Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
569/13.0PBCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA SIMPLES
DISPENSA DE PENA
Data do Acordão: 01/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (INSTÂNCIA LOCAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 143.º, N.º 1 E 74.º, DO CP
Sumário: I - O crime de ofensa à integridade física simples tutela o bem jurídico integridade física – compreendendo a integridade corporal e a saúde física.
II -E tem como elementos constitutivos do respectivo tipo (art. 143º, nº 1 do C. Penal):

[Tipo objectivo]

- Que o agente ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa;

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14º, do C. Penal.

III - A acção típica, a agressão, pode ser realizada através de um sem número de diferentes comportamentos do agente mas o que, para o caso, importa reter, é que podem existir ofensas ao corpo sem que, simultaneamente, exista uma ofensa à saúde do ofendido.

IV - Apurando-se que a ilicitude do facto é reduzida, uma vez que tudo acontece no decurso de uma discussão mas em que o contacto físico é de baixa intensidade e do qual não resultaram consequências significativas, não havendo sequer uma lesão física a reportar. Neste contexto, e dada a pré-existência do problema familiar de partilha de herança, consideramos que o grau de culpa do arguido é reduzido.

V - Não existindo lesões não há danos a ressarcir ou a compensar e, considerando a inexistência de antecedentes criminais e a inserção social e laboral do arguido, estão verificados os requisitos previstos no nº 1 do art. 74º do C. Penal inexistindo razões de prevenção que se oponham à dispensa de pena.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO

No Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco – Castelo Branco – Instância Local – Secção Criminal – J1, mediante despacho de pronúncia, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, o arguido A..., com os demais sinais nos autos, a quem era imputada a prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do C. Penal.

Por sentença de 15 de Abril de 2015 foi o arguido absolvido da prática do imputado crime.


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            Inconformada com a decisão, recorreu o assistente A... , formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            A) O Tribunal a quo deveria ter julgado provado, face à inequívoca prova testemunhal que foi produzida, que "No dia 08-04-2013, pelas 12h e 45m, na Av. General Humberto Delgado, nesta cidade, em frente ao n.º 31, a arguido aproximou-se de A... e agarrou-o pelo pescoço, em seguida empurrou-o, provocando-lhe dores" e que "O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de ofender o corpo de A... , o que logrou conseguir".

B) As declarações do assistente gravadas a 20150413100613_1046730_2870671, de 01:28 a 01:43, e o depoimento prestado pelas únicas testemunhas presenciais dos acontecimentos, C... e D... , gravadas, respetivamente, a 20150413101843_1046730_2870671 de 02:29 a 03:08 e a 20150413102939_1046730_2870671, de 03:18 a 03:23, provam que o arguido agarrou o assistente pelo pescoço e depois o empurrou, provocando-lhe dores.

C) Da douta Sentença não resulta qualquer juízo positivo, ou iter lógico, que conduza à dúvida resultante de um inultrapassável impasse probatório "sobre o que efectivamente aconteceu", não sendo a fundamentação ali vertida suscetível de conduzir à dúvida que determinou a absolvição do arguido.

D) Da prova que foi produzida é possível concluir a existência de razões para as agressões do arguido, justificadas, por um lado, no litígio entre as famílias confirmado pelo "Irmão e Pai do arguido" e, por outro, pela troca de palavras que antecederam as agressões afirmado pelo assistente e pela testemunha C... .

E) O facto de o assistente ter ficado com um "corte" no pescoço, mas não ter procurado assistência médica, não põe em causa a versão dos factos ou sustenta a dúvida razoável quanto à forma como os mesmos ocorreram, por não ter ficado demonstrada, por um lado, a gravidade do corte e, por outro, pelo facto de o assistente ter dito que só fez queixa por ter ocorrido um episódio posteriormente e para evitar repetições (03:17 a 03:38).

F) O facto de as testemunhas C... e D... terem feito referência ao facto de as agressões terem ocorrido no Inverno justifica-se com o tempo frio que se fazia sentir, não sendo suficiente para criar dúvidas sobre a forma como os acontecimentos ocorreram.

G) Face à prova produzida, os argumentos apontados na Sentença não são suscetíveis de criar dúvida positiva e objetivável sobre a forma como os factos ocorreram e, por conseguinte, suscetíveis de afastar a certeza quanto aos factos descritos na acusação.         H) Pelo que, deveria o tribunal ter dado como provada a factualidade imputada ao arguido na acusação e, consequentemente, condená-lo pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p.p. pelo artigo 143.º do Código de Processo Penal.

I) Ao absolver o arguido com base no princípio do in dubio pro reo, a douta Sentença padece de vício de erro notório na apreciação da prova, previsto na al. c) do N.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.

Termos em que, e nos melhores de Direito que V.Ex.ªs doutamente suprirão, deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se a douta Sentença recorrida, fazendo, assim, a costumada Justiça!


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            Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

                1 – O artigo 127º do Código Processo Penal dispõe que a prova é apreciada "segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente".

2 – O julgador tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base em juízo que se fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo.

