Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2372/10.0TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: RESPOSTAS AOS QUESITOS
MATÉRIA DE FACTO
MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA
Data do Acordão: 03/06/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA 5º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: N.º 4 DO ARTIGO 646.º CPC
Sumário: 1- Aplica-se por analogia o disposto no n.º 4 do artigo 646.º CPC quando o tribunal, ao responder a um quesito, vai além da matéria de facto nele contida, pelo que, nessa parte, a resposta considera-se não escrita.

2- Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação não for susceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual.

3- Tendo o contrato de mediação imobiliária celebrado entre as partes sido declarado nulo, a ré tem que restituir ao autor os € 8 000 000,00 que dele recebeu a título de remuneração pelos serviços que lhe prestou e este que restituir àquela o valor dos serviços de mediação imobiliária que, de facto, foram prestados.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A... instaurou, na comarca de Coimbra, a presente acção declarativa, com processo sumário, contra B... L.da, pedindo que:

- o contrato de mediação celebrado entre as partes seja declarado nulo;

- a ré seja condenada a devolver-lhe € 8 000,000, pagos a título de comissão; ou

- caso assim não se entenda, ordenar-se o pagamento da comissão sobre o valor do sinal, condenando-se a ré a devolver € 7 037,50.

Alega, em síntese, que contactou a ré no âmbito da sua actividade de mediação imobiliária, para promover a venda de um imóvel seu, sito na Rua do X..., em Coimbra, comprometendo-se esta a apresentar o contrato de mediação posteriormente, acordando então apenas verbalmente as condições do negócio.

A ré encontrou um interessado e iniciou com este o processo negocial para a formalização da compra e venda, com o qual o autor celebrou um contrato-promessa, onde se estabeleceu o preço de € 275 000,00, tendo sido pago a título de sinal a quantia de € 27 500,00, acordando-se que o pagamento do restante preço efectuar-se-ia aquando da celebração da escritura do contrato prometido. Após a assinatura do contrato-promessa, o autor contactou a ré com o intuito de proceder à liquidação da sua remuneração, e foi-lhe comunicado que o valor desta era de € 8 000,00, tendo então efectuado o respectivo pagamento, com a condição de tal quantia lhe ser devolvida no caso de o negócio não se concretizar.

Nessa ocasião questionou o funcionário da ré sobre a celebração do contrato de mediação, tendo sido informado que este lhe seria entregue em breve, o que não chegou a acontecer.

Não tendo os promitentes-compradores cumprido o contrato-promessa, o autor comunicou à ré a resolução do mesmo, por incumprimento imputável àqueles, e solicitou que lhe fosse restituído o montante pago a título de comissão, o que lhe foi negado.

A ré contestou dizendo, em suma, que o autor pretendia que não fosse reduzido a escrito o contrato, de forma a evitar a respectiva tributação, mas o emitiu e registou no respectivo livro.

Apresentado várias vezes ao autor para que o assinasse, este recusou-se a subscrevê-lo. O autor apercebeu-se que poderia ser útil a sua recusa em assinar, pelo que, ao vir agora requerer a declaração da nulidade do contrato de mediação por vício de forma, quando tal vício lhe é exclusivamente imputável, actua com abuso de direito e litiga com manifesta má-fé.

O contrato de mediação elaborado reflecte exactamente as condições acordadas entre as partes, dele constando a intenção de que a remuneração, pela prestação de serviços, seria paga na sua totalidade na sequência da celebração do contrato-promessa de compra e venda.

Mais alega que o contrato-promessa celebrado continua plenamente em vigor, pelo que, fazer fundamentar a pretensão de restituição da remuneração no seu incumprimento definitivo, sem que este esteja declarado, é uma contradição insanável. Assim, conclui, a causa de pedir invocada não pode, por qualquer forma, sustentar o pedido.

O autor respondeu dizendo não actua com má-fé.

Foi proferido saneador e fixaram-se os factos assentes e elaborou-se a base instrutória.

Realizou-se julgamento e proferiu-se sentença em que se decidiu:

"Por tudo o exposto, declaro improcedente por não provada a presente acção, e como tal absolvo a ré do pedido."

Inconformado com tal decisão, o autor dela interpôs recurso, que foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

1. Deve ser modificada a decisão proferida sobre a matéria de facto;

2. Devem ser dados como provados os factos constantes nos pontos n.º 3, 4, 6 e 7 da base instrutória;

3. Deve ser dado como provado o ponto n.º 11 da base instrutória, mas alargado o seu âmbito, prevendo que “só após ter sido sugerido ao A. um desconto na comissão final devida pela R., é que se acordou que a remuneração pela prestação de serviços seria paga na sua totalidade, na sequência da celebração do contrato-promessa de compra e venda”.

