Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
174/12.8TAPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: VIOLAÇÃO DE IMPOSIÇÕES
PROIBIÇÕES OU INTERDIÇÕES
FALTA DE ENTREGA DA CARTA DE CONDUÇÃO
Data do Acordão: 11/21/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 69º, N.º 3 E 353º, DO C. PENAL
Sumário: Não tendo o arguido procedido à entrega da sua carta de condução, no prazo de 10 dias, contados do trânsito em julgado da sentença, com vista ao cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados em que foi condenado, não incorreu na prática do crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353º, do Código Penal, já que a sua imputada conduta não representa a violação da concreta proibição de conduzir, a qual apenas se consuma com a realização da conduta de que se está inibido.
Decisão Texto Integral:

Tribunal da Relação de Coimbra
Secção Criminal
Rua da Sofia - Palácio da Justiça - 3004-501 Coimbra
Telef: 239852950 Fax: 239838985 Mail: coimbra.tr@tribunais.org.pt


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Proc. nº 174/12.8TAPBL.C1
I – RELATÓRIO:
No Processo Sumaríssimo nº 174/12.8TAPBL, o Ministério Público deduziu acusação a 9 de Maio de 2012 contra A..., imputando-lhe a prática de factos que segundo o seu entender integram a prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artº 353º do Código Penal
Remetido o processo à distribuição, a Sra. Juíza proferiu despacho (constante de fls. 62 a 69) rejeitando a acusação por manifestamente infundada, em conformidade com o disposto nos artº 311º nº 3, al. d) e 395º, nº 1, al. b) do C.P.P., por entender que os factos constantes da acusação não integram a prática do crime acima mencionado, nem de qualquer crime.
O Ministério Público não se conformando com o teor deste despacho, dele interpôs recurso apresentando motivação, da qual, se extrai as seguintes conclusões (transcrição):

1. O Ministério Público apresentou requerimento com vista à aplicação ao arguido A... de pena de multa em processo sumaríssimo pela prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições previsto e punido pelo artigo 353º do Código Penal, pelo facto de o mesmo, após o trânsito em julgado, não ter procedido à entrega da sua carta de condução para cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor no processo comum singular n. ° 537/09.6CiBPBL.

2. Na sentença proferida no processo comum singular n° 537/09.6JBPBL foi fixado em 10 (dias, após o trânsito em julgado, o prazo para que o arguido procedesse à entrega da sua carta de condução, sob pena de, não o fazendo, poder incorrer em responsabilidade criminal.

3. A Meritíssima Juíza a quo rejeitou o requerimento do Ministério Público por considerá-lo manifestamente infundado na medida em que os factos, na sua óptica, não constituem crime.

4. É maioritária a jurisprudência que considera que a execução da pena acessória de conduzir veículos com motor apenas se inicia com a entrega do título de condução, pelo que deve o sistema judicial dispor de meios suficientemente dissuasores da não entrega do título ele condução.

5. A possibilidade de apreensão do título de condução não resolve de forma alguma a questão dos condenados que não se fazem acompanhar de tal documento ou que alegam que o mesmo se extraviou, podendo continuar a conduzir veículos na medida em que enquanto o título não for entregue não se inicia o cumprimento da pena acessória.

6. Nas situações em que condenado não procede à entrega e em que o sistema judicial não consegue apreender o título de condução transmite-se à comunidade a ideia de que as penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor só são cumpridas se e quando o condenado entender, podendo até chegar a nunca ser cumpridas.

7. E totalmente incongruente que os arguidos que não procedem à entrega do título de condução para cumprimento de sanção acessória prevista no Código da Estrada possam ser condenados pela prática de crime de desobediência e que os arguidos que não procedem à entrega do título para cumprimento de pena acessória prevista no Código Penal não pratiquem qualquer crime,

8. Desde a entrada em vigor da Lei n.° 59 / 2007, de 4 de Setembro, a conduta dos condenados que não procedem à entrega do título de condução para cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor é susceptível de configurar a prática do crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo artigo 353° do Código Penal, desde que das sentenças que condenam na referida pena acessória conste a imposição de tal entrega.

9. A Meritíssima Juíza a quo deveria ter proferido despacho nos termos do disposto na alínea b) do n.° 1 do artigo 396° do Código de Processo Penal, ordenando a notificação do requerimento apresentado pelo Ministério Público ao arguido para que este, querendo, se opusesse à sanção proposta.

10. Decidindo pela rejeição definitiva do requerimento apresentado pelo Ministério Publico violou a Meritíssima Juíza a que o artigo 353° do Código Penal e os artigos 311º, 395º.° e 396° do Código de Processo Penal.

Pelo que, dando provimento ao recurso interposto, revogando o despacho recorrido e ordenando a sua substituição por outro a determinar a notificação do requerimento apresentado pelo Ministério Público ao arguido para que o mesmo, querendo, se oponha à sanção proposta”.

Respondeu o arguido, pelos fundamentos constantes de fls. 83 a 101 (que aqui se dão por que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos, por facilidade de exposição) pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Por despacho de fls. 102, a Sra Juíza limitou-se a admitir o recurso (atribuindo-lhe, incorrectamente, efeito suspensivo) e a considerar tempestiva a resposta do arguido.
Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, embora trazendo à colação as divergências jurisprudenciais acerca desta questão e apresentando uma listagem de vários acórdãos que expressam essas divergências, assume posição no sentido do acolhimento da argumentação do Mº Pº na 1ª instância e, assim, conclui pelo provimento do recurso.
No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal o arguido não respondeu.
Aquando do exame preliminar, decidiu-se em alterar o efeito que, pelo tribunal a quo, tinha sido atribuído ao recurso.

