Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
13/14.5T8SCD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: AUTO DE NOTÍCIA
PROCESSO DE CONTRAORDENAÇÃO
NOTIFICAÇÃO
Data do Acordão: 03/18/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 132.º E 175.º DO CE; ARTS. 41.º E 75.º DO RGCOC
Sumário: I - O C. da Estrada contém específica regulamentação, estabelecendo os requisitos do auto de notícia pela prática de contra-ordenação rodoviária e as formalidades da respectiva notificação, nada havendo a integrar, por recurso ao disposto no art. 132.º do mesmo código e ao art. 41.º do RGCOC.

II - Com a entrega do triplicado do auto, frente e verso, tornou-se perfeita a notificação à arguida, já que a lei não exige que o agente de autoridade autuante explique, verbalmente, ao infractor os termos escritos da notificação [cujo sentido é igualmente entendível, pelo cidadão médio].

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO

            Por decisão delegada de 12 de Junho de 2013 do Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, a arguida A..., com os demais sinais nos autos, foi condenada, pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelo art. 84º, nºs 1 e 4 e 138º e 145º, n), todos do C. da Estrada, na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de sessenta dias, suspensa na respectiva execução pelo período de trezentos e sessenta e cinco dias, condicionada à frequência, durante o período de suspensão, de uma acção de formação no módulo outras infracções.

Inconformada com o decidido, a arguida interpôs recurso de impugnação judicial que, por sentença de 10 de Outubro de 2014, foi julgada improcedente a impugnação e confirmada a decisão administrativa nos seus precisos termos.


*

            Novamente inconformada com a decisão, recorre a arguida, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            1.ª A sentença de fls., debalde douta, deve ser revogada.

                2.ª Com efeito, subsiste nos autos um vício que inquina todo o processado, i.e. a deficiente fundamentação da decisão administrativa recorrida.

                3.ª Vício gerador de nulidade processual, que deve determinar a absolvição da Recorrente, com todas as legais consequências.

                4.ª o Tribunal "a quo" deu como provado que – cfr. ponto III ("Fundamentação de facto), al. A – "A arguida, no dia 2012.09.20, pelas 15h45m, no local arruamento a sul da vila de Carregal do Sal, conduzindo o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula (...) CE, fazia uso indevido de telemóvel durante a marcha do veículo, mantendo para o efeito a mão esquerda ocupada".

5.ª A verdade é que não estamos perante um segmento de factualidade pura, não tendo sido concretizada a adjectivação "uso indevido" e, muito menos especificado o que pretendia dizer com "mantendo para o efeito a mão esquerda ocupada".

6.ª De acordo com a decisão administrativa recorrida, o "condutor fazia uso indevido do telemóvel durante o exercício da condução", contudo não concretiza e, muito menos especifica qual o perigo.

7.ª O n.º 1 d o artigo 84.º do CE estipula que "É proibido ao condutor utilizar durante a marcha do veículo, qualquer tipo de equipamento ou aparelho susceptível de prejudicar a condução, nomeadamente, auscultadores sonoros e aparelhos radiotelefónicos".

8.ª O n.º 2, por seu turno, na alínea a), estipula que "Exceptuam-se do número anterior os aparelhos dotados de um auricular ou de microfone com sistema de alta voz, cuja utilização não implique manuseamento continuado".

9.ª Como é sabido, a decisão administrativa proferida no quadro de um procedimento contra-ordenacional deve ser devidamente fundamentada, mediante a enunciação concreta, ainda que sucinta, de factos susceptíveis de integrar os normativos (alegadamente) violados.

9.ª Fundamentar implica, por isso, alegar razões de facto e fundamentos de direito.

10.ª Tudo conforme o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 433/83, de 27.10.

12.ª Ora, ao invocar-se que o condutor fez um "uso indevido" de telemóvel durante o exercício da condução, salvo o devido respeito, faz-se uso de um "conceito indeterminado".

13.ª Com efeito, uso indevido, mau uso, uso irregular, são conceitos que necessitam de ser adequadamente preenchidos.

14.ª Nomeadamente, perante a expressão patente no n.º 2 do artigo 84.º, e a convicção segura de que a generalidade dos equipamentos móveis modernos vêm equipados com sistema de alta voz.

15.ª A lei quando estatui a proibição de uso de telefones móveis no acto de condução – com ressalva do n.º 2 do artigo 84.º, note-se – exige ao agente autuante que densifique essa proibição, caracterizando adequadamente a actuação do (alegado) infractor.

16.ª Com efeito, a lei não proíbe todo e qualquer uso de um telefone no acto de condução, mas apenas o uso que possa prejudicar a condução.

17.ª O que, está bom de ver, não é a mesma coisa!

18.ª Dizer que se fazia um "uso indevido" do telemóvel é o mesmo que não dizer nada.

19.ª Que uso concreto era esse?

20.ª Donde, a decisão administrativa recorrida padece de um vício de fundamentação, gerador de nulidade, face ao conteúdo das disposições conjugadas dos artigos 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10, e 379.º, n.º 1, al. a) do CPP.

21.ª Nulidade que persiste, que inquina todo o processado, e que por isso se invoca.

22.ª E da qual o Tribunal "a quo" deveria ter conhecido, daí extraindo todas as ilações e consequências.

23.ª O que não fez.

24.ª E a verdade é que não se compreende o entendimento professado pelo Tribunal recorrido.

25.ª Com efeito, o Tribunal adopta um entendimento "contra reo", porquanto reconhece, por um lado, que a expressão "uso indevido" não corresponde a um facto (motivo pelo qual não se pode considerar a decisão "devidamente fundamentada").

26.ª Mas, por outro, opta por considerar tal expressão "subsumível" a uma realidade de facto apreensível, de forma a que tal "imputação" caiba no n.º 1 do artigo 84.º do Código da Estrada.

27.ª O que, salvo o devido respeito, não se afigura coerente com o dever de promoção e protecção da legalidade, que é assacado aos Tribunais.

28.ª Tanto mais que, ao contrário do que entende o Tribunal recorrido, não era de todo difícil "traduzir em facto puro e simples, destituído de juízo de valor ou conclusão, o preenchimento do tipo legal de infracção contra-ordenacional em causa".

29.ª Múltiplas hipóteses se afiguravam possíveis, aliás, na linha do acima exposto.

30.ª Bastava que se fizesse constar que o condutor "manuseava o telemóvel".

