Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1160/15.1T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
ALCOOLEMIA
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 03/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 5
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.27 Nº1 C) DL Nº 291/2007 DE 21/8, PORTARIA Nº 1556/2007 DE 10/12
Sumário: 1. - A lei não prevê qualquer margem de erro para os resultados obtidos de TAS com o uso de aparelhos certificados nos termos legais.

2. - Os erros máximos admissíveis, previstos na Portaria n.º 1556/07, de 10-12, são considerados aquando da aprovação e verificação dos aparelhos e não perante concretos de atos de fiscalização, devendo considerar-se assente o resultado obtido, sem dedução de margem de erro, se o condutor fiscalizado não solicitou contraprova, através de novo exame ou análise de sangue.

3. - À luz do disposto no art.º 27.º, n.º 1, al.ª c), do DLei n.º 291/2007, de 21-08 – que aprova o regime do sistema do seguro obrigatório automóvel e revoga o anterior DLei n.º 522/85, de 31-12 –, satisfeita a indemnização, o segurador tem direito de regresso contra o condutor se este deu causa ao acidente e conduzia com TAS superior à legalmente admitida.

4. - Assim, tal direito de regresso pressupõe que o acidente seja imputável ao condutor a título de culpa, designadamente por negligência, efetiva ou presumida, e que exercesse a condução rodoviária com TAS superior à legalmente admitida.

5. - Perante aquele art.º 27.º, n.º 1, al.ª c), do DLei n.º 291/2007, com redação diversa da constante do anterior art.º 19.º do DLei n.º 522/85, ficou prejudicada, face à nova norma legal, a doutrina do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2002 do STJ, de 28/05/2002, formada ao abrigo do revogado DLei n.º 522/85.

6. - Na nova lei (art.º 27.º, n.º 1, al.ª c), aludido) o direito de regresso basta-se, para além da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil subjetiva do condutor e do cumprimento da prestação indemnizatória pelo segurador, com uma TAS superior à legalmente permitida.

7. - Por isso, o direito de regresso prescinde agora da questão de saber se em concreto a TAS influenciou a condução, dispensando-se a demonstração do nexo de causalidade adequada entre o estado de alcoolemia e o acidente/danos.

Decisão Texto Integral:






Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

***

I – Relatório

Seguros (…), S. A.”, com os sinais dos autos,

intentou ação de condenação com processo comum, contra

S (…), também com os sinais dos autos,

pedindo a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de € 57.135,48, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

- no exercício da sua atividade seguradora, celebrou com a R. um contrato de seguro do ramo responsabilidade civil automóvel, referente ao veículo automóvel de matrícula “SI (...) ”, com transferência do risco de tal responsabilidade por acidentes de viação causados por esse veículo, o qual, conduzido pela R. – portadora de uma taxa de alcoolemia (TAS) de 0,57 g/l –, foi interveniente, no dia 17/01/2010, num acidente de viação, que se traduziu num despiste e embate no muro de uma moradia, com os consequentes danos, não só nesse muro, mas ainda em passageiro transportado na viatura segura;

- acidente esse devido a culpa exclusiva da R. e consequente ao seu estado de embriaguez, cabendo à A. o direito de regresso pelos montantes indemnizatórios pagos (nos termos da al.ª c) do n.º 1 do art.º 27.º do DLei n.º 291/2007, de 21-08), ascendendo ao valor global peticionado.

Contestou a R.:

- excecionando a prescrição do invocado direito de regresso;

- alegando que o acidente não se deveu a culpa sua, por o piso estar então molhado e chover, sendo de noite, tendo o despiste ocorrido após uma curva acentuada à esquerda, sem a inclinação adequada que permitisse conduzir com segurança;

- referindo que seguia a velocidade reduzida, tratando-se de veículo antigo e sem sistema de travagem ABS nem direção assistida, sendo o local do acidente conhecido pela elevada sinistralidade;

- acresce que a TAS apresentada deverá ser corrigida nos termos do Regulamento do Controlo metrológico de alcoolímetros, o que implica redução para 0,53 a 0,55, desconhecendo a R. os critérios utilizados pela A. na fixação dos valores indemnizatórios;

- assim concluindo pela improcedência da ação.

A A. respondeu, pugnando pela improcedência da exceção da prescrição.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, julgando-se pela total improcedência da exceção da prescrição, após o que foram enunciados o objeto do litígio e os temas da prova.

Realizada a audiência final, com produção de provas, foi proferida sentença, datada de 06/05/2016, julgando a ação parcialmente procedente e assim condenado a R. a pagar à A. a quantia de € 57.124,98, acrescida de juros de mora, desde a citação, à taxa legal de 4% ao ano, até integral pagamento.

Inconformada, veio a R. interpor o recurso da sentença – e ainda da decisão interlocutória, datada de 19/06/2015, de improcedência da exceção da prescrição ([1]) –, apresentando alegação e as seguintes

Conclusões ([2]):

(…)

A Recorrida, por sua vez, contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.


***

O recurso da sentença foi admitido como de apelação – já o aludido recurso de decisão interlocutória foi rejeitado, por extemporâneo, como mencionado –, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo ([3]), tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime e efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o obecto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, e 639.º, n.º 1, todos do NCPCiv. ([4]) –, está em causa na presente apelação saber ([5]):

a) Se ocorre alguma das invocadas causas de nulidade da sentença;

b) Se ocorreu erro de julgamento em sede de decisão da matéria de facto, obrigando à respetiva correção, com alteração do quadro fáctico (o provado e o não provado) da sentença, incluindo ampliação quanto a factos provados;

c) Se deve proceder a impugnação de direito, não se mostrando preenchidos os pressupostos do pretendido direito de regresso.


***

III – Fundamentação

         A) Matéria de facto

A factualidade julgada provada na 1.ª instância é a seguinte:

«1- No dia 17.01.2010, pelas 6 horas e 45 minutos, na EN 242, ao Km 20, na localidade de Martingança, Alcobaça ocorreu um acidente de viação com o veículo ligeiro de passageiros de matrícula SI (...) , marca Fiat, modelo Uno 60 S do ano de 1989.

2- Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1, o veículo era conduzido pela ré, no sentido Pataias-Marinha Grande e ao descrever uma curva para a esquerda, despistou-se, embatendo com a parte lateral traseira direita no muro da moradia com o nº de polícia nº 13.

3- Para além da ré, seguiam no veículo, como passageiros E (…), sentado no banco de trás do lado direito, J (…) , sentando no banco de trás do lado esquerdo, P (…), sentando no banco de trás ao meio e F (…)sentado à frente, no banco ao lado da condutora.

4- O veículo referido em 1 não dispunha de cintos de segurança para os passageiros que seguissem no banco traseiro, nem dispunha de sistema de travagem ABS ou direcção assistida.

5- O local onde se verificou o despiste é precedido de uma recta, com bom piso, e a cerca de 200 metros do mesmo existem sinais luminosos verticais reguladores do trânsito, onde a ré se encontrara parada no sinal vermelho, antes do despiste.

6- No momento do acidente era de noite e chovia.

7- O local do acidente é caracterizado por elevada frequência de acidentes, com vítimas graves.

8- A ré tem carta de condução desde 01.02.2002 e é tida por aqueles com quem convive, como uma condutora responsável, que conduz os veículos em que se faz transportar de forma cuidadosa, com velocidade moderada e adequada, quer às regras do trânsito, quer ao estado da via e do veículo, quer às condições atmosféricas.

9- Após o acidente, a ré foi submetida ao teste do álcool, através do aparelho Drager, o qual indicou uma TAS de 0,57 g/l.

10- Em consequência do acidente referido em 1 resultaram danos materiais no muro mencionado em 2, tendo a autora pago ao seu proprietário para reparação dos mesmos a quantia de € 1.180,00.

11- Em consequência do acidente referido em 1, o passageiro E (…) sofreu traumatismo crânio encefálico grave, apresentando sinais de edema cerebral difuso, HSA interpenduncular e lesão hemorrágica do esplénio do corpo caloso, sugestivos de lesão axonal difusa.

12- Para tratamento das referidas lesões foi internado no serviço de medicina intensiva em ventilação mecânica e monitorização de pressão intracraniana e pressão de perfusão cerebral, onde permaneceu até 30.01.2010, com transferência para o serviço de Neurocirurgia.

13- Em 03.02.2010 foi transferido para o serviço de pediatria do Hospital de Santo André, apresentando-se nessa data consciente, colaborante com hemiparesia esquerda com indicação para cuidados de reabilitação.

14- A autora pagou, a quantia de 10.944,98 em consultas e tratamentos médicos a E (...) .

15- A autora pagou a E (…), a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do acidente referido em 1, a quantia de € 45.000,00.

16- Com excepção de E (…), todos os demais passageiros referidos em 3 saíram incólumes do acidente.