4. No respeito pelo princípio consagrado no art. 289.º n.º 1 do C.C., a nulidade importa que seja “restituído tudo o que tiver sido prestado, ou se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.”.

5. Não aceita o recorrente a solução que entretanto foi encontrada, nomeadamente, quando se considerou existir “neste caso e circunstância, obstáculo à restituição: no âmbito das obrigações naturais, - das obrigações não dotadas de acção (coagíveis ou judicialmente exigíveis), ou seja, de juridicidade vinculante activa.” - cfr. sentença, pág. 13, §2.

6. De acordo com a fundamentação do tribunal “a quo”, se a quantia correlativa ao valor da comissão é devida no pressuposto da conclusão do negócio, e se, no caso em concreto, o negócio não se concretizou, teria tal quantia que ser repetida.

7. A repetição de uma prestação inserida em negócio nulo deve ceder perante o interesse de ordem pública que a declaração de nulidade visou proteger, designadamente quando se tratar de vício de forma “ad substantiam”.

8. Neste caso, designadamente no que concerne ao valor da retribuição mutuada – em sintonia com o caso sub judice no que se refira à comissão pela prestação de serviços – resulta que o interesse subjacente à declaração de nulidade do mútuo não reduzido a escritura pública (ou, no caso, do contrato de mediação imobiliária em que falta uma assinatura) tem interferência com a retenção da prestação antecipadamente paga.

9. A obrigação diz-se natural por se fundar “num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça.” – cfr. art. 402.º do C.C..

10. Contrariamente, a obrigação diz-se civil quando caracterizada pela existência de um vínculo jurídico, em que o devedor é obrigado a prestar, e o credor tem o direito de exigir judicialmente o cumprimento da prestação.

11. Ora, caso o A. não cumprisse com o pagamento da comissão, não estaria vedado à R. exigir judicialmente o seu cumprimento. Daí a natureza civil da obrigação.

12. O acordo celebrado entre A. e R. surgiu dentro da liberdade estatuída no art. 405.º do C.C., e como tal, dentro da esfera de obrigação civil.

13. A demonstrar-se que o pagamento da comissão pelo A. foi realizado na expectativa e sob condição de que tal quantia lhe seria devolvida, no caso de o negócio definitivo não se realizar, a declaração negocial valerá de acordo com a vontade real do declarante, se ela for conhecida do declaratário (art. 236.º n.º 2 do C.C.). Não o sendo, valerá com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação de declaratário real, possa deduzir do comportamento do declarante.

14. Então, o pagamento da comissão pelo A. não podia deixar de ser captado por qualquer pessoa medianamente diligente e sagaz, senão no sentido de o A. estar a assumir essa obrigação como um vínculo e como uma contrapartida para alcançar a concretização do negócio prometido.

15. Finalmente, e na hipótese de se não demonstrar ter sido estipulada a condição de repetição da comissão no caso de não ser concretizado o negócio, haveria que lançar mão da figura do erro do solvens no acto do cumprimento (art. 476.º n.º 3 do C.C.). Pois, aqui, se a obrigação (in casu, pagamento da comissão) estiver sujeita a condição suspensiva (in casu, o cumprimento do contrato de compra e venda) que ainda não se verificou no momento da prestação (in casu, feita aquando do contrato-promessa), “esta poderá ser repetida se o solvens a realizou, supondo preenchida a condição: é a hipótese abrangida pelo espírito da lei, enquanto a condição não se verifica.” – cfr. Pires de Lima, Antunes Varela, Código Civil Anotado, Tomo I, pág. 464.

16. E resulta por demais evidente que, no caso ora em transe, todas as testemunhas davam o contrato prometido como garantido, e, como tal, preenchida a condição.

Termina pedindo que se revogue a "sentença recorrida, substituindo-se por outra que, considerando a fundamentação ora explanada, declare a acção totalmente procedente, condenando a R. no pedido."

A ré contra-alegou sustentando que deve ser mantida a decisão recorrida.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil[1], as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:

a) há erro no julgamento da matéria de facto dos quesitos 3.º, 4.º, 6.º, 7.º e 11.º, averiguando-se previamente se há lugar à reapreciação desse julgamento;

b) nos termos do disposto no artigo 289.º n.º 1 do Código Civil ou do artigo 476.º n.º 3 do mesmo diploma, a ré deve restituir ao autor a quantia que dele recebeu.