31.ª Ou, por exemplo, que o condutor, nas circunstâncias de tempo e lugar referidas no auto, "falava ao telemóvel enquanto conduzia".

32.ª Com efeito, é sabido que as entidades autuantes têm o – mau … – hábito de transporem para os autos de notícia o texto integral dos tipos de ilícito.

33.ª Deixando pouca margem para factos concretos.

34.ª O que é tanto mais significativo quando o tipo legal de contra-ordenação não assenta numa actuação objectiva e directamente apreensível, mas em conceitos indeterminados.

35.ª Como é o caso.

36.ª Assim, dizer-se "uso indevido" é, reitera-se, o mesmo que nada dizer.

37.ª Donde, o auto de fls. e a decisão administrativa que se lhe seguiu não assenta em factos.

38.ª E, alegar que a Recorrente mantém a mão esquerda ocupada é o mesmo que referir que também o poderia ser a direita e, que ambas estavam ocupadas no guiador.

39.º Pelo que a decisão é nula, por vício de fundamentação, o que uma vez mais se invoca. Termos em que deve dar-se provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida, tudo com as legais consequências e em conformidade com as conclusões.

DO DIREITO

O processo de contra-ordenação no seu início é meramente administrativo e que só se torna judicial se o arguido pretender impugnar a decisão proferida na fase administrativa.

Na fase administrativa do processo, nem o auto de notícia, nem a posterior notificação para apresentação da defesa, no domínio da fase administrativa do processo de contra-ordenação equivalem à acusação em processo crime.

É a apresentação pelo M.P. ao juiz dos autos provenientes da autoridade administrativa que equivale à acusação. É este o momento em que a autoridade judiciária adquire a notícia do crime.

Ora, tendo o recorrente impugnado a Decisão e esta sido apresentado a juízo, perdeu estao cariz meramente administrativo, passando a ser este judicial.

Refere o Tribunal Recorrido que a aplicação das normas de direito penal a este tipo de processo só faz sentido nos casos omissos e ainda, que a notificação que a Recorrente recebeu da ANSR, apenas tem que obedecer aos requisitos do disposto no Art.170.º n.º 1 do C. Estrada.

 Assim, concluiu o Tribunal Recorrido e mal, que a notificação recebida pela Recorrente, não está ferida de nulidade. Contudo e como se constata, passou esta a ter o cariz judicial – quando presente em juízo – e, assim sendo, a falta de indicação dos pressupostos de que depende a aplicação ao Arguido (Recorrente) de pena ou medida de segurança, dos factos incriminadores pelos quais este foi acusado, equivalente à sua não acusação ou à Nulidade desta, o que se Requer e não se prescinde.

Acórdão do tribunal da Relação do Porto de 21 de Novembro de 2007, no âmbito do processo nr.D744369, Relator: Jorge Jacob

"A nulidade decorrente da inobservância do comando do art. 50º do DL nº 433/82 fica sanada se, no recurso em que é arguida, o recorrente, além dessa arguição, sustenta que não cometeu a contra-ordenação, pugnado pela sua absolvição."

O que de facto ocorreu.

Por outro lado,

A decisão administrativa é nula por falta de especificação do facto imputado, ao não concretizar os factos em concreto em que assenta a condenação.

A decisão administrativa é ainda nula por falta de motivação, posto não indicar concretamente as provas obtidas, nem fazer tão pouco o exame crítico das provas que serviram para fundamentar a convicção do decisor (arts. 58.º- 1, al. b), 374.º - 2, 379.º, citados).

O reconhecimento da nulidade implicará a devolução do caso à autoridade administrativa para que repare o vício, não se sanando o mesmo com a emergência da decisão judicial.

A falta de documentação dos actos da audiência, supostamente autorizada pela lei (art. 66.º, DL 433/82), assim como a proibição de recurso na matéria de facto (art. 75.º), afrontam os princípios constitucionais do processo equitativo e do direito de defesa do arguido (arts. 20.º - 4, 32.º - l0, Const.), padecendo aquelas normas de inconstitucionalidade material.

A decisão judicial sofre de contradição insanável da fundamentação, como se diz na alegação, quanto às questões relacionadas com o "uso indevido"; mantendo para o efeito a mão esquerda ocupada" e outros, além de ser insuficiente para a decisão a matéria apurada, já que se ignora que a própria lei admite a utilização daquilo que proíbe.

Termos em que e, com o sempre Douto suprimento de V. Exas., deverá ser dado Provimento ao recurso e, consequentemente seja revogada a decisão recorrida, determinando-se a final o Arquivamento dos Autos por falta de prova em concreto.

Só assim se fará a costumada e esperada Justiça!


*

            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

             1. Concluindo, dir-se-á, pois, que se nos afigura que o recurso ora interposto pela Recorrente não merece provimento e, em consequência, dever-se-á manter integralmente a douta decisão recorrida.

2. Não assiste razão à Recorrente na alegação de que o auto de notícia não está suficientemente fundamentado, violando o disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi o artigo 132.° do Código da Estrada e do artigo 41.° do Regime Geral das Contraordenações.

3. Resulta expressamente do n.º 1 do artigo 41.° do Regime Geral das Contraordenações, a aplicação subsidiária das normas do Código de Processo Penal ao processo contraordenacional só se justificará nos casos omissos, introduzindo-se as necessárias adaptações em função da diferente natureza das infrações e procedimentos em confronto.

4. Por assim ser, a notificação do arguido na fase administrativa do processo contraordenacional para exercer o direito de audição e defesa não tem que obedecer aos requisitos da acusação penal previstos no n.º 3 do artigo 283.° do Código de Processo Penal, mas sim ao determinado no artigo 50.° do Regime Geral das Contraordenações e no n.º 1 do artigo 170.° do Código da Estrada.

5. Analisando o auto de notícia que foi entregue à arguida, constante de fls. 3-A dos autos, assinado pelo agente autuante e pela ora Recorrente, facilmente se concluiu que este identifica de forma adequada e suficiente a contraordenação praticada e as sanções aplicáveis, não se encontrando, por isso, ferido de qualquer irregularidade, mormente do invocado vício de falta de fundamentação.