17- No momento do acidente, E (…) vinha a dormir.

18- A partir de uma TAS de 0,2 g/l, todos os órgãos relacionados com o sistema nervoso central ficam afectados, o que acarreta a redução do campo visual periférico, assim como a capacidade de reacção, a atenção e diminuição das funções motoras.

19- A autora exerce devidamente autorizada a indústria de seguros.

20- No exercício da sua actividade, a ré celebrou com a autora um contrato de seguro titulado pela apólice nº (...) , pelo qual transferiu para a autora a responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação em que fosse interveniente o veículo de matrícula SI (...) até ao valor de € 1.800.000,00.».

E foi julgado não provado que:

«a) Em consequência do facto referido em 5, momentos antes do despiste, a ré imprimia ao veículo uma velocidade baixa;

b) No momento do acidente o piso encontrava-se escorregadio, tendo o veículo derrapado no piso molhado, perdido aderência e dado uma curva de 360º antes do embate no muro;

c) Entre o muro referido em 2 e a estrada não existe qualquer passeio ou outro obstáculo ou barreira arquitectónica que pudesse evitar ou minorar a violência do embate;

d) A curva referida em 2 detém uma inclinação contrária à circulação adequada;

e) Até ao dia do acidente e depois do mesmo a ré nunca mais foi interveniente em qualquer outro acidente;

f) À data do acidente E (…)era portador de uma elevada taxa de álcool no sangue e havia consumido substâncias psicotrópicas;

g) Caso E (…) estivesse acordado no momento do acidente, as suas lesões teriam sido menos graves;

h) Quando E (…) teve alta médica foi o mesmo encaminhado para recuperação com fisioterapia numa clínica adequada à sua situação médica situada na zona da Tocha;

i) E (…) compareceu à primeira consulta médica mas depois recusou a frequentar tal fisioterapia, preferindo voltar à sua vida normal e voltar para casa;

j) Em casa E (…) retomou a sua vida social, saindo com os amigos, bebeu bebidas alcoólicas e fez saídas nocturnas;».


***

B) Nulidades da sentença

Da contradição, da omissão ou excesso de pronúncia e da condenação em quantidade superior ao pedido

Invoca a Apelante que ocorrem as causas de nulidade da sentença previstas no art.º 615.º, n.º 1, al.ªs c), d) e e), do NCPCiv..

Cabia-lhe, por isso, argumentando sobre o tema, mostrar onde se encontram consubstanciados na sentença apelada aqueles vícios geradores de nulidade da mesma, o que devia ser feito mas conclusões da apelação, já que estas, como dito, definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso.

Na verdade, como se retira do disposto no art.º 639.º, n.º 1, do NCPCiv., cabe ao Recorrente, nas suas conclusões, indicar os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.

Em seguida se verá se o fez e se estão demonstrados tais vícios.

1. - Da oposição entre fundamentos e decisão

Conclui a Apelante que a sentença em crise é nula por violação do disposto na al.ª c) do n.º 1 do art.º 615.º do NCPCiv., tratando-se, pois, da oposição entre fundamentos e decisão (contradição).

Com efeito, dispõe o preceito legal aplicável, desde logo, que é nula a sentença quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão”. Trata-se, por isso, de contradição resultante de a fundamentação da sentença apontar num sentido e a decisão seguir caminho oposto ou direção diferente ([6]), inserindo-se no quadro dos vícios formais da sentença, tal como elencados nos art.ºs 667.º e 668.º do anterior CPCiv. ([7]) – hoje art.ºs 614.º e seg. do NCPCiv. –, sem contender, pois, com questões de substância, que, como tais, já se prendem com o mérito, e não com o âmbito formal.

Cabia, pois, a tal Apelante sinalizar/sintetizar, nas suas conclusões, onde se encontra tal oposição/contradição, por forma a evidenciar o vício invocado.

Ora, a Apelante limita-se, em sede conclusiva, a invocar contradição entre a factualidade provada e a fundamentação, a remeter para o preceito legal aplicável e, sem mais, para a antecedente alegação, pelo que das conclusões de recurso, de per si, não logra apreender-se onde concretamente vê a arguente tal nulidade.

Tal remissão em bloco – sem concretização de parte/segmento – para a antecedente alegação dificilmente se compaginaria com a exigência de identificação nas conclusões das questões recursórias suscitadas (indicação concisa dos fundamentos do pedido recursório, nos moldes previstos no art.º 639.º, n.º 1, do NCPCiv.).

Porém, compulsada a alegação da Apelante, constata-se que esta matéria vem mencionada nos respetivos pontos 157.º e segs., onde é feito confronto entre o ponto 14 dos factos dados como provados e a fundamentação da decisão de facto, pretendendo a Recorrente que as contas para apuramento da quantia paga pela A. em consultas e tratamentos médicos a E (...) deveriam ser efetuadas de forma diversa da explicitada na fundamentação da decisão de facto (enquanto o Tribunal recorrido procedeu ao somatório de diversos montantes, com base em documentos de suporte juntos, mencionando não ter atendido ao montante de € 184,63 constante de recibo de pagamento a perito, a Recorrente pretende, diversamente, que deveria apenas subtrair-se este montante ao valor peticionado a este título na petição inicial).

Assim sendo, não existe contradição na sentença, mas apenas a enunciação de um modo de contabilização de determinada despesa/prejuízo, pretendendo a Recorrente uma outra forma de contabilização ([8]), o que se prende já com o juízo de facto, cuja discordância tem cabimento em sede de impugnação da decisão de facto.

Tal configura, pois, discordância perante o sentido da decisão, no concernente ao julgamento da matéria de facto, e não a invocação de qualquer contradição, ambiguidade ou obscuridade da sentença.

A ocorrer aquilo a que alude o Apelante, estaremos perante erro de julgamento, a apurar em sede de impugnação da decisão de facto, e não perante qualquer nulidade da sentença.

2. - Da omissão ou excesso de pronúncia

Resulta do art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do CPCiv., que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Vêm entendendo, de forma pacífica, a doutrina e a jurisprudência que somente as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista nesse preceito legal.

De acordo com Amâncio Ferreira ([9]), “trata-se de nulidade mais invocada nos tribunais, originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda”.

E, segundo Alberto dos Reis ([10]), “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.

Já Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes ([11]), por sua vez, referem que “a observação da realidade judiciária mostra que é vulgar a arguição da nulidade da decisão”, sendo que “por vezes se torna difícil distinguir o error in judicando – o erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação da norma jurídica aplicável – e o error in procedendo, como é aquele que está na origem da decisão”.

Por seu turno, Antunes Varela ([12]) esclarece,
em termos de delimitação do conceito de nulidade da sentença, face à previsão do art.º 668.º do CPCiv., que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário (…) e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”.

Na nulidade aludida está em causa o uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se pretender conhecer de questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não se tratar de questões de que deveria conhecer-se (omissão de pronúncia). São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afetada.

Como já se mencionou, para apuramento quanto ao vício de excesso de pronúncia cabe perspetivar as questões em sentido técnico, só o sendo os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, só esses constituindo verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer.

Assim, não são, obviamente, questões para este efeito os factos (alegados ou provados), nem os argumentos apresentados pelas partes, nem as razões em que sustentam a sua pretensão ou defesa, nem as provas produzidas, nem a apreciação que delas se faça em termos de formação da convicção do Tribunal.

Ora, dito isto, socorrendo-nos mais uma vez da alegação recursória (pois as conclusões limitam-se a remeter indistintamente para esta), verifica-se (pontos 161.º e seg. de tal alegação) que a impugnante invoca que a sentença é “omissa quanto à impugnação realizada na Contestação apresentada no que concerne aos documentos juntos com a Petição Inicial, os quais são todos particulares”, o que não foi ponderado pelo Julgador.

Não se trata, pois, como é patente, de uma questão recursória – em sentido técnico, nos moldes apontados –, mas de questão probatória, respeitante à valia probatória de documentos alegadamente impugnados.

Donde que inexista a nulidade invocada, também quanto a qualquer excesso de pronúncia, que não se vê onde pudesse encontra-se.

3. - Da condenação para além do pedido

Resulta do art.º 615.º, n.º 1, al.ª e), do CPCiv., que a sentença é nula quando o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

Considera a Apelante que na sentença foram considerados custos de tratamentos médicos de € 11.044,98, superiores ao peticionado pela A. na petição.

Ora, na petição foi invocado o pagamento de € 10.955,48 de consultas e tratamentos médicos a E (…) (art.º 21.º), no facto 14- da matéria de facto dada como provada da sentença teve-se como apurado, a esse título, o montante – inferior – de € 10.944,98, o qual foi considerado, no âmbito da fundamentação de direito, para cálculo do montante global indemnizatório a atribuir.

