Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3/13.5SFGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
REGIME DE PROGRESSIVIDADE DA EXECUÇÃO
Data do Acordão: 03/12/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA (2.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 44.º DO CP; ARTIGO 20.º DA LEI N.º 33/2010, DE 2-09
Sumário: I - O Regime de permanência na habitação não pode ser objecto de um processo de flexibilização que o descaracterize de tal forma que passe a ser confundido com o regime de semidetenção, com a particularidade de em momento algum o condenado ter contacto com o Estabelecimento prisional, dando, assim, origem a um tertium genus, que não se vislumbra nas penas de substituição.

II - Não significa, porém, que se não se reconheça a consagração de um regime de flexibilização, desde logo dentro do quadro do regime de progressividade da execução previsto no artigo 20.º da Lei n.º 33/2010, de 2 de Setembro [regula a utilização de meios técnicos de controlo à distância (vigilância electrónica) e revoga a Lei n.º 122/99, de 20 de Agosto] – também aplicável no âmbito da execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, prevista no artigo 44.º do Código Penal [cf. artigo 1.º, al. b) do citado diploma].

Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
1. No âmbito do processo abreviado n.º 3/13.5SFGRD do 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Guarda, mediante acusação pública, foi o arguido A... , melhor identificado nos autos, submetido a julgamento, sendo-lhe, então, imputada a prática, como autor material, de um crime de violação de proibições, p. e p. pelo artigo 353º do Código Penal [cf. fls. 51 a 54].

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, por sentença de 02.10.2013, o tribunal decidiu [transcrição parcial do dispositivo]:

«Pelo exposto, o tribunal julga a acusação procedente e, em consequência:
a) condena o arguido A..., como autor material de um crime de violação de proibições, previsto e punido pelo artigo 353º do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão, que substitui pela pena de 10 (dez) meses de permanência na habitação (no espaço físico da residência e durante 24h/dia), nos termos do artigo 44º/1, 3 e 4 do Código Penal, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância nos termos regulamentados Lei n.º 33/2010, de 2/9, e sem prejuízo de, oportunamente, ser ponderada a aplicação do regime de progressividade previsto no artigo 20º da mesma lei;
b) (…)
c) determina que, após trânsito, se comunique à equipa regional da Direcção-Geral de Reinserção Social, solicitando que, nos termos dos artigos 8º e 9º da Lei n.º 33/2012, diligencie pela colocação do condenado em cumprimento de pena na sua residência (24h/dia), com instalação dos meios de vigilância electrónica necessários à fiscalização, em quem, desde já delega, a competência para autorizar a saída (excepcional) do arguido da sua residência por motivos de saúde devidamente fundamentados ou para deslocações a diligências/actos processuais em tribunal;
d) adverte-se, desde já o arguido, que sobre ele recaem os seguintes deveres (artigo 6º da Lei n.º 33/2010): a) permanecer no local onde é exercida vigilância electrónica durante os períodos de tempo fixados; c) Cumprir as indicações que forem dadas pelos serviçoes de reinserção social para a verificação de voz; d) Receber os serviços de reinserção social e cumprir as suas orientações, bem como responder aos contactos, nomeadamente por via telefónica, que por estes forem feitos durante os períodos de vigilância electrónica; e) Contactar os serviços de reinserção social, com pelo menos três dias úteis de antecedência, sempre que pretenda obter autorização judicial para se ausentar excepcionalmente durante o período de vigilância electrónica, fornecendo para o efeito as informações necessárias; f) Solicitar aos serviços de reinserção social autorização para se ausentar do local de vigilância electrónica quando estejam em causa motivos imprevistos e urgentes; g) Apresentar justificação das ausências que ocorram durante os períodos de vigilância electrónica; h) Abster-se de qualquer acto que possa afectar o normal funcionamento dos equipamentos de vigilância electrónica; i) Contactar de imediato os serviços de reinserção social se ocorrerem anomalias que possam afectar o normal funcionamento do equipamento de vigilância electrónica, nomeadamente interrupções do fornecimento de electricidade ou das ligações telefónicas; j) Permitir a remoção dos equipamentos pelos serviços de reinserção social após o termo da medida ou da pena;
e) determinar que, após trânsito, se comunique ao TEP, solicitando que nos informe relativamente ao seu entendimento quanto ao tribunal competente para a execução da pena aplicada, se o tribunal da condenação ou se o TEP;
f) determinar que, após trânsito, se comunique ao processo identificado no n.º 1 dos factos provados;
(…)».
3. Inconformado com o assim decidido recorreu o arguido, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:
I. A ponderação do disposto no n.º 1 do artigo 71º do Código Penal, as exigências de prevenção especial positiva e geral positiva e as circunstâncias do caso não justificam a aplicação da pena de 10 (dez) meses de permanência na habitação, devendo a mesma ser reduzida pelo menos para os 6 (seis) meses.
II. O regime de permanência na habitação não é rígido nem estrito, antes é um regime aberto e flexível, com possibilidade, regularidade e efectividade de autorizações de saída;
III. No cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação, há que levar em consideração as condições pessoais da vida do arguido, as suas necessidades de natureza económica, as exigências de realização profissional, a estabilidade presente e futura do respectivo agregado familiar, tudo na perspectiva de propiciar a integração social do arguido, permitindo saídas da habitação, nomeadamente as estritamente necessárias a assegurar o desempenho profissional do arguido e imprescindíveis para assegurar a estabilidade económica e sustento do respectivo agregado familiar.
IV. No caso, se o arguido ficar impedido de prestar a sua actividade profissional e obter os rendimentos do seu trabalho, irá perder o seu emprego e impossibilitado de angariar os rendimentos imprescindíveis ao seu sustento e do seu agregado.
V. No sentido de compatibilizar o desempenho profissional com o cumprimento da pena, a entidade patronal do arguido, disponibiliza-se a permitir que sejam colocados/instalados na sede da empresa, sita em (...), local onde o recorrente desempenha funções, os meios de vigilância electrónica necessários à fiscalização do cumprimento daquela pena.
VI. O recorrente desempenharia as suas funções nos dias úteis, de 2.ª a 6.ª feira, entre as 9h 00m e as 18h 00m, com paragem para almoço entre as 12h 30m e as 13h 30m, regressando à sua residência após o cumprimento desse horário, ficando as saídas do recorrente da sua residência confinados ao cumprimento daquele horário, sempre na sede da empresa, e ao tempo estritamente necessário a assegurar as deslocações da sua residência para o local de trabalho e vice-versa.
VII. O recorrente aceita que também na sede da empresa sejam utilizados os meios de vigilância electrónica, comprometendo-se a cumprir todas as regras e directrizes que lhe forem impostas e o tribunal considere necessárias.
VIII. Para tanto a sentença recorrida terá de ser alterada por forma a autorizar que o arguido possa sair da sua residência durante o cumprimento da pena possa ir trabalhar nos termos que se referiu, não ficando com isso desrespeitado qualquer imperativo legal quanto ao cumprimento da pena que lhe foi aplicada, tanto mais que o recorrente estaria sempre preso em casa, pelo menos durante um período de 12 horas consecutivas, conforme está previsto no regime de progressividade da execução da pena (vide artigo 20º da Lei n.º 33/2010 de 2/09).
IX. O cumprimento da pena de prisão no regime de permanência na habitação, é compatível com saídas dessa habitação para o desempenho da actividade profissional.
X. Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/02/2010 (processo n.º 42/06.2TAOVR – C.P1, in www.dgsi.pt): “Posto que a lei penal não previna relativamente ao regime de permanência na habitação os objectivos e saídas que consagrou para o regime de semidetenção, não resulta daí que a lei pretenda afastar que o condenado segundo aquele regime possa prosseguir a sua actividade profissional, a sua formação profissional ou os seus estudos, salvaguardada que se mostre a compatibilidade com as finalidades de prevenção”.
XI. O tribunal “a quo” não fez a mais correcta análise do caso concreto e a melhor interpretação e aplicação das normas aplicáveis, violando nomeadamente o disposto nos artigos 40º, nº 1 e 44º, nº 1, alínea a), 70º e 71º, todos do C.P.