6. O auto de notícia cumpre as exigências impostas pela lei ao especificar que a Recorrente "fazia uso de aparelho radiotelefónico (telemóvel) durante o ato da condução utilizando para o efeito a sua mão esquerda" e permitir, com isso, facilmente, identificar a contraordenação praticada à generalidade das pessoas, mormente à Recorrente que, pela sua qualidade de condutora, é obrigado a conhecer as regras consagradas no Código da Estrada e, permitir-lhe, querendo, defender-se, como aliás o fez,

7, A alusão a expressões conclusivas na notificação não impede que se considere satisfeito o direito de defesa e audição previsto na lei, pelo que neste conspecto também não assiste razão à Recorrente.

8. Mas ainda que se verificasse nulidade por falta de concretização da conduta que constitui contraordenação no auto de notícia, esta sempre estaria sanada, uma vez que a ora Recorrente, no requerimento de impugnação judicial da decisão administrativa condenatória, não se limitou a arguir a dita nulidade, exercendo também o seu direito de defesa relativamente aos factos que lhe foram imputados, negando a sua prática e apresentando os respetivos meios de prova – cf. artigo 121.°, n. ° 1, alínea c), do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do artigo 41.°, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenaçães,

9, Também não concordamos com a alegação de que a decisão condenatória não está suficientemente fundamentada, violando o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 58.° do Regime Geral das Contraordenaçães.

10. A decisão constante de fls. 6 dos autos contempla todos os elementos objetivos e subjetivos que integram a prática do ilícito contraordenacional pelo qual a Recorrente foi condenada e identifica os meios de prova dos factos, não havendo assim razão para concluir que a decisão não descreveu os factos imputados e as provas obtidas, nos termos exigidos na alínea b) do n.º 1 do artigo 58.° do Regime Geral das Contraordenaçães.

11. Note-se que a expressão "fazia uso indevido de telemóvel durante a marcha do veículo, mantendo para o efeito a mão esquerda ocupada" é compreensível à generalidade das pessoas e mostra-se adequada a descrever a situação em apreço. Apesar da expressão "uso indevido" ser conclusiva, o que releva é que da decisão se extrai inequivocamente que, naquelas circunstâncias de tempo e lugar a ora Recorrente fazia uso do telemóvel com a mão esquerda durante o ato da condução.

12. Desta feita, ao contrário do alegado pela Recorrente, a nosso ver, não há, a este nível, falta de fundamentação,

13. A Recorrente alega que não foi informada pelo agente autuante que podia impugnar o facto e efetuar o pagamento em depósito, tendo apenas procedido à liquidação da coima por desconhecimento da lei,

14. A lei não impõe que o agente autuante transmita verbalmente ao arguido os seus direitos, nem sequer impõe que o arguido seja informado do direito de efetuar o pagamento em depósito, mas, conforme decorre do n.º 1 do artigo 175.° do Código da Estrada que seja informado (para além dos factos praticados, das normas infringidas, das sanções aplicáveis e do prazo para identificar o autor da infração) do prazo e do local para a apresentação da defesa e da possibilidade de pagamento voluntário da coima pelo valor mínimo.

15. Sucede no então que, conforme se constata da análise do auto de notícia, constante de fls. 3-A, no seu verso – que a ora Recorrente recebeu e assinou aquando da prática da infração – constam expressamente nos n.ºs 3 e 5 as faculdades de impugnação do facto e de pagamento em depósito.

16. Assim, tendo em conta que foi entregue à ora Recorrente o auto de contraordenação, contendo no verso todas as informações impostas pelo n.º 1 do artigo 175.° do Código da Estrada, no caso em apreço, não se verifica qualquer vício de procedimento.

17. Alega por fim a Recorrente que o veículo que conduzia tem instalado um equipamento de "bluetooth", a verdade é que, se por um lado, não foi junto aos autos qualquer documento comprovativo de tal facto, por outro lado, numa das testemunhas inquiridas pôde atestá-lo, designadamente a testemunha por si arrolada, B... , cujo depoimento aponta em sentido contrário ao alegado pela ora Recorrente, ao referir que esta costuma usar um auricular com fios para falar ao telemóvel quando conduz, o que não se justificaria se no veículo estivesse instalado um sistema de comunicação de alta voz.

18. Acresce que, ainda que por mera hipótese se admita que o referido veículo pudesse ter instalado um equipamento de "bluetooth" já que nunca se comprovou tal alegação, isso não significa (necessariamente) que naquela ocasião a Recorrente estivesse a utilizá-lo e que por isso não pudesse estar a conduzir utilizando apenas o telemóvel.

Termos em que o recurso interposto pela Recorrente não merece provimento e, em consequência, a decisão proferida deverá ser mantida.


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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, aderindo aos argumentos da contramotivação do Ministério Público, afirmando a irrecorribilidade da decisão quanto à matéria de facto fixada e a inexistência de qualquer inconstitucionalidade, e concluiu pelo não provimento do recurso.


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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal, tendo respondido a arguida, reafirmando parcialmente os fundamentos do recurso, a impossibilidade de valoração das declarações do agente autuante quanto a ter sido informada sobre o teor do verso do auto de notícia, e concluiu pela procedência do recurso.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, tendo em consideração a limitação dos poderes de cognição do tribunal de recurso no âmbito do direito de mera ordenação social, imposta pelo art. 75º, nº 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas [RGCOC], as questões a decidir, atentas as conclusões apresentadas pela recorrente, são:

- A insuficiência de fundamentação do auto de notícia e a nulidade da sua notificação;

- A nulidade da decisão administrativa por falta ou insuficiência de fundamentação;

- A nulidade da sentença recorrida por e por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e por contradição insanável da fundamentação;

- A inconstitucionalidade material dos arts. 66º e 75º do RGCOC.


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            Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Nela foram decididas as seguintes questões prévias:

            “ (…).

                2. Alega a arguida, em primeiro lugar, que o auto de notícia não está suficientemente fundamentado, violando o disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do artigo 132.º do Código da Estrada e do artigo 41.º do Regime Geral das Contraordenações.

Ora, o processo penal e a fase administrativa do processo contraordenacional são diferentes e estão sujeitos a regras distintas, porque as situações tuteladas são, também, distintas.

Discorda-se da equiparação que, no requerimento de impugnação judicial, a arguida faz entre a notificação para o exercício de defesa na fase administrativa do processo contraordenacional e uma acusação penal. Não se pode exigir que a notificação do arguido na fase administrativa do processo contraordenacional para exercer o direito de audição e defesa cumpra os requisitos de uma acusação criminal, designadamente no que concerne à identificação dos factos objetivos e subjetivos que integram a infração, sob pena de se desvirtuar aquele processo, em frontal oposição com as suas características próprias.