Este ascendeu a € 57.124,98 (e juros moratórios), logo, dentro do montante pedido de € 57.135,48 (mais juros de mora).

Assim, inexiste condenação para além do pedido, pelo que tem de improceder, manifestamente, a arguição de nulidade da sentença.

Donde a total improcedência das conclusões da Apelante em contrário.

C) Impugnação da decisão da matéria de facto e sua ampliação

1. - Começa a Recorrente por impugnar os factos dados como provados nos pontos 14 e 18 da sentença, pretendendo sejam agora julgados como não provados.

Quanto ao ponto 14 – onde foi dado como provado que a A. pagou, a quantia de € 10.944,98 em consultas e tratamentos médicos a E (…) –, pretende a Apelante que, perante um pedido correspondente de € 10.955,48, e excluído o pagamento do montante parcelar de € 184,63 (por falta de nexo de causalidade com os danos resultantes do acidente), apenas haveria de efetuar-se a seguinte operação matemática: subtrair este montante parcelar excluído àquele valor peticionado, obtendo-se o resultado de € 10.770,85 (inferior àqueles € 10.944,98).

O Tribunal recorrido, porém, seguiu outro caminho, como também já referido: procedeu ao somatório de diversos montantes, com base em documentos de suporte juntos pela parte demandante, mencionando não ter atendido ao montante de € 184,63 constante de recibo de pagamento a perito, assim obtendo o montante que deu como provado.

Quer dizer, aquele Tribunal atendeu à prova produzida – somando os montantes de consultas e tratamentos médicos documentalmente comprovados, apenas retirando o dito montante de € 184,63, por referente, diversamente, a recibo de pagamento a perito (não se integrando na matéria de “consultas e tratamentos médicos”) –, obtendo um montante total documentalmente comprovado, após exame documento a documento.

A Recorrente pretende que haveria de proceder-se apenas à subtração do montante excluído ao montante do pedido a este título.

Ora, é patente que estamos sem sede de formação de um juízo probatório, para determinação de um facto, como provado ou não provado, pelo que, como é consabido, a formação da convicção do Tribunal não pode deixar de assentar nas concretas provas produzidas, no caso de cariz documental.

Formação essa da convicção probatória que não poderia bastar-se com a mera dedução do valor excluído ao montante peticionado – operações desse tipo poderiam ser admitidas em sede de fundamentação e decisão de direito, para cálculo de valor indemnizatório –, exigindo, em vez disso, a consulta concreta das provas, para obtenção de cada um dos montantes documentados.

Assim, a operação aritmética correta – a que se coaduna com um juízo de facto assente nas provas existentes – é a adotada pelo Tribunal recorrido, sendo, pois, de rejeitar o método de cálculo proposto pela Recorrente, por não atender às provas documentais juntas, comprovativas dos montantes concretos de despesa.

Posto isto, cabia à Apelante demonstrar que os cálculos (somatório) efetuados na sentença, no âmbito da formação da convicção quanto ao dito ponto 14, estavam errados, o que procurou fazer, defendendo que a soma está errada (pois o resultado é de apenas € 6.870,35, como alegado na sua contestação) e que ocorre duplicação de documentos (docs. 37 e 44, bem como 35 e 42) e convocação de pagamentos realizados no âmbito de outros sinistros (docs. 29, 34 e 41) e a outras pessoas, para além de os documentos em que se baseia a sentença terem sido impugnados e não se alcançar qual a prova que foi tida por corroborante.

Vejamos se o conseguiu.

Na sentença foi apresentada a seguinte motivação da convicção probatória:

«Os factos acima descritos resultam de uma análise crítica e conjugada dos seguintes meios de prova:

A) Depoimentos que se me afiguraram sérios e isentos das testemunhas:

- E (…), quer quanto à sua localização no veículo no dia do acidente, quer quanto aos tratamentos a que foi sujeito em consequência das lesões decorrentes do acidente, bem como quantia que lhe foi paga pela autora;

(…)

- R (…), perito de seguros e que nessa qualidade, a pedido da autora, fez uma averiguação ao local do acidente e levantamento dos prejuízos decorrentes do mesmo, quer para o muro ali existente, que descreveu, quer para o lesado E (…);

- M (…), funcionário da autora no âmbito da gestão de sinistros, tendo explicado os itens subjacentes à atribuição de uma indemnização a E (…) no valor de € 45.000,00, bem como as demais despesas pagas pela autora, relacionadas com o acidente;

(…)

B) Teor dos seguintes documentos:

(…)

- Descritivos de pagamento e facturas a fls 16 a 38 e 73 e 74, pela forma que infra melhor se descreverão;

(…)

As quantias pagas a título indemnizatório directamente a E (...) fundamentam-se no teor do cheque que faz fls 14, bem como no seu depoimento quanto ao facto de a autora ter pago todas as despesas relacionadas com o cabal tratamento das lesões que sofreu.

Os exactos montantes despendidos com esses tratamentos fundamentam-se nos documentos de fls 16 a 37 vº, conjugados com o depoimento da testemunha M (…) que os explicou, assim como também explicou os itens tomados em consideração na fixação da indemnização no valor de € 45.000,00.

Importa sublinhar que o documento descritivo junto com a contestação a fls 59 vº, não se mostra correctamente elaborado, uma vez que do mesmo não consta o valor pago, titulado por cada documento, mas sim o saldo de provisão de custos.

O valor mencionado no facto 14 é ligeiramente diferente do indicado pela autora. Com efeito, chegámos ao valor de € 10.944,98 atendendo ao somatório de € 2.065,53 (fls 16), € 86,95 (fls 17), € 31,00 (fls 18), € 124,00 (fls 19), € 7.535,25 (fls 20), € 177,50 (fls 21), € 85,00 (fls 22 e 23), € 177,50 (fls 24 vº e 25 vº), € 9,50 (fls 26), € 75,00 (fls 27 e 28), € 40,00 (fls 28 vº), € 120,00 (fls 29 vº), € 180,00 (fls 30 vº), € 177,20 (fls 73), € 160,55 (fls 74).

Não atendemos ao recibo pago ao perito N (…) no valor de € 184,63, uma vez que ainda que se trate de um prejuízo sofrido pela autora por causa da situação dos autos, não apresenta nexo causal directo com os danos ocorridos em consequência da condução da ré e muito menos tem que ver com os tratamentos prestados a E (…)» (itálico aditado).

Estão, assim, em causa os documentos aludidos e sua corroboração.

Ora, quanto ao teor dos documentos, deve dizer-se que não releva a invocada duplicação relativamente aos documentos 37 (fls. 31 v.º) e 44 (fls. 35), não só por neles não estar contido qualquer montante de despesa, como por neles não se ter baseado, como resulta da citação antecedente, o cálculo do Tribunal a quo.

E, quanto aos documentos 35 (fls. 30 v.º) e 42 (fls. 34), resulta da fundamentação citada que o montante documentado (€ 180,00), apenas foi considerado uma vez [“€ 180,00 (fls 30 vº)”], pelo que só por via de uma leitura menos cuidada da decisão se poderá defender, salvo o devido respeito, que há erro de julgamento nesta parte, por via de dupla contabilização de um mesmo montante de despesa.

Relativamente aos documentos 29 (fls. 27 v.º), 34 (fls. 30) e 41 (fls. 33), é patente que também não foram suporte da convicção, como logo resulta da leitura da citada fundamentação da decisão de facto, repetindo-se a defeituosa leitura desta por parte da Recorrente.

Assim, procedendo à soma evidenciada naquela fundamentação – somatório de € 2.065,53 (fls. 16), € 86,95 (fls. 17), € 31,00 (fls. 18), € 124,00 (fls. 19), € 7.535,25 (fls. 20), € 177,50 (fls. 21), € 85,00 (fls. 22 e 23), € 177,50 (fls. 25 vº), € 9,50 (fls. 26 e v.º), € 75,00 (fls. 28), € 40,00 (fls. 28 v.º, com indicação do n.º de sinistro), € 120,00 (fls. 29 v.º, com indicação do n.º de sinistro), € 180,00 (fls. 30 v.º), € 177,20 (fls. 73), € 160,55 (fls. 74), –, obtém-se um valor total até superior aos € 10.944,98 dados como provados ([13]), tratando-se sempre de documentos referentes a tratamentos ao aludido E (...) .

Quanto à corroboração, a sentença é expressa em referir que essa prova documental foi conjugada com a prova E (…)– o seu “depoimento quanto ao facto de a autora ter pago todas as despesas relacionadas com o cabal tratamento das lesões que sofreu” –, bem como à testemunha M (…), que explicou os exatos montantes despendidos com os tratamentos documentados a fls. 16 a 37 v.º.