3 – O que releva é a convicção do Tribunal assente na prova produzida em audiência no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, sendo certo que na valoração da prova depende para além do conteúdo das declarações e dos depoimentos prestados, do modo como os mesmos são assumidos pelo declarante e pela testemunha e da forma como são transmitidos ao tribunal.

4 – Assim relevam, a par da postura e do comportamento geral do declarante e da testemunha, para efeitos da determinação da credibilidade deste meio de prova, do carácter, da probidade moral e da isenção de quem declara ou testemunha.

5 – Ora, temos em confronto uma versão apresentada pelo arguido que nega os factos e uma versão apresentada pelo ofendido a qual foi confirmada pelo irmão e pela testemunha C... que é empregado deste num contexto em que existe um litígio entre as famílias a propósito da herança, o que já levou a diversos processos em Tribunal.

6 – O Tribunal entendeu que a prova produzida em audiência de julgamento não permite formar uma convicção segura sobre o que efetivamente sucedeu, não formando uma convicção segura de que os factos se passaram conforme o descrito na acusação.

                7 – E apesar de haver quem confirme a versão apresentada pelo ofendido a circunstância pessoal e de emprego e por não haver qualquer perícia de onde se retira a existência de qualquer mazela física criaram dúvida no Tribunal.

8 – Dúvida essa que assumindo uma natureza irredutível, insanável, sem esquecer que, nos atas humanos, nunca se dá uma certeza contra a qual não haja algum motivo de dúvida – Cristina Monteiro "In Dubio Pro Reo" Coimbra Editora, 1997.

9 – E, em caso de dúvida razoável e insanável sobre os factos o Tribunal deve decidir a favor do arguido.

10 – É o que se passa nos presentes.

V. Exªs, Senhores Juízes Desembargadores, no entanto, decidirão e farão como sempre JUSTIÇA.


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Respondeu também ao recurso o arguido, alegando que o recorrente ignora o princípio da livre apreciação da prova, que as declarações deste não são mais credíveis do que as suas próprias declarações, que não seria razoável que, tendo combinado com a testemunha K... ir pagar-lhe o condomínio, aproveitasse a ocasião para zaragatear com o recorrente e que, se por hipótese, se entendesse que andaram agarrados, sempre estaríamos perante uma bagatela, sem dignidade penal, e concluiu pelo não provimento do recurso.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, considerando encontrar-se incorrectamente fundamentada a aplicação do in dubio pro reo, afirmando ter sido produzida prova que, determinando a modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto, conduz ao cometimento do crime de ofensa à integridade física, com a consequente condenação do arguido em pena de multa, e concluiu pela procedência do recurso.


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Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal, tendo respondido o arguido, discordando do subjectivismo que atribui ao parecer, afirmando a necessidade de serem observados os princípios da oralidade e da imediação da prova e reafirmando segmentos da contramotivação, e concluiu pela improcedência do recurso.


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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto;

- O erro notório na apreciação da prova por indevida aplicação do pro reo;

- O preenchimento do tipo do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do C. Penal.


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            Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

           

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “ (…).

1. O arguido é bancário, auferindo €2100 por mês.

2. Estudou até ao 4.º ano de Gestão de Empresas.

3. Tem dois filhos a cargo com 22 e 25 anos que se encontram a estudar na Universidade.

4. Habita em casa própria, pagando de mensalidade ao banco cerca de €300,00.

5. Não tem antecedentes criminais.

(…)”.

B) Nela foram considerados não provados os seguintes factos:

“ (…).

- No dia 08.04.2013, pelas 12h e 45min, na Av. General Humberto Delgado, nesta cidade, em frente ao n.º 31, o arguido aproximou-se de A... e agarrou-o pelo pescoço, e em seguida empurrou-o, provocando-lhe dores.

- O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de ofender o corpo de A... , o que logrou conseguir.

- O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

[Da contestação:]

- O arguido não cometeu o crime de que veio acusado.

- O arguido é pessoa pacífica, muito reputado como bancário de elevada categoria.

(…)”.

C) E dela consta a seguinte motivação de facto:

“ (…).

Fundou o Tribunal a sua convicção quer no conjunto da prova testemunhal produzida em julgamento, quer nos documentos juntos aos autos, conjugada com regras de experiência comum (cfr. art. 127º do C.P.P.).

Baseou-se aquela convicção numa apreciação livre da prova testemunhal, na qual se sobrelevou o conhecimento pessoal e directo dos factos perguntados, a postura denotada pelas testemunhas, bem como a convicção e transparência dos depoimentos.

A nível de prova documental, relevou unicamente o CRC constante de fls. 151 quanto ao facto provado 6.

Já o arguido afirmou que de facto, no dia descrito na acusação foi abordado por dois homens, precisamente o ofendido A... irmão D... , quando se aproximou do n.º 31 da Rua General Humberto Delgado nesta cidade, onde tinha combinado comparecer pouco tempo antes a fim de se encontrar com a testemunha K... , com vista a pagar o condomínio da loja da esposa, como de resto fazia frequentemente.

Aí chegado, foi abordado e empurrado por aqueles. Entretanto a porta é aberta e o arguido entra nesse prédio sendo seguido pelos dois e onde continua a discussão.

