assistente, fixando-se a taxa de justiça em 1,5 UC.
            Registe e notifique

            Inconformada, a assistente interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:
I. Vem o presente recurso interposto do despacho, proferido nos autos, datado de 29/2/2016, que rejeitou a acusação particular deduzida pela assistente, aqui recorrente, ao abrigo do disposto no artº 311º, 2, a) e 3, d), do CPP.
II. A recorrente discorda do despacho ora recorrido, pois, mui respeitosamente, considera que foi feita uma incorrecta aplicação do direito vigente aos factos plasmados na acusação particular por si deduzida e, por conseguinte, devia aquela acusação particular ter sido admitida, juntamente com o PIC formulado pela recorrente e ter sido designada data para audiência de discussão e julgamento, seguindo os seus ulteriores termos até final.
III. Salvo o devido respeito, o desfecho da presente lide merecia um entendimento diverso, pois os factos relatados pela recorrente na acusação particular por si deduzida têm relevo criminal.
IV. No dia 23 de Julho de 2015, pelas 18 horas, na Rua de Camões, defronte à praça de táxis, em S. Pedro do Sul, o arguido proferiu as seguintes expressões que dirigiu à sua pessoa e referentes à recorrente: “Estás cada vez melhor! Comia-te toda! És toda boa! Pagavas o que me deves!”.
V. Tais expressões e imputações foram proferidas pelo arguido, alto e bom som por forma a serem ouvidas pela recorrente e por todos os que se encontravam naquela via pública, o que de facto aconteceu, bem sabendo o arguido que eram, como são, gravemente atentatórias do bom nome, honra e consideração da recorrente as expressões vexatórias e imputações por si proferidas.
VI. Sendo certo que ofenderam, como ainda hoje ofendem, de forma gravíssima e intolerável a honra, bom nome e consideração da recorrente.
VII. Mais do que meramente indelicadas, rudes e destituídas de qualquer polidez, as expressões proferidas pelo arguido à recorrente atingiram a honra desta e a sua consideração, aliás, temos em crer que foi mesmo esse o objectivo do arguido ao proferir tais expressões.
VIII. O arguido agiu livre e conscientemente, ciente da gravidade das expressões que proferiu e certo de que a sua conduta o fazia incorrer em responsabilidade criminal.
IX. O arguido não pretendeu tecer considerações a propósito do aspecto físico da pessoa da recorrente, de uma forma rude mas, digamos, apreciativa, conforme parece ser o entendimento do tribunal recorrido. Pelo contrário, ao proferir tais expressões num lugar público, movimentado e central de S. Pedro do Sul, o arguido pretendeu atacar a recorrente, vexando-a e humilhando-a, bem sabendo que tais palavras seriam comentadas e conhecidas na comunidade onde este e a recorrente se encontram inseridos.
X. Ora, é igualmente certo que a recorrente preza, mantém e fomenta um ambiente saudável, na base do respeito e honestidade com todas as pessoas com que se relaciona, sendo tida por todos os que a conhecem como pessoa séria, honesta, trabalhadora e cumpridora de todas as suas obrigações, pelo que, ao serem-lhe dirigidas, como efectivamente foram, tais expressões, sentiu-se a recorrente gravemente ofendida na sua honra e consideração, que por todos deverão ser respeitadas, incluindo pelo arguido.
XI. Na verdade, o arguido quis e conseguiu, ao proferir tais expressões, ofender a honra e consideração da recorrente que, para além de perplexa, ficou profundamente abalada e envergonhada, atento o inesperado da situação e a ausência de motivo que sequer justifique a conduta do arguido.
XII. Assim, não pode a recorrente acompanhar o entendimento do tribunal a quo, quando considerou que os factos relatados na acusação particular deduzida pela recorrente não constituem crime.
XIII. Pelo contrário, fruto das expressões acima identificadas, foi imputado ao arguido, pela recorrente, a prática de um crime de injúria, previsto no artº 181º, 1 do CP.
XIV. Temos que atentar no contexto situacional em que as palavras e expressões foram proferidas pelo arguido e tentar alcançar o resultado que as mesmas provocaram.
XV. O arguido disse-as num local público, em voz alta, com intenção de que as mesmas fossem ouvidas e compreendidas não só pela recorrente, mas também pelas restantes pessoas que circulavam naquela via pública, o que efectivamente ocorreu.
