Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
562/15.8PBCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: RELAÇÃO DE ESPECIALIDADE
EXTORSÃO
COACÇÃO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Data do Acordão: 12/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 223.º E 154.º DO CP; ART. 358.º, N.ºS 1 E 3, DO CPP
Sumário: I - O crime de extorsão, em termos de dogmática jurídica, sem qualquer ofensa para a mais informada exegese, bem pode ser nominado como um crime de coacção qualificado.

II – Por isso que, tendo caído a qualificativa, traduzida na intenção de o agente conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo e na exigência de a conduta coagida se traduzir num injusto prejuízo para o sujeito passivo (a vítima da cocção ou outra pessoa), o arguido deverá ser condenado pela estatuição do tipo base (coacção), sem necessidade de accionamento do dispositivo previsto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, porquanto, neste específico contexto, foram asseguradas todas as garantias de defesa do arguido.

Decisão Texto Integral:







ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA


            Nos autos de processo comum (singular) que, sob o nº 562/15.8PBCTB, correram termos pelo Juízo Local Criminal de Castelo Branco – J2, Comarca de Castelo Branco, o arguido A... foi submetido a julgamento, acusado pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de extorsão, na forma tentada, previsto e punido pelo art.° 223°, n.º 1 e 22°, n.ºs 1 e 2, al. b), do Código Penal.

            Levado a efeito o julgamento, viria a ser proferida sentença, decidindo nos seguintes termos (transcrição):

Pelo exposto, decide-se:

A.         ABSOLVER o arguido A... da prática, em autoria material, de um crime de extorsão na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 223.°, nº 1 e 22.°, n.ºs 1 e 2, al. b), do Código Penal;

B.         CONDENAR o arguido A... pela prática, entre Outubro de 2015 e Dezembro de 2015, em autoria material, de 1 (um) crime de coacção na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 154.°, n.ºs 1 e 2, e 22.°, n.ºs 1 e 2, al. a) e b), do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 6,00 € (seis euros), o que perfaz a quantia total de 1.200 €(mil e duzentos euros), a que corresponderão, em caso de incumprimento, 133 (cento e trinta e três) dias de prisão subsidiária;

C.        CONDENAR o arguido nas custas criminais do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC's (três unidades de conta) - artigos 513°, n.ºs 1 a 3, e 514° do Código do Processo Penal.


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Notifique.

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Proceda ao depósito da sentença - artigos 372°, n.º 5 e 373°, n.º 2, do Código do Processo Penal.

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Após trânsito remeta boletins aos S.I.C..

Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:

1° - A douta sentença condenou o arguido por crime diferente daquele pelo qual vinha acusado.

2° - O arguido vinha acusado por crime de extorsão na forma tentada - Crime contra o património - e foi condenado por crime de coação na forma tentada - Crime contra a liberdade pessoal.

3° - Tal alteração operada fora da hierarquia do mesmo crime, sem a comunicação ao arguido da alteração operada, nos termos e para os efeitos do disposto no art" 358°, e 424° do CPP implica a nulidade da sentença, nos termos do art. 379° do CPP.

4° - O arguido não praticou o crime de coação na forma tentada em que foi condenado, pois, sendo um crime de resultado, não se provou qual a ação que o ofendido foi constrangido a tomar ou qual a conduta que foi forçado a omitir, na sequência da conduta do arguido.

5° - Não se pode afirmar que foi constrangido a não apresentar queixa, pois deu conhecimento às autoridades de imediato, normalmente ainda no próprio dia ou no dia seguinte ou logo que julgou oportuno, sempre que ocorreram factos que considerou dignos de registo o que imediatamente fez junto do departamento da PSP de Castelo Branco.

6° - O ofendido sempre fez a sua vida normal, pois se assim não fosse as alterações que se visse obrigado a introduzir teriam de constar dos autos.

7° - Impõe-se concluir que o ofendido não se deixou intimidar minimamente pelas expressões usadas pelo arguido não tendo sofrido qualquer constrangimento na apresentação de queixa inicial e posteriores aditamentos, sendo uma pessoa que adquiriu produto estupefaciente que não pagou, entregou o seu telemóvel como garantia ao vendedor, mas depois apresentou queixa contra ele por extorsão, tendo ainda decidido "contar" ao Tribunal, uma versão inverosímil e que ele próprio engendrou para explicar o sucedido, razões pelas quais existem sérias e fundadas dúvidas sobre se as expressões concretamente utilizadas pelo arguido, foram idóneas a sequer causar receio àquele queixoso em concreto acreditando-se fundadamente que não foram.

8° - A tentativa exigiria o "resultado" de ter sido causado efetivo receio no visado o que não aconteceu porquanto o ofendido não encarna os padrões do "homem médio".

9° - A factualidade dada como provada não preenche, por insuficiência, o tipo de ilícito porque foi condenado o arguido.

10° - Foram assim violados:

- os artigos 358°, n° 1 e 3 e 424, n° 3 do CPP

- o artigo 379°, n° 1 al. b), do CPP

- os artigos 154°, n° 1 e 2 e 22°n° 1 e 2 al. a) e b) do CP

- o artigo 410°, n° 2 al a) do CPP

Com o que, e sobretudo com o muito mais que Vossas Excelências doutamente suprirão, se fará como sempre, JUSTIÇA!