Trata-se, pois, de indicada prova corroborante, competindo à Apelante, como impugnante, mostrar por que se impunha decisão diversa, o que a obrigava, fundamentando a impugnação, à mostrar a não idoneidade corroborante desses convocados testemunhos (cfr. art.ºs 662.º, n.º 1, 640.º e 639.º, n.º 1, todos do NCPCiv.).

Porém, a Recorrente não cumpre esse seu ónus de fundamentação e análise crítica desta prova testemunhal, já que se limita a dizer que os documentos foram impugnados, omitindo referência à prova testemunhal corroborante, o que obriga à improcedência, sem mais, desta parcela recursória ([14]).

Relativamente ao ponto 18 – que se reporta às consequências/limitações para as capacidades/aptidões/comportamento do condutor portador de uma TAS a partir de 0,2 g/l –, pretende também a Apelante que se emita um julgamento de “não provado”.

A 1.ª instância exarou que, “quanto à matéria descrita no facto 18 relacionada com a influência da ingestão de álcool no comportamento humano, a mesma fundamenta-se no depoimento da testemunha (…) que os descreveu e que que dada a profissão que exerce, nos mereceu inteira credibilidade”. Mais mencionou tratar-se de médico, o que é conforme com os dados da ata de audiência final, onde esta testemunha referiu “ser perito médico da autora” (cfr. fls. 159).

Contrapõe a Apelante que a testemunha referida não merece tal credibilidade, seja por trabalhar para uma das partes (a A.) – vinculação profissional –, seja por não ser especialista na matéria em causa, apenas tendo manifestado opiniões, posto que a sua especialidade médica se reporta à averiguação de acidentes de trabalho – falta de conhecimentos específicos –, seja ainda pela relatividade do afirmado, visto que depôs no sentido de os efeitos de uma mesma TAS poderem variar de pessoa para pessoa, em função de caraterísticas individuais – reduzido valor probatório.

Ouvida a gravação do depoimento respetivo, constata-se que a testemunha, médico de profissão, com experiência na peritagem médico-legal, colaborador da A., referiu que a ingestão de álcool é idónea a alterar o comportamento da pessoa – o álcool é levado pelo sangue até ao cérebro, afetando o sistema nervoso central e os sentidos, desde logo, o da visão –, condicionando os reflexos, designadamente no exercício da condução automóvel. Neste âmbito, aludiu a estudos médicos no quadro europeu, que levaram a que noutros países europeus seja proibida a TAS a partir de 0,2 g/l. A partir de tal TAS ocorre alteração do estado de consciência, maior ou menor em função da variação da TAS e das características dos indivíduos.

Esclareceu, com base na sua experiência médica e nos conhecimentos adquiridos (incluindo estudos científicos existentes sobre a matéria), a forma como ocorre a absorção de álcool no organismo humano e a influência das caraterísticas individuais nesse processo, sendo que na fase aguda (após a ingestão e antes de decorrido o período de 24 horas) os efeitos ocorrem em todos os indivíduos (ninguém é imune ao álcool).

Há então que valorar este depoimento testemunhal, designadamente a sua credibilidade, para aferição do seu valor probatório, de molde a concluir se no caso se impõe decisão diversa, matéria em que vale inteiramente a livre convicção do Julgador, mediante análise crítica da prova (cfr. art.º 607.º, n.ºs 4 e 5, do NCPCiv.), consabido que, mais do que no Tribunal de recurso (de si inelutavelmente limitado à gravação sonora dos depoimentos), é na 1.ª instância que se verifica a total imediação face à prova testemunhal.

Ora, tal como na sentença recorrida, também aqui se não vê motivos que justifiquem pôr em causa a credibilidade desta testemunha.

Efetivamente, tendo deposto de forma clara e coerente, a testemunha explicou o processo metabólico de absorção do álcool pelo organismo humano, a influência deste sobre o sistema nervoso central e periférico, bem como sobre as funções cerebrais, dos indivíduos e as consequentes alterações comportamentais, mormente no exercício da condução automóvel.

Fê-lo com base na sua experiência médica e em estudos existentes/publicados sobre a matéria, não tendo o seu depoimento sido abalado por outras provas, sem prejuízo de ter clarificado, como referido já, que uma mesma TAS pode ter efeitos diversos em indivíduos com caraterísticas diversas, embora sempre provocando alterações de estado de consciência e comportamentais.

Assim, não se vê que a isenção da testemunha tenha resultado comprometida, ante a forma como depôs, pelo facto de trabalhar para a A., nem sequer que se tenha limitado a emitir opiniões pessoais, sem sustentação sólida e credível.

Ao contrário, para além de ter prestado depoimento que deve ser considerado isento/descomprometido, mostrou conhecer a matéria a que depôs, com base na sua experiência profissional de médico e nos ditos estudos científicos, destacando-se a clareza e segurança com que depôs, assim esclarecendo a factualidade em discussão.

Donde que tal depoimento não se mostre, na avaliação desta Relação, comprometido por qualquer vinculação profissional, nem por falta de conhecimentos específicos.

Também não se vê que ocorra reduzido valor probatório, visto que o depoimento, de médico experiente e informado, sendo esclarecedor, não veio a ser abalado, antes se impondo, no conjunto probatório obtido, como prova válida e relevante, ante matéria de cariz médico e científico.

Não se vê, pois, nem a Recorrente logra evidenciar, que este depoimento deva ter-se por não credível ou destituído de valor probatório; ao contrário, sendo claro, coerente e credível e não resultando abalado, nele deve o Julgador fazer assentar a sua livre convicção positiva, donde que a autónoma convicção deste Tribunal de recurso não divirja da formada na 1.ª instância.

Improcedem, por isso, as conclusões em contrário da Recorrente.

2. - Vem ainda impugnada a matéria das al.ªs a), b), f), g) e j) dos factos dados como não provados, pretendendo a Apelante a sua transposição para o quadro dos factos provados.

Desde logo se clarificará que em tal quadro de factos provados só podem, naturalmente, ter assento factos concretos, excluindo conceitos jurídicos, juízos valorativos ou meramente vagos e/ou conclusivos (cfr. o já mencionado art.º 607.º, n.ºs 3 a 5, do NCPCiv.).

Com efeito, é bem consabido que na parte fáctica da sentença só podem caber factos – mormente, os concretos factos provados –, perante os quais operará, só na parte da fundamentação de direito, a valoração jurídica do Tribunal, com afinação conceitual, em adequado enquadramento jurídico, sede em que – só aí – se extrairão as conclusões, fruto das pertinentes valorações de direito, sob pena de captura da decisão da causa fora da sua sede própria ou de subjetivismo e/ou vacuidade de fundamentos, desde logo em sede de decisão da matéria de facto, ocasionando confusão, obscuridade ou ambiguidade, tudo elementos nocivos à necessária transparência da decisão judicial.

Ora, a impugnada al.ª a) da matéria julgada não provada, apelando, manifestamente, a elemento valorativo/conclusivo (“velocidade baixa”), com o seu inarredável subjetivismo, nunca poderia integrar o quadro fáctico provado, sob pena de confusão entre factos e conclusões/valorações.

Assim, sempre teria de afastar-se do factualismo provado que a R. imprimia ao veículo uma velocidade baixa (caso a 1.ª instância desse esta matéria como provada, a Relação teria de a suprimir, por conclusiva).

Quanto à impugnada al.ª b) da matéria julgada não provada, seria repetitivo insistir quanto às condições do piso (cfr. o que já consta dos pontos 5 e 6 da factualidade provada, com especial enfoque no “bom piso” e nas condições chuvosas do tempo), ou quanto à parte do veículo que embateu no muro (cfr. o que já consta do ponto 2).

Apurado que, em tais condições, o veículo se despistou e embateu com a sua parte lateral traseira direita no muro (ponto 2 referido), nada indica que tenha “feito várias voltas” até embater, que tenha dado uma volta de 360 graus antes do embate, sendo imprecisos depoimentos de ocupantes da viatura no sentido de, em deslizamento descontrolado, terem “sentido o carro fugir, a dançar” (cfr. alegação recursória de fls. 191, para que remetem as respetivas conclusões de apelação), pelo que se concorda com o Tribunal a quo ao dar apenas como indiscutível o despiste e embate nas ditas condições de tempo e de via, apresentando-se o mais que consta da impugnada al.ª b) como problemático e duvidoso.

Relativamente à também impugnada al.ª f) da matéria julgada não provada, seria ainda vago e conclusivo/valorativo dar como provado que alguém “era portador de uma elevada taxa de álcool no sangue” e/ou que “havia consumido substância psicotrópica”, ao que acresce que, conforme entendido na sentença, as análises clínicas referentes a E (…) apresentam resultado positivo apenas para a presença de antidepressivos quanto a pesquisa de “Fármacos e Drogas de Abuso” (cfr. documentação hospitalar, referente ao resultado de análises clínicas ao aludido E (…)constante de fls. 90 e segs., mormente fls. 113 e 114 dos autos).