II

1.º


Foram considerados provados os seguintes factos:

A- O autor contactou a ré no âmbito da sua actividade de mediação imobiliária, para promover a venda de um imóvel, sua propriedade, sito na Rua X..., em Coimbra.

B- A ré encontrou um potencial comprador e iniciou com este o processo negocial para a formalização do negócio, vindo o interessado e o autor a acordar no preço da venda.

C- Tendo sido celebrado contrato-promessa, nas instalações da ré, no dia 31 de Março de 2008, o preço global do negócio ascendia a € 275 000,00, sendo pago a título de sinal € 27 500,00 e o restante à data da celebração da escritura do contrato prometido.

D- De acordo com o clausulado do contrato-promessa, a marcação da escritura caberia aos promitentes-compradores até 30 de Junho de 2008, comprometendo-se estes a avisar o autor com 15 dias de antecedência.

E- Após a assinatura do contrato promessa o autor contactou a ré com o intuito de proceder à liquidação da sua remuneração e foi-lhe comunicado que o valor da remuneração seria de € 8 000,00.

F- O autor procedeu ao pagamento da remuneração em dinheiro.

G- O autor não assinou contrato escrito de mediação.

H- Não ocorreu celebração de contrato definitivo, após a celebração do contrato-promessa referido.

I- Teor do documento junto à contestação com designação de "Contrato de Mediação Imobiliária (nos termos do Decreto-Lei n.º 211/2004 de 20 de Agosto)"-, contendo além do mais o seguinte clausulado pré-impresso, e com preenchimento manuscrito dos espaços em branco, com os dizeres que se sublinham:

Cláusula 5.ª (Remuneração)

1 - A remuneração só será devida se a Mediadora conseguir interessado que concretize o negócio visado pelo presente contrato, nos termos e com as excepções previstas no art. 18.º do DL n.º 211/2004 de 20 de Agosto;

2. O segundo contraente obriga-se a pagar à Mediadora a título de remuneração: X A quantia de 3 % calculada sobre o preço pelo qual o negócio é efectivamente concretizado, acrescida de IVA à taxa legal em vigor....

3. O pagamento da remuneração apenas será efectuado nas seguintes condições:

- X O total da remuneração aquando da celebração do contrato-promessa.

- _____% após a celebração do contrato promessa e o remanescente de ____% na celebração da escritura ou conclusão do negócio.

- O total da remuneração aquando da celebração da escritura ou conclusão do negócio visado.

Tal documento mostra-se datado manuscritamente de "8 de Fevereiro de 2008" e sob tal indicação, em espaço reservado a assinatura da mediadora, sobre carimbo pré-impresso " B..., Ldª matrícula.....Mealhada" consta assinatura ilegível, não constando qualquer assinatura no espaço reservado a assinatura do segundo contratante.

J- Quando o autor contactou a ré, apenas foram acordadas verbalmente as condições do negócio.

K- Ao menos após a assinatura do contrato promessa, o funcionário da ré interpelou o autor para assinar contrato de mediação escrito, entretanto elaborado.

L- O autor pagou, esperando que tal quantia lhe seria devolvida, no caso de o negócio definitivo se não realizar.

M- A ré emitiu contrato e registou-o no respectivo livro.

N- Ao menos após a outorga do contrato-promessa, foi apresentado ao autor várias vezes o contrato escrito em conformidade com o modelo referido em I) dos factos assentes, para que o assinasse e o mesmo recusou-se a subscrevê-lo.

O- Era intenção que a remuneração pela prestação de serviços seria paga na sua totalidade na sequência da celebração do contrato-promessa de compra e venda.

P- Não tendo sido marcada escritura até à data estipulada no contrato-promessa, o autor exigiu a restituição da comissão.

Q- e tendo-se aqueles recusado a fazê-lo, o autor ameaçou-os dizendo que se queixaria da Ré ao INCI, e à DECO,

R- O autor acabou por concretizar tais ameaças tendo a ré tido dois processos naquelas duas entidades.


2.º

O autor sustenta, no que se refere ao julgamento da matéria de facto dos quesitos 3.º, 4.º, 6.º, 7.º e 11.º, que a prova dos autos conduz a conclusões diferentes das extraídas pelo tribunal a quo.