            Respondeu o MP em primeira instância, retirando dessa sua peça as seguintes conclusões:

1.         Quanto à invocada questão em como a decisão recorrida condenou o arguido por um crime diferente daquele pelo qual vinha acusado, sem que tal alteração de tipo legal tenha sido comunicada ao arguido nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358º e 424º do C. P. Penal, o que implica a nulidade da sentença, nos termos do disposto no art. 379º do C. P. Penal, há que dizer que se discorda frontalmente, das conclusões apresentadas.

2.         Em nosso entender, o Tribunal "a quo", conforme consta da douta sentença recorrida (Cfr. fls. 191), procedeu de forma correcta ao não considerar a alteração da qualificação jurídica como uma alteração substancial dos factos, na medida em que considerou que, dada a factualidade apurada, o arguido não praticou o crime de que vinha acusado na acusação pública - crime de extorsão na forma tentada - mas sim o crime de coacção na forma tentada, o qual, por força das molduras penais, deve ser considerado como menos grave que o anterior, sendo que, por não agravar as molduras penais abstractamente aplicáveis, não deve considerar-se que estamos perante uma alteração substancial de factos, pelo que não há lugar à obrigatoriedade de o Tribunal proceder às comunicações previstas no art. 358° do C. P. Penal.

3.         E isto porque, conforme refere a douta sentença recorrida, posição com a qual concordamos em absoluto, no presente caso, por não ocorrer qualquer alteração de factos, nem essa alteração dever considerar-se como substancial, não há lugar à comunicação legal que o art. 358°, n.ºs 1 e 3 do C. P. Penal impõe.

 4.        Assim, a obrigatoriedade/imposição da comunicação nos casos de alteração substancial dos factos apenas tem lugar nos casos concretos previstos na Lei processual penal, sendo que, no caso dos autos, não estamos perante tal situação, pelo que bem andou o Tribunal "a quo" ao ter decidido da forma constante dos autos.

5.         Deste modo, e uma vez que a alteração em causa não deve ser considerada como substancial, a norma invocada pelo arguido/recorrente não tem aplicação no caso dos autos, pelo que sentença não é nula, ao contrário do alegado pelo arguido/recorrente, devendo ser mantida a decisão condenatória.

6.         Foi esta a posição do Tribunal "a quo", com a qual se concorda inteiramente.

7.         Quanto à questão alegada em como o arguido não praticou os factos que lhe foram imputados, nomeadamente os que integram o crime de coacção na forma tentada, uma vez que este, sendo um crime de resultado, e não se tendo provado qual a acção que o ofendido foi constrangido a tomar ou qual a conduta que foi forçado a omitir, na sequência da conduta do arguido, impõe-se concluir que o ofendido não se deixou intimidar minimamente pelas expressões usadas pelo arguido, também se entende que não assiste razão ao arguido/recorrente.

S.         Quanto a esta segunda questão, há que dizer que, mais uma vez, se discorda frontalmente, das conclusões apresentadas, sendo que, em nosso entender, o Tribunal "a quo", conforme consta da douta sentença recorrida, ao dar como provado que o arguido praticou os factos, embora tendo subsumido os mesmos a outra qualificação jurídica, fê-lo de forma acertada, uma vez que foi produzida prova suficiente e credível em como o arguido foi autor do crime pelo qual foi condenado.

9.         Assim, por se ter provado a acção que o arguido provocou e a que ofendido foi constrangido a tomar, conforme consta da matéria dada como provada na douta sentença, ao contrário do que alega o arguido/recorrente, impõe-se concluir que que o ofendido se deixou intimidar pela conduta do arguido e, consequentemente, o crime foi praticado, na forma tentada.

10.       Quanto à invocada questão em como a tentativa exigiria o "resultado" de ter sido causado efectivo receio no visado, o que não aconteceu, porque o ofendido não encarna os padrões do "homem médio", na medida em que se demonstrou que é um indivíduo que adquiriu produto estupefaciente que não pagou, tendo entregue o seu telemóvel como garantia (penhor?) ao vendedor (in casu, o arguido), o que demonstra que tal personagem apresentou uma versão perfeitamente fantasiosa e inverosímil. A factualidade dada como provada não preenche, por insuficiência, o tipo de ilícito em causa, pelo qual o arguido veio a ser condenado, tendo, desse modo, sido violadas as normas contidas no art. 410°, n.º 2, al. a) do C. P. Penal, também não se pode concordar com os argumentos invocados.

11.       E isto porque, conforme refere a douta sentença recorrida, o ofendido, apesar dos problemas que já teve com a justiça e de ter assumido a sua antiga condição de toxicodependente, não pode ser considerado um "cidadão de segunda" e o seu depoimento desvalorizado, única e exclusivamente com base nesse argumento.

12.       Assim, e ao contrário do alegado pelo arguido/recorrente, o facto de ter relatado que teve negócios ilícitos com o arguido não retira credibilidade ao seu depoimento, nem pode ser visto como uma testemunha desqualificada.