XVI. Gritar à recorrente “Estás cada vez melhor! Comia-te toda! És toda boa!” quando o arguido bem sabe que aquela é casada, tem filhos e uma vida familiar estável, mais não é do que atentar contra o seu bom nome, ofendê-la na sua honra, envergonhá-la e humilhá-la, atingi-la na sua reputação e consideração exterior. O arguido pretendeu vexar a recorrente e expô-la aos comentários públicos da população em geral pois, após o ocorrido, a comunidade comentou-o intensamente, atento o meio pequeno em que ambos se integram, o que provocou um profundo sentimento de vergonha na recorrente, por estar a ser alvo de comentários e apreciações que muito a incomodaram, a si e à sua família.
XVII. Ademais, a expressão ‘Pagavas o que me deves’ imputa à recorrente factos que, sendo falsos, foram proferidos no intuito de manchar o bom nome daquela perante terceiros, fazendo-os questionar se seria ou não verdade que a recorrente devesse qualquer quantia monetária ao arguido, e afectá-la na sua reputação e consideração exterior.
XVIII. Além de que as expressões proferidas pelo arguido e conjugadas entre si, ouvidas como um todo, remetem para fins de cariz sexual implícito, e podem inclusivamente levar a crer a terceiros que o arguido obteria o pagamento das alegadas dívidas da recorrente através de contactos de natureza íntima que esta lhe poderia proporcionar, o que muito ofende a honra da recorrente.
XIX. Com al conduta, quis e conseguiu o arguido afectar a honra interna da recorrente, pois atingiu-a na avaliação que esta faz de si própria e das suas qualidades, daquilo que é e daquilo que vale, isto é, a sua dignidade pessoal, e também afectou a honra externa da recorrente, pois atingiu-a na imagem e percepção que os outros têm sobre si, ou seja, a consideração social em que é tida, a sua reputação e o seu bom nome.
XX. A recorrente é mãe de família e esposa extremosa, é uma pessoa séria, honesta, trabalhadora e acarinhada por toda a comunidade da região onde reside e não só, sendo estimada por todos os seus colegas de trabalho e demais conhecidos. Com as expressões que lhe foram dirigidas pelo arguido, a recorrente foi gravemente atingida na sua honra e consideração, sentiu-se humilhada, vexada e envergonhada, tendo ficado bastante triste e abatida, com falta de vontade de sair de casa, para se encontrar com amigos e conhecidos, andando alguns dias aborrecida e carrancuda para a própria família, desmotivada em prosseguir a sua actividade diária, tudo fruto das expressões que lhe foram dirigidas pelo arguido, com a agravante de tudo se ter passado em plena via pública, na presença de terceiros. Tanto mais sendo S. Pedro do Sul um meio pequeno, no qual a recorrente é considerada e estimada, pelo que tais expressões e imputações muito a vexaram, por se terem tornado conhecidas da comunidade em geral.
XXI. A recorrente nunca se tinha confrontado com semelhante situação, não está habituada a ser tratada desta forma, pois é sempre educada nas relações que estabelece com as demais pessoas e valoriza ser tratada de igual forma e com respeito. Jamais se imaginou a passar por esta situação e ficou completamente chocada com o sucedido, tendo-lhe provocado um profundo abalo psicológico, que no presente ainda sente quando pensa no sucedido.
XXII. Portanto, as expressões proferidas pelo arguido provocaram na recorrente a perda da sua paz e tranquilidade individuais, e traduziram-se, igualmente, na diminuição da consideração com que a recorrente é tida pelos outros e na sua comunidade em geral.
XXIII. Ao contrário do entendimento do tribunal a quo, a recorrente sentiu-se, e sente-se, além de melindrada e incomodada, diminuída na sua auto-estima, fruto das ofensas do arguido. Estamos perante algo mais grave do que um simples incómodo produzido após umas palavras grosseiras ditas pelo arguido; tanto para mais quando o ordenamento jurídico português tem vindo a evoluir no sentido de considerar as expressões ofensivas da dignidade e do respeito pelos outros (os vulgarmente designados ‘piropos’), como as proferidas pelo arguido e dirigidas à recorrente, como relevantes a nível penal e assistimos a uma criminalização das mesmas.
XXIV. Posto isto, as expressões e palavras proferidas pelo arguido, e dirigidas à pessoa da recorrente, são injuriosas e têm relevo criminal, pelo que a acusação particular deduzida oportunamente pela recorrente deveria ter sido admitida.
XXV. O despacho proferido pelo tribunal a quo mostra-se, assim, violador do artº 181º, 1, do CP, bem como do artº 311º do CPP, devendo, por isso, ser revogado, nos termos supra expostos.
            Termos em que deve o presente recurso merecer provimento em toda a sua extensão e, consequentemente, alterado o despacho recorrido em conformidade, ser admitida a acusação particular deduzida pela recorrente, com as legais consequências.