A aplicação subsidiária das normas do Código de Processo Penal ao processo contraordenacional só faz sentido para casos omissos e, ainda assim, não dispensa que se façam as necessárias adaptações, em função da diferente natureza das infrações e procedimentos em confronto – assim resulta expressamente do n.º 1 do artigo 41.º do Regime Geral das Contraordenações.

Ora, a notificação que a arguida entende estar ferida de nulidade não tem que obedecer aos requisitos da acusação penal previstos no n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal, mas sim ao disposto no artigo 50.º do Regime Geral das Contraordenações e no n.º 1 do artigo 170.º do Código da Estrada.

O artigo 50.º do Regime Geral das Contraordenações, com a epígrafe “direito de audição e defesa do arguido”, estipula que “não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contraordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre”.

O n.º 1 do artigo 170.º do Código da Estrada (na redação vigente à data – anterior à Lei n.º 72/2013, de 3 de Setembro), com a epígrafe “auto de notícia e de denúncia”, estipula que “quando qualquer autoridade ou agente de autoridade, no exercício das suas funções de fiscalização, presenciar contraordenação rodoviária, levanta ou manda levantar auto de notícia, que deve mencionar os factos que constituem a infração, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foi cometida, o nome e a qualidade da autoridade ou agente de autoridade que a presenciou, a identificação dos agentes da infração e, quando possível, de, pelo menos, uma testemunha que possa depor sobre os factos”.

Ora, o auto de notícia que foi entregue à arguida (cf. o documento de fls. 3A, assinado pelo agente autuante e pela arguida, na qualidade de condutora) identifica de forma adequada e suficiente a contraordenação praticada e as sanções aplicáveis. Especificamente no que toca aos factos que integram a contraordenação, o auto esclarece que a arguida “fazia uso de aparelho radiotelefónico (telemóvel) durante o ato da condução utilizando para o efeito a sua mão esquerda”.

Essa descrição é suficiente para cumprir as exigências impostas pela lei ao teor da notificação, quanto aos elementos objetivos do tipo, e para proporcionar à arguida o exercício do contraditório relativamente aos factos que lhe foram imputados – sendo certo que a mera existência de expressões conclusivas na notificação não impede que se considere satisfeito o direito de defesa e audição previsto na lei (cf. o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no processo n.º 4751/2007-5, em 19.06.2007, disponível para consulta no sítio de internet www.dgsi.pt).

No caso concreto, ao contrário do que alega a arguida, foi concretizada na notificação a conduta que constitui contraordenação. Na notificação feita foi vertida suficiente matéria “acusatória” para que a arguida se pudesse defender – como aliás o fez, de forma clara e pormenorizada (impugnando que tenha praticado o facto que lhe é imputado), a fls. 13 e segs., não tendo fundamento para esgrimir um argumento formal, como se não percebesse aquilo que é óbvio que percebeu.

Mas ainda que houvesse nulidade por falta de concretização da conduta que constitui contraordenação no auto de notícia, a nulidade em questão sempre estaria sanada, pois a arguida, no requerimento de impugnação judicial da decisão administrativa condenatória, não se limitou a arguir a dita nulidade, aproveitando também para exercer o seu direito de defesa (dele se prevalecendo) relativamente aos factos que lhe foram imputados, negando que os tenha praticado e apresentando os respetivos meios de prova – cf. o artigo 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do artigo 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, bem como o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo n.º 02P467, em 28.11.2002, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no processo n.º 0644393, em 10.01.2007, e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no processo n.º 574/06.2TTLRA.C1, em 21.02.2008 (todos disponíveis para consulta no sítio de internet www.dgsi.pt).

3. Alega a arguida, em segundo lugar, que a decisão condenatória não está suficientemente fundamentada, violando o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do Regime Geral das Contraordenações.

É certo que esse preceito legal obriga a que a decisão administrativa condenatória contenha “a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas”. Todavia, no caso dos autos, a ANSR cumpriu esse preceito legal, identificando os factos que integram os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito contraordenacional. Efetivamente, a decisão de

fls. 6 refere o seguinte:

                a) “(…) a arguida (…) no dia 2012.09.20, pelas 15.45, no local arruamento a sul da vila de Carregal do Sal, comarca de Santa Comba Dão, conduzindo o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula (...) CE praticou a seguinte infração: (…) fazia uso indevido de telemóvel durante a marcha do veículo, mantendo para o efeito a mão esquerda ocupada”;

b) “(…) a arguida não procedeu com o cuidado a que estava obrigada”;

c) “o auto de contraordenação faz fé em processo de contraordenação, até prova em contrário, quanto aos factos presenciados pela entidade autuante, quando levantado nos termos dos n.º 1 e 2 do artigo 70.º do Código da Estrada (…). No caso em apreço verifica-se que os pressupostos daquela disposição legal foram observados. Face aos elementos existentes no processo consideram-se provados os factos constantes do auto de contraordenação”.

A descrição factual das alíneas a) e b) contempla todos os elementos objetivos e subjetivos que integram a prática do ilícito contraordenacional pelo qual a arguida foi condenada, assim como a referência da alínea c) identifica os meios de prova dos factos. Assim, não há fundamento para concluir que a decisão não descreveu os factos imputados e as provas obtidas, conforme exige a alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do Regime Geral das Contraordenações.

Especificamente quanto à conduta imputada à arguida, a expressão “fazia uso indevido de telemóvel durante a marcha do veículo, mantendo para o efeito a mão esquerda ocupada” é compreensível pela generalidade dos cidadãos e adequada a descrever a situação visada, não obstante a expressão “uso indevido” ser conclusiva. O que releva é que da decisão se retira inequivocamente que à arguida é imputado o uso do telemóvel com a mão esquerda durante o ato da condução. Não há, pois, falta de fundamentação neste ponto.

4. A arguida alega que não foi informada pelo agente autuante que podia impugnar o facto e efetuar o pagamento em depósito, tendo apenas procedido à liquidação da coima por desconhecimento da lei.

Ora, no verso do auto de notícia de fls. 3-A, que a arguida recebeu e assinou aquando da prática da infração, constam expressamente (nos n.ºs 3 e 5) as faculdades de impugnação do facto e de pagamento em depósito.