Esta tese foi contrariada desde logo pelo ofendido, que afirmou que quando subia essa rua (onde trabalha no n.º 33) a sua passagem é barrada pelo arguido, que lhe chama diversos nomes e de repente lhe coloca a mão no pescoço e lhe dá vários empurrões. Depois ainda se agarraram, ficando com um corte no pescoço. Após ainda foi empurrado para dentro do prédio dado a porta encontrar-se aberta, altura em chega o seu irmão e os tenta separar.

Esta versão depois foi confirmada pelo irmão do ofendido, que afirmou que se encontrava no Multibanco, numa altura do ano em que descreveu como sendo no Inverno, viu o arguido apertar o pescoço ao seu irmão e a empurra-lo para dentro do prédio, altura em que aguardou pela devolução do cartão e logo subiu tentando-os separar. Também foi de certo modo confirmada pela testemunha C... , a trabalhar na W... , precisamente no n.º 33, e sendo empregado da testemunha que antecede.

Afirmou que em data que não se recorda mas que estava frio, talvez Outubro, dado que tinha a farda de Inverno, ouve uma discussão, e em seguida vê o arguido com a mãos no pescoço do irmão do patrão, tentando o ofendido afastá-lo, altura em que chega o seu patrão, separa os dois e entraram todos no prédio, após terem aberto a porta “normalmente”.

Por fim a testemunha K..., sem relação familiar ou profissional com qualquer deles, afirmou que de facto combinou com o arguido que ele iria pagar o condomínio nesse dia e ouvindo a campainha, abriu a porta, após descendo do primeiro andar onde se encontrava, dado que não tem câmara ou intercomunicador, altura em que viu os 3 homens, no hall do prédio, a discutiram todos.

As restantes testemunhas, Irmão e Pai do arguido, não tendo qualquer conhecimento directo da situação, afirmaram existir um litígio entre as famílias a propósito da herança – embora nenhum dos aqui intervenientes seja herdeiro directo – o que já levou a diversos processos em Tribunal sobre matérias diferentes, nomeadamente com os ofendidos a apresentarem queixas falsas contra a sua família.

Aqui chegados importa considerar que não é possível ao Tribunal formar convicção segura sobre o que efectivamente sucedeu.

Embora ambas as versões apresentadas, pelo arguido e depois pelo ofendido, irmão e empregado deste, sejam possíveis, não deixa de facto de ser algo inusitado, o facto do arguido, que previamente se dirigiu para pagar uma conta, aborde o seu antagonista no meio de uma rua muito movimentada da cidade, e comece a agredi-lo sem razão aparente. Por outro lado, não é de somenos importância notar que apesar das agressões mais ou menos violentas que o ofendido afirma ter sofrido, não tenha necessitado ou procurado qualquer assistência médica, tanto mais que afirmou ter ficado com um corte no pescoço, que porém, nenhuma testemunha (para além do próprio) tendo afirmado a presença de marcas físicas no seu pescoço, sendo difícil de desconsiderar um corte no pescoço. Com efeito, mesmo a testemunha sem qualquer relação familiar, afirmou não se ter apercebido de qualquer lesão.

Por outro lado, não deixa de causar alguma estranheza o facto das duas testemunhas terem afirmado que a situação em apreciação sucedeu no Inverno, quando se mostrava estabilizado que foi em Abril e também o facto da testemunha C... , ao ver alguém a apertar o pescoço do irmão do seu patrão que conhecia bem, nada ter feito.

Neste quadro probatório, não forma o tribunal convicção segura de que os factos se passaram conforme descrito na acusação, também não havendo qualquer perícia de onde se retira a existência de qualquer mazela física.

Neste conspecto, existindo dúvida insanável acerca do facto pelos quais o arguido veio acusado, o Tribunal terá de fazer operar o princípio da presunção de inocência, o princípio do “in dubio pro reo”.

A materialização de tal princípio, quanto dirigido à apreciação dos factos objecto de um processo penal, desdobra-se em dois vectores essenciais: O primeiro é o de que o ónus probatório da imputação de factos ou condutas que integram um ilícito criminal cabe a quem acusa; O segundo, consiste que, em caso de dúvida razoável, e insanável, sobre os factos descritas na acusação, o Tribunal deve decidir a favor do arguido.

De acordo com Cavaleiro Ferreira “Lições de Direito Penal”, I, pág. 86, este princípio respeita ao direito probatório, implicando a presunção de inocência do arguido que, sendo incerta a prova, se não use um critério formal como resultante do ónus legal de prova para decidir da condenação do arguido que terá sempre de assentar na certeza dos factos probandos. O Julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência, tiver dúvidas sobre qualquer facto”.

Sabido é que um non liquet na questão da prova terá que ser sempre valorado a favor do arguido, conforme ensina Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal” I, pág 213.

Mas não são quaisquer dúvidas sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido. Na realidade, a dúvida tem que assumir uma natureza irredutível, insanável, sem esquecer que, nos actos humanos, nunca se dá uma certeza contra a qual não haja alguns motivos de dúvida – a este propósito, Cristina Monteiro, “In Dubio Pro Reo”, Coimbra Editora, 1997.