            Respondeu o MP em primeira instância, retirando as seguintes conclusões:

1- A douta decisão proferida nos autos, que rejeitou liminarmente a acusação particular deduzida pela assistente recorrente encontra-se devidamente fundamentada, não merecendo qualquer censura.

2-  As expressões contidas na acusação particular, imputadas ao arguido, não são susceptíveis de integrar a prática de qualquer ilícito criminalmente punível.

3- Apenas revelam um “linguajar” boçal e grosseiro, insusceptível de atingir a dignidade humana da assistente ou de qualquer outra pessoa.

4- Entendemos, pelo exposto, não merecer a decisão “a quo”, agora posta em crise, qualquer censura, devendo o recurso improceder na totalidade.

Nesta Relação, o Ex.mo PGA emitiu douto parecer, no qual, acompanhando a resposta do MP em primeira instância, conclui no mesmo sentido.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


            DECIDINDO:

            Analisadas as conclusões que formula a assistente/recorrente, logo se vislumbra que são essencialmente duas as questões que coloca à nossa apreciação, ainda que interligadas: em primeiro lugar, sob uma perspectiva adjectiva, está em causa o preenchimento do conceito normativo-processual de «acusação manifestamente infundada»; depois, e sob uma perspectiva substantiva, de mérito, está em causa o preenchimento, no caso, dos elementos típicos do crime de injúria.

            Da conjugação do nº 2, a), com o nº 3, d), ambos do artº 311º, do CPP, resulta inequivocamente que recebidos os autos em juízo, ao juiz presidente é lícito rejeitar a acusação, por manifestamente infundada, se os factos narrados não constituírem crime. Foi essa a argumentação invocada no despacho impugnado para rejeitar a acusação particular.

            Por isso, teremos de entrar na análise dos factos descritos na acusação, de forma a averiguar se é possível a sua integração criminal no tipo referido na acusação.

            Foi a seguinte a fundamentação essencial invocada no despacho recorrido para rejeitar a acusação da assistente:

«Ora, que as expressões imputadas ao arguido, num contexto como aquele retratado na acusação, mais que indelicadas, são rudes e destituídas de qualquer polidez, é conclusão que se nos afigura incontornável (para nós ou para qualquer outra pessoa minimamente (re)conhecedora das normais regras de convivência social). Foi o arguido descortês (pressupondo-se aqui a veracidade de tais factos). Mas que atinjam aquele núcleo de qualidades morais que ponham em crise o apreço da assistente por si própria, ou o seu reconhecimento ou consideração junto dos outros, não vemos, salvo o devido respeito, qualquer virtualidade em tais palavras».

            Pretende-se, assim, que, por não ter sido atingido o núcleo essencial da esfera de protecção da norma, não se consumou o crime imputado, pois que as palavras em questão, a terem sido proferidas e dirigidas à assistente, mais não são do que uma grosseria.

