Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
33/17.8T8MGL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: DIREITOS REAIS
PARTES COMPONENTES DA COISA
LOGRADOURO DE UM IMÓVEL
SERVIDÃO
LOGRADOURO DE PRÉDIO URBANO COMO PRÉDIO SERVIENTE
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO COMP. GENÉRICA DE MANGUALDE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1550º E 1544º DO C. CIVIL.
Sumário: I – Porque os direitos reais incidem sobre a totalidade das coisas que constituem o seu objecto, as partes constitutivas ou componentes da coisa não podem, enquanto se mantiverem como tal, ser objecto de direitos particulares, antes seguindo o destino jurídico unitário da coisa.

II - Por assim ser, não podem constituir-se direitos de propriedade diversos sobre as diferentes partes de um mesmo imóvel, excepto nos termos em que a lei permite a chamada propriedade horizontal.

III - Uma porção de terreno que está contida pelas paredes de um prédio urbano e que se situa por baixo do mesmo ao nível do seu rés do chão, atravessando-o em toda a sua extensão longitudinal, formando um túnel, não tendo na extremidade que confina com a via pública qualquer porta, e desembocando a outra sua extremidade numa porta que dá acesso a um outro prédio urbano, deverá qualificar-se como logradouro do prédio urbano que o contém.

IV - Em função do princípio da unidade acima referido não pode admitir-se que ainda que apenas sobre parte desse túnel se constitua direito de propriedade diverso daquele que incide sobre o prédio urbano em cujas paredes o mesmo se contém.

V - Deverá admitir-se a constituição por usucapião de uma servidão legal de passagem que se faça não por um prédio rústico, como se refere literalmente no art 1550º CC, mas pelo logradouro de um prédio urbano.

VI - Porque a servidão por destinação de pai de família se pode constituir sobre prédios urbanos ou sobre prédios rústicos, não se mostra absolutamente contrário à natureza de uma servidão de passagem que a mesma se faça através de um prédio urbano e menos ainda através de um seu logradouro.

VII - Na servidão legal de passagem não está em causa um tipo de direito real de gozo mas um seu sub-tipo.

VIII - O princípio da tipicidade, no que se reporta a servidões, resulta satisfeito desde que não seja inutilizado o núcleo essencial das mesmas tal como emerge do art 1544º do C. Civil: o gozo das utilidades do prédio serviente, quaisquer que sejam, ser feito por intermédio do prédio dominante com acréscimo do seu proveito.

IX - A razão de ser da restrição constante do art 1550º resulta de se entender que a solução oposta colidiria com a intimidade de que deve rodear-se a habitação ou domicilio.

X - Essa razão de ser não verifica no que se reporta ao acima referido logradouro.

XI – Pelas razões expostas, deverá concluir-se que a constituição de uma servidão de passagem por usucapião sobre o túnel acima referido, a favor do prédio em que este desemboca numa das suas extremidades, não fere o princípio da tipicidade dos direitos reais.

Decisão Texto Integral:




I – M... e Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de V... instauraram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra A... e mulher C..., pedindo:

 a) que se declare que os autores são proprietários, com exclusão de outrém, do prédio urbano sito em ..., composto de r/chão e 1.º andar com a superfície coberta de 28,54m2, inscrito na matriz predial sob o artigo ... da União das Freguesias de ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... o n.º ...;

b) se declare que do prédio urbano referido em a) faz parte integrante o logradouro correspondente ao túnel identificado nos artigos 21.º, 22.º, 28.º e 31.º da petição inicial, comum ao prédio dos autores e dos réus até ao local em que se situa a porta que dá acesso ao r/chão do prédio dos réus e exclusivo do prédio dos autores a partir desta até à porta que dá acesso ao interior do seu r/chão;

c) sejam os réus condenados a reconhecerem o mencionado em a) e b);

Subsidiariamente, peticionam:

- que seja declarado que a favor do prédio urbano referido em a) e onerando o prédio urbano sito em ..., composto por r/chão e 1.º andar, inscrito na matriz sob o artigo ... da União das Freguesias de ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..., propriedade dos réus, se encontra constituído por usucapião um direito de servidão de passagem com a largura e comprimento do “túnel” que dá acesso ao mesmo, condenando-se os réus a reconhecerem tal facto.

  Em qualquer caso, solicitam a condenação dos RR. a:

- restituírem aos AA. a parcela de terreno referida em b), livre de quaisquer ónus ou encargos e bem assim a absterem-se de sobre a mesma praticarem quaisquer actos, mantendo-a livre e desimpedida;

- retirarem do referido túnel todo o material que lá colocaram, designadamente a parede que nele construíram e bem assim a porta que colocaram na entrada do mesmo, deixando-o totalmente livre e desimpedido em toda a sua extensão, abstendo-se de no futuro adoptarem quaisquer actos ou procedimentos que violem o direito de propriedade dos autores;

- pagarem aos autores a quantia de €100,00 por mês a título de privação do uso da loja de arrumação de que são proprietários, que desde o mês de Junho de 2016 se fixa na presente data no montante de €800,00, acrescida das quantias devidas por cada mês que decorrer até à desobstrução efectiva e total daquele logradouro e acesso, à razão de €100,00 por mês, acrescidos dos juros legais vencidos e vincendos;

- a pagarem aos autores, a título de danos não patrimoniais, a quantia de €8.000,00 (oito mil euros), sendo € 2.000,00 (dois mil euros) para cada um dos autores, acrescida dos respectivos juros de mora à taxa legal, contados desde a citação dos réus até efectivo e integral pagamento.

Alegam, em síntese, que são donos e legítimos possuidores do prédio urbano acima referido (inscrito na matriz sob o art ...) composto de r/chão e 1.º andar, com a superfície coberta de 28,54m2, e que o mesmo confina do lado nascente com o prédio urbano também acima referido (inscrito na matriz sob o art ...), também composto por r/chão e 1.º andar, e que desde tempos que a memória dos vivos não alcança, mas pelo menos desde 1961, que o acesso ao seu prédio era efectuado por um “túnel” que se situa a nascente do prédio, que parte da Rua da ..., passando por baixo do prédio pertencente aos réus, túnel esse que sempre se desenvolveu com a orientação nascente/poente, até uma porta através da qual era efectuado o acesso ao interior do rés-do-chão do prédio dos AA., sendo que esse túnel e a referida entrada sempre constituíram o único meio de acesso, quer para as lojas de arrumação onde criavam animais, designadamente galinhas, coelhos e porcos, e onde guardavam produtos agrícolas como batatas e cebolas, assim como lenha, pinhas, entre outros, quer para o primeiro andar, onde se localizavam a cozinha e restantes compartimentos de habitação.

Alegam que partilham com o prédio dos RR. o referido “túnel”, que por isso se deve entender como comum a ambos os prédios, até ao local onde se situa a porta que dá acesso ao r/chão do prédio destes, e que é exclusivo do prédio deles, AA.,  a partir dessa porta até à porta que dá acesso ao interior do seu r/chão, entendendo que, mesmo na hipótese de tal logradouro não integrar o prédio deles AA., sempre se achará constituído por usucapião a favor do mesmo e onerando o prédio dos RR. um direito de servidão de passagem com a largura e restantes dimensões de tal “túnel”.