É o que se passa nos presentes. Não logrando o Tribunal formar convicção quanto à forma efectiva como os factos aqui em apreço ocorreram, naturalmente que terá de operar o disposto no artigo 32.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, precisamente o princípio da presunção de inocência, pelo que se deram como não provados os restantes factos da acusação.

Por esse motivo ficam como não provados os factos descritos na acusação. Já quanto à matéria descrita na contestação, por se limitar a juízos conclusivos, conceitos jurídicos ou meras conclusões, não tem qualquer facto que se imponha apreciar quanto à matéria imputada ao arguido, para além de não se ter provado qualquer facto qualificativo da sua situação profissional.

(…).


*

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            Da incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto

            1. Alega o recorrente – conclusões A), B) e D) – que as suas declarações e os depoimentos das testemunhas C... e D... provam que o arguido o agarrou pelo pescoço e o empurrou, como provado fixou o litigio existente entre as famílias e a troca de palavras que precedeu a agressão, pelo que deveria o tribunal recorrido ter considerado provados todos os factos que, como não provados, constam da sentença [o último facto não provado – relativo à consciência da ilicitude – apenas se mostra sindicado no corpo da motivação]. No corpo da motivação o recorrente procedeu à transcrição dos segmentos das declarações e depoimentos que considerou relevantes, cuja localização no registo gravado fez por tempo de gravação.

            Mostrando-se assim cumprido o ónus de especificação previsto no art. 412º, nºs 3 e 4 do C. Processo Penal, nada obsta ao conhecimento da impugnação ampla da matéria de facto deduzida pelo recorrente, com o objecto e limites por este definidos, nos termos que se deixam referidos.

            Os factos sindicados têm o seguinte teor:

            - [a] No dia 08.04.2013, pelas 12h e 45min, na Av. General Humberto Delgado, nesta cidade, em frente ao n.º 31, o arguido aproximou-se de A... e agarrou-o pelo pescoço, e em seguida empurrou-o, provocando-lhe dores;

            - [b] O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de ofender o corpo de A... , o que logrou conseguir;

            - [c] O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

            Vejamos então, se assiste razão ao recorrente.

            2. Na motivação de facto da sentença o Mmo. Juiz a quo começa por fazer a contraposição entre a versão apresentada pelo arguido [foi abordado na via pública, quando ia ao encontro da testemunha K... para pagar um condomínio, pelo ofendido e pela testemunha D... , e por eles empurrado, tendo depois todos entrado no prédio onde combinara o encontro, onde continuou a discussão] e a versão do assistente [o arguido barrou-lhe a passagem na rua que então subia, chamou-lhe nomes, colocou-lhe a mão no pescoço, deu-lhe empurrões, depois agarraram-se e foi empurrado para dentro de um prédio, quando chegou a testemunha D... e os tentou separar] corroborada pela testemunha D... [no Inverno viu o arguido a apertar o pescoço ao assistente e a empurrá-lo para dentro de um prédio, foi ter com eles e tentou separá-los] e pela testemunha C... [talvez em Outubro, porque estava frio e envergava a farda de Inverno, ouviu uma discussão, viu o arguido com as mãos no pescoço do assistente, chegou a testemunha D... que os separou, tendo entrado todos no prédio], referindo que a testemunha K... apenas confirmou a combinação com o arguido para pagamento do condomínio e ter aberto a porta de casa e descido ao hall do prédio, onde viu três homens a discutir, e que as testemunhas E... e F... apenas confirmaram a existência de litigio entre as famílias por causa de herança, que já deu origem a diversos processos judiciais, para depois afirmar a impossibilidade de formar uma convicção segura sobre o efectivamente sucedido, alinhando as seguintes razões: a) embora possíveis as duas versões em confronto, é inusitado que o arguido, que ia pagar uma conta, aborde o assistente numa rua movimentada da cidade e o agrida sem razão aparente; b) não é de pouca importância que, apesar das agressões mais ou menos violentas que afirmou ter sofrido, o assistente não tenha necessitado de assistência médica, e que o corte no pescoço com que afirmou ter ficado, não tenha sido verificado por mais ninguém; c) causa estranheza que as duas testemunhas de acusação tenham afirmado que a situação ocorreu no Inverno quando ocorreu em Abril; e d) causa estranheza que a testemunha C... tenha visto o arguido a apertar o pescoço do assistente, irmão do seu patrão, e nada tenha feito. E daqui se concluiu pela inexistência de convicção segura de terem os factos decorrido conforme o descrito na acusação pelo que, perante a dúvida insanável, se fez operar o princípio in dubio pro reo, com a consequente inclusão dos factos imputados nos factos não provados da sentença. 