            Está aqui em causa a rejeição da acusação, quando “manifestamente” infundada. O uso de tal advérbio logo inculca a ideia de que só poderá ser rejeitada a acusação que se mostre elaborada de tal modo que, face à extensão das suas deficiências ou ao teor da sua descrição factual, torne evidente que não pode ela conduzir a uma condenação, mesmo que provada, seja porque não descreve elementos essenciais, necessários ao preenchimento da previsão típica objectiva ou subjectiva, seja porque os factos descritos, por si, não integram uma qualquer previsão típica. Já não pode conduzir a tal rejeição a circunstância de a acusação padecer de vícios ou lacunas não essenciais ou proceder a uma descrição descuidada dos factos, desde que essa insuficiência não conduza inexoravelmente à sua não procedência.

            No caso concreto está em causa a prática de um crime de injúria, da previsão do artº 181º, 1, do CP, o qual se consuma mediante o preenchimento da seguinte previsão: «injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração».

            Da acusação particular consta a seguinte descrição factual:
«No dia 23 de Julho de 2015, pelas 18 horas, na Rua de Camões, defronte à praça de táxis, em S. Pedro do Sul, o arguido proferiu as seguintes expressões que dirigiu à sua pessoa e referentes à recorrente: “Estás cada vez melhor! Comia-te toda! És toda boa! Pagavas o que me deves!”.
Tais expressões e imputações foram proferidas pelo arguido, alto e bom som por forma a serem ouvidas pela recorrente e por todos os que se encontravam naquela via pública, o que de facto aconteceu, bem sabendo o arguido que eram, como são, gravemente atentatórias do bom nome, honra e consideração da recorrente as expressões vexatórias e imputações por si proferidas.»
O bem jurídico protegido pela incriminação é a honra, a qual se pode desdobrar numa perspectiva interna, traduzida na ideia que cada um de nós tem de si, e numa outra, externa, traduzida na conta em que somos tidos por terceiros. Injuriosa será, deste modo, a acção ou a expressão que seja apta a pôr em causa a “auto-estima” ou a “fama” do sujeito passivo. Neste sentido é clara a norma do artº 208º do CP Espanhol, aqui usada como auxiliar de interpretação comparada, ao estatuir que «é injúria a acção ou expressão que lesam a dignidade de outra pessoa, menoscabando a sua fama ou atentando contra a sua própria auto-estima». O crime em estudo, há-de constituir, ao fim e ao cabo, um agravo à honra do lesado. A honra há-de ser não só a que resulta das acções próprias como do conceito alheio, a estima com que a opinião pública recompensa aquela virtude.

Todavia, mesmo a tutela penal do direito à honra e à consideração há-de sofrer limitações gerais (aplicáveis a todos os indivíduos, sem excepção). Estão em causa aspectos que se prendem com a apreciação da capacidade efectivados factos ou do juízo para causar a ofensa, de modo a expurgar essa análise de cambiantes meramente subjectivas, atribuindo-lhe um cariz mais objectivo, seguindo critérios de normalidade, saneando-a de meras susceptibilidades pessoais injustificáveis. «Com uma visão exacta, ensina JANITTI PIROMALLO que: “os crimes contra a honra ofendem um sujeito, mas não devem ter-se em conta os sentimentos meramente pessoais, senão na medida em que serão objectivamente merecedores de tutela.” Em conclusão: não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem tudo aquilo que o queixoso entende que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais.» (José Beleza dos Santos, ‘Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e de injúria’, RLJ, Ano 92, nº 3152, pag. 167).

            Ora, analisada aquela descrição factual, v.g. a parte referente às expressões imputadas ao arguido, verificamos que elas se desdobram em duas vertentes:

a)uma primeira, em que tece considerações acerca de pessoa da assistente, e das suas aspirações libidinosas em relação a ela: - “Estás cada vez melhor! Comia-te toda! És toda boa! (…)”;

b) uma segunda, que embora interligada com a primeira se refere ao comportamento da mesma no que diz respeito ao cumprimento das suas obrigações pecuniárias: “(…) Pagavas o que me deves!”.