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO:
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, a questão que importa decidir cinge-se apenas em saber se os factos constantes do requerimento acusatório do Ministério Público configuram a prática do crime de violação de imposições, interdições ou proibições p. e p. pelo artigo 353º do Código Penal.

Desde já importa tomar conhecimento da parte do requerimento acusatório que tem relevância no âmbito do objecto do recurso.
Assim, a fls. 54 e 55 consta o seguinte (transcrição):

“1 - O Ministério Público requer, nos termos dos artigo 392.° e seguintes do Código de Processo Penal, a aplicação a:

A..., casado, motorista, residente na Rua … , Pombal,

de pena de multa, em processo sumaríssimo, porquanto:

No âmbito do processo n. ° 537/09.6GBPBL, que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, por sentença de 14 de Julho de 2010 foi o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido peia alínea a do n.° 1 e n°3 do artigo 291° do Código Penal, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de €8.

Como pena acessória o arguido foi condenado na proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 105 dias.

Na sentença foi ordenado ao arguido que procedesse à entrega da sua carta de condução na secretaria do tribunal de Pombal ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 dias a contar do trânsito da sentença, sob pena de, não o fazendo, incorrer cm responsabilidade criminal.

Por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19 de Outubro de 2011 foi revogada a condenação pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário, vindo o arguido a ser condenado pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo n.° 1 do artigo 292.° do Código Penal, na pena de 45 dias de multa à taxa diária de €8 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 105 dias.

Foi mantida no mais a decisão recorrida, tendo o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra transitado em julgado em 14 de Novembro de 2011.

O arguido não procedeu à referida entrega voluntária, tendo sido necessário recorrer à apreensão da carta de condução.
O arguido agiu de forma consciente, livre e voluntária, bem sabendo que com a sua conduta estava a violar uma imposição que havia sido determinada por sentença criminal a título de pena acessória que lhe foi regularmente comunicada e da qual ficou ciente.
Sabendo também que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Os factos acima descritos permitem imputar ao arguido a prática de crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo artigo 353.° do Código Penal.
(…)