            Na motivação do recurso, o assistente alega, em primeiro lugar, que os factos não provados que impugnou devem passar a factos provados, com base nas suas declarações e nos depoimentos das testemunhas C... e D... , únicas que, para além de si próprio e do arguido, declararam ter presenciado os factos, e cujos segmentos de declarações e depoimentos seleccionados e transcritos correspondem, em termos gerais, às afirmações que na motivação de facto lhes são atribuídas. Depois, rebate a estranheza que causou ao tribunal recorrido a circunstância das testemunhas C... e D... terem situado os factos no Inverno, pelo frio e mau tempo que se fazia sentir naquele Abril, rebate a afirmada inusitada agressão sem razão aparente, com os depoimentos do pai e do irmão do arguido que afirmaram a existência de litígio entre as famílias, e com as suas declarações e os depoimentos das testemunhas C... e D... , todas concordantes à troca de palavras que ocorreu entre arguido e assistente antes de qualquer confronto físico, rebate a não visualização por ninguém do corte no pescoço e o não recurso a assistência médica, afirmando a ligeireza do ferimento, a sua compatibilidade com uma unhada, a sua localização e a roupa que usava, e cuja gravidade atribuída não decorre das suas declarações. E daqui concluiu que as razões apontadas na sentença são insusceptíveis de criar a dúvida afirmada. 

            Temos pois, que o recorrente impugna a matéria de facto, analisando argumentativamente as declarações e depoimentos referidos pelo tribunal na motivação de facto, pretendendo demonstrar que tais meios de prova foram mal valorados.       

Deste modo, a questão ruma ao campo específico da valoração da prova, onde rege o princípio previsto no art. 127º do C. Processo Penal com o seguinte enunciado: Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.    

A apreciação da prova é tarefa exclusiva do julgador. Mas a livre convicção que a fundamenta não tem o sentido de este a poder valorar orientado por um convencimento exclusivamente subjectivo pois ela não significa arbítrio ou decisão irracional. A valoração da prova impõe ao julgador uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, da lógica e da ciência e na percepção da personalidade dos depoentes, tendo sempre como horizonte a dúvida inultrapassável que conduz ao pro reo. Para esta apreciação, para além da actividade meramente cognitiva, contribuem também elementos subjectivos, v.g., intuição do julgador (cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Edição, 1974, Reimpressão, Coimbra Editora, 2004, pág. 205), mas é da conjugação de todos estes elementos que tem que resultar uma convicção ainda assim, objectivável e motivável, únicas características que permitem que a decisão se imponha, intra e extraprocessualmente.

A convicção do tribunal vai resultar então da conjugação dos dados objectivos consubstanciados nos documentos e em outras provas constituídas, com as impressões proporcionadas pela prova por declarações, tendo em conta a forma como esta foi produzida, relevando designadamente, a razão de ciência de declarantes e depoentes, a sua serenidade e distanciamento, as suas certezas, hesitações e contradições, a sua linguagem e cultura, os sinais e reacções comportamentais revelados, e a coerência do seu raciocínio. Esta conjugação só pode ser obtida, pelo menos, no grau desejável, através da imediação e da oralidade da prova pois só o contacto directo do julgador com a prova, basicamente, o ‘frente a frente’ entre o juiz e o declarante ou a testemunha, o coloca em perfeitas condições de proceder, primeiro, à avaliação individual, e depois, à avaliação global da prova.

Vigorando o princípio da livre apreciação da prova em todas as instâncias que conhecem de facto, uma dificuldade acrescida surge na fase do recurso. É que não pode ser ignorada a substancial diferença entre a valoração da prova por declarações efectuada no julgamento da 1ª instância e a apreciação que sobre ela pode ser feita pelo tribunal de recurso, limitado que está à audição – mais raramente, à visualização – das passagens concretamente indicadas pelos intervenientes processuais e de outras, que eventualmente considere relevantes, ficando, nesta medida, incapaz de apreender parte substancial dos elementos atrás enunciados, por impossibilidade do seu registo audio, elementos que, porém, foram, ou podiam ter sido, apreendidos, interiorizados e valorados na sua globalidade por quem os presenciou, pelo juiz do julgamento. Por isso, quando a 1ª instância atribui, ou não, credibilidade a uma fonte de prova por declarações, fundando a opção tomada na imediação, o tribunal de recurso, em princípio, só a deva censurar se for feita a demonstração de que a opção tomada carece de razoabilidade ou viola as regras da experiência comum. Daí que o art. 412º, nº 3, b) do C. Processo Penal exija a especificação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, ficando claro que, nos termos da lei, que a modificabilidade da decisão de facto não se basta com a indicação de provas que apenas permitam uma decisão diversa da recorrida, já que só é admissível quando as provas especificadas pelo recorrente excluam a decisão de facto proferida.

Posto isto.