13.       Deste modo, entendemos que o Tribunal "a quo", ao considerar credível a versão do ofendido, nomeadamente no que aos factos integradores de um crime de coacção, mesmo na forma tentada, andou bem, tendo decidido de acordo com as regras da experiência e fundamentando tal decisão.

14.       Assim, e ao contrário do alegado pelo recorrente, a prova não é inválida nem inverosímil, pelo que se entende que o recurso, nesta parte, também não deve merecer provimento.

15.       Foi esta a posição do Tribunal "a quo", com a qual se concorda inteiramente.

Afigura-se-nos, como afigurou ao Mm.o Juiz lia quo", que o arguido deve ser condenado.

É este, igualmente, o nosso entendimento.

Porém, vossas Excelências melhor apreciarão, e analisando as alegações de recurso apresentadas, julgarão do bem ou mal fundado das mesmas.

Pelo exposto, e sem mais considerações, dir-se-á que se nos afigura, daquilo que ficou exposto, que o recurso interposto pelo arguido não merece provimento.

            Nesta Relação, o Ex.mo PGA emitiu douto parecer no sentido de «ser declarada a nulidade parcial da sentença e ordenado o reenvio parcial do processo, para que o Tribunal a quo possa sanar a referida nulidade e aplicar a jurisprudência fixada, nos termos do artº 358º, nºs 1 e 3 do CPP». Subsidiariamente, para o caso de ser julgada improcedente a invocada nulidade, conclui pelo não provimento do recurso.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

FACTOS PROVADOS:

Da acusação

1.         Em data concretamente não apurada do mês de Setembro de 2015, B.... entregou o seu telemóvel da marca "Samsung", modelo "Galaxy Grand Prime", com o "IMEI n.º (...) ", no valor de 239,99 € (duzentos e trinta e nove euros e noventa e nove cêntimos), e com uma capa no valor de 29,99 € (vinte e nove euros e noventa e nove cêntimos), ao arguido A... , como garantia de pagamento da quantia de 400 € (quatrocentos euros), emergente do fornecimento, por este, de produto estupefaciente.

2.         Entre o dia 04 de Outubro de 2015 e o dia 12 de Novembro de 2015, o telemóvel referido em 1. esteve associado ao cartão com o n.º (...) , da rede "Vodafone", registado em nome de C...., na altura namorada do arguido A... , residindo este na Rua (...) ,

3.         (…) e foi carregado pelo arguido, através da conta da "Caixa Geral de Depósitos" titulada em seu nome, com o n.º (...) .

4.         Em dia não apurado de Outubro de 2015, o ofendido B... telefonou ao arguido, para o número (...) , solicitando-lhe a devolução do telemóvel referido em 1., tendo este respondido que não lho devolvia, a não ser que lhe entregasse a quantia de 400 € (quatrocentos euros), acrescentando que lhe partia as pernas se mandasse a "bófia" a sua casa.

5.         Ainda nesse mês, o arguido A... telefonou ao ofendido B... , através do referido número telefónico, exigindo-lhe a entrega de 300 € (trezentos euros), em troca do telemóvel referido em 1., acrescentando que caso este não lhe desse o dinheiro lhe partia as pernas.

6.         Ainda nesse mês, o arguido A... telefonou ao ofendido B... , através do referido número telefónico, exigindo-lhe a entrega da quantia de 280 € (duzentos e oitenta euros), em troca do telemóvel referido em 1., acrescentando que caso este não lhe desse o dinheiro lhe partia as pernas.

7.         No dia 30 de Outubro de 2015, cerca das 10h30m, o arguido A... enviou uma mensagem ao ofendido B... , através do número (...) , afirmando "eu kero ke te fodas. Tenho um medo da Polícia ke me pelo todo. Ou me pagas o ke deves ou estas fodido. Vigarista de Meia tigela. Eu mesmo te vou cacar, kndo tiver ao teu lado parto te a perna". "Pode ser que ke te fodas. Homem sério!!! Eu logo te digo como é. Vou dar o teu número a uma pessoa para falar contigo. Depois pagas a essa pessoa!!! Eu não dou a cara. Depois te entendes com ele."

8.         No dia 05 de Novembro de 2015, no período da manhã, no café " (...) ", sito na (...) , o arguido A... , ao constatar a presença do ofendido B... no referido café, sentou-se ao lado deste e exigiu-lhe a entrega de, pelo menos, 230 € (duzentos e trinta euros), em troca da devolução do telemóvel referido em 1., acrescentando: "andas de canadianas mas eu parto-te as pernas".

9.         O ofendido B... ligou para a "Polícia de Segurança Pública" ("PSP"); quando os agentes chegaram ao local o arguido já aí não se encontrava, tendo os mesmos acompanhado o ofendido à sua residência.

10.       Em dia não apurado do mês de Dezembro de 2015, ao constatar que o ofendido se encontrava no "Centro de Saúde de (...) ", sito em (...) , o arguido A... dirigiu-se ao mesmo, acompanhado de um indivíduo de etnia cigana, não tendo logrado encontrar e falar com aquele, por o mesmo se ter escondido.

11.       Ao actuar da forma descrita o arguido A... quis provocar receio e insegurança no ofendido, o qual, em consequência das afirmações daquele, se sentiu atemorizado e perturbado, atento o modo sério e agressivo empregue nas palavras proferidas, as quais tinham potencialidade para alcançar esse desiderato.