Termos em que uma tal formulação nunca poderia, nos moldes pretendidos, constar do quadro fáctico provado da decisão, desde logo por falta de dimensão fáctica.

A impugnada al.ª g) da matéria julgada não provada é ainda vaga e conclusiva/valorativa, não podendo dar-se como provado, por isso, que “as lesões teriam sido menos graves”.

Com efeito “lesões graves” ou “lesões menos graves” são conceitos, implicando valorações/conclusões, que, como tais, não contêm qualquer facto concreto, o que logo impede o seu assento no quadro fáctico provado da sentença, que, apenas podendo receber factos concretos, sempre teria de ser expurgado de tais conceitos e valorações, cuja ponderação haveria de ficar reservada para a fundamentação de direito e respetiva valoração jurídica.

Por fim, da impugnada al.ª j) da matéria julgada não provada, reportada ao período subsequente à alta médica do mencionado E (...) , consta que, em casa, aquele “retomou a sua vida social, sando com amigos, bebeu bebidas alcoólicas e fez saídas nocturnas”.

Na sentença entendeu-se que, embora as testemunhas (…) tenham mencionado tal matéria, só o fizeram de forma genérica e vaga, motivo pelo qual, na ausência de outras provas, foi formulado um juízo negativo (de não provado).

Ora, ouvida a pertinente gravação dos depoimentos, a testemunha F (…)– amigo da R. e de E (…) – referiu que acompanhou a recuperação do amigo E (...) , o qual, passado algum tempo, voltou a fazer a sua vida normal, designadamente frequentando discotecas.

A testemunha P (…), por sua vez, também referiu que, passado algum tempo, aquele voltou a fazer a sua vida normal, designadamente trabalhar.

A testemunha E (…), manifestando falhas de memória ao longo do seu depoimento, disse que após a sua recuperação, passado algum tempo, voltou a fazer a sua vida normal, designadamente trabalhar.

Perante o teor vago/impreciso destes depoimentos, também este Tribunal de recurso não deteta que tenha sido produzida prova clara e inequívoca, em termos afirmativos, da factualidade da dita al.ª j), termos em que não resulta evidenciado erro de julgamento de facto do Tribunal a quo, que – repete-se – teve o benefício da total imediação face à prova testemunhal.

Donde que não se imponha, também aqui, a alteração da decisão de facto proferida, assim improcedendo as conclusões em contrário da Recorrente.

3. - Resta a pretendida ampliação da matéria de facto, com inserção de nova factualidade no quadro fáctico provado da sentença.

Nesta foi exarado não se terem provado quaisquer outros factos, mormente por falta de prova idónea e bastante.

Neste âmbito, pretende a Recorrente que se julgue provado que “O acidente não ocorreu por culpa da condutora, antes foi condicionado por elementos externos, sendo que qualquer pessoa colocada no seu lugar não teria capacidade para evitar o acidente” (conclusão 29.ª).

Ora, como logo se constata, trata-se aqui de pura matéria de direito no âmbito da economia desta ação de regresso, com formulação de um juízo sobre a culpa na produção do acidente, pretendendo a Recorrente que se afaste desde já – ainda em sede de decisão de facto – a sua culpa como condutora do veículo que, sozinho, se despistou e foi embater em muro de moradia.

Um tal juízo sobre a culpa na produção do acidente, como matéria de apreciação jurídica que inevitavelmente é, não pode, como é patente, ser acolhido no quadro fáctico da sentença, por não respeitar à decisão de facto, mas à decisão de direito, cuja fundamentação deve, perante as regras jurídicas aplicáveis, apreciar a matéria da culpa da condutora da viatura interveniente no acidente estradal.

Donde a total improcedência do recurso nesta parte, mantendo-se inalterada a decisão de facto da 1.ª instância.

D) Da substância jurídica do recurso

1. - Se resulta indemonstrada a culpa da Apelante na produção do acidente, não se demonstrando os pressupostos do direito de regresso

A R./Recorrente pugna pela inexistência na sentença de qualquer facto demonstrativo da sua culpa como condutora do veículo mencionado (conclusão 34.ª).

Dispõe o art.º 27.º, n.º 1, al.ª c), do DLei n.º 291/2007, de 21-08 – que aprova o regime do sistema do seguro obrigatório automóvel e transpõe parcialmente direito da União Europeia, regime este aplicável in casu, atenta a data do acidente – que, satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.

Assim, o direito de regresso contra o condutor pressupõe, desde logo, que este tenha dado causa ao acidente, isto é, que o mesmo lhe seja imputável a título de culpa, designadamente por negligência, culpa essa efetiva ou presumida.

Na fundamentação de direito da sentença, perfilhando-se o entendimento interpretativo jurisprudencial de que “só pela prova do nexo causal entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente” se deverá atribuir o direito de regresso ao segurador, expressou-se ainda o seguinte quanto à culpa:

«No dia 17.01.2010, pelas 6 horas e 45 minutos ocorreu um acidente de viação envolvendo tal veículo, o qual na altura era conduzido pela ré, que, submetida ao teste do álcool, através do aparelho Drager, acusou uma TAS de 0,57 g/l.

Defende a ré que o valor referido deverá ser corrigido nos termos do artº 8º da Portaria 1556/2007, de que resulta uma redução da mesma para um valor situado entre os 0,53 a 0,55.

A este respeito tem sido maioritariamente entendido pela jurisprudência ([15]) que os erros máximos a que se refere a aludida Portaria são apenas variáveis a considerar nos procedimentos de homologação e ulterior verificação de alcoolímetros, não se destinando a actuar nas medições concretas efectuadas por cada aparelho aprovado, mas sim em momento prévio nas operações de aprovação e verificação.

Se assim é, e não vindo posto em causa que o concreto aparelho Drager que foi utilizado é um modelo aprovado, não há que fazer qualquer redução ao valor pelo mesmo apontado.

(…)

Quanto às concretas circunstâncias do acidente, encontra-se provado que era de noite e que chovia e que o veículo era conduzido pela ré no sentido Pataias-Marinha Grande. Ao descrever uma curva para a esquerda despistou-se, embatendo com a parte lateral direita traseira no muro de uma moradia.

O facto de a ré conduzir com uma TAS de 0,57 g/l constituiu uma violação ao disposto no art.º 81º do Código da Estada.

Ora, é comunmente entendido que a inobservância de leis e regulamentos e particularmente o desrespeito de normas de perigo abstracto, tendentes a proteger determinados interesses, como são as regras estradais tipificadoras de infracções de trânsito rodoviário, faz presumir a culpa na produção dos danos daí decorrentes, bem como a existência de causalidade ([16]).

Esta presunção, todavia, deve ser afastada nos casos em que a norma violada não se destine a proteger o interesse em concreto ofendido. Dito de outra forma, a presunção apenas funciona quando da prática contraordenacional advêm as consequências típicas ou normais, isto é, aquelas que respeitam aos fins para cuja protecção a mesma foi criada.

Ora, não existe qualquer facto que possa explicar o despiste do veículo, encontrando-se, todavia, provado que a partir de uma TAS de 0,2 g/l todos os órgãos relacionados com o sistema nervoso central ficam afectados, o que acarreta a redução do campo visual periférico, assim como a capacidade de reacção, a atenção e diminuição das funções motoras.

Se assim é, sendo a ré portadora, no momento do despiste, de uma TAS de 0,57 g/l necessariamente tinha tais capacidades diminuídas.

Tal facto não implica uma demonstração directa do nexo causal entre o estado de alcoolémia e o acidente. Porém, como decidido no AC.RL 17.09.2009 [www.dgsi.pt/jtrl.nsf] o grau de exigência desta prova, não correspondendo a um nível científico de causa de verificação, deve aferir-se por padrões razoáveis do comportamento, fazendo intervir regras da experiência comum de avaliação da conduta lesiva, como processo lógico e mental de assegurar um coeficiente de probabilidade de verificação do dano que, de outro modo, não se verificaria, ou verificar-se-ia de modo diferente.

Ora, para lá da condução sob o efeito do álcool que afectava as aludidas capacidades, nada mais justifica que o veículo se tenha despistado e embatido co[n]tra o muro.

Posto isto, mostram-se verificados os necessários pressupostos de que depende o exercício do direito de regresso pela autora.».

Que dizer?

Quanto ao rigor da taxa de alcoolemia detetada, dir-se-á que se concorda com o expendido na sentença, aliás, seguindo jurisprudência dos Tribunais superiores.