3. O tribunal da Relação ouviu, nos termos do disposto no art. 412º, nº 6 do C. Processo Penal, as declarações e depoimentos dos sujeitos e intervenientes processuais identificados. De tal audição resultou, na parte em que se considera relevante:

- O arguido disse ter sido abordado, pelas costas, pelo assistente e irmão deste, a testemunha Gustavo, ter sido injuriado e encostado por ambos, não tendo as coisas passado, não tendo havido agressões mútuas, tendo todos entrado no hall do prédio onde a discussão em voz alta, com ameaças e insultos continuaram; depois de ter aparecido a testemunha Antónia, o assistente e a testemunha foram embora e o arguido ficou a pagar o condomínio, razão da sua deslocação; já anteriormente existiram processos contra o pai e o irmão do arguido, por causa de um processo de partilhas onde são interessados, o pai do arguido e eles [mãe do assistente], e existiram mesmo outros procedimentos que afectaram o bem nome profissional do arguido;

- O assistente disse ir a subir a Av. Humberto Delgado a olhar para o telemóvel quando o arguido lhe barrou a passagem e lhe chamou nomes, respondeu-lhe e o arguido colocou-lhe a mão no pescoço e apertou, tentou afastá-lo e criou-se uma situação de contacto físico, um agarrando e o outro empurrando, entretanto apareceu o seu irmão D... que os tentou separar, a dada altura o arguido empurrou-o para dentro do prédio onde entraram os três, já no hall do prédio sofreu novo empurrão e caiu, o arguido continuava a dizer palavrões, entretanto chegou a testemunha K... mas não sabe o que ela pode ter visto; sofreu um corte no pescoço mas não foi à Medicina Legal e só fez queixa mais tarde por causa de uma outra situação;

- A testemunha C... disse não precisar a data dos acontecimentos mas que ocorreram cerca das 13h, estava ao portão do seu local de trabalho à espera da testemunha Gustavo, seu patrão, quando passou alguém que começou às ‘bocas’ para outra pessoa, olhou para baixo e viu o assistente, que conhecia, começou a acender um cigarro e quando olhou de novo viu a pessoa que tinha mandado as ‘bocas’ a agarrar o pescoço do assistente com as mãos, no meio disto, começaram às ‘bocas’ um ao outro, sempre ele agarrado ao assistente e este a tentar afastá-lo; estavam os dois a discutir, a tentarem agarrar-se um ao outro e chegou a testemunha D... que tentou separá-los, entretanto, entraram para a porta do prédio ao lado e deixou de os ver, a porta do prédio estava fechada e alguém a abriu normalmente;

- A testemunha D... disse não precisar a data dos acontecimentos mas que ocorreram cerca das 13h, estava mais abaixo, no multibanco, olhou para cima e a cerca de 50 m o arguido e o assistente estavam a discutir, esteve ali mais um pouco pois o cartão estava introduzido e depois é que lá foi, o arguido chamava nomes, tinha-lhe apertado o pescoço e já o tinha empurrado várias vezes, entretanto empurrou-o para dentro do prédio do lado, também aí entrou, foi quem os separou, ainda estiveram mais um bocado a discutir; quando acabou a operação no multibanco foi para junto deles e então o arguido apertava o pescoço do assistente e empurrava-o contra a porta, esta rebentou e entraram todos no prédio, lá dentro o assistente caiu, houve mais nomes e depois apareceu a senhora do 1º andar;

- A testemunha K... disse estar à espera do arguido, porque tinham combinado pelo telefone aquela hora para ele pagar o condomínio, tocaram à campainha, abriu a porta do prédio e desceu as escadas até ao hall, mas não sabia quem era; no hall viu três pessoas em discussão exaltada mas não viu empurrões; duas das pessoas saíram e ficou o arguido, que passou o cheque para o pagamento; não viu ferimentos em ninguém;

- A testemunha E... disse não ter assistido a nada, afirmou a existência de diversos processos porque não chegam a um entendimento na partilha da herança e que foi até enviada uma carta ao banco onde trabalha o arguido a denegrir a sua imagem;

- A testemunha F... disse que o assistente participa dos familiares por causa de um problema de partilhas entre o depoente e a irmã, tendo até já denunciado o arguido ao banco onde trabalha, denegrindo-o.

Atentemos agora nas objecções colocadas pelo Mmo. Juiz a quo na motivação de facto, à prova testemunhal. Em primeiro lugar, face ao sério problema familiar existente – arguido e assistente são, primos direitos, como ambos reconheceram –, causado, ao que parece, por questões de partilha de herança, e gerador de vários processos judiciais, não se vê como possa considerar-se inusitado e carecido de razão o conflito – porque conflito houve – que envolveu o arguido e o assistente, pelas 12h45 do dia 8 de Abril de 2013, na Av. General Humberto Delgado, em Castelo Branco. O motivo é evidente, sendo-lhe indiferente, a maior ou menor movimentação existente na referida artéria. Em segundo lugar, sendo verdade que, com excepção do assistente, ninguém fez referência à existência e/ou visualização de ferimentos neste [a questão só foi directamente colocada à testemunha K... ], discordamos do entendimento de que o assistente afirmou ter sofrido agressões mais ou menos violentas pois que, quanto a este aspecto, as suas declarações como objectivas e não exageradas, limitando-se à afirmação de simples empurrões e ao colocar e apertar o pescoço, indicando mesmo a afirmação por si feita de que não tinha ido à Medicina Legal a desconsideração que atribuiu à afirmada lesão. Em terceiro lugar, não vemos que tenha relevo de maior a afirmada circunstância de as testemunhas C... e D... terem situado os acontecimentos no Inverno pois, em bom rigor, ambas começaram por afirmar não poderem precisar a data dos factos, para depois a primeira dizer que talvez fosse em Outubro, só recordando que estava frio porque envergava o casaco da farda de Inverno, só a segunda tendo afirmado que foi numa altura de Inverno, sendo certo que o julgamento ocorreu cerca de dois anos depois do ocorrido e do termo do Inverno de 2013 até 8 de Abril do mesmo ano mediaram cerca de vinte, o que não é, de todo em todo, significativo. Finalmente, não vemos o que haja de extraordinário na atitude de não intervenção da testemunha C... , estando em causa, como estava, um problema entre familiares, sem assomos de particular violência [as agressões nem sequer envolveram os normais socos e pontapés].