Estes quesitos têm o seguinte teor:

"3) O entendimento que retirou das conversações foi de que, caso a venda não se concretizasse, a quantia lhe seria devolvida.

4) E pagou com a expectativa e sob condição de que tal quantia lhe seria devolvida, no caso de o negócio definitivo não se realizar.

6) A ré sempre referiu que a remuneração apenas seria devida caso ocorresse concretização do negócio- a alienação efectiva do imóvel.

7) Nada se estipulou para a situação em que houvesse recebimento de sinal e não concretização do negócio mediado.

11) Era intenção que a remuneração pela prestação de serviços seria paga na sua totalidade na sequência da celebração do contrato-promessa de compra e venda."

A eles a Meritíssima Juíza respondeu:

"Artigo 3.º da base instrutória – Não provado.

Artigo 4.º da base instrutória – Provado apenas que o autor pagou, esperando que tal quantia lhe seria devolvida, no caso de o negócio definitivo se não realizar.

Artigo 6.º da base instrutória – Não provado.

Artigo 7.º da base instrutória – Não provado.

Artigo 11.º da base instrutória – Provado."

Segundo o autor, deve dar-se «como provados os factos constantes nos pontos n.º 3, 4, 6 e 7 da base instrutória» e «como provado o ponto n.º 11 da base instrutória, mas alargado o seu âmbito, prevendo que “só após ter sido sugerido ao A. um desconto na comissão final devida pela R., é que se acordou que a remuneração pela prestação de serviços seria paga na sua totalidade, na sequência da celebração do contrato-promessa de compra e venda”»

Antes de mais, cumpre dizer que, no que toca ao quesito 11.º, independentemente da prova produzida, não pode responder-se a esse quesito alargando "o seu âmbito", pois isso significa ir para além do que está quesitado. E, como é sabido, aplicando-se por analogia o disposto no n.º 4 do artigo 646.º, deve-se "considerar não escritas as respostas que excedam o âmbito das questões de facto formuladas"[2]. Com efeito, "não podem ser consideradas as decisões do tribunal (…) sobre factos não quesitados" e se este decidir "questões de facto que não lhe foram postas (…) considera-se não escrita a resposta"[3]. E o mesmo se passa quando se considera provado um facto não alegado[4].

Ora, nem sequer se alegou[5] que "só após ter sido sugerido ao autor um desconto na comissão final devida" à ré "é que se acordou que a remuneração pela prestação de serviços seria paga na sua totalidade, na sequência da celebração do contrato-promessa de compra e venda."

É, portanto, manifesto que quanto que ao quesito 11.º não se pode responder mais do que provado, ou seja terá que, nessa parte, se manter a resposta dada pelo tribunal a quo.

No que se refere aos quesitos 3.º, 4.º, 6.º e 7.º[6], como facilmente se percebe, trata-se de factos relativos ao que terá (ou não) sido acordado no contrato celebrado entres as partes, isto é eles reportam-se a uma parte dos termos do acordo havido entres estas.

Importa, então, realçar que na sentença recorrida se considerou que "face ao factualismo que se acha assente, dúvidas não restam de que entre autora e réu marido foi celebrado um contrato de mediação imobiliária, tipo contratual que deve ser apreciado à luz do Decreto-Lei n.º 211/2004, de 20 de Agosto, publicado no D.R. n.º 196, série I-A, de 20 de Agosto de 2004, que vigorou desde 20 de Setembro de 2004: o autor contactou a ré no âmbito da sua actividade de mediação imobiliária, para promover a venda de um imóvel, sua propriedade, sendo acordadas verbalmente as condições do negócio" e que "ocorre a invocada nulidade, por falta de forma escrita, invocada pelo autor na sua petição inicial, que cumpre declarar, nos termos e ao abrigo do art. artigo 19.º do DL 211/2004 de 20-08-2004."

Sucede que estes segmentos da decisão do tribunal a quo não foram postos em causa neste recurso, pelo que temos que ter por assente que "entre autora e réu marido foi celebrado um contrato de mediação imobiliária" e que esse contrato é nulo.

A impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B, visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorrectamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efectivo objectivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante.

Se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for de todo irrelevante para a decisão a proferir (segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito[7]), então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo.

Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação não for susceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º[8].

Como já se viu, há que respeitar a parte da sentença recorrida que considerou existir um contrato de mediação imobiliária, que, no entanto, se declarou nulo.