12.       O ofendido nunca chegou a entregar qualquer quantia monetária ao arguido, tendo antes apresentado queixa-crime contra o mesmo, a qual deu origem ao presente processo.

13.       Ao actuar da forma descrita, o arguido agiu de forma livre, consciente e com o propósito de obter o pagamento da quantia de 400 € (quatrocentos euros), referida em 1., sabendo que constrangia o ofendido, causando-lhe receio de que algo de mal lhe pudesse acontecer, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar tal receio e constrangimento, e que dessa forma forçava o ofendido a dispor dos seus bens patrimoniais,

14.       (…) o que só não aconteceu porque o ofendido resolveu apresentar queixa contra o arguido e não pagar qualquer importância.

15. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Da situação sócio-económica do arguido

16.       O arguido possui 46 anos e nasceu em (...) ; o pai exercia actividade de empregado de balcão e a mãe era doméstica; tem um irmão uterino mais novo e desconhece quantos irmãos consanguíneos tem.

17.       Os progenitores separaram-se antes de o arguido nascer, tendo este permanecido à guarda e cuidados da mãe até aos 6 (seis) meses de idade, altura em que esta se deslocou para Portugal e aquele ficou com a sua avó materna, em (...) .

18.       Aos 10 (dez) anos de idade o arguido veio para Portugal, tendo fixado residência na casa de um tio materno, em (...) ; cerca de seis anos mais tarde foi viver com a sua progenitora, em (...) , com quem permaneceu até aos 18 (dezoito) anos de idade, altura em que se autonomizou.

19.       Iniciou a escolaridade na idade normal, em (...) , onde completou a 3.a Classe; prosseguiu os estudos em Portugal, tendo concluído o 6.° ano.

20.       Começou a trabalhar aos 18 anos de idade, na construção civil; após, exerceu a actividade de operário fabril; em (...) , onde se fixou há cerca de vinte e um anos, tem trabalhado na construção civil, de modo irregular.

21.       Iniciou um relacionamento aos 22 anos de idade, do qual nasceu um filho, tendo a separação ocorrido cerca de cinco anos depois.

22.       Quando contava cerca de 30 anos de idade, passou a viver em união de facto, com D...., relação da qual nasceram cinco filhos.

23.       Iniciou os consumos de estupefacientes na adolescência, os quais manteve regulares ao longo da vida, tendo desenvolvido problemática aditiva. Não lhe são conhecidas tarefas estruturadas ou de lazer.

24.       No período que antecedeu a sua actual reclusão, o arguido vivia sozinho, em casa arrendada, localizada na zona medieval da cidade de (...) , mantendo uma relação de namoro com C... .

25.       Encontrava-se desempregado há cerca de três anos, efectuando alguns trabalhos esporádicos, na construção civil.

26.       Mantém contacto familiar com um tio materno e com os cinco filhos mais novos, que possuem entre 16 e 11 anos de idade, e que o visitam no Estabelecimento Prisional.

27. Não mantém contactos com o filho mais velho, que actualmente possui 21 anos de idade.

28.       Em termos de vida futura, o arguido perspectiva ir viver com o tio materno, em (...) , contando com a sua disponibilidade para o apoiar no processo de reinserção social.

29.       No meio local onde residia antes da reclusão, o arguido é associado ao tráfico e consumo de estupefacientes.

30.       O arguido refere estar abstinente do consumo de estupefacientes desde que deu entrada no Estabelecimento Prisional de (...) , não tendo solicitado qualquer intervenção psicoterapêutica a este nível.

31.       O arguido demonstra preocupação face à sua situação jurídica e às consequências penais que daí possam advir, assumindo uma postura de desresponsabilização e revelando um elevado desconforto psicológico.

32.       No Estabelecimento Prisional o arguido tem vindo a registar uma evolução positiva, relevando preocupação em manter uma conduta adequada às regras institucionais, bem como o esforço em exercer actividades ocupacionais (Ginásio) e em adquirir competências pessoais e formativas, encontrando-se a frequentar o "Curso EFA B3 (3.º Ciclo)".

Dos antecedentes criminais

33. O arguido foi condenado pela prática:

33.1. no ano de 2014, de um crime de receptação, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 6 €, por sentença proferida em 15.09.2016, pelo Juízo Local Criminal da Guarda, transitada em julgado em 06.10.2016;

33.2. em 31.08.2015 e 09.05.2016, de um crime de tráfico de estupefacientes e de um crime de detenção de arma proibida, respectivamente, nas penas de 4 anos e 9 meses de prisão e 120 dias de multa, à taxa diária de 5 €, por acórdão proferido em 26.01.2017, pelo Juízo Central Criminal de Castelo Branco, transitada em julgado em 27.02.2017.