Acrescentam  que no mês de Junho de 2016 os RR. decidiram impedir os AA. de aceder ao seu prédio através do referido túnel, nele colocando dois ferros formando um X em frente à porta do prédio dos AA. sita nesse túnel, persianas velhas, vários tubos de plástico, dez sacos com madeira no seu interior e um vaso de flores, e em meados do mês de Novembro de 2016, por forma a obstaculizar definitivamente o acesso ao interior da loja de arrumação virada a norte e nascente do r/chão do prédio dos AA., construíram uma parede de blocos que rebocaram, encostada à porta daquela loja, tendo ainda no dia 19/12/2016 colocado uma porta de alumínio lacado na entrada do referido túnel, trancando-a à chave, da qual são os exclusivos detentores.

Em virtude destas condutas dos RR. não conseguem aceder à loja do  r/chão do seu prédio, não podendo fazer uso pleno da mesma, o que lhes causa prejuízos, correspondentes pelo menos ao valor dos rendimentos, proventos e utilidades que retirariam do mesmo se dele fizessem um regular e normal uso, e durante todo o tempo em que se vier a verificar tal impedimento, devendo para esse efeito fixar-se quantia não  inferior a €100,00 por mês. Referem ainda que, em consequência da conduta dos RR. têm andado tristes,  abatidos nervosos e inseguros, sendo confrontados pelos populares de ... sobre o que está a ocorrer, estando em causa danos não patrimoniais que merecem a tutela do direito e que não podem ser ressarcidos com quantia inferior a €8.000,00, sendo € 2.000,00 para cada um deles, AA..

Os RR. contestaram, referindo que o túnel a que os AA. aludem é um espaço integrante da casa deles pela circunstância de o mesmo fazer parte na sua totalidade da edificação que abrange o solo em que assenta tal casa. Adiantam que o seu prédio e o prédio dos AA. não estão sujeitos nem integram o regime da propriedade horizontal e que, por isso, a sua casa só pode ser objecto de um único direito de propriedade, abrangendo a construção e o solo em que a mesma assenta, sendo que a pretensa passagem dos AA. pelo prédio deles seria uma verdadeira devassa sobre o seu prédio,  incompatível com o disposto no art.1550º do CC, que apenas permite a constituição de servidão de passagem sobre prédios rústicos. Mais referem terem sempre impedido que alguém passasse no aludido túnel e, consequentemente, no r/chão da sua casa, desde que a possuem, primeiro como arrendatários e depois como proprietários, o que sucede há pelo menos 43 anos. Mais referem que não corresponde à verdade que o túnel em questão seja o único acesso ao prédio dos AA., quer para o r/chão, quer para o primeiro andar, referindo que os AA. há mais de 20 anos abriram no lado sul do seu prédio uma entrada que dá acesso através de uma escada interior ao compartimento ou loja que agora dizem inacessível, sendo que as duas lojas existentes do r/chão do prédio dos AA. só agora são independentes entre si, facto que se deve à edificação de uma parede divisória entre elas por parte dos AA.

 Deduzem pedido reconvencional, pedindo que:

1-se declare que os réus/reconvintes são proprietários, com exclusão de outrém, do prédio urbano sito em ..., composto por r/chão e 1.º andar, inscrito na matriz sob o artigo ... da União das Freguesias de ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..., abrangendo todo o solo em que a edificação se encontra implantada, declarando-se a inexistência de qualquer servidão de passagem;

 2. sejam os autores/reconvindos condenados a pagar solidariamente ao réu/reconvinte marido a quantia de €600,00 para compensação dos danos não patrimoniais por este sofridos em consequência das condutas daqueles, acrescidos dos respectivos juros de mora à taxa legal, contados desde a citação dos autores/reconvindos até ao efectivo e integral pagamento.

Os AA./reconvindos apresentaram réplica, na qual alegaram que nunca os RR/reconvintes praticaram actos de posse sobre o túnel, concluindo como na petição inicial.

Foi realizada audiência prévia na qual foram fixados os temas da prova.

Realizado julgamento foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência:

1 - declarou que os autores/reconvindos são proprietários e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do prédio urbano sito em ..., composto de r/chão e 1.º andar com a superfície coberta de 28,54m2, inscrito na matriz predial sob o artigo ... da União das Freguesias de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º..., condenando os réus/reconvintes a reconhecerem tal facto;

2 - declarou que do prédio urbano referido em 1. faz parte integrante o espaço que se situa entre a porta mencionada em t) dos factos provados e a porta mencionada em h) dos factos provados, com a área de 3,78m2, assinalado a azul claro no levantamento topográfico junto a fls.244 dos autos, condenando os réus/reconvintes a reconhecerem tal facto e restituírem aos autores/reconvindos tal espaço livre de quaisquer ónus ou encargos e a absterem-se de sobre ele praticarem quaisquer actos;

3 - condenou os réus/reconvintes a retirarem do espaço referido em 2. todo o material que lá colocaram e a parede que nele construíram, mencionados em ll), mm) e pp) dos factos provados, deixando-o totalmente livre e desimpedido em toda a sua extensão, abstendo-se de no futuro adoptarem quaisquer actos ou procedimentos que violem o direito de propriedade dos autores/reconvindos sobre o mesmo;

4 - declarou que os autores/reconvindos são comproprietários, com os réus/reconvintes e sem determinação de parte, do espaço que se situa entre a entrada da parcela de terreno mencionada em g) a i) dos factos provados tendo por referência a Rua do ... e a porta mencionada em t) dos factos provados, com a área de 1,84m2, assinalado a azul escuro no levantamento topográfico junto a fls.244 dos autos, condenando os réus/reconvintes a reconhecerem tal facto e a fazerem uma utilização de tal espaço que não prive os autores/reconvindos do uso do mesmo;

 5 - condenou os réus/reconvintes a retirarem a porta de alumínio que colocaram na entrada do espaço referido em 4., tendo por referência a rua do ..., ou, em alternativa, a entregarem uma chave da mesma aos autores/reconvindos, abstendo-se de no futuro adoptarem quaisquer actos ou procedimentos que violem o direito de compropriedade dos autores/reconvindos sobre o espaço em questão;

6 - absolveu os réus/reconvintes dos restantes pedidos contra si formulados pelos autores/reconvindos.

Julgou parcialmente procedente, por parcialmente provada, a reconvenção e, nessa conformidade:

1. declarou que os réus/reconvintes são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do prédio urbano sito em ..., composto por r/chão e 1.º andar, inscrito na matriz sob o artigo ... da União das Freguesias de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º..., condenando os autores/reconvindos a reconhecerem tal facto;

2. declarou que os réus/reconvintes são comproprietários, com os autores/reconvindos e sem determinação de parte, do espaço que se situa entre a entrada da parcela de terreno mencionada em g) a i) dos factos provados tendo por referência a Rua do ... e a porta mencionada em t) dos factos provados, com a área de 1,84m2, assinalado a azul escuro no levantamento topográfico junto a fls.244 dos autos, condenando os autores/reconvindos a reconhecerem tal facto e a fazerem uma utilização de tal espaço que não prive os réus/reconvintes do uso do mesmo;

3. absolveu os autores/reconvindos dos restantes pedidos contra si formulados pelos réus/reconvintes.