Acresce que a lei não impõe que o agente autuante transmita verbalmente ao arguido os seus direitos.

Aliás, a lei nem sequer impõe que o arguido seja informado do direito de efetuar o pagamento em depósito, mas apenas e tão só do prazo e do local para a apresentação da defesa e da possibilidade de pagamento voluntário da coima pelo mínimo (para além dos factos praticados, das normas infringidas, das sanções aplicáveis e do prazo para identificar o autor da

infração) – cf. o n.º 1 do artigo 175.º do Código da Estrada.

Tendo em conta que foi entregue à arguida o auto de contraordenação, contendo no verso todas as informações impostas pelo n.º 1 do artigo 175.º do Código da Estrada, não há qualquer vício de procedimento a assinalar.

5. Em face do acima exposto, improcedem os vícios processuais alegados pela arguida.

            (…)”.

            B) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “ (…).

            1. A arguida, no dia 2012.09.20, pelas 15.45 horas, no local arruamento a sul da vila de Carregal do Sal, conduzindo o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula (...) CE, fazia uso indevido de telemóvel durante a marcha do veículo, mantendo para o efeito a mão esquerda ocupada.

2. A arguida não procedeu com o cuidado a que estava obrigada.

3. A arguida praticou em 25.01.2011 uma contra contraordenação grave (violação do limite máximo de velocidade fora das localidades), que foi sancionada com coima e com sançãoacessória de inibição de conduzir durante 30 dias, suspensa na execução por 180 dias.

            (…)”.

C) Nela foram considerados não provados os seguintes factos:

“ (…).

4. O veículo conduzido pela arguida dispõe de um sistema de comunicação “Bluetooth” (alta voz), que torna desnecessária a utilização do telemóvel.

            (…)”.


*

Da insuficiência de fundamentação do auto de notícia e da nulidade da sua notificação

1. Alega a arguida que, passando o processo a ter natureza judicial a partir da sua entrada em juízo, o auto de notícia viola o art. 283º, nº 3, b) do C. Processo Penal [aplicável, ex vi, arts. 132º do C. da Estrada e 41º do RGCOC] equivalendo a falta de indicação dos pressupostos de que depende a aplicação de pena ou de medida de segurança, dos factos incriminadores pelos quais foi acusada, na notificação por si recebida da ANSR, à sua não acusação ou à nulidade desta.

Embora não isenta, ressalvado sempre o devido respeito, de equívocos [poder-se-ia entender que coloca em causa a validade da notificação da decisão administrativa que lhe aplicou a sanção acessória de inibição de conduzir], a referência feita na alegação deduzida ao que na sentença recorrida se expôs quanto a tal notificação dever obedecer ao disposto no art. 170º, nº 1 do C. da Estrada, levam-nos a concluir que a arguida questiona a validade da notificação feita pelo agente de autoridade que a autuou nos termos do art. 175º do mesmo código. 

Convém desde já esclarecer que, se é verdade que o processo de contra-ordenação comporta a fase administrativa [regulada nos arts. 33º a 58º do RGCOC] e pode comportar uma fase judicial [regulada nos arts. 59º a 82º do RGCOC], nos termos do disposto no art. 62º, nº 1 do RGCOC, o que no processo vale como acusação é a apresentação dos autos ao juiz pelo Ministério Público, e não qualquer notificação feita pela autoridade administrativa.

Por isso, não só a notificação em questão não tem que obedecer aos requisitos da acusação pública deduzida em processo criminal na fase de inquérito, previstos na citada alínea b) do nº 3 do art. 283º do C. Processo Penal, como no processo por contra-ordenação, entrado na fase judicial, não existe uma verdadeira e própria acusação, mas um seu ‘equivalente’, constituído pelos autos apresentados.

Acresce que, contrariamente ao que parece ser o entendimento da arguida, o C. da Estrada contém específica regulamentação, estabelecendo os requisitos do auto de notícia pela prática de contra-ordenação rodoviária e as formalidades da respectiva notificação, nada havendo, portanto, a integra, por recurso ao disposto no art. 132º do mesmo código e ao art. 41º do RGCOC.

Posto isto.

2. Nos termos do disposto no art. 170º, nº 1 do C. da Estrada [redacção do Dec. Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro, em vigor na data da prática dos factos], o auto de notícia relativo ao cometimento de contra-ordenação rodoviária presenciado por qualquer autoridade ou agente de autoridade, no exercício das suas funções de fiscalização, deve mencionar:

- Os factos que constituem a infracção;

- O dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foi cometida;

- O nome e a qualidade da autoridade ou agente de autoridade que a presenciou;

- A identificação do autor da infracção;

- A identificação, quando possível, de pelo menos uma testemunha presencial dos factos.

O auto de contra-ordenação de fls. 3 observa todos estes requisitos, excepção feita ao último. Com efeito, dele consta, para além da identidade do agente autuante, militar da GNR, e da identidade da arguida [identificada pela carta de condução e pelo documento de identificação], que esta, no dia 20 de Setembro de 2012, pelas 15h45m, no arruamento a sul de vila, em Carregal do Sal, conduzia o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula (...) CE, fazendo uso de aparelho radiotelefónico – telemóvel – durante o acto da condução, utilizando para o efeito a sua mão esquerda, conduta que infringiu o art. 84º, nº 1, do C. da Estrada, sendo punível pelos arts. 84º, nº 4 e 147º, do mesmo código.

Entende a arguida que a descrição dos factos integradores da infracção não se encontra suficientemente especificada no segmento relativo à ‘utilização do aparelho’, tanto mais que o tribunal a quo considerou conclusiva a expressão «uso indevido» e na contra-ordenação apenas se pune o uso continuado, existindo uma grande distância entre a previsão normativa e os factos que conduziram à sua condenação.

Como supra se deixou referido, o que no auto de notícia se imputa à arguida é, brevitatis causa, a condução de veículo automóvel na via pública em cujo exercício «fazia uso de aparelho rádio telefónico (telemóvel) durante o acto da condução utilizando para o efeito a sua mão esquerda.». Significando «uso» o acto ou efeito de usar, o emprego frequente de alguma coisa para a satisfação de necessidades humanas (cfr. Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 2014, pág. 1616), e sendo para todos evidente que um aparelho rádio telefónico, v.g., um telemóvel, se destina a transmitir a voz ou o som à distância ou a permitir o acesso a informação disponível na net, através de comunicação estabelecida com outros aparelhos, sem recurso a ligação física a rede de telecomunicações, para o homem médio, para o bonuspaterfamíliae, a descrição dos factos contida no auto de notícia só pode significar que a arguida conduzia o veículo automóvel ao mesmo tempo que, com a sua mão esquerda, utilizava, para um daqueles fins, o telemóvel.