É o seguinte o teor do despacho recorrido.
“Autue como processo especial sumaríssimo.
*
O Tribunal é competente.
O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal.
Não há nulidades insanáveis e não foram arguidas quaisquer outras nulidades.
*
O Ministério Público veio requerer ao abrigo do disposto no artigo 392º do Código de Processo Penal, 100 (cem) dias, à taxa diária de €8 (oito euros) o que perfaz um total de €800 (oitocentos euros) ao arguido A..., casado, motorista, residente na Rua … , Pombal, pela prática, como autor material, de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353º do Código Penal, imputando-lhe o seguintes factos
“No âmbito do processo n.º 537/09.6GBPBL, que correu termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, por sentença de 14 de Julho de 2010 foi o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pela alínea a) do n.º 1 e n.º 3 do artigo 291.º do Código Penal, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de €8.
Como pena acessória o arguido foi condenado na proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 105 dias.
Na sentença foi ordenado ao arguido que procedesse à entrega da sua carta de condução na secretaria do tribunal de Pombal ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 dias a contar do trânsito da sentença, sob pena de, não o fazendo, incorrer em responsabilidade criminal.
Por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19 de Outubro de 2011 foi revogada a condenação pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário, vindo o arguido a ser condenado pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 292.º do Código Penal, na pena de 45 dias de multa à taxa diária de €8 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 105 dias.
Foi mantida no mais a decisão recorrida, tendo o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra transitado em julgado em 14 de Novembro de 2011.
O arguido não procedeu à referida entrega voluntária, tendo sido necessário recorrer à apreensão da carta de condução.
O arguido agiu de forma consciente, livre e voluntária, bem sabendo que com a sua conduta estava a violar uma imposição que havia sido determinada por sentença criminal a título de pena acessória que lhe foi regularmente comunicada e da qual ficou ciente.
Sabendo também que a sua conduta era proibida e punida por lei.”
Ora, nos termos do disposto no artigo 395, n.º1 do Código de Processo Penal “O juiz rejeita o requerimento e reenvia o processo para outra forma que lhe caiba:
(…)
b) Quando o requerimento for manifestamente infundado, nos termos do disposto no n.º3 do artigo 311.º;
Por sua vez, nos termos do artigo 311º, n.º3 do Código de Processo Penal estatui que “a acusação considera-se manifestamente infundada:
(…)
d) Se os factos não constituírem crime.”
No caso em apreço, o Ministério Público defende que a descrição fáctica supra-transcrita é susceptível de consubstanciar a prática, pelo arguido, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353º do Código Penal.
Ora, o artigo 353.º do Código Penal, na actual redacção e vigente à data dos factos, estatui que “Quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias”.
Na sua anterior redacção, que resultava do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, estatuía-se que “Quem violar proibições ou interdições impostas por sentença criminal, a título de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias”.
O tipo legal de crime em questão visa “o cumprimento de sanções imposta por sentença criminal que não possuam qualquer outro meio de assegurar a sua eficácia”, traduzindo-se o bem jurídico imediatamente protegido por este crime na “não frustração de sanções impostas por sentença criminal” (neste sentido, vide Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo III, pág. 400).
São elementos típicos objectivos deste tipo legal de crime a violação de proibições, imposições ou interdições impostas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade.
É elemento típico subjectivo deste tipo legal de crime a consciência e a vontade do agente de realizar o acto ou de cometer a omissão que se traduz na violação de uma proibição ou interdição imposta por sentença criminal (dolo genérico), em qualquer uma das modalidades (directo, necessário ou eventual), nos termos do disposto nos artigos 13.º e 14.º do Código Penal.
De acordo com o propugnado nos Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20 de Janeiro de 2010 (Processo n.º 672/08.8TAVNO.C1) e de 24 de Fevereiro de 2010 (Processo n.º117/09.6TAVNO.C1), disponíveis em www.dgsi.pt, em face da nova redacção supra transcrita do artigo 353.º do C.P., a falta de entrega da carta ou licença de condução pelo arguido por condenação em pena acessória de proibição de conduzir, imposta em sentença criminal, preenche os elementos objectivos daquele tipo, uma vez que não só prevê o sancionamento por violação das proibições impostas por sentença criminal a título de pena acessória, como também os casos de violação de imposições determinadas a igual título.
Contudo, salvo o devido respeito, não podemos concordar com tal posição.
No que reporta ao crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353.º do C.P., cumpre realçar que o que o normativo em apreço estatui é que pratica o crime quem violar as imposições determinadas a título de pena acessória; não diz, imposições processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória.
Neste sentido, seguindo de perto o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12 de Maio de 2010 (Processo n.º 1745/08.2TAVIS.C1), disponível em www.dgsi.pt, “só pratica o crime de violação de proibições quem puser em causa o conteúdo material da pena acessória: v.g. quem conduzir (art. 69.º do CP), quem exercer função (art. 66.º do CP) ou quem violar a suspensão do exercício de funções (art. 67.º do CP). Já não pratica o crime quem não cumpre as obrigações processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória: v.g, não entrega a carta de condução, não entrega a cédula profissional, não entrega a arma e carteira identificativa de serviço, estas obrigações processuais (…).
E não se pode entender que a obrigação de entrega da carta faz parte do conteúdo da própria pena acessória (…). Isto porque o legislador define o conteúdo desta no art. 69/1 do Código Penal. E o princípio da legalidade e da tipicidade da norma penal não deixam espaço para interpretações que contrariem o elemento literal do tipo. A imposição material penal é a “proibição de conduzir”, tão só.
Entende-se, pois, que a norma do art.69/3 é meramente processual, ordenadora do cumprimento da pena e com função de controle deste mesmo cumprimento (…), demonstrando-o, aliás, o facto de estar “repetida” no art. 500/2 do CPP (com a diferença, apenas, no substantivo “licença” e “título”).
E faz todo o sentido que assim seja, até porque a execução da pena acessória só se inicia com a entrega da carta ou efectiva apreensão, como a jurisprudência definitivamente firmou (…)
Quer dizer (…) que as normas que processualmente regulamentam a execução da pena acessória estão sistematicamente bem delimitadas no Código. O substrato material da pena que aqui nos interessa é a proibição de conduzir, tão só (…), excluindo-se dela o acto de entrega da carta como elemento integrante desse substrato. Logo, se o arguido condenado não entrega a carta, como é sua obrigação processual, então é ordenada a apreensão.
Enquanto não entregar, não se inicia o cumprimento da pena.