Custas pelos autores/reconvindos e pelos réus/reconvintes na proporção do respectivo decaimento, fixando-se a responsabilidade dos autores/reconvindos em ¼ e a dos réus/reconvintes em ¾ - art.527.º, n.ºs1 e 2 do Código de Processo Civil.

II – Do assim decidido, apelaram os RR. que concluíram as suas alegações nos seguintes termos:

...

Os RR. apresentaram contra alegações que concluíram nos seguintes termos:

...

III- O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

...

IV – A - Do confronto das conclusões das alegações com a sentença recorrida  resulta para apreciação no presente recurso, constituindo o seu objecto, saber se a matéria de facto deverá ser alterada por se verificar relativamente a alguns dos seus pontos, indicados pelos apelantes, admissão por acordo, em função do constante no art 587º CPC; e se da consideração desses pontos de facto como provados, bem como da disciplina do artigo 1344º do Código Civil, resulta a inversão do decidido, com a improcedência da acção e a procedência da reconvenção.

Os RR. defenderam-se na contestação, invocando (entre o mais), e em função do disposto no art 1344º CC, como excepção peremptória impeditiva da constituição do direito de propriedade dos AA. por usucapião sobre a parcela de terreno a que os mesmos se referem na al b) do pedido,  que essa parcela de terreno integra o solo em que a construção de que são proprietários está implantada, e que, por isso, não pode sobre ela incidir outro direito de propriedade como os AA. pretendem. Com base nesse entendimento deduziram pedido reconvencional no sentido de se declarar que essa mesma parcela de terreno faz parte do seu prédio urbano.

É claramente uma situação em que o pedido reconvencional advém dos factos jurídicos que servem de fundamento à defesa -  cfr 266º/2, al a) CPC.

Tendo os RR. reconvindo havia lugar a réplica, como resulta do art 584º CPC, para resposta dos AA. quanto àquele pedido. Admite-se nestas circunstâncias que o autor aproveite este articulado para responder também às próprias excepções, por o aconselhar o princípio da economia do processo[1], havendo quem sustente que o autor está mesmo obrigado a assim proceder [2].

  Na situação dos autos, em que, como se viu, o pedido reconvencional se funda em factos invocados na defesa, respondendo os AA. à reconvenção, por inerência, responderiam igualmente à acima referida excepção.

Segundo o nº 1 do art 587º, «a falta de impugnação dos novos factos alegados pelo réu tem o efeito previsto no art 574º».

Por sua vez, dispõe esta norma – 574º - a respeito do “ónus de impugnação” (respectiva epígrafe), no respectivo nº 2, que se «consideram admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito», decorrendo antecedentemente do nº 1 da mesma, que impugnar corresponde «a tomar posição definida perante os factos» alegados pela contraparte.

Por assim ser se, efectivamente, na situação dos autos se houvesse de concluir que os AA. na réplica não tinham tomado posição definida sobre os factos em função dos quais os RR. pretendem o preenchimento da norma do art 1344º CPC, tais factos ter-se-iam que reconhecer como provados por admissão por acordo.

Os factos em causa são os referidos na conclusão 5ª das alegações, estando, pois,  em causa, os factos respectiva e sucessivamente alegados no art 63º (A dependência em litígio integra a volumetria edificável da casa dos Réus), 84º (A parede do lado nascente serve de suporte na integralidade à casa dos Réus), 85º ( Bem como a parede do lado poente serve também de suporte à casa dos Réus; e assenta directamente na estrutura da porta do fundo) e  86º da contestação (No seu todo, considerando o espaço envolvente, a pretensão dos Reconvindos insere-se em propriedade edificada desde sempre pelos Reconvintes).

Entendem os RR. apelantes que para que não operasse a referida admissão por acordo destes factos, necessário teria sido que os AA. tivessem na réplica tomado «uma posição concretamente definida» a respeito do seu conteúdo.

Vejamos.

Dispõe o art 571º/2 que «o reu defende-se por impugnação quando contradiz os factos articulados na petição ou quando afirma que esses factos não podem produzir o efeito jurídico pretendido pelo autor».

Estão aí em causa diferentes formas de impugnação, uma através de oposição de facto, outra através de oposição de direito.

Apenas nos interessa a oposição de facto.

Refere Paulo Pimenta[3]: «Na oposição de facto, o réu não aceita os factos articulados pelo autor. Tal oposição pode fazer-se de três modos: negando rotunda e genericamente os factos visados, apelidando-os puramente de falsos. A isto se chama “inexactidão absoluta” ou “negação directa”; negando-os indirectamente, isto é, integrando-os numa outra panorâmica fáctica, apresentando uma “contraversão ou contra-exposição dos mesmos factos. A isto se chama inexactidão relativa ou negação indirecta, podendo também falar-se em impugnação motivada; invocando em relação a eles, a figura do simples desconhecimento, prevista no nº 3 do art 574º. Esta oposição consiste na declaração feita pelo réu, de que não sabe se determinado facto é real. O réu não nega propriamente o facto, mas também não o aceita, sem mais, como verdadeiro. Esta forma de impugnação só é, contudo admissível quanto a factos não pessoais ou de que o réu não deva ter conhecimento». 

O mesmo autor refere ainda a respeito do ónus de impugnação [4](…) o réu não pode remeter-se a uma atitude passiva, não se pronunciando  sobre os factos articulados pelo autor, devendo, outrossim, impugnar os factos que não reconheça ou não aceite». E acrescenta: «Tal impugnação não carece, porém de ser motivada, através de uma contraversão dos factos articulados pelo autor. Basta a mera negação expressa do ou dos factos alegados». E em nota conclui: «O que permite dizer que, hoje e desde a Reforma de 95/96, a impugnação na contestação pode limitar-se a uma mera negação em bloco de toda a matéria de facto alegada pelo autor. Quer dizer, a lei não proíbe a chamada contestação por negação, ao contrário do que acontecia até 1995/96». [5]

Ora, os AA. na réplica iniciam-na referindo (art 1º): «É totalmente falso, pelo que se impugna, o alegado nos arts 62º, 63º, 68º a 76º, 79 º e 82º a 88º da reconvenção, dando-se na presente sede por reproduzido e integrado, o alegado nos arts 19º a 41º da p i».

Do que resulta que, ao contrário do que os apelantes o referem, os AA. impugnaram expressamente os  arts 63º, 84º, 85º e 86º da contestação.

E já se viu que não era necessário para efeito da sua não aquisição por acordo uma sua motivação motivada.