Não se provou que:

a)         B... tivesse perdido o telemóvel referido em 1. e que este tivesse chegado à posse do arguido, de modo não apurado;

b)         em Outubro de 2015 tivesse chegado ao conhecimento do ofendido B... que o seu telemóvel se encontrava na posse do arguido A... e que este utilizava o telefone número (...) ;

c)         o telefonema referido em 4. tivesse tido lugar, concretamente, no dia 04.10.2015, cerca das 12h30m, e que o ofendido tivesse questionado o arguido se tinha o seu telemóvel, e que este tivesse respondido afirmativamente;

d)         quando do referido em 9., o arguido tivesse afirmado "podes ligar que eu parto-te as pernas";

e)         quando do referido em 10., o arguido tivesse chegado a entrar no "Centro de Saúde";

f)          o arguido tivesse actuado com o propósito de obter para si um enriquecimento ilegítimo e de causar prejuízo ao ofendido.

DECIDINDO:

            No douto parecer que elaborou, o Ex.mo PGA, na sequência do que alega o recorrente, suscita uma questão prévia que se prende com a pretensa nulidade da sentença recorrida, nos termos do artº 379º, nºs 1, b) e 2 do CPP.

            Entre o mais, invoca a jurisprudência fixada pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 11/2013, de 12/6/2013, publicado no DR nº 138/2013 – I Série, de 19/7/2013, do seguinte teor:

«A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artº 358º nºs 1 e 3 do CPP»

            Ressalvado o devido respeito por tão douta opinião, permitimo-nos discordar da aplicação de tal jurisprudência fixada ao nosso caso, porquanto se nos afigura que a situação ali retratada não coincide completamente com aquela que ora nos ocupa. Com efeito, no nosso caso está em causa uma alteração da qualificação jurídica a que o tribunal procedeu, na sentença, sem todavia ter lançado mão do mecanismo protector da comunicação de alteração não substancial, previsto no artº 358º do CPP. Ou seja, no nosso caso tal alteração ocorreu já na fase da sentença, após produção da prova.

            O caso analisado no referido AUJ diferencia-se do nosso porque ali está em causa uma comunicação da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, operada ainda antes, sequer, do início da produção da prova, a abrir a audiência de julgamento. Tanto assim é que na fundamentação de tal AUJ, no título VI, sob a epígrafe ‘O thema decidendum’ é expressamente referido que «a questão objecto do presente recurso, como assinala o acórdão recorrido “diz respeito à possibilidade ou não de o juiz alterar a qualificação jurídica dos factos operada na acusação depois de recebida esta – ou de ter havido despacho de pronúncia - e sem produção de prova em julgamento”, ou seja, se é ou não permitido ao juiz, depois de te sido declarada aberta a audiência de discussão e julgamento, alterar a qualificação jurídica dos factos, indicada na acusação, - ou no despacho de pronúncia - nomeadamente desqualificando a ilicitude imputada na acusação, sem que haja produção de prova».

            Assim sendo, devemos concluir que não tem aplicação ao caso a jurisprudência fixada no AUJ a que temos vindo a fazer referência.

            Assim sendo, e nesta perspectiva, deve improceder a invocada questão prévia.

            Analisadas as conclusões que o recorrente retira da motivação do seu recurso, constatamos que são as seguintes as questões que coloca à nossa apreciação censória:

- em primeiro lugar pretende que tendo sido condenado por crime diverso daquele por que vinha acusado, sendo tal alteração operada fora da hierarquia do mesmo crime, e sem lhe ter sido comunicada essa alteração da qualificação, nos termos do disposto nos artºs 358º e 324º do CPP, tal acarreta a nulidade da sentença, nos termos do disposto no artº 379º do mesmo CPP;

- por outro lado, entrando na análise do fundo da questão, pretende que não praticou o crime de coacção, na forma tentada, por que foi condenado, pois que não se provou qual a acção que o ofendido foi constrangido a tomar ou qual a conduta que foi forçado a omitir, em virtude da conduta do arguido.

            O arguido vinha acusado pela prática de um crime de extorsão, na forma tentada, p.p. pelos artºs 223º, 1 e 22º, 1 e 2, b), do CP e acabou sendo condenado pela prática de um crime de coacção, na forma tentada, p.p. pelos artºs 154º, 1 e 2 e 22º, 1 e 2, a) e b), do CP.

            Tal alteração da qualificação jurídica teve lugar sem precedência de comunicação ao arguido, nos termos do artº 358º, 1 e 3, do CPP.

            Será que tal circunstância determina a nulidade da sentença, por condenar por factos diversos dos descritos na acusação, «fora dos casos e das condições previstos nos artºs 358º e 359º», nos termos do disposto no artº 379º, 1, b), do CPP?

Em processo penal, o regime das nulidades obedece ao princípio da legalidade enunciado no nº1, do art. 118º, segundo o qual a violação ou a inobservância das disposições da lei de processo penal só determina a nulidade quando esta for expressamente cominada na lei.

Um dos casos em que a lei comina expressamente com nulidade a violação de determinadas estatuições legais, é o do art. 379º, que enumera taxativamente, no seu nº 1, as causas de nulidade da sentença.

Aí se dispõe que, em processo comum, a sentença é nula:

a) Se não contiver as menções referidas no nº 2, e na alínea b) do nº 3, do art. 374º; 

b) Se condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, fora dos casos previstos nos art.s 358º e 359º; 

c) Quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia conhecer.

São estes os casos e não outros que determinam a nulidade da sentença.