Do que se deixa dito, e ressalvado sempre o devido respeito por diversa opinião, decorre, que as razões alinhadas pelo Mmo. Juiz a quo não têm a consistência necessária para suportarem a dúvida invocada quanto à forma como ocorreram os factos e consequente conclusão. Na verdade, ainda que a prova produzida, globalmente analisada e valorada à luz dos critérios estabelecidos no art. 127º do C. Processo Penal permita afirmar que os factos não ocorreram exactamente como se mostram relatados na acusação, também permite, por outro lado, e para além de qualquer dúvida razoável, estabelecer a forma como ocorreram. Explicando.

Da conjugação das declarações do arguido e do assistente e dos depoimentos das testemunhas E... e F... , todos parentes [arguido e assistente são primos direitos, sendo o primeiro, irmão e filho das duas testemunhas, respectivamente], existindo entre a família do arguido e a família do assistente uma profunda dissensão, motivada pela partilha de uma herança em que são herdeiros, a mãe do assistente e o pai do arguido, que está na origem de diversos processos judiciais movidos por uns contra os outros e mesmo de algumas incidências ao nível profissional do próprio arguido.

Ora, uma situação destas pode muito facilmente despoletar um atrito em público, como aquele que, sem margem para qualquer dúvida, aconteceu no dia, hora e local referidos na acusação, entre o arguido e o assistente. Na verdade, quanto a este aspecto, o arguido e o assistente afirmaram, concordantemente, que no dia 8 de Abril de 2013, cerca das 13h, na Av. General Humberto Delgado, em Castelo Branco, se encontraram e travaram de razões, discutindo um com o outro. E isto mesmo é confirmado pelos depoimentos das testemunhas C... e D... , que presenciaram essa discussão na via pública, e de alguma forma, suportado pelo depoimento da testemunha K... que, já num outro contexto [no interior do hall de entrada do prédio onde habita, situado na identificada avenida] presenciou o continuar da discussão em que agora eram intervenientes, além do arguido e do assistente, a testemunha D... , irmão deste último.  

Onde a divergência surge é quanto ao tipo de conflito que se seguiu ao início da discussão, ao respectivo desenvolvimento e concreta participação que nele teve cada um dos dois intervenientes. Para o arguido, foi o assistente quem o abordou, injuriou e encostou, entendendo-se por isto que foi empurrado contra qualquer coisa. Para o assistente, foi o arguido quem o abordou, o injuriou, lhe colocou a mão no pescoço apertando-o e o empurrou, o que o levou a ripostar, empurrando-o para se libertar.

Os depoimentos das testemunhas C... e D... , corroborando, de alguma forma, a versão do assistente, apresentam, no entanto, a mesma particularidade. Tendo os dois descrito o começo da discussão, nenhum parece ter presenciado o início do contacto físico entre o arguido e o assistente. Com efeito, a testemunha C... estava a acender um cigarro e depois, quando olhou, já o arguido tinha as mãos no pescoço do assistente. E a testemunha D... estava no multibanco, a 50 m, quando ouviu a discussão, teve que terminar a operação e só depois foi ter com os contendores, já o arguido tinha apertado o pescoço ao assistente. Acresce que a testemunha C... também disse que o arguido e o assistente estavam a tentar afastar-se um ao outro, o que tem o sentido útil de que ora se agarravam, ora se empurravam, para deixarem de estar agarrados, sendo certo que o assistente admitiu que houve uma situação de contacto físico entre ambos, em que um empurrava o outro. Vale isto dizer que, tendo havido contacto físico de parte a parte, não se sabe quem tomou a iniciativa.  

Finalmente, deve reconhecer-se que, no descrito contexto, é perfeitamente conforme às regras da experiência comum que, iniciada a discussão e depois, o contacto físico, os empurrões fossem recíprocos, até porque o desacato não passou disso mesmo. E talvez assim se explique a razão de, datando os factos acusados de 8 de Abril de 2013, a queixa ter sido apresentada às 20h30 do dia 7 de Outubro de 2013 (cfr. fls. 2 e verso).

Resta concluir que a prova produzida em audiência de julgamento, globalmente analisada e valorada à luz dos critérios decorrentes do princípio da livre apreciação permite, em nosso entender, fixar os factos ocorridos para além da dúvida razoável.

Deste modo, modifica-se a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos seguintes:

A) Eliminam-se do elenco dos factos não provados da sentença, os três primeiros factos que, como tal, dela constam.