Por isso tal matéria foi sujeita a prova, tendo resultado não provado que:

- «o espaço mencionado em g) a i) faz parte integrante do prédio urbano referido em d), fazendo parte, na sua totalidade, da respectiva edificação» (ponto 10º);

- «todas as paredes que suportam o piso da cozinha referida em vv) fazem parte integrante do prédio urbano mencionado em d)» (ponto 11);

a parede do lado direito do espaço referido em g) a i), tendo por referência a entrada através da Rua do ..., seja meeira, nela assentando a estrutura do primeiro andar do prédio urbano identificado em d)»

Como os RR. não procederam à impugnação da matéria de facto, através da reapreciação dos actos de prova realizada na 1ª instância – reapreciação a que se reporta especificamente o art 640º CPC - tendo-se limitado, nos termos acima expostos, a censurar a fixação dos factos materiais da causa  por a 1ª instância ter exigido a prova de factos que, do seu ponto de vista, já não dela careciam por estarem provados por acordo - o que já se viu não ter sucedido - tem que se concluir que os RR., aqui apelantes, definitivamente, não lograram provar os pontos de facto acima referidos.

Cabendo referir que, não obstante, lograram provar que:

- «o tecto que serve de cobertura ao espaço aludido em g) a i) é a placa que constitui o piso da cozinha situada no primeiro andar da casa de habitação existente no prédio urbano referido em d) (ponto vv)»;

- «a parede situada do lado esquerdo de tal espaço, tendo por referência a entrada através da Rua do ..., faz parte integrante do prédio referido em d)» (ww)

Carvalho Fernandes[6] na sua abordagem aos direitos reais invoca como características relativas ao objecto dos mesmos, a circunstância do respectivo objecto «ter de ser uma coisa certa e determinada», o que faz corresponder «à coisa ter de existir e ser certa e determinada no momento da constituição ou aquisição do direito». Já entende como característica tendencial dos direitos reais a de que os mesmos se estendem às coisas que no seu objecto se incorporem ou a ela sejam unidas, chamando a atenção para o facto de «nada impedir a constituição de direitos reais sob partes de uma coisa, como sucede na hipoteca (art 688º); no condomínio (art 1414º- («o direito do condómino só se refere, na propriedade horizontal, à sua fracção e não a todo o prédio e não abrange necessariamente todas as coisas comuns, sem que isso ponha em causa o carácter real do direito»); no direito de superfície (art 1524º); no direito de uso e habitação  art 1489º). 

Mas, como característica tendencial poder-se-á dizer que «a incidência do direito real sobre toda a coisa» significará que «ela abrange de igual modo a coisa e as suas coisas componentes e partes integrantes».

Pronuncia-se deste modo Mota Pinto [7]: «O objecto do direito real tem de incidir  sobre coisa certa e determinada, o mesmo sucedendo com os negócios dotados de eficácia real cujo objecto tem de se revestir de idêntica característica: ser certo e determinado. É que só pode haver o direito de excluir todos em relação a uma coisa, se esta for certa e determinada, não podendo, por isso, constituir-se direitos reais sobre coisas não individualizadas ou indeterminadas (…) O objecto dos direitos reais tem de se encontrar individualizado, quando aqueles se constituem, dado que, de outra forma, não poderiam existir os direitos de sequela e de preferência».

E acrescenta:

«Acentua-se também por vezes que os direitos reais incidem sobre a totalidade das coisas que constituem o seu objecto. Esta ideia não é, porém, inteiramente válida. Ela só é, de facto, de aceitar sem rectificação no que se refere à propriedade e ao usufruto (….) Tal ideia, no domínio em que é válido dizer-se que o direito real incide sobre a totalidade da coisa, e assim acontece designadamente na propriedade, significa que as partes integrantes ou constitutivas da coisa, não podem, enquanto se mantiverem como tal, ser objecto de direitos particulares, seguindo antes o destino jurídico da coisa que detém, por isso, um destino unitário».

 Tem no entanto este autor algumas reservas relativamente à enunciação do destino unitário da coisa no que se reporta às partes integrantes[8]

E de facto, partes constitutivas (ou componentes) não se equivalem às partes integrantes, definindo Mota Pinto, uma e outras, do seguinte modo:

«Por partes constitutivas ou componentes designam-se (…) aqueles elementos de uma coisa que a formam na sua totalidade, não podendo ser dela separados sem se destruírem ou melhor, sem que algum deles fique destruído ou sem que a coisa no seu conjunto se torne incompleta ou imprópria para o uso a que se destina». E exemplifica com «as salas de um edifício, ou mais constitucionalmente ainda, as pedras, as janelas, as portas, as telhas, as vigas, são partes constitutivas ou componentes desse edifício, seguindo, portanto, o destino da coisa. (…) Há assim um destino unitário desta no que se refere à submissão a um direito real». 

Quanto às partes integrantes pronuncia-se deste modo: «Partes integrantes, às quais também se aplica este principio de unidade, são, por seu turno, as como tais consideradas pelo nº 3 do art 204º; ou seja “toda a coisa móvel ligada materialmente ao prédio com caracter de permanência”. Constituem, assim, esta categoria de coisas a instalação eléctrica ou de água, o aquecimento central, por exemplo, ou seja, aquelas como diz a lei, que se encontram ligadas ao prédio com um carácter de permanência»

E conclui: «Todas estas coisas seguem o destino unitário da coisa pelo menos e nitidamente no que se refere às partes constitutivas ou componentes que referimos. Por força desta ideia não podem, assim, constituir-se direitos de propriedade diversos sobre as várias salas ou as diferentes partes de um mesmo imóvel, excepto nos termos em que a lei permite a chamada propriedade horizontal que – essa sim – é permitida se se encontrarem preenchidos os requisitos que para a sua constituição a lei estabelece, designadamente o de só poder incidir sobre unidades independentes  (art 1414º).  Fora desta hipótese, que se encontra, aliás, tipicizada na lei, não pode haver direitos particulares de propriedade sobre partes componentes de uma coisa. Não é assim possível um indivíduo ser proprietário de uma sala, enquanto outrem o é da sala contígua ou ser-se proprietário duma parede e não das restantes do mesmo compartimento. A coisa tem um destino unitário na sua totalidade».

E evidencia que «este principio de unidade de destino da coisa  não se aplica  às chamadas coisas acessórias ou pertenças a que se refere o art 210º, coisas móveis que não constituindo  partes integrantes, não estão, por isso, ligadas materialmente à coisa, encontrando-se apenas afectadas, por forma duradoura, ao serviço ou ornamentação de outra». Referindo que se integram em tal categoria de coisas «por ex, as alfaias agrícolas, as maquinas agrícolas com que o prédio é explorado  ou os objectos utilizados numa casa  para comodidade dos seus utentes  … »

Manuel de Andrade [9] distingue parte integrante de parte componente do seguinte modo:

«Partes componentes (ou constitutivas como também poderia chamar-se-lhes) são aquelas coisas que fazem parte da estrutura mesma do prédio, e sem as quais portanto, o prédio não está completo ou é improprio para o uso a que se destina. Assim ao portas, as janelas, os vigamentos, as telhas ou as clarabóias duma casa são partes componentes dela, pois são elementos que servem para formar esse todo - ad integrandum domus».