Concretizada a apreensão, inicia-se o cumprimento da pena. Se no período que dura a proibição o arguido conduzir, então põe em causa a imposição resultante da pena acessória e comete o crime de violação de proibições”.
Igualmente neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.12.2011, disponível em www.dgsi.pt, segundo o qual, comete o crime previsto e punido pelo artº 353º do Código Penal “quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade”, ou seja, no que ao caso interessa, comete o crime em causa quem incumprir o conteúdo material da pena acessória, que se consubstancia na proibição de conduzir veículos a motor durante período fixado na sentença (artº 69º do Código Penal).
Ora, como resulta claramente da lei (artº 500º, nºs 3 e 4) e é jurisprudência pacífica, a pena acessória de proibição de conduzir só se executa a partir do momento em que o condenado entrega o título de condução ou o mesmo lhe é apreendido, o que equivale a dizer que é irrelevante para o cumprimento da pena acessória, o facto de o condenado continuar a conduzir até à data da entrega ou da apreensão do título, pois só a partir de uma destas situações se iniciará execução da pena da proibição de conduzir.
Quer isto dizer que o incumprimento da pena acessória aplicada na sentença só ocorrerá se durante o período de duração da mesma o condenado conduzir veículos a motor.
Assim sendo, a falta de entrega da carta constitui obrigação processual do condenado não punível. Consequentemente não integra os elementos objectivos do tipo de ilícito do artigo 353.º do Código Penal.
Igualmente neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09 de Novembro de 2011, disponível em www.dgsi.pt.
Só a partir do momento em que o agente fica privado do título poderá ocorrer, com relevância penal, a frustração de imposições ou proibições sancionatórias constantes de sentença criminal, só então se podendo ver perfectibilizada a previsão dos elementos objectivos do tipo.
O artigo 353.º do C.P. não consente a integração nele de comportamentos processuais prévios à execução da pena acessória, mas tão só comportamentos ou proibições que a integrem.
Assim sendo, uma vez que apenas ficou provado que o arguido foi notificado para entregar a carta em 10 (dez) dias após o trânsito da sentença e que o não fez, há que concluir que este comportamento omissivo não integra o crime p. e p. pelo artigo 353º do Código Penal.
E, contrariando a tese que vê na alteração introduzida, pela Reforma Penal de 2007, ao artigo 353.º do Código Penal a expressão da vontade inequívoca do legislador de nele, também, incluir a não entrega da carta de condução, no prazo dos 10 dias contados do trânsito em julgado da decisão, veja-se ainda o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02.03.2011, disponível em www.dgsi.pt: Do que se trata é de violação de obrigações que consubstanciam a própria pena. Não abrangendo as que, como a da apresentação do título de condução, são impostas para possibilitarem o cumprimento de uma pena acessória. O teor do preceito não deixa margem para dúvidas - «quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada»
(…)
A alteração do artigo 353º do Código Penal operada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, ao acrescentar à previsão legal a violação de “imposições”, a par das de “proibições e interdições”, pretendeu a punição da violação das penas com obrigações de conteúdo positivo, como as injunções cominadas a pessoas colectivas, penas acessórias que, com o mesmo diploma, passaram a estar contempladas nos artigos 90º - A, nº 2, alínea a), e 90º - G do Código Penal”.
Quer dizer, nos termos e com os fundamentos exposto, impõe-se, pois, concluir a factualidade vertida no requerimento em apreço do Ministério Público não é susceptível de integrar o crime de Violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353.º do Código Penal, já que nos termos sobreditos, a conduta imputada ao arguido não representa a violação da concreta proibição de conduzir, a qual, apenas se consuma com a realização da conduta de que se está inibido.
E, em abono da verdade, mais se acrescenta que é igualmente defendido pela signatária que tal factualidade não integra igualmente a previsão do crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348º, n.º1, alínea b) do Código de Penal, desde logo, por duas ordens de razões. A saber.
Por um lado, o preceito que regula a execução da pena acessória de proibição de conduzir não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução.
Com efeito, a este propósito o artigo 500.º n.º2, do C.P. Penal estatui que:
“No prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo.”
E, acrescenta o n.º 3 do mesmo preceito:”Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.”
Também o n.º3 do artigo 69.º, do Código Penal, estabelece:
“No prazo de 10 dias contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo.”
Ou seja, do supra-exposto resulta que não existe, por conseguinte, qualquer cominação legal da punição da não entrega como crime de desobediência.
Por outro lado, no que concerne ao preenchimento do tipo através da simples “cominação funcional” (assim designada por contraposição à “cominação legal”), importará ponderar se as condutas arguidas de desobediência merecem ou não tutela penal, tendo em vista o carácter fragmentário e de ultima ratio da intervenção penal, conforme já supraexposto.
Ora, para a execução da pena acessória de proibição de conduzir o legislador prevê que a não entrega voluntária da carta de condução – entrega que decorre dos termos da lei e não pressupõe qualquer ordem específica para esse efeito – tem como consequência a determinação da sua apreensão, pelo que entendemos que a cominação da prática de um crime de desobediência para a conduta da sua não entrega contraria o sentido da norma.
A este propósito, o Acórdão da Relação de Coimbra de 22 de Outubro de 2008, processo 43/08.6TAALB.C1 (www.dgsi.pt) refere que “Digamos que a notificação que é feita ao arguido para no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, entregar o título de condução, tem apenas um carácter informativo, ou se se quiser, não integra uma ordem, já que da sua não entrega decorre, como vimos, apenas a apreensão da mesma por parte das autoridades policiais.
Não há pois qualquer cominação da prática de crime de desobediência.
Por outro lado como é sabido, o intérprete deve presumir na determinação do sentido e alcance da lei, que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e consagrou as soluções mais acertadas. (art. 9.º C. Civil).
Significa isto claramente que no caso em análise se fosse intenção do legislador, cominar o crime de desobediência para a não entrega da carta de condução, tê-lo-ia dito expressamente.”
*
Nos termos e com os fundamentos expostos, o tribunal entende que os factos descritos no requerimento do Ministério Público em apreço não constituem crime conforme supra-expandido, pelo que ao abrigo do disposto nos artigo 395º, n.º 1, al. b) e n.º3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, decide rejeitar o requerimento do Ministério Público por o considerar manifestamente infundado.
Notifique.
*
Atenta a rejeição definitiva do requerimento do Ministério Público, não tem lugar o reenvio para outra forma de processo (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção e Europeia dos Direitos do Homem, 2.ª Edição Actualizada, fls.1001, anotação 9 ao artigo 395º do C.P.P.).
*
Pombal, 15.05.2012”