            Quanto à primeira parte destacada, cremos serem procedentes todas as razões invocadas, quer no despacho do MP, em que não acompanha a acusação particular, quer no despacho recorrido; citando o MP, na sua resposta, diremos que «se alguma honra ou consideração foram atingidas com as expressões supra descritas é a do próprio arguido pois que algum terceiro ajuizado que ouvisse as mesmas chegaria rapidamente à mesma conclusão a que chegou o tribunal “a quo”, ou seja, que o arguido é detentor de linguagem boçal, ordinária e grosseira».

            Com efeito, as expressões dirigidas à assistente pelo arguido, não contêm implícita qualquer referência depreciativa á moralidade sexual daquela; o arguido não faz referência a qualquer circunstância da qual se possa concluir que pretendia ele pôr em causa o núcleo essencial daquela moralidade e muito menos que tivesse como intenção afirmar que o comportamento da assistente, em termos sexuais, fosse licencioso. O que se passou foi que o arguido, de forma grosseira e boçal, se dirigiu à assistente, fazendo uma apreciação subjectiva acerca das qualidades físicas desta e anunciando os seus propósitos libidinosos relativamente a ela. O que está aqui em causa é apenas falta de educação e não o cometimento de um crime. E dado o princípio da intervenção mínima do direito penal, nem todos os comportamentos traduzidos em falta de educação podem ser elevados à categoria de crime, apenas o podendo ser aqueles que ofendam de forma grave e irreparável o núcleo essencial tutelado pela esfera de protecção daquele direito da personalidade.

            Ou seja, a susceptibilidade da ofendida, despoletada embora pelo comportamento grosseiro do arguido, não é suficiente para integrar o âmbito de protecção da norma penal (do artº 181º, 1, do CP), não integrando assim o conceito de interesse jurídico protegido. Com efeito, não integrando o núcleo essencial daquele âmbito de protecção, não é encarado como ofensa pela generalidade dos cidadãos, mas apenas pelos mais sensíveis, pelos mais susceptíveis, razão pela qual não merece tutela penal.

            Citando Adriano de Cupis (in Os Direitos da Personalidade, pag.s 17 e 18): «Todos os direitos, na medida em que destinados a dar conteúdo à personalidade, poderiam chamar-se “direitos da personalidade”. No entanto, na linguagem jurídica corrente esta designação é reservada àqueles direitos subjectivos cuja função, relativamente à personalidade, é especial, constituindo o ‘minimum’ necessário e imprescindível ao seu conteúdo. Por outras palavras, existem certos direitos sem os quais a personalidade restaria uma susceptibilidade completamente irrealizada, privada de todo o valor concreto: direitos sem os quais todos os outros direitos subjectivos perderiam todo o interesse para o indivíduo – o que equivale a dizer que, se eles não existissem, a pessoa não existiria como tal. São esses os chamados “direitos essenciais”, com os quais se identificam precisamente os direitos da personalidade. (…) Todo o meio social tem uma sensibilidade particular relativamente à essencialidade dos direitos. É assim que, mudando a consciência moral, modificando-se o modo de encarar a posição do individuo no seio da sociedade, muda correlativamente o âmbito dos direitos tidos como essenciais à personalidade. Ao repercutir-se esta concepção sobre o ordenamento jurídico, os direitos da personalidade adquirem uma determinada figura positiva. É só então que o atributo da essencialidade adquire um valor jurídico positivo integral, isto é, quando os direitos se revestem da dita essencialidade não só tomam o lugar próprio no sistema do ordenamento positivo, mas adquirem, além disso, uma disciplina adequada e apta a assegurar-lhes proeminência relativamente a todos os outros direitos da pessoa a que respeitam. Por tal razão, os direitos da personalidade estão vinculados ao ordenamento positivo tanto quanto os outros direitos subjectivos, uma vez admitido que as ideias dominantes no meio social sejam revestidas de uma particular força de pressão sobre o próprio ordenamento. Por consequência, não é possível denominar os direitos da personalidade como “direitos inatos”, entendidos no sentido de direitos respeitantes, pro natureza, às pessoas».