Perante o disposto no artigo 289.º n.º 1 do Código Civil, em virtude da nulidade o negócio jurídico "não produz ab initio os efeitos jurídicos que lhe corresponderiam"[9].

Neste circunstancialismo é claro que o que quer que as partes possam ter acordado não produzirá efeito algum, pois a nulidade do contrato assim o impede, o que implica que, mesmo que se provasse que o acordo alcançado tinha os contornos que figuram nos quesitos 3.º, 4.º, 6.º, 7.º[10], sempre tal clausulado era nulo e, por isso, nesse cenário, dele não emergia qualquer obrigação.

Portanto, é de todo inútil reapreciar o julgamento da matéria de facto desses quesitos, motivo por que não se procederá a essa reapreciação, mantendo-se, por consequência, os factos considerados provados pelo tribunal a quo.


3.º

Em conformidade com o que acima se disse, estamos na presença de um contrato de mediação imobiliária que foi declarado nulo.

E provou-se que no âmbito desse contrato:

- o autor contactou a ré para esta, no exercício da sua actividade, promover a venda de um imóvel que detinha em Coimbra.

- ré encontrou um potencial comprador e iniciou com este o processo negocial para a formalização do negócio, vindo o interessado e o autor a acordar no preço da venda.

- então, no dia 31 de Março de 2008, foi celebrado um contrato-promessa entre o autor e esse interessado, onde se convencionou o preço de € 275 000,00, tendo sido pagos, a título de sinal, € 27 500,00.

- após a assinatura do contrato-promessa o autor contactou a ré com o intuito de proceder à liquidação da remuneração desta e foi-lhe comunicado que o valor da mesma era de € 8 000,00.

- o autor pagou à ré, a título de remuneração, € 8 000,00.

Na sentença recorrida, a Meritíssima Juíza, após considerar nulo contrato de mediação imobiliária e tendo presente o princípio estabelecido no n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil, afirmou:

"Resulta do acordo das partes ter ocorrido negociação verbal, na decorrência da qual foi obtido pela ré potencial adquirente, ocorrendo celebração de contrato promessa. E o autor pagou à ré, após a assinatura do contrato promessa remuneração (comissão) comunicada e liquidada de € 8.000,00.

Encontramos, neste caso e circunstância, obstáculo à restituição: no âmbito das obrigações naturais, - das obrigações não dotadas de acção (coagíveis ou judicialmente exigíveis), ou seja, de juridicidade vinculante activa.

Com efeito, fora do domínio das obrigações susceptíveis de coacção judicial, perfilam-se as obrigações naturais, que se fundam em deveres impostos pela moral ou pela sociedade (art. 402º do CCivil). Nelas o credor não pode exigir a prestação (nullo jure cogente), mas o devedor que a cumpre espontaneamente também não a pode repetir (soluti retentio).

(…)

A nulidade não impede se considere realizado o pagamento efectuado pelo autor como no cumprimento de obrigação natural, nos termos dos art.s 402º e 403º do CCivil.

Desta forma, não existindo obrigação de restituição dessa quantia por banda da ré, deve, diante da inexistência do atinente crédito do réu à repetição do prestado, considerar-se não verificado o direito à sua restituição.

O pagamento foi cumprido pelo autor de modo espontâneo, ocorrendo o cumprimento de uma obrigação natural, que impõe a não repetição do que tiver sido prestado, por força do preceituado no art. 403º CCivil.

O credor conserva a prestação devida a título de pagamento, isto é o credor possui a “soluti retentio”, não podendo pois o devedor que cumpriu voluntariamente a prestação gozar da “conditio indebiti” - isto é, não tem a possibilidade de repetir o indevido."

A obrigação natural funda-se num "dever de ordem moral ou social" e esse dever "não é definido por lei, nem podia sê-lo"[11], correspondendo o seu cumprimento apenas a "um dever de justiça"[12] e sendo o devedor "perfeitamente livre de cumprir ou não cumprir".[13]

O pagamento que o autor fez à ré de € 8 000 000,00 não se reveste destas características; ele refere-se à remuneração devida pelos serviços que aquela lhe prestou, no âmbito de um contrato entre eles celebrado. Não se trata, pois, do cumprimento de um qualquer "dever de ordem moral ou social", pelo que, dito com a singeleza das coisas verdadeiras, não estamos na presença de uma obrigação natural.

Tendo sido declarado nulo o contrato em que se fundava a obrigação de pagar aqueles € 8 000 000,00, não podemos deixar de apelar para o disposto no artigo 289.º n.º 1 do Código Civil, onde se estabelece que "tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente."