Na perspectiva em que os recorrentes enfocam a arguida nulidade, esta consistiria na sua condenação por factos não constantes da acusação.

Recordemos que o que está em causa não é propriamente a condenação por factos diversos, mas antes a condenação por crime diverso (formalmente) mas menos grave do que o acusado.

            A sentença debruçou-se concretamente sobre esta questão, nos seguintes termos:

«Na verdade, da factualidade provada decorre que as ameaças que o arguido dirigiu ao ofendido se dirigiam à cobrança de uma dívida. A conduta do arguido queda-se, assim, pelo crime de coacção, não chegando a preencher todos os elementos constitutivos do crime de extorsão.

Ora, tal como se explanou supra, todos os elementos constitutivos do crime de coacção se encontram pressupostos no crime de extorsão, sendo a diferença entre ambos, precisamente, o prejuízo patrimonial sofrido pelo ofendido e a intenção de o agente obter enriquecimento ilegítimo. Faltando estes últimos, caímos no âmbito daquele primeiro crime, como sucede no caso em apreço.

O crime de coacção encontra-se previsto no artigo 154.° do Código Penal, que dispõe:

«1 - Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

2 - A tentativa é punível.»

(…)

A conduta do arguido, descrita nos factos provados, preenche inequivocamente todos os elementos constitutivos deste tipo legal de crime, na forma tentada, porquanto era adequada a constranger o ofendido a pagar-lhe as quantias que lhe solicitou, para lhe devolver o seu telemóvel, ou seja, à produção do resultado típico, mas este não se chegou a concretizar, por motivos alheios à sua vontade - 1 a 15 dos factos provados.

Tanto significa que o arguido incorreu na prática do crime de coacção, na forma tentada, previsto e punível pelo artigo 154.°, n.º 1, do Código Penal, e não na prática do crime pelo qual vem acusado.

Será, pois, o arguido absolvido pela prática do crime de extorsão na forma tentada, e condenado pelo crime de coacção na forma tentada, o qual, porque menos grave do que aqueloutro e os factos que o preenchem terem decorrido da prova que se produziu na audiência de julgamento, nomeadamente, das declarações prestadas pelo arguido, não implica que se proceda às comunicações previstas no artigo 358.°, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal

A norma do artº 1º, f) do CPP, dá-nos a definição legal do que seja uma alteração substancial dos factos: «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis».

Daqui, por elementos ‘a contrario’, podemos retirar que todas as demais alterações serão não substanciais.

            Ou seja, a tónica é posta na condenação do arguido por crime diverso do acusado ou na agravação dos limites máximos das penas aplicáveis.

            Nos termos do disposto no artº 358º, 1, conjugado com o seu nº 3, se no decurso da audiência se revelar necessário alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, «com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa».

Em termos adjectivos, a necessidade dessa alteração há-de revelar-se em julgamento, resultar da produção da prova em audiência. Não há-de tratar-se de caso em que os factos da alteração não são supervenientes, mas existam e sejam conhecidos desde o início do processo, apenas acontecendo que o MP ou o juiz os não hajam tido em conta devidamente ou hajam procedido ao seu deficiente enquadramento legal.

            Este instituto processual penal (da alteração dos factos) constitui uma concessão às necessidades de pragmatismo, de forma a permitir ultrapassar situações em que a acusação ou a pronúncia contêm omissões ou imprecisões, mediante a alteração desses factos, sem contudo tocar na garantia de defesa/contraditório e no essencial desses libelos, tornando mais claros e mais condicentes com a realidade os factos ou as suas circunstâncias; do mesmo modo permitem ‘corrigir’ os factos narrados naquelas peças quando o decurso da audiência revele que o acontecimento naturalístico descrito não se processou daquele modo mas antes de modo diverso.

            Todavia, a lei não consagrou tal possibilidade de forma descontrolada, antes estabelecendo limites que são os que constam da definição legal que resulta daquela alínea f) do artº 1º do CPP. Ou a alteração se contém dentro desses limites (não tendo por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis) e então, após garantia do contraditório, mediante comunicação ao arguido e concessão de prazo, se requerido, para preparação da defesa, também quanto a esses pontos factuais, o julgamento poderá prosseguir quanto a eles, ou não. Neste caso, sendo a alteração de qualificar de substancial, o julgamento só poderá prosseguir quanto aos factos novos se nisso estiverem de acordo o MP, o arguido e o assistente (artº 359º, 3). Na falta deste acordo, e estando em causa factos autonomizáveis (ou seja, que não integrem um crime exaurido, de execução permanente ou uma continuação criminosa, entre outras situações) a comunicação respectiva ao MP valerá como denúncia, para que ele proceda por esses novos factos (nº 2).

            Estando nós no campo da alteração da qualificação jurídica a dar aos factos provados em julgamento, e vistas essas necessidades de pragmatismo, de forma a obviar a incompreensíveis casos em que, no confronto entre os direitos de defesa do arguido e as necessidades de administração da justiça penal por parte da comunidade, estas últimas tinham de ceder, em todos os casos, nas circunstâncias em que, mantendo-se inalterada a substância da peça introdutória do facto em juízo, a realidade revelada pelas provas se mostrava diversa daquela ali descrita.