Conforme deixamos expresso em sede de delimitação do objecto do recurso, a única questão controvertida reside em saber se os factos imputados ao arguido integram ou não a prática de um crime de Violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353.º do Código Penal, como defende o Ilustre recorrente.
Entendeu o tribunal a quo, que a conduta imputada ao arguido não preenche a prática de qualquer crime, mormente o atrás mencionado crime de violação de imposições, proibições ou interdições previsto e punido pelo artigo 353º, do Código Penal.
E quanto a nós entendeu e decidiu bem, decisão bem alicerçada em diversos acórdãos que ali são citados, alguns dos quais desta Relação, que vão no sentido da não punibilidade da conduta decorrente da falta de entrega da carta de condução a fim de iniciar o cumprimento da sanção acessória de proibição de conduzir.
Constata-se que esta concreta questão (como tantas outras em direito e designadamente em decisões dos Tribunais), não está a merecer consenso, antes se estando a formar duas correntes jurisprudenciais de sinal oposto, entendendo umas que existe crime e entendendo outras que não existe.
Sobre esta temática, tal como, aliás, também decorre explanado no despacho recorrido e da listagem de acórdãos mencionados pelo Exmo Procurador-Geral Adjunto no seu parecer de fls. 110 a 114 (listagem por demais evidenciadora das divergências jurisprudenciais), já muito se tem escrito, invocando-se argumentos com vista a sustentar as diferentes posições defendidas por parte dos tribunais superiores, sendo frequente, no seio da mesma Relação, encontrar vozes dissonantes, o que bem demonstra tratar-se de questão que apenas poderá vir a ser pacificada com um acórdão de uniformização de jurisprudência (que há muito se deseja), a menos que entretanto o legislador, como é sua obrigação, actue com a publicação preceitos legais de fácil interpretação e compreensão.
A título meramente exemplificativo dessas divergências podem-se analisar, os acórdãos: desta Relação de Coimbra de 20.01.2010 [proc. n.º 672/08.8TAVNO.C1], de 23.06.2010 [proc. n.º 1001/08.6TAVIS.C1], de 30.06.2010 [proc. n.º 149/08.1TAVGS.C1], de 14.07.2010 [proc. n.º48/09.0TAVGS.C1], de 12.07.2011 [proc. n.º 295/09.4TAVIS.C1], de 12.05.2010 [proc. n.º 1745/08.2TAVIS.C1], de 16.12.2009 [proc. n.º 82/08.7TAOBR.C1] e de 23.11.2011 [proc nº 697/09.6TAACB]; da Relação de Lisboa de 18/12/2008 [proc. 1932/08], e de 24.03.2010 [proc. 470/04.8TAOER.L1; da relação de Guimarães de 03.05.2011 [proc. n.º 50/11.1GBGMR.G1]; da Relação de Évora, de 14.06.2011 [proc. 146/09.0TAPTG], e de 24.03.2011 [proc. 2/09.1TAABF.E1]; e da Relação do Porto, de 10.11.2010 [proc. 118/09.4T3OVR.P1].
Também na doutrina se detectam divergência de posições, pronunciando-se Paulo Pinto de Albuquerque no sentido de que o incumprimento da obrigação de entregar a carta integra o crime de Violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353.º do Código Penal – [cf. Comentário do Código Penal, 1.ª edição, pág. 834 e Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª edição, pág. 1258], enquanto Tolda Pinto, em comentário ao artigo 160.º do Código da Estrada, incluído no “Comentário das Leis Penais Extravagantes”, vol. I, 2010, UCE, escreve… Assim, o tribunal, ao proferir decisão condenatória que aplica a pena acessória prevista no art. 69.º deve notificar o arguido da obrigatoriedade da entrega da carta no prazo de 10 dias (cfr. n.º 3 do art. 69.º do CP e n.º 2 do art. 500.º do CPP), após o decurso do prazo do recurso, advertindo-o de que o não cumprimento tem consequências penais – o cometimento do crime de desobediência conforme contempla o n.º 3 do CE. Essa advertência deve constar da notificação da decisão (oral ou escrita), conforme estabelece a parte final do n.º 3 do art. 160º do Código da Estrada.”