«As partes integrantes, por seu lado, não chegam a ser elementos da própria estrutura do prédio, que sem elas não deixaria de existir completo e prestável para o uso a que se destina . Só que aumentam a utilidade do mesmo prédio, enquanto servem para o tornar mais produtivo, ou para a sua maior segurança, comodidade ou embelezamento. Estão postas ao serviço do prédio. Desempenham relativamente a ele uma função auxiliar ou instrumental». 

A sentença recorrida utiliza a contraposição partes componentes/partes acessórias de Vaz Serra, citando-o nos seguintes termos:

«Como refere Vaz Serra (in B.M.J., n.º 62, Janeiro de 1957, págs.142 e 143, citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4/03/2004, proferido no âmbito do processo n.º10092/2003-8 5-356) “parte integrante é aquilo que não só determina a fisionomia essencial de uma coisa, não só serve para a utilizabilidade do todo (isto é verdadeiro também para a coisa acessória), mas, além disso, não pode ser considerado, tal como é no seu estado, senão enquanto ligado à coisa que serve. De modo que uma separação teria o efeito de prejudicar esta e aquela. A coisa a que aquela é destinada, porque ficaria impedida ou diminuída à sua utilizabilidade. A outra coisa também, porque ficaria inservível na sua forma actual. Quando, pelo contrário, uma coisa é destinada a tornar possível a gestão económica de uma outra, a que está adstrita e que por isso figura como coisa principal, mas, tal como agora, é susceptível de uma utilização diversa (por exemplo, pode ser ela mesmo o centro de uma gestão económica) então temos a coisa acessória; e a relação que liga esta à principal chama-se relação de pertença”. Já as partes componentes são as coisas materialmente ligadas aos imóveis com carácter de permanência»

Refere o art 1344º/1, no que se reporta aos limites materiais da propriedade dos imóveis, que a mesma «abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico».

Exprime a ideia da inexistência de quaisquer limites materiais à propriedade sobre coisas imóveis que não sejam relativos às suas estremas horizontais[10].

Ora esta ideia, que é essencial ao direito de propriedade, resulta, salvo o devido respeito, posta em causa pela solução encontrada na sentença recorrida, que não pode, por isso, ser confirmada.

Entende-se que  - e  pese embora a acima referida matéria de facto não provada - há ainda matéria de facto provada que permite entendimento contrário ao tido na sentença recorrida, entendimento esse  que nos parece mais correcto.

Já acima se assinalou que ficou provado,

-na alínea vv) que «o tecto que serve de cobertura ao espaço aludido em g) a i) é a placa que constitui o piso da cozinha situada no primeiro andar da casa de habitação existente no prédio urbano referido em d)»;

e na alínea ww) que «a parede situada do lado esquerdo de tal espaço, tendo por referência a entrada através da Rua do ..., faz parte integrante do prédio referido em d)».

Conjugando esses factos com a percepção que resulta do levantamento fotográfico e das fotografias juntas aos autos, entende-se haver que concluir que, não se tendo provado embora que «o espaço mencionado em g) a i) faça parte, na sua totalidade, da respectiva edificação» (edificação esta que é a que se reporta à casa dos RR.), e que «todas as paredes que suportam o piso da cozinha referida em vv) façam parte integrante do prédio urbano mencionado em d)», bem como que «a parede do lado direito do espaço referido em g) a i), tendo por referência a entrada através da Rua do ..., seja meeira, nela assentando a estrutura do primeiro andar do prédio urbano identificado em d)”, se provou que o referido espaço mencionado em g) a i) está contido na volumetria correspondente à do 1º andar da casa dos RR,, visto que o tecto que serve de cobertura ao espaço aludido em g) a i) é a placa que constitui o piso da cozinha daquela casa e se sabe que esta é mais extensa – pois tem uma área total de 6,69m2 – do que  aquele espaço  - que tem uma área de 5,64 m 2 - como resulta da planta do 1º andar e do rés do chão junta a fls 230 e 243 dos autos.

Quer dizer, se, de facto, não se provou que a parcela de terreno em litigio está   delimitada pelas paredes do rés-do chão da casa dos RR, provou-se que a mesma está contida na superfície delimitada por essas paredes.

  Por outro lado, entende-se que não se pode qualificar a parcela de terreno em causa como uma parte acessória da coisa principal, que seria o edifício que corresponde à casa dos RR., ou mesmo como uma sua parte integrante, para daí retirar a possibilidade de lhe poder ser dado um destino autónomo do daquele edifício, e vir a admitir-se, como o fez a sentença recorrida na esteira do pedido principal formulado pelos AA., que lhe pudessem corresponder mais do que um direito de propriedade.

É que, como se vê das disposições legais atrás referidas atinentes às coisas integrantes e às coisas acessórias umas e outras são configuradas como coisas móveis.

No que àquelas respeita, o nº 3 do art 204º define-as, na sua origem, como «toda a coisa móvel ligada materialmente ao prédio com carácter de permanência», sendo apenas depois, e em função dessa ligação material ao imóvel, que acabam por merecer a qualificação de imóvel – cfr al e) do art 204º - e por aí se poderem contrapor aos móveis.

 E as coisas acessórias (ou pertenças) - art 210º - são definidas como «coisas móveis que não constituindo partes integrantes, estão afectadas por forma duradoura ao serviço ou ornamentação de uma outra».

A uma porção de terreno que está contida pelas paredes de um prédio urbano e que se situa por baixo do mesmo ao nível do que corresponderia a um seu rés do chão,  atravessando-o em toda a sua extensão longitudinal, formando um túnel, desembocando este, numa das suas extremidades, numa porta que dá acesso a uma loja, e não tendo na outra das extremidades, que confina com a via pública, qualquer porta, como  é o caso, considerada essa porção de terreno de per si, não quadra o conceito de coisa móvel, apenas lhe quadrando, em função dos conceitos de que se tem de partir do CC, a de terreno que serve de logradouro a um prédio urbano com a consequente qualificação de imóvel – cfr nº 2 art 204º.

Como o refere Menezes Cordeiro[11] «a chave da distinção» entre prédio urbano e prédio rústico «é a ideia de logradouro», referindo a seu respeito que «o Supremo[12] explica que “logradouro”, na falta de definição legal, surge como um conceito jurídico indeterminado, que só se torna preciso aquando da aplicação ao caso concreto», mais referindo que ele abrange - ou pode abranger – «(…) o terreno adjacente à casa, com carácter de quintal, pátio ou jardim, terreno de horta com árvores, na dependência da moradia, servindo de aproveitamento ou suporte às necessidades ocasionais dos donos da casa [13]. Já no Ac. R. E. de 15/3/1984 [14] refere-se que logradouro  será o que é ou pode ser gozado, fruído os disputado por alguém.

 Escrevendo ainda Menezes Cordeiro, «o logradouro está afecto ao edifício, normalmente para habitação, dá apoio aos moradores».

Rejeita-se pois o entendimento do tribunal a quo no sentido de que, «o referido espaço não sendo parte componente nem integrante do prédio urbano referido em d)», mas configurando-o, tanto quanto se depreende da exposição, como coisa acessória do mesmo, podia ser objecto de um direito de domínio diverso do incidente sobre a casa dos RR.