Está pois claramente descrita no auto a conduta imputada à arguida. Se esta conduta é, por si só, típica ou seja, bastante para preencher a previsão da norma indicada, a do art. 84º, nº 1 do C. da Estrada, é já questão distinta, que nada tem a ver com a insuficiência apontada.

3. Determina o art. 175º, nº 1 do C. da Estrada que, após o levantamento do auto, o arguido deve ser notificado, a) dos factos constitutivos da infracção, b) da legislação infringida e da que sanciona os factos, c) das sanções aplicáveis, d) do prazo concedido e do local para a apresentação da defesa, e) da possibilidade de pagamento voluntário da coima pelo mínimo, do prazo, do modo de o efectuar e das consequências do não pagamento e, f) do prazo para a identificação do autor da infracção [nos termos e para os efeitos previstos no art. 171º, nºs 3 e 5]. Nos termos do nº 2 do art. 175º, o arguido, no prazo de quinze dias úteis a contar da notificação, pode apresentar a sua defesa por escrito, arrolar testemunhas até ao limite de três, indicar outros meios de prova, ou proceder ao pagamento voluntário da coima. E nos termos do nº 3 do mesmo artigo, o arguido, também no prazo de quinze dias úteis a contar da notificação, pode ainda requerer a atenuação especial ou a suspensão da execução da sanção acessória.   

Finalmente, resulta do disposto no art. 176º, nº 1, a), 2 e 9, do C. da Estrada, que a notificação é efectuada por contacto pessoal no acto de autuação, sendo feita na pessoa do condutor quando a infracção for da responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo.

Resulta da assinatura aposta no auto de contra-ordenação de fls. 3-A que o mesmo, frente e verso, foi notificado à arguida no acto da autuação. Do verso do mencionado auto, que tem por título, «Termos da Notificação», constam todos os elementos referidos no art. 175º, nºs 1, 2 e 3 do C. da Estrada.

Assim, com a entrega do triplicado do auto, frente e verso, tornou-se perfeita a notificação à arguida, já que a lei não exige que o agente de autoridade autuante explique, verbalmente, ao infractor os termos escritos da notificação [cujo sentido é igualmente entendível, pelo cidadão médio]. Por isso, mal se compreende a alegação de que «após assinado o Auto nada poderá já o Arguido fazer» quando é precisamente a partir de tal assinatura, comprovativa da notificação feita, que começa a contar o prazo para a defesa. Se a não deduziu na fase administrativa, sibi imputet.     

4. Em conclusão, não padece a notificação do auto de notícia à arguida de qualquer nulidade ou irregularidade pelo que, tendo através dela sido assegurado o direito de a arguida se pronunciar sobre a contra-ordenação imputada e as sanções aplicáveis, se mostra observado o art. 50º do RGCOC. 


*

Da nulidade da decisão administrativa por falta ou insuficiência de fundamentação

5. Alega a arguida que a decisão administrativa deve, nos termos do art. 58º, nº 1, b) do RGCOC, ser devidamente fundamentada mediante a enunciação concreta, ainda que sucinta, de factos susceptíveis de preencherem os normativos violados, o que não sucedeu no caso, uma vez que nela a ANSR se limita a dizer que «o condutor fazia uso indevido do telemóvel durante o exercício da condução», sequer especificar o que pretendia dizer com «mantendo para o efeito a mão esquerda ocupada» e sem concretizar o perigo envolvido, quando o estatuído nos nºs 1 e 2 do art. 84º do C. da Estrada exige ao agente autuante a densificação da proibição, através da caracterização adequada da conduta do infractor, pelo que, é a decisão administrativa nula, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 41º do RGCOC e 379º, nº 1, a) do C. Processo Penal.

Vejamos.

Nos termos do art. 58º, nº 1 do RGCOC, a decisão administrativa que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter, a) a identificação dos arguidos, b) a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas, c) a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão, d) a coima e as sanções acessórias.

A decisão administrativa da ANSR, de fls. 6 e verso, que aplicou à arguida a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de sessenta dias, suspensa na respectiva execução pelo período de trezentos e sessenta e cinco dias, condicionada à frequência de acção de formação, contém a identificação da arguida [pela carta de condução e documento de identificação], a descrição dos factos, o meio de prova que os evidencia [o auto de notícia, com o valor probatório previsto no nº 3 do art. 170º do C. da Estrada], as normas aplicáveis [arts. 84º, nº 1 e 4, 138º e 145º, n), todos do C. da Estrada] e a sanção acessória decretada.

Quanto aos factos descritos cumpre referir que se no que se pode considerar no ponto 1 da decisão administrativa [que constitui uma espécie de ‘Relatório’ da mesma] se diz que a arguida «vem acusada do seguinte: no dia 2012-09-20, pelas 15:45 no local Arruamento a Sul de Vila – Carregal do Sal – Comarca de Santa Comba Dão, conduzindo o veículo Automóvel Ligeiro de Passageiros, com matrícula (...) CE praticou a seguinte infracção: o condutor do veículo fazia uso indevido de telemóvel durante a marcha do veículo, mantendo para o efeito a mão esquerda ocupada.», já no seu ponto 5 se lê «Face aos elementos existentes no processo, consideram-se provados os factos constantes do auto de contra-ordenação.», e estes são, como se deixou dito no ponto 2. que antecede, que a arguida, no dia 20 de Setembro de 2012, pelas 15h45m, no arruamento a sul de vila, em Carregal do Sal, conduzia o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula (...) CE, fazendo uso de aparelho radiotelefónico – telemóvel – durante o acto da condução, utilizando para o efeito a sua mão esquerda.