Termos em que e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser alterada a sentença recorrida e, em consequência, ser:
a) A pena de prisão reduzida para 6 meses, substituída pelo cumprimento da pena em regime de permanência na habitação por igual período de 6 meses;
b) bem como, durante o cumprimento dessa pena seja o recorrente autorizado a sair da sua residência pelo tempo estritamente necessário ao desempenho da sua actividade profissional, nos termos supra referidos ou outros que o tribunal fixar.

Fazendo-se, assim, a habitual e necessária justiça.

4. Por despacho de fls. 143 veio o recurso a ser admitido e fixado o respectivo regime de subida e efeito.

5. Ao recurso respondeu a Exma. Procuradora-Adjunta, concluindo:
«A determinação da pena não se mostra desajustada nem desproporcional.
As fortes necessidades de prevenir o cometimento de novos ilícitos penais impõe que a pena de dez meses de permanência na habitação seja cumprida, pelo menos no momento inicial, no espaço físico da habitação durante 24 horas por dia, sem prejuízo das autorização de saída por imprevistos e urgentes.
Não foi violado qualquer imperativo legal.
Nesta conformidade, entendemos que a decisão recorrida não merece qualquer censura, devendo ser mantida na íntegra».

6. Na Relação, pronunciou-se o Exmo. Procurador – Geral Adjunto nos termos do parecer de fls. 164/165.

7. Cumprido o disposto no artigo 417.º, nº 2 do CPP, o recorrente não reagiu.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso
                  De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

No caso em apreço, questiona o recorrente:
- A medida da pena;
- O âmbito (temporal) da pena de substituição de permanência na habitação.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença recorrida [transcrição parcial]:

A) Factos provados.