Veja-se que a jurisprudência – pese embora não se tenha encontrado nenhuma relativamente a um local físico como o dos autos, mas apenas situações de espaços configuráveis como fracções de imóveis urbanos não estando estes no entanto constituídos em propriedade horizontal  – tem-se  manifestado no sentido que resulta do Ac. desta Relação de 7/4/2016[15][16], amplamente citado pelos RR., de que resulta, entre o mais, que, «Em face do regime geral do direito de propriedade sobre imóveis, qualquer edifício incorporado no solo só pode ser objecto de um único direito de domínio, o qual abrangerá toda a construção, o solo em que esta assenta e os terrenos que lhe servem de logradouro, como se infere das regras sobre acessão industrial imobiliária e do disposto no art.º 1344º do C. Civil, numa manifestação do princípio da especiali­dade ou da individualização que rege os direitos reais, na vertente segundo a qual, incidindo o direito de propriedade sobre a totalidade das coisas que cons­tituem o seu objecto, não podem as suas partes integrantes ou componentes serem objecto de direito de propriedade de titular diferente, sendo o destino jurídico da coisa unitário», e que, «tendo em consideração, por um lado, as limitações impostas pelo princípio da individualização e, por outro lado, o regime excepcional da propriedade horizontal, os tribunais têm vindo a afirmar que a posse, em termos de direito de propriedade, de parte de um prédio não sujeito ao regime da propriedade horizontal, não pode determinar a aquisição por usucapião dessa parte, sem a prévia ou, pelo menos, simultânea constituição do imóvel em propriedade horizontal, a qual pode ocorrer por usucapião»

Nem se diga que há matéria de facto provada nos autos que colidiria com este entendimento. Assim, a da alínea dd) referindo que o espaço referido em uu) é parte integrante do prédio urbano mencionado em o).

  É que está em causa aí uma conclusão jurídica que resulta desmentida pelo que acima se referiu, devendo em consequência ter-se como não escrita.

Entende-se, assim, que procede a apelação.

IV – B - Não obstante, visto que os AA. formularam um pedido subsidiário que não chegou a ser apreciado na 1ª instância por aí se ter tido como procedente o pedido principal, a agora decidida improcedência deste implica que se tenha de apreciar aquele outro, nos termos do art 665º/2 CPC.

Concretamente, que seja declarado que a favor do prédio urbano referido em a) e onerando o prédio urbano sito em ..., composto por r/chão e 1.º andar, inscrito na matriz sob o artigo ... da União das Freguesias de ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º..., propriedade dos réus, se encontra constituído por usucapião um direito de servidão de passagem com a largura e comprimento do “túnel” que dá acesso ao mesmo, condenando-se os réus a reconhecerem tal facto.

 Tendo-se dado cumprimento ao disposto no art 665º /2 e 3 do CPC, ouviram-se as partes a respeito deste pedido.

Nas suas alegações a respeito desse pedido, os AA. concluíram:

A) Os AA/Recorridos há muitas dezenas de anos que usam a passagem para aceder à sua loja/arrumos, a qual, como se encontra provado, é a única que dá acesso à mesma.

B) Os Recorridos sempre acederam à sua loja, vendo-se agora sem qualquer acesso à mesma, impossibilitados de nela ingressar, de a utilizar e de aceder aos bens que aí se encontram.

C) Assiste aos Recorridos, pelo menos, o direito a ver constituída uma servidão de passagem, para por aí poderem aceder à sua loja e ao seu prédio, como sempre fizeram, por ser a única forma de o fazer.

D) A respeito da utilização do espaço em questão pelos Recorridos, passando por ali, não se vislumbra que o seu uso em condições normais possa enquadrar qualquer situação de devassa do prédio dos réus/reconvintes ou a violação da reserva da sua  intimidade privada.

E) Os Recorrentes haviam sustentado, por exemplo, que no lado esquerdo do espaço em questão se situava um quarto onde descansam e, resultou apurado que o que existe é uma loja de arrumos.

F) Impõe-se reconhecer aos Recorridos a aquisição por usucapião do  direito de servidão de passagem com a largura e comprimento do “túnel” que dá acesso ao seu prédio.

G) Encontra-se assente que os Recorridos, por si e por quem os antecedeu, têm andado na posse do referido logradouro, usando parte do espaço como como galinheiro, e nele depositando produtos das suas colheitas e utensílios agrícolas, lenha, e em geral destinando-o a todos os fins que entendessem por convenientes, chegando mesmo ao ponto de ter colocado um portão, e usando o mesmo espaço como forma exclusiva de acesso àquela parte do seu prédio.

H) O mesmo sucedendo com os arrendatários ... a quem foi dado tal prédio de arrendamento em 10/02/1964.

I) Tudo factos que nunca mereceram qualquer oposição por parte dos Recorrentes.

J) A utilização do referido logradouro consistente na passagem pelomesmo para aceder    referida loja de arrumação sempre esteve demonstrada e revelada através de marcas permanentes no solo ao longo da parte central do mesmo, em terra firme e batida, que sempre formaram um trilho claramente indiciador do trânsito por ele de pessoas, animais e utensílios domésticos.

K) Acesso esse que sempre foi efectuado à vista de toda a gente e por isso de forma pública, ininterruptamente e portanto de forma continuada, ignorando lesar interesses de quem quer que seja e por isso de boa-fé, sem oposição de ninguém e por isso de forma pacífica e na convicção de exercer um direito próprio e exclusivo de direito de passagem.

L) Sempre se acha constituído por usucapião a favor do prédio dos Recorridos e onerando o prédio dos Recorrentes um direito deservidão de passagem com a largura e  restantes dimensões de tal “túnel”.

M) A passagem ao longo dos anos é visível não só pelos sinais existentes, como pelo facto, que está assente e provado, de que existe no prédio dos Recorridos uma porta, que de forma abusiva foi tapada pelo Recorrentes com uma parede, de forma a obviar a que aqueles acedessem ao seu prédio, que, desde então está totalmente inacessível naquela parte.

N) Sobre a constituição de servidão predial de passagem por usucapião, citamos o Douto Acórdão desse Venerando Tribunal da Relação de Coimbra de 04/04/2017, proferido no Proc. nº 30/15.8T8SAT.C1, in www.dgsi.pt.

O) Não se pode admitir que os Recorridos fiquem pura e simplesmente privados do acesso a uma parte do seu prédio, que sempre esteve livre e acessível.

P) Só a total reconstrução do prédio permitirá abrir uma outra porta de acesso, pois a parede que divide as duas lojas do rés-do-chão é muito ainda e qualquer mexida causará uma derrocada da mesma, que serve de sustentação ao 1º piso da habitação.