            De tão preclara lição se há-de retirar a conclusão de que as susceptibilidades pessoais só merecerão tutela jurídica a partir do momento em que, passando a integrar aquelas ideias dominantes no meio social, se revistam de uma particular força de pressão, que determine a sua integração positiva no ordenamento jurídico. Ora, vimos já que essas susceptibilidades não integram o núcleo duro de protecção que a sociedade pretendeu estabelecer mediante a criminalização operada pelo referido artº 181º, 1. Por isso, aquelas afirmações não integram a factualidade objectiva do tipo em causa.

            A segunda parte destacada refere-se à seguinte expressão, da primeira complementar: “(…) Pagavas o que me deves!”.

            Quanto a este segmento do discurso verbal em análise, a recorrente formulou essencialmente as duas seguintes conclusões:
XVII. Ademais, a expressão ‘Pagavas o que me deves’ imputa à recorrente factos que, sendo falsos, foram proferidos no intuito de manchar o bom nome daquela perante terceiros, fazendo-os questionar se seria ou não verdade que a recorrente devesse qualquer quantia monetária ao arguido, e afectá-la na sua reputação e consideração exterior.
XVIII. Além de que as expressões proferidas pelo arguido e conjugadas entre si, ouvidas como um todo, remetem para fins de cariz sexual implícito, e podem inclusivamente levar a crer a terceiros que o arguido obteria o pagamento das alegadas dívidas da recorrente através de contactos de natureza íntima que esta lhe poderia proporcionar, o que muito ofende a honra da recorrente.

            Ou seja, pretende a recorrente que, através do proferimento de tais palavras, no mínimo, o arguido pretendia pôr em causa a sua reputação, enquanto incumpridora das sua obrigações pecuniárias e, no máximo fazer crer a terceiros que, através de contactos de natureza íntima com a assistente, ele obteria o pagamento das alegadas dívidas daquela.

            Embora essas conclusões sejam uma das consequências cogitáveis das palavras proferidas pelo arguido, cremos que o contexto denota que não seria essa a intenção deste.

            Com efeito, esse apêndice oral, integrado no conjunto da expressão, não permite a retirada da conclusão de que o arguido pretendesse insinuar que a ofendida lhe devia uma qualquer quantia monetária. Aliás, fica sem se perceber concretamente a que se deve tal referência. O que ressalta do conjunto da expressão é que o arguido associou o facto de ‘comer’ a assistente à circunstância de, mediante tal acto lúbrico ficar pago de uma qualquer dívida daquela. Mas ficou por apurar concretamente o que pretendia afirmar o arguido mediante tal expressão, designadamente se se referia a uma qualquer dívida monetária.

            O que fica demonstrado é que a globalidade da afirmação do arguido, rematada por essa expressão, integra o todo da grosseria que ele pretendeu dirigir à assistente, sem ser dela autonomizavel. O dito, o dichote, vale como um todo, e percebe-se qual a intenção do arguido ao proferi-lo, de cariz meramente lúbrico e lascivo.

            Reitera-se o que atrás se disse a propósito da regulamentação das expectativas subjectivas, em termos de integração nas ideias dominantes no meio social e da sua integração positiva no ordenamento jurídico. As expressões dirigidas à assistente, como um todo, muito embora susceptíveis de ferir a sensibilidade subjectiva desta, não integram o núcleo essencial de protecção da norma penal e, desse modo, não beneficia a ofendida da respectiva tutela penal.

Assim sendo, não merece qualquer censura o despacho recorrido, que rejeitou a acusação particular, que é manifestamente infundada.

           

Termos em que se acorda nesta Relação em negar provimento ao recurso da assistente.

Custas pela assistente, com taxa de justiça fixada em 4 UC’s.

Coimbra, 14 de Setembro de 2016

(Jorge França - relator)

(Elisa Sales - adjunta)