Não olvidando todos os argumentos num e noutro sentido, comungamos da posição sustentada pelo tribunal a quo no sentido de que, com a não entrega voluntária da carta de condução não é cometido o crime do artigo 353º, do CP.
Vejamos o que diz o artigo 353º do Código Penal, na redacção actual e já vigente à data dos a que alude aquele requerimento acusatório: «Quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias».
Em termos latos, tal normativo estabelece a punição de condutas desrespeitadoras das penas acessórias ou medidas de segurança de carácter não proibitivo da liberdade determinadas numa sentença do foro criminal ou decorrente da pena aplicada em processo sumaríssimo. Por isso, o escopo de tal normativo visa garantir a não frustração do cumprimento daquelas decisões no tocante às penas acessórias e medidas de segurança não privativas de liberdade nelas aplicadas.
Concordando com a posição explanada no Acórdão desta Relação de 23/11/2011 (proferida no Proc. nº 697/09.6TAACB), Relator Desembargador Luís Teixeira, é dito a dado passo em tal acórdão:
“Esta disposição merece, pois, desde logo, a seguinte leitura:
Pratica o crime quem violar as imposições determinadas a título de pena acessória; não diz, imposições processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória.
Ou seja, só pratica o crime de violação de proibições quem puser em causa o conteúdo material da pena acessória.
Logo, não pratica o crime quem não cumpre meras obrigações processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória, como é a cominação da entrega da carta de condução.
É, pois, nesta dicotomia e diferenciação entre o conteúdo material da pena acessória definido pelo legislador no art. 69º, nº1, do Código Penal e o conteúdo meramente processual, este definido no artigo 69º, nº 3, do mesmo diploma – que regula o cumprimento da pena acessória e o seu controlo, como acontece com o disposto no artigo 500º, nº 2, do Código de Processo Penal -, que deve ser interpretado o teor do artigo 353º, do CP.
A imposição material penal que consta da sentença é a “proibição de conduzir”, pelo tempo aí fixado.
Esta interpretação mais sentido faz se se atentar no seguinte:
A execução da pena acessória só tem início com a entrega da carta ou da sua efectiva apreensão – posição largamente maioritária da jurisprudência, que também perfilhamos.
Se e enquanto o arguido condenado não entregar a carta, como é sua obrigação processual, então é ordenada a apreensão.
Entregue a carta ou concretizada a apreensão, inicia-se o cumprimento da pena.
Se no período que durar a proibição o arguido conduzir, então sim, põe em causa a imposição que resulta da pena acessória e comete o crime de violação de proibições.
A contrario, pode afirmar-se que a falta de entrega da carta constituirá obrigação processual do condenado, não punível.
2.1. Poderá sempre argumentar-se que não faz sentido esta interpretação, pois o legislador já prevê a punição da conduta do condutor que, estando inibido de conduzir, apesar de tudo o faz. Punição prevista no artigo 138º, do Código da Estrada, com o crime de desobediência qualificada.
Entende-se, contudo, não existir a aparente duplicação de punição da mesma conduta se se fizer a seguinte interpretação:
O artigo 138º, do CE regula as sanções específicas praticadas, previstas e punidas à luz daquele diploma.
O nº 1 do artigo 138º refere-se expressamente às contra-ordenações graves e muito graves punidas com sanção acessória.
No presente caso, estamos perante a prática de crime punido com pena acessória – artigo 69º, nº1, do CP.
São sanções, lato sensu, com previsão e punição diferentes.
Como são diferentes, por regra, as entidades que as julgam e aplicam: no primeiro caso a entidade administrativa; no segundo, os tribunais.
E a referência que o nº 2 daquele preceito (art. 138º) faz a sentença transitada em julgado, harmoniza-se com esta interpretação na medida em que, sendo a regra da competência para o julgamento das contra-ordenações, da entidade administrativa, está também prevista a intervenção do tribunal – sendo sempre uma intervenção excepcional ou pontual -, quer em situações de recurso da decisão da entidade administrativa, quer ao abrigo dos artigos 77º e 78º, do DL nº 433/82, de 27 de Outubro, que institui o Ilícito de Mera Ordenação Social. Em todo o caso, o tribunal não deixa de apreciar tão somente uma contra-ordenação e não a prática de um crime.
Acresce que, a previsão do artigo 353º do CP é muito mais ampla que a do artigo 138º, do CE, específico para a inibição imposta ao condutor.
Não deixa de ser, de somenos relevância, a coincidência nas punições previstas quer no artigo 353º do CP quer no artigo 138º, nº 2 do CE, em conjugação com o artigo 348º, nº2, do CP, em que a medida da pena abstracta é, em ambos os casos, a de prisão até dois anos ou multa até 240 dias.
3. Retomando a questão inicial, elucidativa mostra-se, a propósito o decidido no ac. deste TRC de 12.5.2010, proferido no proc. nº 1745/08.2TAVIS.C1, onde se a afirma:
Decorre dos preceitos acima transcritos que a referida pena acessória só é executada, por isso cumprida, a partir do momento em que o condenado entrega o título ou este lhe é apreendido em conformidade com o art.º 500/3 do CPP.
Isto porque logo no número seguinte, ou seja, no n.º4 do falado artigo 500º se estatui que a licença de condução ficará retida na secretaria [após a sua entrega ou a sua apreensão] «pelo período de tempo que durar a proibição».
O que significa que o cumprimento da pena acessória não ocorre de forma imediata e automática a partir do trânsito em julgado da sentença que a aplicou, mas tão só após a entrega espontânea ou forçada do título.
De outro modo poderiam ocorrer situações em que no momento da sua apreensão o arguido pudesse invocar ter já decorrido o tempo do cumprimento da pena.
Daqui poder defender-se que será irrelevante para a integração do tipo [violação de imposições, proibições ou interdições judiciais] o facto do condenado continuar a conduzir até à data da apreensão do título, pois só a partir dela se iniciará o cumprimento ou execução da pena da proibição de conduzir.
Só no período de execução da pena fará então sentido falar-se em violação de proibições judiciais. Até à entrega espontânea ou forçada da licença de condução não haverá execução da pena e consequentemente violação de proibição judicial.
Se bem se atentar na redacção do tipo e para o que ao caso interessa, nele se dispõe que comete o crime «quem violar imposições ou proibições determinadas por sentença criminal a título de pena acessória».
Ou seja, o tipo prevê como conduta criminosa a voluntária violação de imposições ou proibições que integrem o conteúdo duma pena acessória.
E a pena acessória no caso consubstancia-se na “proibição de conduzir veículos com motor pelo período de …”. Pergunta-se -, a obrigação de entrega no indicado prazo da carta de condução integra tal proibição? Obviamente que não! É apodíctico que não integra a pena a obrigação da entrega da carta nas indicadas condições.
O legislador poderia tê-la incluído no tipo ou noutro, v.g., de desobediência, mas não o fez. Para o caso engendrou outro sistema de procedimento que o aplicador da lei até poderá criticar invocando v.g. a desarmonia do sistema face ao que se passa com o sistema contraordenacional do Código da Estrada; mas o que não pode é interpretar o tipo de modo a incluir situações nele não previstas, em violação do art.º1 do Código Penal.
Só a partir do momento em que o agente fica privado do título poderá ocorrer, com relevância penal, a frustração de imposições ou proibições sancionatórias constantes de sentença criminal, só então se podendo ver perfectibilizada a previsão dos elementos objectivos do tipo.
Como foi dito pelo ilustre Conselheiro Henriques Gaspar em declaração de voto no Ac. do STJ/ Fixador de Jurisprudência n.º8/2008 [DR I-A de 5/8/2008] – “ O princípio da legalidade (…) significa (…) que não pode haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (…)
É princípio inscrito como direito fundamental também em instrumentos internacionais, com conteúdo e sentido determinado através de referências objectivas e com modelação operativa.