Com efeito, é entendimento jurisprudencial que:

«Iº A lei não prevê qualquer margem de erro, para os resultados obtidos pelos analisadores quantitativos de avaliação do teor de álcool no sangue, em que são usados aparelhos certificados;

IIº Os erros máximos admissíveis, previstos na Port. nº 1556/07, de 10Dez. (Regulamento do Controle Metrológico dos Alcoolímetros), são considerados aquando da aprovação e verificação dos aparelhos e não aquando de actos de fiscalização;

IIIº Não existindo quaisquer elementos de prova que suscitem dúvidas sobre a fiabilidade do aparelho concreto usado no exame, deve considerar-se assente o resultado obtido, sem dedução de qualquer margem de erro;

IVº O legislador, na fiscalização da condução sob influência do álcool, procurou garantir a verdade, prevendo a possibilidade de solicitação de contraprova, através de novo exame ou análise de sangue» ([17]).

Assim sendo, atento o âmbito de aplicação a conferir ao disposto no art.º 8.º da Portaria n.º 1556/2007, de 10-12 ([18]), nada haverá a corrigir à TAS detetada na R./condutora – que poderia ter requerido contraprova –, valendo o montante concretamente apurado, sem qualquer desconto/redução (que seria redundante, se aplicado nos moldes pretendidos).

Quanto à culpa, deve dizer-se que não resulta apurada a causa efetiva/concreta do despiste e decorrente embate.

Porém, como dito na sentença, o facto de a R. conduzir com uma TAS de 0,57 g/l constituiu violação de norma estradal imperativa, o disposto no art.º 81.º do Código da Estada ([19]).

É sabido que a condução de veículo automóvel é uma atividade voluntária, cabendo ao condutor o domínio/controlo da evolução estradal do veículo em circulação, devendo, por isso, ser responsabilizado pela atividade de circulação da viatura no que depende da sua condução (exceto facto comprovado de terceiro ou caso de força maior).

Por isso, de há muito vem sendo entendido que uma contraordenação estradal gera a presunção «juris tantum» de negligência do seu autor ([20]), cabendo a este (no caso, a R./Apelante) ilidi-la.

Com efeito, «… os condutores, antes de iniciarem qualquer manobra devem previamente certificar-se de que a mesma não compromete a segurança do trânsito e proceder em termos de não a comprometer, e, por outro lado que, além de respeitarem os limites gerais e especiais de velocidade, devem regulá-la de harmonia com as circunstâncias dos veículos, da configuração e estado geral das estradas e da sua luminosidade e visibilidade.

O ónus de prova dos factos integrantes da culpa no quadro da responsabilidade civil extracontratual, se não houver presunção legal da sua existência, cabe a quem com base nela faz valer o seu direito, designadamente o de crédito indemnizatório (…).

Neste domínio importa considerar, como faz a jurisprudência maioritária, que em matéria de responsabilidade civil emergente de acidente de viação deve atribuir-se a culpa na sua produção, por presunção judicial (cfr. artigo 351º do Código Civil) ao condutor que violou regras de direito estradal, desde que ele não logre demonstrar a existência de quaisquer circunstâncias anormais que determinaram tal facto. Isto sob pena de se lançar sobre o lesado um ónus de prova excessivamente gravoso ou até incomportável.

Ao condutor cabe o ónus da contraprova, ou, noutros termos, a prova do facto justificativo ou de factos que façam criar a dúvida no julgador – mas, sempre será necessário demonstrar que a violação da regra legal de trânsito, quando concomitante com um acidente de viação, tenha sido a causa do sinistro, ou para esse evento tenha contribuído adequadamente» ([21]).

No caso dos autos, vem provado que a TAS de que a R./condutora era portadora era idónea a influenciar – negativamente – o seu exercício da condução estradal, atividade de natureza necessariamente perigosa.

Apurou-se, de facto, que, a partir de uma TAS de 0,2 g/l, todos os órgãos relacionados com o sistema nervoso central ficam afetados, o que acarreta a redução do campo visual periférico, assim como a capacidade de reação, a atenção e diminuição das funções motoras (facto 18).

Donde que a condução com a apurada TAS de 0,57 g/l, constituindo violação de norma estradal, e influindo na atividade em causa, diminuindo a aptidão para conduzir adequadamente, suporte a mencionada presunção de culpa (negligência) da condutora infratora dessa norma.

Cabia, assim, à R. ilidir essa presunção, sob pena de ter de ser responsabilizada por culpa presumida.

O que, porém, não logrou conseguir, já que não basta provar que era noite e chovia – os condutores devem adequar o exercício da condução às condições do tempo e da via – ou que se tratava de local com elevada frequência de acidentes com gravidade – os condutores devem adotar condutas preventivas (designadamente, a chamada “condução defensiva”), que tenham em conta os perigos que o traçado da via e as condições e inclinação do piso possam incrementar, de molde a contrariá-los, mormente quando as condições externas são adversas e a via se configura como perigosa – ou mesmo que a R. era condutora experiente e normalmente cuidadosa, o que a não impediu/inibiu de conduzir com a aludida TAS.

Em suma, o acidente (despiste e embate no muro) sempre seria de imputar a conduta culposa – por culpa presumida, não ilidida – da R./Apelante.

Esta, conduzindo com uma TAS superior à legalmente permitida, deu, pois, causa ao acidente, com o que verificados se mostram os pressupostos do direito de regresso, à luz do disposto no art.º 27.º, n.º 1, al.ª c), do DLei n.º 291/2007.

Com efeito, se perante a al.ª c) do art.º 19.º do DLei n.º 522/85, de 31-12, se suscitou controvérsia na jurisprudência quanto à exigência de nexo de causalidade entre a condução sob influência do álcool e o acidente, vindo o Ac. de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2002 do STJ, de 28/05/2002 ([22]), a sanar a controvérsia, estabelecendo a interpretação no sentido de se exigir, para procedência do direito de regresso, a prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente, o certo é que aquele art.º 27.º, n.º 1, al.ª c), do DLei n.º 291/2007, veio estabelecer uma redação legal diversa nesta matéria, prejudicando o quadro interpretativo daquele aresto uniformizador (que, todavia, mantém integral pertinência perante o preceito legal, entretanto revogado, a que se reporta).

Assim, enquanto na formulação legal anterior (al. c) do art.º 19º do DLei n.º 522/85) se aludia ao condutor ter “agido sob a influência do álcool”, atualmente (al. c) do n.º 1 do art.º 27.º do DLei n.º 291/2007) o legislador põe o enfoque em “conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”.

E já no Ac. STJ de 08/10/2009 ([23]) se considerava a diferença dos textos legais, exprimindo-se que:

«Agora, as coisas são claras – o condutor dá causa ao acidente (qualquer que seja a causa) e, se conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à permitida por lei, a seguradora tem direito de regresso contra ele.

Antes, (…) as coisas eram o que eram e o direito de regresso da seguradora (interpretado o art. 19º, al. c ) do Dec.lei nº 522/85 pelo acórdão PUJ nº 6/2002) exigia por parte desta a prova de um duplo nexo de causalidade – a prova da causa do acidente em si mesma, a prova de que o álcool tinha sido a causa dessa mesma causa.

Só assim podia ficar provado o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente».

Nessa senda, foi entendido no Ac. desta Relação de 22/01/2013 ([24]):

«Das diferentes redacções da al. c) do artº 19º do Decreto-Lei nº 522/85 e da al. c) do nº 1 do artº 27º do Decreto-Lei nº 291/2007 afigura-se-nos, com todo o respeito, que o legislador não pretendeu dizer o mesmo por diferentes palavras.

Sabedor da controvérsia jurisprudencial passada e da prolação do AUJ do STJ nº 6/2002, se fosse vontade do legislador manter a situação existente, teria deixado inalterada a expressão “tiver agido sob influência do álcool”.

Ao substituir aquela expressão por “conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”, o legislador não foi “categórico”, mas deixou suficientes indícios de que não era vontade sua que a situação decorrente do AUJ se mantivesse.

Com efeito, enquanto a antiga expressão tem uma carga subjectiva, quase podendo dizer-se que verdadeiramente relevante era, independentemente da taxa de álcool no sangue (TAS) ser maior ou menor, a influência do álcool sobre a actuação do condutor e, consequentemente, sobre o eclodir do acidente, a nova expressão abandona essa carga subjectiva, objectiva-se claramente, retirando importância aos efeitos da etilização sobre o comportamento do condutor e sobre o deflagrar do sinistro e bastando-se com a constatação material de que o condutor era portador de uma TAS superior à legalmente permitida (artºs 81º, nºs 1 e 2, 145º, nº 1, al. l) e 146º, al. j) do Cód. da Estrada e artº 292º do Cód. Penal). Ou, por outras palavras, o regime anterior preocupava-se com a influência da alcoolemia sobre o concreto condutor em apreciação, enquanto o regime actual se preocupa com o grau objectivo da alcoolemia, independentemente do efeito que o mesmo tenha sobre o condutor visado.