Daqui resulta não ser exacto que na decisão administrativa se tenha considerado provado que a arguida fazia uso indevido de telemóvel durante a marcha do veículo mas antes e apenas, que fazia uso de aparelho radiotelefónico – telemóvel – durante o acto da condução. Por isso, é irrelevante, nesta sede, saber se o termo «indevido» é conclusivo ou não. Por outro lado, não se entende a objecção colocada pela arguida quanto à alegada falta de especificação do que se pretendeu dizer com «mantendo para o efeito a mão esquerda ocupada» pois, recorrendo de novo ao cidadão médio, ao bonuspaterfamíliae, no contexto em que a expressão foi escrita, só pode significar que a arguida mantinha a mão esquerda ocupada com o uso que então fazia do telemóvel.

6. Em suma, a decisão administrativa da ANSR que aplicou a sanção acessória à arguida contém todos os elementos exigidos pelo art. 58º, nº 1 do RGCOC e, especificamente, os mencionados na sua alínea b), pelo que não padece de nulidade ou irregularidade por falta de fundamentação.

Aliás – e como já a outro propósito se deixou dito [cfr. ponto 2. que antecede] – saber se os factos considerados provados na decisão administrativa da ANSR preenchem a previsão do art. 84º, nº 1 do C. da Estrada é questão que nada tem a ver com a insuficiência apontada.


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Da nulidade da sentença recorrida por e por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e por contradição insanável da fundamentação

7. Alega a arguida, repetindo parte da argumentação, que a decisão recorrida considerou provado que «A Recorrente fazia uso indevido de telemóvel durante a marcha do veículo, mantendo para o efeito a mão esquerda ocupada» e que «A Recorrente não procedeu com o cuidado a que estava obrigada.», sem que tenha especificado em que consistiu «o uso indevido do telemóvel durante a marcha do veículo», sem ter esclarecido o significado de «a mão esquerda ocupada» e sem identificar «que tipo de cuidado se impunha e que conduta negligente perpetrou», o que determina a existência de contradição insanável da fundamentação e a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Vejamos se lhe assiste ou não razão.

Na sentença recorrida, com relevo para a questão em apreço, foram considerados provados os seguintes factos:

- [1]A arguida, no dia 2012.09.20, pelas 15.45 horas, no local arruamento a sul da vila de Carregal do Sal, conduzindo o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula (...) CE, fazia uso indevido de telemóvel durante a marcha do veículo, mantendo para o efeito a mão esquerda ocupada;

- [2]A arguida não procedeu com o cuidado a que estava obrigada.

Como se vê, deu-se acolhimento aos factos descritos no segmento da decisão administrativa que considerámos equivalente ao ‘Relatório’ e não aos factos constantes do auto de notícia, sendo que estes foram os considerados provados naquela decisão, embora uns e outros descrevem a mesma realidade, apenas com ligeiras divergências de ‘estilo’.

Relativamente à alegada falta de concretização do que deve entender-se por «o uso indevido do telemóvel durante a marcha do veículo» começaremos por dizer que, como aliás afirma a arguida, na sentença recorrida, no ponto II.3, foi considerada conclusiva a expressão «uso indevido» mas, estranhamente, a expressão transitou, ipsis verbis, para os factos provados.

Em nosso entender, apenas a palavra «indevido» torna conclusiva a expressão, sendo no entanto patente que com ele se pretendeu dizer, atento o respectivo contexto, que o uso do aparelho era, naquelas circunstâncias – de condução de veículo automóvel – proibido. É portanto, a proibição da conduta que aqui se pretendeu afirmar.

Relativamente à alegada falta de concretização do que deve entender-se por «a mão esquerda ocupada» parece-nos evidente que, tendo o verbo manter, entre outros, o significado de conservar, preservar (cfr. Dicionário citado, pág. 1021), tendo inerente a ideia de permanência no tempo, considerando a globalidade da realidade descrita no ponto 2 dos factos provados, o que aí se diz é que a arguida, para usar o telemóvel, mantinha a mão esquerda ocupada com esse uso portanto, conservava o telemóvel na mão esquerda para levar a cabo a utilização que dele fazia.

Relativamente à falta de identificação do tipo de cuidado devido e da conduta negligente perpetrada, o que resulta do ponto 2. dos factos provados é que, ao actuar como actuou no ponto 1. dos mesmos factos, a arguida não procedeu com o cuidado a que estava obrigada. E o dever de cuidado omitido é, como facilmente se percebe, o de obedecer ao comando da norma estradal violada.

Posto isto.

8. Os vícios da decisão previstos no art. 410º, nº 2 do C. Processo Penal devem ser conhecidos mesmo nos casos em que os poderes de cognição do tribunal de recurso se restrinjam à matéria de direito.

Os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação do prova respeitam à estrutura interna da decisão e por isso a lei exige que a sua demonstração resulte do respectivo texto por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum (cfr. art. 410º, nº 2 do C. Processo Penal).

Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito ou seja, quando a conclusão [decisão de direito] ultrapassa as respectivas premissas [decisão de facto]. Dizendo de outra forma, ocorreo vício quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direitoadoptada porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria de facto contida no objecto do processo relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 6ª Edição, pág. 69).

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão traduz-se, basicamente, numa oposição na matéria de facto provada [v.g., dão-se como provados dois ou mais que dois factos que estão entre si, em oposição], numa oposição entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada [v.g., dá-se como provado e como não provado o mesmo facto], numa incoerência da fundamentação probatória da matéria de facto [v.g., quando se dá como provado um determinado facto e da motivação da convicção resulta, face à valoração probatória e ao raciocínio dedutivo exposto, que seria outra a decisão de facto correcta], ou quando existe oposição entre a fundamentação e a decisão [v.g., quando a fundamentação de facto e de direito apontam para uma determinada decisão final, e no dispositivo da sentença consta decisão de sentido inverso]. 

9. Começando pelo primeiro vício apontado, decorre da alegação da arguida, e nisto reside o ponto essencial do recurso, cremos, que a matéria de facto provada que consta da sentença recorrida é insuficiente para o preenchimento da contra-ordenação por cuja prática foi sancionada. E é insuficiente porque, para além das objecções levantadas quanto ao sentido das expressões «uso indevido», «mão esquerda ocupada» e «não procedeu com o cuidado a que estava obrigada», porque, estando hoje a generalidade dos equipamentos móveis modernos equipados com sistema de alta voz e estando a viatura em questão equipada com bluetooth, face ao teor da alínea a) do nº 2 do art. 84º do C. da Estrada, não se pode concluir que o uso do telemóvel prejudicou a condução e por isso, era, em concreto, proibido.