B) Aditam-se ao elenco dos factos provados da sentença, os seguintes factos:

- 6. No dia 8 de Abril de 2013, pelas 12h45, o arguido e o assistente, que se encontravam desavindos por questões relacionadas com a partilha de uma herança familiar, cruzaram-se um com o outro nas proximidades do nº 31 da Av. General Humberto Delgado, em Castelo Branco, e iniciaram uma discussão no seguimento da qual, se envolveram fisicamente um com o outro, agarrando-se e empurrando-se reciprocamente e tendo ainda o arguido colocado uma mão no pescoço do assistente que apertou.

- 7. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de empurrar o assistente e de lhe apertar o pescoço, o que conseguiu.

- 8. O arguido sabia que a sua conduta era proibida por lei.

C) Adita-se ao elenco dos factos não provados o seguinte:

- No circunstancialismo descrito no ponto 6 dos factos provados, o assistente sofreu dores.     


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Do erro notório na apreciação da prova por indevida aplicação do pro reo

4. Alega o recorrente – conclusão I – que a sentença recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c), do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, pela indevida aplicação do princípio in dubio pro reo.

A modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto, operada nos termos do número anterior, esgotou o objecto da questão suscitada, prejudicando o seu conhecimento.


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Do preenchimento do tipo do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do C. Penal

5. Alega o recorrente – conclusão H – que, no pressuposto da modificação da matéria de facto, deve o arguido ser condenado pela prática do crime imputado.

Cumpre portanto verificar se a matéria de facto definitivamente fixada preenche ou não o tipo do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1 do C. Penal.

O crime de ofensa à integridade física simples tutela o bem jurídico integridade física – compreendendo a integridade corporal e a saúde física – e tem como elementos constitutivos do respectivo tipo (art. 143º, nº 1 do C. Penal):

[Tipo objectivo]

- Que o agente ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa;

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14º, do C. Penal.

A acção típica, a agressão, pode ser realizada através de um sem número de diferentes comportamentos do agente mas o que, para o caso, importa reter, é que podem existir ofensas ao corpo sem que, simultaneamente, exista uma ofensa à saúde do ofendido. É o que sucede, por exemplo, com uma bofetada ou um empurrão que, pela sua intensidade, não causem dor ou sofrimento.

Por outro lado, se as lesões insignificantes não devem ser consideradas ofensas ao corpo ou à saúde tipicamente relevantes, sob pena de violação dos princípios da dignidade do bem tutelado e da intervenção mínima do direito penal (cfr. Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, pág. 309), ainda que ligeira, como tal não deve ser qualificada a conduta do arguido, face ao contexto, objectivo e subjectivo, em que ocorreu.

Deste modo, e em conclusão, a apurada conduta do arguido preenche o tipo objectivo e subjectivo do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1 do C. Penal.

6. Há agora que determinar a pena, tendo-se para tanto em conta os critérios estabelecidos nos arts. 40º, 70º e 71º do C. Penal, uma vez que o crime praticado é punível, em alternativa, com pena privativa ou com pena não privativa da liberdade.

Estabelece, no entanto, o art. 143º, nº 3, a) do C. Penal, que o tribunal pode dispensar de pena quando tiver havido lesões recíprocas e se não tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro. Trata-se, no fundo, de, perante a impossibilidade de apuramento da ordem temporal das condutas, se considerar que o castigo mútuo significado pelas agressões – poena naturalis –, torna dispensável a aplicação da poena forensis (cfr. Augusto Silva Dias, Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, 2ª Edição revista e actualizada, AAFDL, 2007, pág. 100). E assim acontece, in casu, pelo que preenchida se mostra a previsão legal.  

Nos termos do disposto no nº 3 do art. 74º do C. Penal, cumpre agora verificar se estão reunidos os requisitos previstos nas alíneas do nº 1 do mesmo artigo. Vista a matéria provada, há que reconhecer que a ilicitude do facto é reduzida, uma vez que tudo acontece no decurso de uma discussão mas em que o contacto físico é de baixa intensidade e do qual não resultaram consequências significativas, não havendo sequer uma lesão física a reportar. Neste contexto, e dada a pré-existência do problema familiar de partilha de herança, consideramos que o grau de culpa do arguido é reduzido. Não existindo lesões, não há danos a ressarcir ou a compensar. Finalmente, para além do que fica dito, considerando a inexistência de antecedentes criminais e a inserção social e laboral do arguido, não vemos que razões de prevenção se oponham à dispensa de pena. Estão pois verificados os requisitos previstos no nº 1 do art. 74º do C. Penal.

Em conclusão, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 74º, nºs 1 e 3 e 143º, nº 3, a), ambos do C. Penal, deve o arguido ser dispensado de pena.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência, decidem:

A) Revogar a sentença recorrida, na parte em que absolveu o arguido.


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B) Modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos que se deixaram fixados no ponto II. 3 que antecede e aqui se dão por reproduzidos.

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C) Condenar o arguido B... , como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nºs 1 e 3,a) do C. Penal, dispensando-o de pena. 

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Recurso sem tributação, atenta a sua procedência (arts. 515º, nº 1, b) do C. Processo Penal).

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Coimbra, 13 de Janeiro de 2016


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Orlando Gonçalves – adjunto)