O tribunal, discutida a causa e com relevo para a decisão, julga provados os seguintes factos:
1. Por sentença proferida no dia 18 de Junho de 2012, no âmbito do processo sumário n.º 2/12.8GTGRD, do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Covilhã, transitada em julgado em 10 de Julho de 2012, o arguido foi condenado como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de dez meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período u ano, com a condição de passar vinte e cinco horas nas urgências de um hospital e/ou na unidade de traumatismos decorrentes de acidente de viação e frequentar o “Programa Stop – Responsabilidade Segurança”, suportando os respectivos custos, na vertente da dissociação entre o consumo de álcool e condução e, deste modo, prevenir a reincidência, e ainda na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de doze meses;
2. O arguido entregou a sua carta de condução no Tribunal Judicial da Covilhã, no dia 27 de Julho de 2012, para cumprimento daquela pena acessória;
3. No dia 12 de Fevereiro de 2013, pelas 17h45m, no arruamento do mercado municipal, na Rua Nuno Álvares Pereira, freguesia da Sé, concelho da Guarda, o arguido conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, com a matrícula (...)ZV, quando foi interceptado pela Polícia de Segurança Pública, em serviço de fiscalização.
4. O arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, com o propósito concretizado de não respeitar a pena acessória de proibição de conduzir que lhe havia sido imposta por sentença judicial – a qual lhe foi regularmente comunicada – bem sabendo que devia obediência a tal proibição, porque emanada de um juiz de Direito, autoridade com competência legal para aquele efeito, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;
Mais se provou que:
5. O arguido confessou os factos de forma espontânea, livre, integral e sem reservas;
6. O arguido nasceu e viveu a sua infância e adolescência na cidade da Covilhã, num agregado familiar de condição económica e social média, sendo o segundo filho do agregado familiar com três irmãos;
7. O ambiente familiar de origem era organizado, equilibrado e com forte componente afectiva;
8. Os progenitores apresentam um percurso marcado pela dedicação ao trabalho, que o arguido valoriza, o pai era contabilista e a mãe doméstica, referindo a existência de um ambiente com a transmissão de referências, normas e valores;
9. Os progenitores investiram na formação escolar do arguido, que estudou até ao 11º ano de escolaridade, tendo prosseguido a sua formação na área da indústria da confecção, mais concretamente no design de moldes;
10. O arguido iniciou o seu percurso profissional na indústria têxtil, aos 21 anos de idade, nas confecções (...), empresa onde ainda se mantém;
11. Tem mantido um percurso laboral estável, tendo efectuado várias formações na área da informática de design de moda, em Portugal e no estrangeiro;
12. Aos 28 anos casou com B..., de 16 anos de idade, operária têxtil, de quem tem duas filhas, actualmente com 15 e 6 anos de idade;
13. Vive com a sua esposa e as duas filhas, em (...);
14. Reside numa casa arrendada, constituída por três quartos, sala, cozinha e duas casas de banho;
15. A habitação denota higiene e organização, possuindo todas as infraestruturas básicas;
16. O arguido mudou recentemente para esta habitação, após um processo complicado de dívida à banca, durante o qual foi forçado a entregar ao banco a casa própria que havia adquirido a crédito;
17. O avolumar de créditos à banca (crédito para casa, carro e pessoal), conduziram-no a uma situação de descontrole da sua situação financeira, que motivou um grande desequilíbrio ao nível pessoal;
18. A sua incapacidade em gerir o problema motivou o refúgio no consumo excessivo de bebidas alcoólicas;
19. Manifesta dificuldade em assumir os seus hábitos alcoólicos, associando-os como forma de escape da sua anterior situação económica ou com situações de convívio social;
20. No âmbito do processo 62/12.8GTGRD, do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã, o arguido frequentou o programa STOP – Responsabilidade e Segurança e passou no Hospital da Covilhã no serviço de Ortopedia 25 horas, com orientação e supervisão do serviço de enfermagem;
21. Frequentou também no Centro de Saúde da Covilhã consultas de alcoologia, tendo sido a sua avaliação, no global, positiva;
22. No seu seio familiar, o arguido beneficia de uma situação familiar pautada pela estabilidade e entreajuda, em particular da esposa e pais;
23. Profissionalmente, o arguido mantém-se a trabalhar nas Confecções (...), como modelista, auferindo 2 225€ mensais;
24. A sua esposa aufere o vencimento de 480€ mensais;
25. O arguido é um excelente profissional, muito competente na área do design de moldes, sendo um trabalhador assíduo e empenhado;
26. para além da condenação referida em 1), por sentença transitada em julgado no dia 15/9/2000, foi o arguido condenado, como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 1200$;
27. Por sentença transitada em julgado no dia 27/4/2005, foi o arguido condenado, como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de 6€, e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 5 meses;
28. Por sentença transitada em julgado no dia 21/7/2008, foi o arguido condenado, como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de 8€, e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 5 meses;
29. Por sentença transitada em julgado no dia 17/8/2009, foi o arguido condenado, como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 8€, e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 7 meses;
30. Por sentença transitada em julgado no dia 20/6/2011, foi o arguido condenado, como autor material de um crime de desobediência, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 8 meses.

B) Factos não provados.
Provaram-se todos os factos que constavam da acusação.

C) Convicção do tribunal
O tribunal fundamentou a sua convicção na globalidade da prova produzida em audiência e devidamente ponderada, nomeadamente:
- Na certidão de fls. 5 e 13 a 16, que nos confirmam a condenação do arguido e a data da entrega da carta de condução, para cumprimento da pena acessória;
- No depoimento prestado pelo arguido, que confessou os factos de forma espontânea, livre, integral e sem reservas, entre eles a condução do veículo nas referidas circunstâncias, ciente de que estava a cometer um crime;
- No CRC de fls. 38 a 48, relativamente aos seus antecedentes criminais;
- No relatório social de fls. 74 a 76, que nos descreve o modo de vida do arguido e a sua integração familiar, social e profissional.»

3. Apreciação
a.
Dissente o recorrente da pena de 10 meses de prisão, a ser executada em regime de permanência na habitação, que lhe foi aplicada pela prática de um crime de violação de proibições previsto e punido no artigo 353º do Código Penal, adiantando que as razões de prevenção especial positiva e geral positiva não a justificam, mostrando-se, antes, adequada a fixação da pena de prisão – substituída pelo regime de permanência na habitação – em medida não superior a 6 [seis] meses.