            Daí a necessidade, sentida pelo legislador, de estabelecer tal válvula de segurança, permitindo obviar a situações de bloqueio processual, que de outro modo ocorreriam, mediante a possibilidade de o julgamento prosseguir, de forma a fazer coincidir, na maior extensão possível, a realidade narrada na peça introdutória do feito em juízo, com a verdade naturalística dos factos. Todavia, não fez essa concessão sem estabelecer limites, visando estes, no essencial, deixar intocados os direitos de defesa do arguido, v.g. o do contraditório. Como diz Maia Gonçalves, em anotação ao artº 358º (no seu CPP Anotado), «neste artigo e no seguinte condensam-se os ensinamentos da doutrina mais autorizada sobre esta matéria, de modo a harmonizar, dentro do possível, a celeridade processual e o aproveitamento do processado com os imperativos legais do princípio contraditório e de uma defesa eficaz e em tempo útil por parte do arguido».

            Como bem refere o aresto impugnado, o crime de extorsão (artº 223º, 1) constitui um ‘plus’ relativamente ao crime de coacção (artº 154º, 1), pois que a sua previsão integra a previsão deste, de forma completa, apenas acrescida de um dolo específico de conseguir para si ou para outra pessoa um enriquecimento ilegítimo. Aliás, se bem repararmos, a previsão deste último é parcialmente decalcada sobre a previsão do primeiro.

            Aliás, como muito bem refere a sentença recorrida, apenas a circunstância de se ter considerado como não provada a factualidade constante da al. f) respectiva (que o arguido tivesse actuado com o propósito de obter para si um enriquecimento ilegítimo e de causar prejuízo ao ofendido) determinou essa convolação de um tipo mais grave para um outro menos grave «e os factos que o preenchem terem decorrido da prova que se produziu na audiência de julgamento, nomeadamente das declarações prestadas pelo arguido».

            Ou seja, existe uma relação de especialidade entre os dois tipos criminais em causa, sendo que o de extorsão tem uma previsão mais ampla e compreensiva relativamente ao de coacção, mas contendo na sua previsão todos os elementos deste integrantes. O crime de extorsão é como que um crime de coacção ‘agravado’, atenta a referida intenção que preside à conduta do agente. Por isso, o tratamento a dar à questão deve ser o mesmo que se dá aos casos em que, estando o agente acusado pela prática de um crime agravado (de homicídio, de ofensa à integridade, de burla, de injuria, etc) cai em julgamento a circunstância que determinava a agravação ou qualificação. O agente será punido pela prática do tipo base, cujos elementos estão já abrangidos pela previsão do tipo agravado e relativamente ao qual foram concedidas ao arguido todas as possibilidades de defesa. Quem se defendo do mais, defende-se do menos!

            E é este, precisamente o nosso caso, em que, sendo embora verdade que – como afirma o recorrente – estamos perante crimes de diversa natureza formal, não é menos certo que, se no crime de coacção o bem jurídico protegido é a liberdade de decisão e de acção, no de extorsão a protecção da norma é essa mesma, acrescida da liberdade de disposição patrimonial.

            Como ensina Américo Taipa de Carvalho (Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo II, pag. 340), «a extorsão tem muitos elementos comuns a vários outros tipos de crime, nomeadamente os de coacção (artº 154º) (…). Estruturalmente, as maiores afinidades são com o crime de coacção, pois que todos os elementos integrantes da factualidade típica deste crime fazem também parte do crime de extorsão, especializando-se este, em relação ao crime de coacção, apenas pela exigência de a conduta coagida se traduzir num injusto prejuízo para o sujeito passivo (a vítima da cocção ou outra pessoa) e num benefício ilegítimo para o agente ou para terceiro. Por isto, o tipo de crime de extorsão é, rigorosamente, uma lex specialis face ao tipo de crime de coacção».

            Ou seja, e em jeito de conclusão: o crime de extorsão, em termos de dogmática jurídica, bem podia ser nominado como sendo um crime de coacção qualificado, sem qualquer ofensa para a mais informada exegese.

            Ora, no nosso caso, tendo caído a qualificativa (traduzida naquela especial intenção criminosa, levada aos factos não provados), o arguido deverá ser condenado pela estatuição do tipo base, relativamente ao qual lhe foram concedidas amplas possibilidades de defesa.

            Por tudo isto se deve concluir que, salvo o devido respeito pela opinião contrária, não estamos perante um caso de accionamento de tal válvula de segurança (da comunicação da alteração da qualificação jurídica), por não ocorrerem os apontados pressupostos do instituto em causa. Com efeito, o tipo por que acabou sendo o arguido condenado é enquadrado por uma moldura penal que lhe é muito favorável (prisão até 3 anos ou multa, por contraposição a prisão de 1 a 5 anos).

            A norma do artº 358º, 1 e 3, do CPP deve ser entendida como referindo-se aos casos em que a previsão típica do crime convolado não é completamente coincidente com a do crime acusado ou em que, pese embora ocorra essa coincidência, o tipo da convolação é enquadrado por uma moldura mais gravosa para o arguido.