Como se viu, face aos factos provados que supra se deixaram referidos, a arguida foi condenada pela prática da contra-ordenação prevista no art. 84º, nº 1 do C. da Estrada. Dispõe esta norma:

1 – É proibido ao condutor utilizar, durante a marcha do veículo, qualquer tipo de equipamento ou aparelho susceptível de prejudicar a condução, nomeadamente auscultadores sonoros e aparelhos radiotelefónicos.  

Por sua vez, estabelece a alínea a) do nº 2 do mesmo artigo:

Exceptuam-se do número anterior:

a) Os aparelhos dotados de um auricular ou de microfone com sistema de alta voz, cuja utilização não implique manuseamento continuado;(…).

A regra é, na parte em que agora releva, a de ser proibida a condução de veículo utilizando o condutor aparelhos radiofónicos. Isto porque, sendo inquestionável que a condução de veículos é, por si só, uma actividade perigosa, considera a lei aquela utilização como causadora de um aumento do perigo inerente a esta actividade.   

A excepção é a de que é permitida a condução de veículo utilizando o condutor aparelho radiofónico dotado de um auricular ou de microfone de alta voz, cuja utilização não implique manuseamento continuado.

Significando a palavra manuseamento, o acto ou efeito de manusear, significando manusear, mexer com a mão, manejar (cfr. Dicionário citado, pág. 1021) e significando continuado, ininterrupto, continuo (cfr. Dicionário citado, pág. 414), fácil é perceber o sentido da excepção. Desde que a utilização do aparelho dotado de auricular ou de sistema de alta voz não exija o uso contínuo da mão do condutor e portanto, desde que o condutor não a use continuadamente, entende-se não existir aquele risco acrescido, razão de ser da proibição. Daqui decorre que não basta que o aparelho usado pelo condutor esteja dotado de auricular ou de sistema de alta voz. Para que a sua utilização do aparelho no exercício da condução seja permitida é ainda necessária a utilização em concreto do acessório ou do sistema e portanto, que o condutor, em qualquer caso, não tenha qualquer das mãos ocupada de forma duradoura com o uso do aparelho ou por causa dele.

O que resulta da factualidade provada é que a arguida usava a mão esquerda para utilizar o telemóvel, mantendo-se dessa forma ocupada e não disponível para o acto de conduzir. Ora, se a arguida necessitava da mão esquerda para usar o telemóvel [para qualquer uma das funções que este permite, e não apenas, como se referiu já, a transmissão da voz ou do som à distância] é evidente que não usava auriculares nem tinha em funcionamento o sistema de alta voz do aparelho [admitindo-se, por hipótese de raciocínio, que o mesmo dele dispunha], sendo certo que tão pouco alegou que estivesse a usar aquele acessório ou este sistema. Pelo contrário, o que alegou, mas não resultou provado (cfr. ponto 4. dos factos não provados) é que o veículo por si conduzido estava dotado de sistema de comunicação bluetooth [o que, de todo o modo, não equivale à alegação de que, no acto da condução fiscalizado, tal sistema estivesse activo ou seja, conectado ao telemóvel usado pela arguida].  

Em conclusão, consideramos que os factos provados constantes da sentença em crise preenchem o tipo objectivo e subjectivo da contra-ordenação prevista no art. 84º, nº 1 do C. da Estrada, pela qual foi a arguida sancionada. E assim sendo, não padece a sentença do vício em análise.

10. No que respeita ao vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão não vemos que ocorra oposição entre os factos provados, que conste como provado e como não provado o mesmo facto, o meio de prova fundamentador da convicção do tribunal a quo conduz, necessariamente, aos factos considerados provados e estes, ao preencherem a previsão do art. 84º, nº 1 do C. da Estrada, determinam a condenação da arguida.

Em conclusão, não padece a sentença recorrida do vício em análise.

11. Como nela se não evidencia também o vício do erro notório na apreciação da prova, cujo conhecimento, como os demais, é oficioso (Acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro, DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1995). 


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            Da inconstitucionalidade material dos arts. 66º e 75º do RGCOC

            12. Finalmente, invoca a arguida a inconstitucionalidade material dos arts. 66º e 75º do RGCOC, por violarem os princípios do processo equitativo e do direito de defesa, previstos nos arts. 20º, nº 4 e 32º, nº 10, ambos da Constituição da República Portuguesa.

            Vejamos.

            O direito ao processo equitativo, previsto no art. 20º, nº 4 da Lei Fundamental, significa, basicamente, nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume I, 4ª Edição Revista, Coimbra Editora, pág. 415), a conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efectiva, cuja densificação é feita pela própria Constituição em sede de processo penal ou seja, no seu art. 32º. E no nº 10 deste último artigo, a Lei Fundamental assegura ao arguido de processo de contra-ordenação, bem como de quaisquer processos sancionatórios, os direitos de audiência e de defesa, nesta se incluindo o direito ao recurso.

            Porém, como fazem notar os mesmos autores (ob. cit., pág. 418), o direito de acesso aos tribunais e à tutela judicial efectiva não fundamentam um direito subjectivo ao duplo grau de jurisdição, dispondo o legislador de liberdade de conformação quanto à regulação dos requisitos e graus de recurso, só não podendo regulá-lo de forma discriminatória, nem limitá-lo de forma excessiva.   

           

            Pois bem. Face à exiguidade da alegação da recorrente, limitamo-nos a concluir que as restrições previstas nos arts. 66º e 75º do RGCOC resultam do exercício daquele poder de conformação do recurso, não constituindo sequer uma limitação excessiva ao mesmo pois que, no âmbito do processo de contra-ordenação, a decisão da 1ª instância é já uma decisão proferida em reapreciação [da decisão administrativa]. Acresce que o Tribunal Constitucional se tem pronunciado pela conformidade daquelas normas com a Constituição (cfr. Acs. nº 55/99, de 19 de Janeiro de 1999 e nº 73/2007, de 5 de Fevereiro de 2007, in, www.tribunalconstitucional.pt). 

            Em conclusão, não enfermam os arts. 66º e 75º do RGCOC de inconstitucionalidade material.


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            Com a improcedência das questões suscitadas no recurso, deve manter-se a decisão através dele sindicada.

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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.


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Custas pela arguida, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCS. (art. 93º, nº 3, do RGCOC, art. 513º, nº 1, do C. Processo Penal, art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).

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Coimbra, 18 de Março de 2015


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Fernando Chaves – adjunto)