Vejamos, previamente, o que a propósito ficou consignado na decisão recorrida.
O crime de violação de proibições, nos termos do artigo 353º do Código Penal, é punível em abstracto com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
É em função desta moldura penal abstracta que se determinará a pena concreta aplicável ao arguido.
A aplicação de uma pena, nos termos do artigo 40º/1 e 2 do Código Penal, visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, e em caso algum a medida da pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Também o artigo 71º do mesmo Código nos confirma esta ratio ao preceituar que a determinação da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
O Código Penal consagrou a moldura da prevenção, impondo que a medida da pena seja dada pela necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto. Assim, a moldura da pena há-de ser idêntica à moldura da prevenção, onde o limite máximo coincide com o limite máximo da pena adequada à culpa e o limite mínimo coincide com o limite imposto pela prevenção geral de integração, sob as exigências de defesa do ordenamento jurídico. É dentro destes limites que actuará a prevenção geral de integração e especial de socialização ou de reintegração do agente.
Assim, nos termos do artigo 71º/2 do Código Penal, atendendo às circunstâncias que não fazendo parte dos tipos legais de crime depõem a favor ou contra o agente, nomeadamente:
- Ao grau de ilicitude dos factos, que é muito elevado, não só pelo tipo de desobediência em causa, mas também pelo comportamento do arguido ao longo do tempo – que revela uma postura estradal reprovável, associada a comportamentos desobedientes;
- Ao grau de culpa imputável ao arguido, na modalidade mais grave, de dolo directo;
- Aos antecedentes criminais do arguido, todos por factos de natureza idêntica e conexa;
- À sua integração familiar, social e profissional;
Tudo ponderado, tendo em consideração que ao crime é aplicável, em alternativa, a pena de prisão ou a de multa, fazendo apelo a critérios de justiça e proporcionalidade entre a culpa do agente e a gravidade do crime, atento o disposto no artigo 70º do Código Penal, face às fortes exigências em termos de prevenção geral e especial que nesta matéria se vêm fazendo sentir, ponderado o facto do arguido já anteriormente haver sido condenado por crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e também de desobediência, ponderando que o arguido praticou os factos no decurso do período de suspensão da execução de uma pena de prisão, o tribunal julga necessária para a reintegração contrafáctica da norma jurídica violada e para a reinserção social do delinquente na comunidade, a pena privativa da liberdade, que deverá ficar próxima da média entre os limites mínimo e máximo previstos na moldura penal abstracta, condenando-se, assim, o arguido na pena de 10 meses de prisão.

Apreciação que se nos afigura avisada, tendo em conta os fins das penas, devendo, de acordo com o direito vigente, o tribunal chegar a uma relação equilibrada dos mesmos, de tal modo que a pena garanta a função retributiva, equacionada com o ilícito em si e a culpabilidade - seu pressuposto e limite inultrapassável -, salvaguardando, igualmente, a sua função ressocializadora.
As finalidades das penas na sua vertente de prevenção positiva geral e de integração ou prevenção especial de socialização conjugam-se na prossecução do objectivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos, cuja violação constitui crime.
No caso concreto a finalidade de tutela e protecção de bens jurídicos há-de constituir o motivo fundamento da escolha do modelo e da medida da pena, da tutela da confiança das expectativas da comunidade na validade das normas, especificamente na validade e integridade das normas e dos correspondentes valores concretamente afectados.
Por outro lado, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há-de ser em cada caso prosseguida pela imposição de uma medida cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.
A defesa do Ordenamento Jurídico exige que a pena se determine de tal modo que possa alcançar um efeito sócio-pedagógico na comunidade, servindo ela de contra-motivo à prática de idênticos ilícitos pelos demais.
Foi para atingir a possível concordância dos fins das penas no caso concreto, que se desenvolveu na jurisprudência a teoria da margem da liberdade, segundo a qual a pena adequada à culpabilidade não é uma medida exacta. A pena concreta é, pois, fixada entre um limite mínimo (já adequado à culpa) e um limite máximo (ainda adequado à culpa) determinado em função da culpa, intervindo os outros fins das penas – prevenção geral e prevenção especial – dentro daqueles limites [cf. Claus Roxin, in Culpabilidad Y Prevencion en Derecho Penal, pág. 4 – 113].