Q) Cumpre assegurar que os Recorridos mantém acesso à loja que utilizam há dezenas de anos, que está totalmente tapada e inacessível, condenando-se os Recorrentes a restituir esse acesso, demolindo a parede que aí contruíram e retirando a porta de alumínio que colocaram na entrada.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, e, para o caso antevisto assim se não entender, ser o pedido subsidiário julgado procedente por provado e ser declarado e os RR/Recorrentes condenados a reconhecer que a favor do prédio dos AA/Recorridos identificado na al. a) dos factos provados e onerando o prédio dos RR identificado na al. d) dos mesmos factos provados se acha constituído por  usucapião um direito de servidão de passagem com a largura e comprimento do “túnel” que dá acesso ao mesmo.

E nas respectivas alegações os RR. concluíram:

A)A pretensão de uma servidão legal de passagem constituída por usucapião a favor do prédio urbano dos AA., não pode proceder, por se inserir no interior do prédio urbano dos RR., mais concretamente no rés do chão.

B)Assim, respeitante ao interior dum edifício incorporado no solo.

C)Cuja delimitação ocorre por paredes, em cuja cobertura assenta integralmente a placa do piso da cozinha dos RR , sendo tudo sua propriedade.

D)Propriedade esta que os Recorridos desde logo aceitaram na réplica, ao não deduzirem qualquer oposição ao referido supra.

E)È por demais evidente que o direito de propriedade abrange a construção e todo o solo em que assenta.

F)Por consequência, tal facto inviabiliza qualquer tipo de servidão de passagem por usucapião.

G)Sendo que não se verifica o domínio pleno e exclusivo da coisa, com intencionalidade aquisitiva.

H) O solo em que assenta a casa de habitação dos RR reconvintes é parte componente daquela.

I -Por ser componente, não é susceptível de um domínio autónomo, como parece decorrer da pretensão dos AA /Reconvindos.

 Na contestação os RR. defenderam-se relativamente ao pedido agora em apreço,  invocando a excepção peremptória impeditiva consistente na circunstância de não se achar tipificada servidão de passagem sobre prédios urbanos.

Dispõe o art 1550º CC: «Os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos. 2- De igual faculdade goza o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio».

Na anotação ao preceito em causa, Pires de Lima/Antunes Varela referem: «Note-se porém que a servidão legal só recai sobre os prédios rústicos, conforme se prescreve na parte final do nº 1. A servidão legal de passagem não onera, por conseguinte, os prédios urbanos (…) por se entender que a solução oposta colidiria com a intimidade de que deve rodear-se a habitação ou domicilio (…) ou com as exigências próprias do exercício da actividade instalada no prédio».

Desta norma o que resulta em termos literais é que o prédio serviente terá que ser um prédio rústico, nada nela obstando a que o dominante seja um prédio urbano.

Se de facto se concluísse que o legislador, na tipificação das servidões legais de passagem, excluía, em quaisquer condições, as que onerassem qualquer parte de um prédio urbano, mesmo o respectivo logradouro, então ter-se-ia que dar razão aos apelantes. Com efeito, de nada teria servido aos AA. e seus antecessores terem possuído o túnel em causa à imagem de uma servidão de passagem, se esta não tivesse cabimento na categoria legal, não sendo concebível que se adquira por usucapião um direito fora dos elementos essenciais da categoria legal. [17]

Mas há razões para que assim não se entenda.

Dispõe o art 1306º CC, sob a epígrafe “Numerus clausus”, que «não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei; toda a restrição resultante de negócio jurídico, que não esteja nestas condições, tem natureza obrigacional».

Independentemente da exegese muito pessoal de Oliveira Ascensão relativamente a esta norma – muito criticada por Pires de Lima e Antunes Varela – a verdade é que não é tão simples assim a compreensão da tipicidade dos direitos reais.

Para Carvalho Fernandes[18] o princípio da tipicidade envolve duas consequências fundamentais: «impossibilidade de constituição de direitos reais não previstos (não tipificados) na lei, isto é atípicos; impossibilidade de aplicação  analógica das normas que fixam o regime dos direitos reais a situações jurídicas não reais» .

E evidencia não se mostrar contrária ao princípio da tipicidade a admissão de tipos abertos – situações em que a tipificação se limita à configuração do direito real mas não se projecta em todo o seu conteúdo «ficando assim na disponibilidade dos particulares interessados alguma liberdade na fixação do conteúdo do tipo, diversificando, alargando ou restringindo as faculdades reconhecidas ao titular do correspondente direito», advertindo, no entanto, que «esta liberdade, que, na sua extensão pode variar em função de cada tipo, tem um limite natural: ela não pode ir ao ponto de romper com os traços essenciais, específicos, do tipo, sob pena de o subverter».

Nas palavras de Oliveira Ascensão[19] «os tipos abertos consentem uma intervenção da vontade que não desminta as respectivas linhas de força».

Ora, justamente, a servidão predial corresponde a um tipo aberto em função da atipicidade do conteúdo da mesma.

Diz-se no art 1544º CC que a servidão predial pode ter por objecto «quaisquer utilidades» do prédio serviente, não constituindo sequer obstáculo à sua constituição o facto de elas serem futuras ou mesmo eventuais.

Como o destaca Carvalho Fernandes [20] «essencial à servidão, enquanto direito real, é a possibilidade de essas utilidades serem gozadas por intermédio do prédio dominante e a este trazerem “proveito”», e este proveito não carece de ter natureza económica.  

O que leva Carvalho Fernandes a concluir: «Colocado o problema do lado activo da servidão, isto significa não estarem tipificadas as faculdades atribuíveis ao seu titular, no uso de utilidades do prédio serviente. Daí poder aqui falar-se em atipicidade do conteúdo da servidão». Mais refere: «Não significa isso, porém, deixar a servidão de constituir um tipo, no conjunto dos direitos reais de gozo, no sistema jurídico português. Na verdade, a atipicidade do seu conteúdo não pode ir ao ponto de inutilizar o núcleo essencial atrás sobejamente evidenciado e emergente do próprio art 1544º: o gozo das utilidades do prédio serviente, quaisquer que sejam, tem de ser sempre feito por intermédio do prédio dominante, como acréscimo do seu proveito. Satisfeitos estes requisitos, tanto basta ao princípio da tipicidade (…). Só a ultrapassagem do referido limite descaracteriza o tipo». 

Evidentemente que não se está a esquecer que a atipicidade a que se vem fazendo referência se situa no conteúdo da servidão e não na prévia constituição do tipo, e que a questão na situação dos autos é saber se se poderá admitir a constituição por usucapião de uma servidão legal de passagem que se faça não por um “prédio rústico” como se refere literalmente no art 1550º, mas pelo logradouro de um prédio urbano.

Mas não se pode nesta matéria deixar de se evidenciar a servidão por destinação do pai de família – que constitui uma forma especifica de constituição das servidões, mas também um resultado advindo daquela específica constituição  -  a que se reporta o art 1549º. Como o sintetiza Menezes Cordeiro [21] tal servidão constitui-se «quando havendo em dois prédios pertencentes ao mesmo dono, ou em duas fracções do mesmo prédio, sinais aparentes e permanentes de serventia de um em relação ao outro, venham a ser separados. A servidão constitui-se, então, nos precisos termos em que, por decisão do anterior proprietário comum, havia transferência de utilidades de uma parte para a outra ou de um prédio para o outro. Salvo se, na separação, se decidir outra coisa».