A nulidade opera, portanto, ex tunc, o mesmo é dizer retroactivamente e, "se o negócio foi cumprido (no todo ou em parte), uma vez anulado, as coisas devem ser repostas in pritinum – no statu quo ante"[14]. Com efeito, "a retroactividade da declaração de nulidade" obriga "à restituição das prestações efectuadas, como se o negócio não tivesse sido realizado."[15] 

Deste modo, não há dúvidas de que a ré tem que restituir ao autor os € 8 000 000,00 que dele recebeu a título de retribuição, ao abrigo do contrato ferido de nulidade.

Mas, a obrigação de restituição é recíproca, o que quer dizer que o autor também tem que restituir à ré o que esta lhe prestou. E o que a ré prestou foram os serviços correspondentes à actividade concreta que levou a cabo para encontrar um interessado na aquisição do imóvel do autor.

Como é evidente, o autor não pode restituir à ré esses serviços, o que nos conduz à conclusão de que, nesta parte, não é possível a restituição em espécie. Neste caso há "lugar à restituição em valor"[16], valor esse que corresponderá ao que de facto foi feito pela ré, pois só assim, no que a esta se refere, se pode alcançar a situação mais próxima possível do seu statu quo ante.

Porém, neste capítulo, nada se provou[17].

Desconhecendo-se quais os actos que a ré realmente praticou, não é possível fazer-lhes corresponder um qualquer valor.

Assim, nesta matéria, ao abrigo do disposto no artigo 661.º n.º 2 terá que se relegar o apuramento do valor a restituir para liquidação de sentença.


III

Com fundamento no atrás exposto julga-se procedente o recurso e, tendo presente a declaração de nulidade do contrato de mediação imobiliária celebrado entre o autor e a ré, condena-se:

- esta a restituir àquele os € 8.000 000,00 que dele recebeu;

- aquele a restituir a esta o valor dos serviços de mediação imobiliária que de facto lhe foram prestados no âmbito daquele contrato, a apurar em liquidação de sentença,

revogando-se a sentença recorrida.

Custas pela ré.

                                                           António Beça Pereira (Relator)

                                                               Nunes Ribeiro

                                                              Hélder Almeida


[1] São do Código de Processo Civil, na sua versão posterior ao Decreto-Lei 303/2007 de 24 de Agosto, todos os artigos adiante citados sem qualquer outra menção.
[2] Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Edição, pág. 639. Neste sentido veja-se os Ac. STJ de 2-12-2010 no Proc. 449/04.0TBOVR-A.P1.S1 e Ac. STJ de 17-11-2011 no Proc. 1596/04.3TBAMT. P1.S2, em www.gde.mj.pt e ainda Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, pág. 279 e 280 e o mesmo autor em Temas da Reforma do Processo Cível, Vol. II, 4.ª edição, pág. 235 e 236.
[3] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, 1951, pág. 533.
[4] Neste sentido veja-se Ac. STJ de 28-04-2009 no Proc. 09A0526, em www.gde.mj. pt e Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, pág. 279 e 280. Neste caso não pode deixar de se ter presente o princípio do dispositivo, consagrado no artigo 264.º CPC.
[5] Cfr. artigo 21.º da contestação.
[6] O mesmo se passa com a matéria de facto contida no quesito 11.º.
[7] Cfr. artigo 511.º n.º 1 CPC.
[8] Conforme o primeiro destes princípios o processo deve ser "organizado em termos de se chegar rapidamente à sua natural conclusão" e o segundo determina que "deve procurar-se o máximo resultado processual com o mínimo emprego de actividade; o máximo rendimento com o mínimo custo", Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 387 e 388.
[9] Ana Prata, Dicionário Jurídico, 5.ª Edição, Vol. I, pág.961.
[10] A matéria de facto contida no quesito 11.º encontra-se na mesma situação.
[11] Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, pág. 351.
[12] Ac. STJ de 19-12-2006 no Proc. 06A4210, www.gde.mj.pt.
[13] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5.ª Edição, pág. 148
[14] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. I, pág. 425.
[15] Antunes Varela e Pires de Lima, obra citada, pág. 266.
[16] Antunes Varela e Pires de Lima, obra citada, pág. 265.
[17] Nos artigos 8.º a 12.º a ré alega, de forma algo vaga alguns dos actos que terá praticado, sem que, no entanto, mencione o custo em que eles se traduzem.