Retomando o caso é inegável que as exigências de prevenção especial se apresentam elevadíssimas, pois que o arguido/recorrente já sofreu várias condenações – entre outras em 2008, 2009, 2011 e 2012 - pela prática de crimes conexos, revelando a conduta ilícita em causa nos autos – praticada no decurso do período de suspensão da execução da pena de 10 [dez] meses de prisão por que anteriormente sofreu condenação – uma atitude de considerável indiferença face aos bens jurídicos protegidos com a incriminação, comportamento que, apesar da sua integração familiar, social e profissional, não pode ser branqueada, sob pena de se contribuir para instalar na comunidade a descrença na validade das normas.

Não merece, pois, censura nesta parte a sentença recorrida, não resultando violadas as disposições legais indicadas [artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal].

b.
Insurge-se ainda o recorrente contra a circunstância de haver o tribunal determinado que a pena de substituição de 10 [dez] meses de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, tenha lugar durante 24h/dia, pretendendo a revogação da decisão por forma a que, durante o cumprimento da pena, possa ser autorizado a sair da sua residência pelo tempo estritamente necessário ao desempenho da sua actividade profissional, só assim se garantindo – prossegue – que não fique sem o seu «trabalho» e que não seja colocado numa situação que o impeça de angariar os rendimentos imprescindíveis ao seu sustento e, bem assim, do agregado familiar.

Analisemos.

A natureza de pena de substituição do Regime de permanência na habitação, prevista no artigo 44.º do Código Penal, afigura-se-nos relativamente pacífica.
Neste sentido refere Pinto de Albuquerque «… o regime de permanência na habitação é uma verdadeira pena de substituição da pena de prisão (ver expressamente neste sentido a exposição de motivos da proposta de lei n.º 98/X, que esteve na base da Lei n.º 59/2007). Não se trata, pois, de um mero regime de cumprimento da pena de prisão, que possa ser aplicado em momento posterior ao da condenação. A configuração da permanência na habitação como uma verdadeira pena de substituição é rica em consequências substantivas e processuais» - [cf. Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 182].
Também, Germano Marques da Silva não deixa de incluir o Regime de permanência na habitação no âmbito das penas de substituição aplicáveis às pessoas singulares, designando-a, tal como, entre outras, a prisão por dias livres e o regime de semidetenção, de «Pena substitutiva na execução da pena» - [cf. “Direito Penal Português”, Parte Geral, III, Verbo, 2008, págs. 90/91].
Na mesma linha, distinguindo, embora, penas de substituição em sentido próprio e impróprio, pronuncia-se António João Latas quando a propósito escreve: «Trata-se de uma pena de substituição em sentido amplo ou impróprio, uma vez que é decidida pelo tribunal de julgamento no momento da condenação e pressupõe a não substituição da prisão previamente determinada por pena de substituição em sentido próprio, que se traduz numa forma de cumprimento ou execução da pena privativa da liberdade (tal como a Prisão por dias livres e o Regime de semidetenção), cujo carácter alternativo à prisão tout court reside precisamente em ter lugar em meio não prisional, evitando-se o efeito criminógeno e outros factores de dessocialização do arguido inerentes ao cumprimento de pena em meio prisional» - [cf. “A Reforma do Sistema Penal de 2007, Garantias e Eficácia; O novo quadro sancionatório das pessoas singulares», Justiça XXI, Coimbra Editora, págs. 106/107].

Tal como a Prisão por dias livres [artigo 45.º do CP] e o Regime de semidetenção [artigo 46º do CP], pressuposto material do Regime de Permanência na habitação é o da sua adequação às finalidades da punição, aspecto que, no caso, não surge controvertido.
Mostrando-se subjacente a todas estas penas de substituição a vontade do legislador em eliminar [artigo 44.º] ou, não sendo possível, reduzir ao mínimo os casos de cumprimento da pena curta de prisão em meio prisional de forma contínua [artigos 45º e 46º], procurando, assim, evitar o efeito criminógeno da prisão, o facto é que se distinguem no seu modo de execução, revelando-se incontroversa a maior adequação de umas relativamente a outras na prossecução de determinados objectivos, avaliação que, dada a identificada natureza de penas de substituição, terá de ter lugar na própria sentença.
Com efeito, no que respeita ao desempenho profissional o legislador é claro quando reportando-se ao Regime de semidetenção diz consistir o mesmo «numa privação da liberdade que permita ao condenado prosseguir a sua actividade profissional normal, a sua formação profissional ou os seus estudos, por força de saídas estritamente limitadas ao cumprimento das suas obrigações», apresentando-se-nos, também, inequívoca a compatibilidade [em princípio] da Prisão por dias livres com o exercício de uma eventual actividade profissional.
Contudo, surgindo, embora, relevante para o desenvolvimento da questão, também não é este o ponto que mereceu a reacção do recorrente.