A densificação convencional da garantia reverte à certeza, clareza ou previsibilidade da estatuição e suas consequências (…) o que releva (…) é que a estatuição seja clara, precisa, acessível e previsível. Do ponto de vista da protecção dos direitos do homem, é decisivo o princípio segundo o qual o legislador deve fixar de uma forma precisa e clara os limites entre os comportamentos permitidos e os comportamentos puníveis penalmente, interessando neste aspecto a previsibilidade da condenação por certo comportamento (acção ou omissão).
Na elaboração que tem sido desenvolvida a propósito das noções utilizáveis na integração do princípio, tem-se entendido que a clareza da estatuição (…) está preenchida quando o indivíduo possa saber a partir do texto pertinente (…) quais os actos ou omissões que constituem infracção e pelos quais pode ser criminalmente responsabilizado, mesmo que para tal tenha de recorrer a um conselho esclarecido para avaliar, com adequado grau de razoabilidade, as consequências que podem resultar de determinado acto.
Nesta perspectiva de ordenação da garantia, uma norma não pode ser considerada como «lei» para efeito da protecção contida no artigo 7.º da Convenção se não for formulada com suficiente precisão, de modo a que habilite um indivíduo a regular a sua conduta: este deve poder antever e prever, com um grau de razoável exigência nas circunstâncias do caso, quais as consequências de natureza penal que podem resultar de uma sua acção ou omissão (…).
Nos termos em que a garantia do artigo 7.º da Convenção tem sido considerada, o princípio da legalidade exige, pois, que a infracção esteja claramente definida na lei, estando tal condição preenchida sempre que o interessado possa saber, a partir da disposição pertinente, quais os actos ou omissões que determinam responsabilidade penal; a disposição tem de se revelar suficientemente clara. (…)
Por isso, o princípio significa «que por mais socialmente nocivo e reprovável que se afigure um comportamento, tem o legislador de o considerar como crime (descrevendo-o e impondo-lhe como consequência jurídica uma sanção criminal) para que ele possa como tal ser punido. Esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam por isso sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também certos (outros) comportamentos » (cf. Figueiredo Dias, op. cit, p. 168).
O princípio da legalidade significa também a proibição da analogia, importando sempre determinar o que é susceptível de interpretação permitida (o sentido literal, as expressões polissémicas, os conceitos normativos e descritivos) e o que pertence já à analogia proibida em direito penal pelo princípio da legalidade. (…) A interpretação em direito penal (e sancionatório, em geral) não pode desconsiderar princípios fundamentais - tipicidade; legalidade; não retroactividade in malam partem; proibição de analogia. (…) A função de garantia do princípio da legalidade exige a qualidade da lei, previsibilidade e acessibilidade, de modo que qualquer pessoa possa perceber e saber quais as consequências sancionatórias de uma sua acção ou omissão.
A qualidade da lei supõe que o legislador formule a lei penal de modo preciso e não susceptível de interpretações gravemente díspares, sobretudo quanto à natureza, âmbito e círculo material da conduta proibida.
E, como é dos princípios, em direito penal (e sancionatório) não há integração de lacunas (…).”
A actuação em causa não cabe na letra da lei (art.º 353º do CP), sendo imposição do princípio da legalidade em matéria criminal que a norma se contenha no quadro de significações possíveis das palavras da lei, sob pena de se entrar no domínio proibido da analogia.
A certeza e a previsibilidade exigíveis aos tipos afere-se pelo que é possível extrair directamente da sua letra.
Ora, como refere a sentença, o preceito em causa não consente a integração nele de comportamentos processuais prévios à execução da sanção acessória, mas tão só comportamentos ou proibições que a integrem”.
4. Exemplificando o enunciado acabado de transcrever, diremos o seguinte:
Também a pena de multa, diz o artigo 489º do CPP, deve ser paga no prazo de 15 dias a contar do trânsito em julgado da sentença. Do mesmo modo que a carta deve ser entregue pelo arguido condenado na pena acessória de inibição no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, ao abrigo do artigo 69º, nº 3, do CP.
Se porventura o julgador, na sentença, fizer a cominação ao arguido de que, se não pagar a multa, cometerá um crime de desobediência e o arguido efectivamente não pagar, com certeza que será entendimento generalizado que esta cominação é ilegal. Que não pagando o arguido voluntariamente a multa naquele prazo, deverá proceder-se à sua execução – artigo 491º, do CPP. Do mesmo modo que, não entregando o arguido a carta de condução voluntariamente, se procederá à sua apreensão.
Igual analogia se pode fazer quanto ao cumprimento da pena de prisão por dias livres, nos termos do artigo 487, nº 3, do CPP.
Se também neste caso o tribunal ao entregar ao arguido cópia da decisão e da guia de apresentação no estabelecimento lhe fizer a cominação de que, caso não compareça, incorrerá num crime de desobediência e o arguido efectivamente não comparecer, com certeza que será mais uma vez entendido que esta cominação é ilegal. O cumprimento da pena será, nesta situação, feita em regime contínuo, passando-se para o efeito mandados de captura do arguido – como se dispõe no preceito..
Outros exemplos serão possíveis. Mas o que deve ser efectivamente realçado é que não se pode favorecer a criação de um tipo legal de crime com uma ordem que se afigura ilegítima, por exigências dos princípios da legalidade e da tipicidade, transformando a imposição do Juiz numa fonte de responsabilidade criminal numa situação que manifestamente o legislador não regulou nem quis regular.
A actuação em causa não cabe na letra da lei (art.º 353º do CP), sendo imposição do princípio da legalidade em matéria criminal que a norma se contenha no quadro de significações possíveis das palavras da lei, sob pena de se entrar no domínio proibido da analogia.
A certeza e a previsibilidade exigíveis aos tipos afere-se pelo que é possível extrair directamente da sua letra. “