            Prossegue o recorrente afirmando que não se pode afirmar que o ofendido foi constrangido a não apresentar queixa. Tal afirmação, no entanto torna-se incompreensível pois que na sentença foi referido que esse constrangimento se dirigia à obtenção do pagamento da quantia de 400 euros, devidos (?!) pelo ofendido ao arguido, relativos a dívida de fornecimento de drogas que este lhe fizera.

            Com efeito, é isso que resulta da sentença impugnada que, expressamente, o refere nos seguintes termos:

«Desta factualidade decorre que o arguido anunciou ao ofendido a prática de um acto, no futuro, mais precisamente que o molestaria fisicamente, caso este não lhe pagasse a quantia de 400 €, relativa a produto estupefaciente que lhe cedera.

Tal actuação constitui uma ameaça com um mal importante, com vista a constranger que o ofendido lhe entregasse a mencionada quantia.

Atento o concreto contexto em que o arguido actuou, reiterando tais ameaças por contacto pessoal, por conversa telefónica e por mensagem, tal ameaça era adequada a fazer o ofendido recear a respectiva concretização e, nessa medida, a constrangê-lo a praticar o acto pretendido, o que apenas não sucedeu por motivos alheios à vontade daquele.»

            Prossegue afirmando que a tentativa exigiria o ‘resultado’ de ter sido causado efectivo receio no visado, o que afirma não ter acontecido.

É a seguinte a previsão do artigo 154.° do Código Penal, relativo ao crime de coacção:

«1 - Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

2 - A tentativa é punível

Refere a sentença recorrida: «O tipo objectivo de ilícito consiste em constranger outra pessoa a adoptar determinado comportamento ou a praticar, omitir ou suportar determinada acção.

Os meios de coacção utilizados podem ser a violência ou a ameaça com mal importante, tratando-se, assim, de um crime de execução vinculada.

Tal como ensina Taipa de Carvalho,' o «mal importante» não tem de constituir um ilícito, nem sequer que ser ilegítimo.

Por outro lado, «(…) a existência de uma verdadeira ameaça não exige a real dependência do «crime ameaçado» da vontade do agente, bastando que apareça ao ameaçado como dependente do ameaçador (…), nem pressupõe a intenção do agente de concretizar a ameaça, isto é, de praticar o crime objecto da ameaça (…).»

Basta, pois, que a execução da ameaça se apresente como dependendo exclusivamente da vontade do agente, segundo um critério objectivo-individual, ou seja, tendo em conta a perspectiva do homem médio, em conjugação com as características individuais da pessoa ameaçada.

A ameaça de mal importante tem que ser adequada a constranger a vítima, de modo a prejudicar a sua liberdade de determinação, ou seja, tem que ser idónea a provocar nesta um estado de temor tal, que seja induzida a escolher, como saída menos gravosa, a realização de determinado comportamento, pretendido pelo agente.

Estamos, ainda, perante um crime de resultado, pelo que se a sua consumação exige que a vítima tenha sido efectivamente constrangida a praticar, omitir ou tolerar a acção, de acordo com a vontade do agente e contra a sua própria vontade

            O receio (resultado) que o recorrente afirma não se ter verificado de forma efectiva verificou-se e consta, expressamente, daquilo que se mostra provado nos autos (v. factos provados 8 a 11 dos quais resulta, sem margem para dúvidas de que, com o seu comportamento, o arguido «quis provocar receio e insegurança no ofendido, o qual, em consequência das afirmações daquele, se sentiu atemorizado e perturbado, atento o modo sério e agressivo empregue nas palavras proferidas, as quais tinham potencialidade para alcançar esse desiderato».

            Ora, não impugnando validamente tal matéria de facto dada como assente, não pode o recorrente contrapor a sua convicção subjectiva à do tribunal, formada de acordo o princípio da livre apreciação da prova, com concessão dos mais amplos direitos de defesa, designadamente do exercício do contraditório, num ambiente de oralidade e de imediação.

            Não tem aplicação ao caso a norma do artº 424º, 3, do CPP, pois que esta só será de accionar quando se tratar de uma alteração da qualificação jurídica não conhecida do arguido, o que não é o nosso caso. O tipo de coacção estava já ínsito no tipo de extorsão por que fora acusado. Por outro lado, e em termos formais, essa norma nunca poderia ser aplicada ao caso pois que apenas é aplicável quando haja lugar audiência de julgamento (em recurso), a qual não foi requerida, pelo que o presente recurso está a ser julgado em conferência.

Ao invocar a norma do artº 410º, 2, a), do CPP, o recorrente parece querer afirmar a ocorrência de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Refere tal vício à consideração de que o ofendido não pode ser tido ‘homem médio’ para os fins de consideração da sua possibilidade de ser influenciado pelas ameaças proferidas pelo arguido. Mas tal questão foi já apreciada, concluindo nós que o estado de receio e insegurança foram causados na pessoa do ofendido em virtude das condutas causais do arguido. Assim sendo, não ocorre qualquer vício de insuficiência, v.g. o invocado.

Termos em que, nesta Relação, se acorda em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra a douta decisão recorrida.

Custas pelo arguido, com taxa de justiça fixada em 4 UC’s.

Coimbra, 13 de Dezembro de 2107

Jorge França (relator)

(Elisa Sales (adjunta)