É certo que, em casos de TAS que pouco ultrapassem o máximo admitido e/ou que o condutor tenha uma especial resistência aos efeitos do álcool, as seguradoras poderão beneficiar de um direito de regresso que, em bom rigor, não lhes era devido.

Esse inconveniente, contudo, parece não ter incomodado o legislador, porventura mais sensibilizado pelo desincentivo que a modificação não deixará de ter, a prazo, sobre a condução com TAS superior à legalmente admitida, com a previsível diminuição de acidentes de viação daí adveniente.

Conscientes do melindre jurídico da questão, adoptamos, pois, o entendimento de que a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 291/2007, nomeadamente da al. c) do nº 1 do artº 27º, postergou a orientação que, na vigência da al. c) do artº 19º do Decreto-Lei nº 522/85, decorria do AUJ do STJ nº 6/2002 e, portanto, que, nos acidentes a que seja já aplicável o regime do Decreto-Lei nº 291/2007, para ser reconhecido direito de regresso à seguradora que satisfez a indemnização basta ter sido alegado e provado que o condutor/segurado deu causa ao acidente e conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à permitida por lei, dispensando-se a alegação e prova de nexo de causalidade adequada entre a etilização e o acidente.».

No STJ e nas Relações, ultrapassado o quadro do aludido Ac. Uniformizador, volta a jurisprudência a mostrar-se dividida, parecendo predominante, porém, o entendimento no sentido da dispensa da prova do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia e o acidente, bastando a demonstração de ter o condutor/segurado dado causa ao acidente e conduzir com TAS superior à legalmente permitida ([25]).

Concordamos com a argumentação dos aludidos Ac. TRC de 22/01/2013 e Ac. STJ de 09/10/2014, pelo que, ultrapassado, como dito, o quadro da anterior uniformização de jurisprudência, se adere ao entendimento no sentido da dispensa da prova do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia e o acidente ([26]).

Por isso, bastando à aqui A./Apelada a demonstração de que a R./condutora deu causa ao acidente e conduzia com uma TAS superior à legalmente permitida, há direito de regresso.

Mas, no caso dos autos, ainda que se adotasse, quanto à questão jurídica referida, o entendimento contrário – como fez a sentença recorrida –, seria, salvo o devido respeito, de concluir pela existência do peticionado direito de regresso.

Com efeito, apurado que a R./Apelante conduzia com a aludida TAS de 0,57 g/l e que a partir da TAS de 0,2 g/l todos os órgãos relacionados com o sistema nervoso central ficam afetados, causando redução do campo visual periférico, da capacidade de reação e da atenção, bem como diminuição das funções motoras, e visto o modo como ocorreu o despiste e embate em muro de casa de habitação, seria de concluir, como na sentença, que, não se verificando qualquer outra causa para o acidente, a condução sob influência daquela TAS não deixou de influir, de algum modo, na produção do acidente, ao limitar à condutora, naquelas condições externas adversas, as faculdades/capacidades sempre imprescindíveis à condução estradal.

2. - Se é de afastar o direito de regresso por contribuição do lesado/vítima para os danos

Resta a questão suscitada da culpa do próprio lesado, E (...) , que, por seguir como passageiro a dormir, ademais portador de elevada TAS e sob influência de substâncias psicotrópicas, que consumira, teria contribuído decisivamente para os danos que sofreu (cfr. art.º 570.º, n.ºs 1 e 2, do CCiv.).

Ora, apenas se prova que tal passageiro seguia a dormir (facto 17), não resultando apurado que fosse portador da invocada elevada TAS e que estivesse sob influência de substâncias psicotrópicas.

Não pode, como parece óbvio, dizer-se que um passageiro de um veículo automóvel é culpado pelos danos que sofreu em acidente de viação em que foi interveniente esse veículo, por ter concorrido para a produção ou agravamento desses danos, pelo simples facto de ir a dormir, o que não é proibido aos passageiros, sendo que o mais imputado não se demonstrou.

Donde que claudique a invocação de culpa do lesado, sendo ainda que, inalterada a decisão da matéria de facto – mormente quanto aos danos e seu montante –, também tem de falecer a argumentação no sentido de não ser devido o montante global a que alude a sentença condenatória ([27]).

Improcede, pois, a apelação.


***

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - A lei não prevê qualquer margem de erro para os resultados obtidos de TAS com o uso de aparelhos certificados nos termos legais.

2. - Os erros máximos admissíveis, previstos na Portaria n.º 1556/07, de 10-12, são considerados aquando da aprovação e verificação dos aparelhos e não perante concretos de atos de fiscalização, devendo considerar-se assente o resultado obtido, sem dedução de margem de erro, se o condutor fiscalizado não solicitou contraprova, através de novo exame ou análise de sangue.

3. - À luz do disposto no art.º 27.º, n.º 1, al.ª c), do DLei n.º 291/2007, de 21-08 – que aprova o regime do sistema do seguro obrigatório automóvel e revoga o anterior DLei n.º 522/85, de 31-12 –, satisfeita a indemnização, o segurador tem direito de regresso contra o condutor se este deu causa ao acidente e conduzia com TAS superior à legalmente admitida.

4. - Assim, tal direito de regresso pressupõe que o acidente seja imputável ao condutor a título de culpa, designadamente por negligência, efetiva ou presumida, e que exercesse a condução rodoviária com TAS superior à legalmente admitida.

5. - Perante aquele art.º 27.º, n.º 1, al.ª c), do DLei n.º 291/2007, com redação diversa da constante do anterior art.º 19.º do DLei n.º 522/85, ficou prejudicada, face à nova norma legal, a doutrina do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2002 do STJ, de 28/05/2002, formada ao abrigo do revogado DLei n.º 522/85.

6. - Na nova lei (art.º 27.º, n.º 1, al.ª c), aludido) o direito de regresso basta-se, para além da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil subjetiva do condutor e do cumprimento da prestação indemnizatória pelo segurador, com uma TAS superior à legalmente permitida.

7. - Por isso, o direito de regresso prescinde agora da questão de saber se em concreto a TAS influenciou a condução, dispensando-se a demonstração do nexo de causalidade adequada entre o estado de alcoolemia e o acidente/danos.


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V – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas da apelação pela R./Apelante, sem prejuízo do apoio judiciário concedido (cfr. fls. 63 e seg.).


Escrito e revisto pelo relator.

Elaborado em computador.

Coimbra, 14/03/2017

Vítor Amaral (Relator)
Luís Cravo (1.º Adjunto)
Fernando Monteiro (2.º Adjunto)


([1]) Tal recurso da decisão interlocutória viria a ser rejeitado, por extemporaneidade, nesta Relação (despacho do Relator de fls. 237 e seg.).
([2]) Que, na parte agora relevante, se deixam transcritas (com negrito e sublinhado retirados).
([3]) O Tribunal a quo tomou ainda posição em matéria de nulidade da sentença, considerando improcedentes as causas de nulidade invocadas.
([4]) Aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 (cfr. art.ºs 1.º e 8.º).
([5]) Caso nenhuma das questões enunciadas resulte prejudicada pela decisão das precedentes.
([6]) Assim o Ac. STJ, de 14/01/2010, Proc. 2299/05.7TBMGR.C1.S1 (Cons. Oliveira Vasconcelos), com sumário disponível em www.dgsi.pt.
([7]) Cfr., por todos, o Ac. STJ, de 23/05/2006, Proc. 06A1090 (Cons. Sebastião Póvoas), em www.dgsi.pt.
([8]) Se contradição existe, ela não está na sentença, mas entre a perspetiva de contabilização do Tribunal e a da parte.
([9]) Cfr. “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9.ª ed., pág. 57.
([10]) Vide “Código de Processo Civil, Anotado”, vol. V, pág. 143.
([11]) In “Dos Recursos”, Quid Júris, pág. 117.