Efectivamente pretende o mesmo que o Regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, se desenvolva de modo a permitir ausentar-se da sua habitação por um período diário correspondente ao seu horário normal de trabalho – no caso de segunda-feira a sexta-feira entre as 9h e as 18h-, invocando em abono da almejada flexibilização o regime de progressividade da execução previsto no artigo 20.º da Lei n.º 33/2010, de 2 de Setembro.
Ou seja, o regime preconizado pelo recorrente redundaria no Regime de semidetenção, com a diferença, não desprezível, de para além do horário de trabalho, ir pernoitar a casa, em vez de recolher ao estabelecimento prisional.
Constituiria, pois, uma terceira via, traduzindo uma simbiose com o que de melhor cada uma das outras oferece, podendo mesmo descaracterizar a identidade da pena de substituição que lhe foi aplicada ou comprometer as finalidades da punição enveredar ab initio - à margem do dito regime de progressividade - por semelhante solução, que sempre representaria um salto no escuro num momento em que não se mostrava o tribunal munido de todos os elementos necessários à avaliação, desde logo, da autenticidade dos dados, agora, convocados, não estando, naturalmente, por ocasião da sentença, em condições de enveredar por outra flexibilização.

Vozes autorizadas na doutrina têm-se pronunciado no sentido da flexibilização do regime em causa, escrevendo neste contexto Germano Marques da Silva «O regime de permanência na habitação é um regime flexível, podendo o juiz ao determinar o regime estabelecer que a obrigação de permanência se faça apenas em períodos limitados do dia para permitir ao condenado o exercício de profissão, de frequência escolar, cumprimento de preceitos religiosos, etc.», concretizando, em nota, o autor «O juiz deve ter em atenção que a obrigação de permanência na habitação representa para o condenado uma permanente tensão, um desafio para não violar a obrigação (…). Por isso que enquanto Presidente da Comissão de Acompanhamento do Sistema de Vigilância Electrónica sempre recomendámos aos Serviços do IRS que propusessem ao juiz regimes com alguma flexibilidade para evitar o mais possível a desinserção social do condenado, mas também para facilitar o cumprimento da pena. A experiência alheia mostra que a obrigação de permanência na habitação cumpre melhor as suas finalidades quando tem alguma flexibilidade …» - [cf. ob. cit., pág. 92].
Flexibilização a que, embora em termos que transparecem bem mais mitigados, não deixa de aludir Paulo Pinto de Albuquerque quando refere «O tribunal de julgamento pode, em casos especialmente justificados, permitir saídas da habitação desde que a sua periodicidade e duração sejam compatíveis com as finalidades preventivas, nos termos do artigo 3.º, n.º 2, da Lei n.º 122/99, de 20.8, por força do artigo 9.º da Lei n.º 59/2007, de 4.9. Por exemplo, são justificadas as saídas para assistência médica indispensável ou para cumprimento inadiável de obrigações processuais. Portanto, o regime de saídas há-de necessariamente ser mais apertado do que aquele que seria aplicável antes do trânsito em julgado da condenação, pois com esta desaparece a presunção de inocência» - [cf. ob. cit., pág. 183].