Transcrito o eloquente entendimento, e tal como bem está devidamente fundamentado no despacho recorrido, consideramos também que o artigo 355º do Código de Processo Penal não abrange comportamentos processuais prévios à execução da sanção acessória, mas tão só comportamentos ou proibições que a integrem.

Na sequência do atrás referido, importa também relembrar o que a propósito ficou consignado no acórdão do TRC de 12.05.2010 [Relator, Desembargador Ribeiro Martins], reproduzido no acórdão do TRC de 06.10.2010 [Relator, Desembargador Orlando Gonçalves], O que a norma do art. 353.º do CP diz é que pratica o crime quem violar as imposições determinadas a título de pena acessória; não diz, imposições processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória.
Logo, só pratica o crime de violação de proibições quem puser em causa o conteúdo material da pena acessória: v.g. quem conduzir (art. 69.º do CP), quem exercer função (art. 66.º do CP) ou quem violar a suspensão do exercício de funções (art. 67.º do CP). Já não pratica o crime quem não cumpre as obrigações processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória: v.g, não entrega a carta de condução, não entrega a cédula profissional, não entrega a arma e carteira identificativa do serviço, estas obrigações processuais (…). E não se pode entender que a obrigação de entrega da carta faz parte do conteúdo da própria pena acessória (…) Isto porque o legislador define o conteúdo desta no art. 69/1 do Código Penal. E o princípio da legalidade e da tipicidade da norma penal não deixam espaço para interpretações que contrariem o elemento literal do tipo. A imposição material penal é a “proibição de conduzir”, tão só”
Em idêntico sentido, contrariando a tese que vê na alteração introduzida, pela Reforma Penal de 2007, ao artigo 353.º do Código Penal a expressão da vontade inequívoca do legislador de nele, também, incluir a não entrega da carta de condução, no prazo dos 10 dias contados do trânsito em julgado da decisão, e uma vez mais por traduzir, a esse respeito o nosso pensamento, até porque, modestamente reconhecemos nada termos já a acrescentar, reproduzimos as seguintes passagens do acórdão do TRP de 02.03.2011 [Relator, Desembargador Araújo Barros]: Do que se trata é de violação de obrigações que consubstanciam a própria pena. Não abrangendo as que, como a da apresentação do título de condução, são impostas para possibilitarem o cumprimento de uma pena acessória. O teor do preceito não deixa margem para dúvidas - «quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada»
(…)
A alteração do artigo 353º do Código Penal operada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, ao acrescentar à previsão legal a violação de “imposições”, a par das de “proibições e interdições”, pretendeu a punição da violação das penas com obrigações de conteúdo positivo, como as injunções cominadas a pessoas colectivas, penas acessórias que, com o mesmo diploma, passaram a estar contempladas nos artigos 90º - A, nº 2, alínea a), e 90º - G do Código Penal”. E, aqui poderemos nós ainda acrescentar: como também pretendeu a punição do incumprimento da pena acessória da obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, pena acessória esta que decorre do nº 4 do artigo 152º do Código Penal.
Retomando o caso dos autos, impõe-se, pois, concluir que o arguido, ora recorrido, ao não ter, alegadamente, procedido à entrega da sua carta de condução, no prazo de 10 dias contados do trânsito em julgado da sentença, com vista ao cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados em que foi condenado, não incorreu na prática do crime de Violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353.º do Código Penal, como pretende o Ilustre recorrente, já que nos termos sobreditos, a sua imputada conduta não representa a violação da concreta proibição de conduzir, a qual, apenas se consuma com a realização da conduta de que se está inibido.
Por tudo o que foi dito, terá o recurso que ser julgado improcedente.

III. DECISÃO
Nos termos expostos, decide-se negar provimento ao recurso e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida.
Sem tributação.
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(Elaborado e revisto pelo relator, o primeior signatário - art. 94º nº 2 do Código de Processo Penal)
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Coimbra, 21 de Novembro de 2102

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(Luís Coimbra)
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(Cacilda Sena).