([12]) Cfr. “Manual de Processo Civil”, pág. 686.
([13]) Valor de € 11.044,98, sendo, todavia, que a A. não pôs em causa o valor inferior julgado como provado.
([14]) Sendo certo que a Recorrente pretendia simplesmente que se desse como não provado o dito ponto 14, isto é, qualquer pagamento a este título.
([15]) A sentença reporta-se expressamente ao “Ac. RL. 27.01.2011, www.dgsi.pt/nsf.jtrl e jurisprudência aí referida”.
([16]) São citados, inter alia, os “AC.RP.07.11.91, CJ, V, 182; AC.STJ 11.04.81, BMJ 363-488, AC.STJ 03.03.90, BMJ 395-534”.
([17]) Cfr. sumário do Ac. TRL, de 27/01/2011, Proc. 282/10.0GAMFR.L1-9 (Rel. Cid Geraldo), em www.dgsi.pt, aresto citado na sentença em crise, e demais jurisprudência nele referida. Assim, e como expresso na fundamentação deste Ac. TRL:
“Da Portaria nº 1556/2007, de 10 de Dezembro, – Regulamento do Controle Metrológico dos Alcoolímetros – actualmente em vigor (que revogou a Portaria nº 748/94, de 3 de Outubro) – retira-se que os erros máximos admissíveis são considerados aquando da aprovação de modelo/primeira verificação e na verificação periódica e não aquando de actos de fiscalização – neste sentido cfr. Ac. Rel. Porto, de 2008-05-28 (Rec. n° 08/41722, rel. Maria Elisa Marques, Ac. Rel. Évora, de 2008-06-23 (Rec. n° 1213/08-1, rel. Ribeiro Cardoso, ambos in www.dgsi.pt. E ainda, Ac. Rel. Porto, de 2008-07-02 (Rec. n° 0813031, rel. Joaquim Gomes) (…); Ac. Rel. Coimbra de 2008-11-11 (Rec. n° 62/08.2GBPNH.C1, rel. Vasques Osório) (…); Ac. rel. Évora, de 2008-12-16 (Rec. n° 2220/08-1, rel. João Gomes de Sousa) (…), todos disponíveis in www.dgsi.pt.
(…) o Instituto Português da Qualidade (IPQ) é o organismo nacional responsável pelas actividades de normalização, certificação e metrologia, bem como pela unidade de doutrina e acção do Sistema Nacional de Gestão da Qualidade, instituído pelo Decreto-Lei n.º 165/83, de 27 de Abril, sendo as regras gerais do controlo metrológico estabelecidas pelo Dec.-Lei n.º 291/90, de 20/Set., que foi regulamentado pela Portaria n.º 962/90, de 09/Outubro, resultando destes diplomas ser o IPQ que, a nível nacional, garante a observância dos princípios e das regras que disciplinam a normalização, a certificação e a metrologia, incluindo os aparelhos para exame de pesquisa de álcool nos condutores de veículos.
Ora na vigência do art. 165.º, introduzido pelo Dec.-Lei n.º 2/98, tal matéria foi regulada pelo Decreto Regulamentar n.º 24/98, de 30/Out. e posteriormente pela Portaria n.º 1006/98, de 30/Novembro.
E, em nenhum destes diplomas foi fixada qualquer margem de erro a atender nos resultados obtidos pelos analisadores quantitativos de avaliação do teor de álcool no sangue.
Assim, não prevendo a lei qualquer margem de erro, para os resultados obtidos pelos analisadores quantitativos de avaliação do teor de álcool no sangue, em que são usados aparelhos certificados e não existindo quaisquer elementos de prova que suscitem dúvidas sobre a fiabilidade de aparelho concreto usado no exame, deve considerar-se assente o resultado obtido, sem dedução de qualquer margem de erro, pelo que os valores a ter em conta para efeito de determinação e quantificação da taxa de álcool no sangue são os constantes do talão emitido pelo alcoolímetro.
Qualquer dúvida surgida na medição efectuada por aqueles aparelhos apenas pode ser superada pelas vias previstas no artº 153º, nº 3, do Cód. da Estrada, ou seja, deve ser realizada contraprova com novo exame, a efectuar através de aparelho aprovado ou através de análise de sangue.
O Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n.° 18/2007 de 17/5, no seu artigo 1º indica os meios através dos quais se efectua a detecção e quantificação da taxa de álcool, em concreto, analisadores qualitativos e quantitativos e análise de sangue, servindo os primeiros para despiste da presença de álcool no sangue, os segundos para, na eventualidade de ela ser detectada, proceder à sua quantificação, e a última para os casos em que seja requerida como contraprova”.
([18]) Preceito com o seguinte teor: “Os erros máximos admissíveis - EMA, variáveis em função do teor de álcool no ar expirado - TAE, são o constante do quadro que figura no quadro anexo ao presente diploma e que dele faz parte integrante”.
([19]) Segundo o qual é “proibido conduzir sob influência de álcool” (n.º 1), considerando-se “sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico” (n.º 2).
([20]) Vide, inter alia, o Ac. STJ de 27/10/2016, Proc. 2855/12.7TJVNF.G1.S1 (Cons. Alexandre Reis), em www.dgsi.pt.
([21]) Assim o Ac. STJ de 23/02/2016, Proc. 74/12.1SRLSB.L1.S1 (Cons. João Silva Miguel), em www.dgsi.pt. (com itálico aditado), e demais jurisprudência por este citada.
([22]) Publicado em D. R., I Série-A, n.º 164, de 18/07/2002.
([23]) Proc. 525/04.9TBSTR.S1 (Cons. Pires da Rosa), em www.dgsi.pt.
([24]) Proc. 1278/11.0T2AVR.C1 (Rel. Artur Dias), em www.dgsi.pt.
([25]) Neste sentido, cfr. o Ac. STJ de 09/10/2014, Proc. 582/11.1TBSTB.E1.S1 (Cons. Fernando Bento), em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «(…) III - Para além da culpa, o direito de regresso exige também que o condutor “culpado” conduzisse com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida. IV - A actuação daquele é passível de um juízo de dupla ilicitude manifestada na violação de direitos subjectivos alheios (responsabilidade civil propriamente dita) e na condução com TAS superior à legalmente permitida que fundamenta também uma dupla censura ético-jurídica. V - Não é exigível o nexo de causalidade entre a alcoolemia e os danos: à seguradora basta alegar e demonstrar a taxa de alcoolemia do condutor na altura do acidente, sendo irrelevante a relação de causa e efeito entre essa alcoolemia e o acidente, ou seja, os factos em que se materializa a influência do álcool na condução e que eram relevantes na vigência do DL nº 522/85, de 31-12, na interpretação do AUJ nº 6/2002. VI - A “desconsideração” do nexo de causalidade no art. 27º do DL nº 291/2007 deve ser compreendida perspectivando o direito de regresso da seguradora como de natureza contratual e não extra-contratual; quer dizer, a previsão legal do direito de regresso integra o chamado estatuto legal imperativo do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. VII - O risco assumido pela seguradora em tal contrato não cobre, nem poderia cobrir, os perigos acrescidos que a condução sob a influência do álcool envolve, porque, sendo proibida a condução com TAS igual ou superior a certo limite e sendo mesmo sancionada penalmente tal conduta quando atingir um limite superior (arts. 81.º, n.ºs 1 e 2, do CEst e 292.º do CP), tal assunção de risco pela seguradora seria nulo, por contrariar normas legais imperativas (art. 280.º, n.º 1, do CC). VIII - Aquela condução (com TAS superior à legalmente permitida) funcionará, assim, como uma condição ou pressuposto do direito de regresso (independentemente da sua relação causal com o acidente) e não da responsabilidade civil; logo, a seguradora não tem que demonstrar que foi por causa da alcoolemia e da influência da mesma nas respectivas capacidades psico-motoras que o condutor praticou este ou aquele erro na condução e, com isso, deu causa ao acidente, bastando-lhe demonstrar que, nesse momento, ele acusava uma concentração de álcool no sangue superior à permitida por lei». Ainda no mesmo sentido, entre outros, os Acs. STJ, de 28/11/2013, Proc. 995/10.6TVPRT.P1.S1 (Cons. Silva Gonçalves), TRC, de 08/05/2012, Proc. 665/10.5TBVNO.C1 (Rel. Artur Dias), TRC, de 15/09/2015, Proc. 744/14.0TBVIS.C1 (Rel. Catarina Gonçalves), TRC, de 01/07/2014, Proc. 139/12.0T2ALB.C1 (Rel. Falcão de Magalhães), TRL, de 04/02/2016, Proc. 2559/13.3TBMTJ.L1-8 (Rel. Ilídio Sacarrão Martins), TRL, de 25/11/2014, Proc. 6724/11.0TBCSC.L1 (Rel. Manuel Marques), TRL, de 22/10/2015, Proc. 6364/12.6TCLRS.L1-2 (Rel. Maria José Mouro), e TRL, de 11/11/2014, Proc. 154/12.3TBVPV.L1-1 (Rel. Maria do Rosário Barbosa), todos em www.dgsi.pt. Em sentido contrário, cfr. os Acs. STJ de 06/07/2011, Proc. 129/08.7TBPTL.G1.S1 (Cons. João Bernardo), e TRL de 17/05/2012, Proc. 897/10.6TBBNV-A.L1-6 (Rel. Aguiar Pereira), ambos em www.dgsi.pt.
([26]) O argumento em contrário que a sentença dos autos pretende extrair do disposto no art.º 144.º, n.º 2, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pela Lei n.º 72/2008, não colhe, precisamente por resultar ressalvado, nesse regime geral, o disposto em legislação especial, como o é o regime legal do contrato de seguro obrigatório automóvel. 
([27]) Correspondente ao somatório dos apurados montantes parcelares prestados aos lesados de € 45.000,00, € 10.944,98 e € 1.180,00 (assim perfazendo € 57.124,98).