Sobre a questão pronunciou-se o acórdão do TRP de 17.02.2010, proferido no proc. n.º 42/06.2TAOVR-C.P1 [invocado pelo recorrente], do qual se respiga: «… não vislumbramos incompatibilidade alguma entre o conteúdo e a natureza da pena de permanência na habitação e as saídas para o exercício pelo condenado de actividade laboral, desde que a sua periodicidade e duração se mostrem compatíveis com as finalidades de prevenção que lhe estão subjacentes e tendo em atenção o consignado no artigo 3º, n.º 2, da Lei n.º 122/99, de 20/08.
Certo é que no artigo 46º, do CP (regime de semidetenção) se consagrou expressamente que o regime «consiste numa privação da liberdade que permita ao condenado prosseguir a sua actividade profissional normal, a sua formação profissional ou os seus estudos, por força de saídas estritamente limitadas ao cumprimento das suas obrigações» e no regime de permanência na habitação não se faz referência alguma a estes objectivos e saídas com vista a atingir este escopo.
Contudo, da inexistência dessa consagração expressa não resulta, em nosso entender, que a lei pretenda afastar, à partida, que o condenado no regime de permanência na habitação prossiga a sua actividade profissional, a sua formação profissional ou os seus estudos (salvaguardando sempre, como já ficou referido, a compatibilidade com as finalidades de prevenção), sendo que apenas se impõe como necessária essa consagração no regime de semidetenção por se tratar ainda de um cumprimento de prisão intramuros, uma privação da liberdade com recurso ao sistema prisional, com efectivo ingresso num estabelecimento prisional», revogando, assim, o despacho recorrido, autorizando o ali arguido, que havia sido condenado na pena de substituição de permanência na habitação, «a ausentar-se da sua habitação para prestar trabalho dois dias por semana para a …, no horário laboral das 08.00horas às 18.00horas, nas instalações da empresa sitas …».
Não se sufragando integralmente os fundamentos – muito respeitáveis, embora - explanados no citado aresto, afigura-se-nos que o Regime de permanência na habitação não pode ser objecto de um regime de flexibilização que o descaracterize de tal forma que o mesmo passe a ser confundido com o regime de semidetenção, com a particularidade de em momento algum o condenado ter contacto com o Estabelecimento prisional, dando, assim, origem a um tertium genus, que não encontra arrimo nas penas de substituição.
Não significa, porém, que se não se reconheça a consagração de um regime de flexibilização, desde logo dentro do quadro do Regime de progressividade da execução previsto no artigo 20.º da Lei n.º 33/2010, de 2 de Setembro [Regula a utilização de meios técnicos de controlo à distância (vigilância electrónica) e revoga a Lei n.º 122/99, de 20 de Agosto] – também aplicável no âmbito da execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, prevista no artigo 44.º do Código Penal [cf. artigo 1º, al. b) do citado diploma] – regime, esse, para cuja ponderação não deixou de apontar a sentença em crise quando em sede de dispositivo fez consignar: «… sem prejuízo de, oportunamente, ser ponderada a aplicação do regime de progressividade previsto no artigo 20º da mesma lei» [destaque nosso].

Em síntese útil:
a. A circunstância de ter sido determinada na sentença recorrida a vigilância electrónica durante 24 h/dia, não significa que, sem ofensa de caso julgado, o regime de execução da pena de substituição de permanência na habitação não possa sofrer alteração, concretamente no âmbito do Regime de progressividade da execução previsto no artigo 20º da Lei n.º 33/2010, de 2 de Setembro, como de resto foi expressamente na mesma reconhecido, diferindo a sua ponderação para momento posterior;
b. Decisão que transparece avisada, pois sempre estará dependente da avaliação de elementos até aí desconhecidos, sem os quais muito dificilmente poderá ser levado a efeito o juízo de compatibilização de um concreto regime de flexibilização com os fins das penas;
c. Regime, esse, que, em nosso entender, não poderá nunca – ainda que por razões de ressocialização - comprometer irremediavelmente a identidade da dita pena de substituição, do mesmo passo que não pode pôr em crise os fins que à mesma presidem;
d. Nenhuma censura, pois, merece a decisão recorrida, quando diferiu para momento posterior a ponderação do regime previsto no artigo 20.º da Lei n.º 33/2010, de 2 de Setembro, no que se limitou a aplicar a lei, revelando-se mesmo, nesta parte, o recurso manifestamente improcedente.

III. Decisão
Termos em que acordam os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.

Condena-se o recorrente em 3 [três] UCs de taxa de justiça.

Coimbra, 12 de Março de 2014

(Maria José Nogueira - relatora)

(Isabel Valongo - adjunta)