 Ora, no que se reporta a este tipo de servidão, como o notam Pires de Lima /Antunes Varela, «tanto faz que os prédios sejam rústicos ou urbanos, que um seja rústico e o outro urbano», de onde se conclui que não é absolutamente contrário á natureza de uma servidão de passagem que a mesma se faça através de um prédio urbano e menos ainda através do logradouro de um prédio urbano, que é o que está em causa.

Carvalho Fernandes, ainda a respeito do sentido e consequências da tipicidade dos direitos reais, refere[22]: «A tipificação, como técnica de limitação de situações jurídicas reais menores, limitativas ou oneradoras da propriedade, afastando a autonomia privada, só legitima as restrições que a sua própria razão de ser imponha».

A razão de ser da restrição constante do art 1550º  -  a servidão legal só recair sobre prédios rústicos – resulta, como o fazem notar Pires de Lima e Antunes Varela no acima reproduzido comentário, de «se entender que a solução oposta colidiria com a intimidade de que deve rodear-se a habitação ou domicilio (ou com as exigências próprias do exercício da actividade instalada no prédio)».

Essa razão de ser não se verificará as mais das vezes no que se reporta a logradouros de prédios urbanos e, seguramente, não se verifica no que se reporta ao logradouro do prédio dos RR., tal como acima se caracterizou este logradouro.

Esse logradouro corresponde ao túnel (passadiço, mina, cortelho, canada) de que se fala nos autos, que se situa por baixo do 1º andar daquele prédio – al g) - sendo que no respectivo rés do chão se situa, não um quarto, como os RR. o invocaram, mas meramente uma loja de arrumos - facto t) –  e não obstante os RR. residirem, de forma ininterrupta, há 44 anos, primeiro como arrendatários e depois como proprietários nesse prédio urbano –al xx) – e o  tecto que serve de cobertura ao espaço aludido em g) a i) ser a placa que constitui o piso da cozinha situada no primeiro andar da casa de habitação existente no prédio urbano referido em d) – al  xx) – não se verifica que se ouçam as conversas.

Conclui-se, deste modo, que não há razão para em função do princípio de atipicidade dos direitos reais se excluir a constituição da servidão predial de passagem em causa nos autos, ainda que a mesma se faça pelo logradouro do prédio urbano dos RR.

Acresce em última análise que na servidão legal de passagem não está em causa um tipo de direito real de gozo, mas um seu sub-tipo. 

Assim se concluindo não haverá dúvidas na constituição desse direito de passagem.

Se assim não se concluísse – no sentido da constituição de uma servidão legal de passagem a favor do prédio dos AA. sobre o logradouro do prédio dos RR – perante uma tão evidente matéria de facto nesse sentido, seria, porventura, caso de se falar de abuso de direito.

Com efeito, «os direitos são concedidos às pessoas não para estas os utilizarem de acordo com o seu livre arbítrio, mas sim para que da sua utilização resulte um benefício social. Perante este princípio orientador, o legislador tem adoptado limitações especiais ao exercício dos direitos reais. Para além destas limitações especiais o conteúdo dos direitos reais ainda pode ser limitado negativamente pelo aludido princípio através do abuso do direito (art. 334º do CC): o conteúdo dos direitos reais é assim negativamente delimitado pela necessidade de não se proceder em contravenção com a finalidade económico-social do próprio direito».[23]

Para finalizar há que referir que as limitações que se colocam à aquisição por usucapião relativamente ao direito de propriedade de área contida em paredes de prédio alheio, ainda que essa área corresponda a um logradouro desse prédio, não se colocam relativamente à aquisição de um direito de servidão de passagem. São direitos bem diversos, aquele um direito pleno, este um direito limitado.

Deste modo, entende este tribunal que procede o pedido subsidiário formulado pelos AA., improcedendo correlativamente o pedido reconvencional deduzido pelos RR.

V - Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar procedente a apelação, e, no conhecimento do pedido subsidiário formulado pelos AA., julgar a acção parcialmente procedente, mantendo, revogando e alterando a sentença recorrida, nos seguintes termos:

- declarando que os autores/reconvindos são proprietários e legítimos possuidores, com exclusão de outrém, do prédio urbano sito em ..., composto de r/chão e 1.º andar com a superfície coberta de 28,54m2, inscrito na matriz predial sob o artigo ... da União das Freguesias de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..., condenando os réus/reconvintes a reconhecerem tal facto;

- declarando que os réus/reconvintes são proprietários, com exclusão de outrém, do prédio urbano sito em ..., composto por r/chão e 1.º andar, inscrito na matriz sob o artigo ... da União das Freguesias de ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º..., abrangendo todo o solo em que a edificação se encontra implantada, condenando os autores/reconvindos a reconhecerem tal facto;

- declarando que a favor do prédio urbano referido em a) e onerando o prédio urbano referido em d), propriedade dos réus, se encontra constituído por usucapião um direito de servidão de passagem com a largura e comprimento do “túnel” que dá acesso ao mesmo, condenando-se os réus a reconhecerem tal facto;

 – condenando os réus/reconvintes a retirarem do espaço que se situa entre a porta mencionada em t) dos factos provados e a porta mencionada em h) dos factos provados, com a área de 3,78m2, assinalado a azul claro no levantamento topográfico junto a fls. 244 dos autos, todo o material que lá colocaram e a parede que nele construíram, mencionados em ll), mm) e pp) dos factos provados, deixando-o totalmente livre e desimpedido em toda a sua extensão, abstendo-se de no futuro adoptarem quaisquer actos ou procedimentos que violem o direito de servidão de passagem dos autores/reconvindos sobre o mesmo;

- condenando os réus/reconvintes a retirarem a porta de alumínio que colocaram na entrada do espaço que se situa entre a entrada da parcela de terreno mencionada em g) a i) dos factos provados tendo por referência a Rua do ... e a porta mencionada em t) dos factos provados, com a área de 1,84m2, assinalado a azul escuro no levantamento topográfico junto a fls.244 dos autos,  ou, em alternativa, a entregarem uma chave da mesma aos autores/reconvindos, abstendo-se de no futuro adoptarem quaisquer actos ou procedimentos que violem o direito de servidão de passagem dos autores;

- absolvendo os réus/reconvintes dos restantes pedidos contra si formulados pelos autores/reconvindos.

- absolvendo os autores/reconvindos dos restantes pedidos contra si formulados pelos réus/reconvintes.

Custas da apelação pelos AA/apelantes.

Custas da acção pelos AA. e RR. na proporção de 1/4 para os AA. e ¾ para os AA.

                                                           Coimbra, 10 de Julho de 2019

(Maria Teresa Albuquerque)

(Manuel Capelo)

(Falcão de Magalhães)

            Sumário:

I – Porque os direitos reais incidem sobre a totalidade das coisas que constituem o seu objecto, as partes constitutivas ou componentes da coisa não podem, enquanto se mantiverem como tal, ser objecto de direitos particulares, antes seguindo o destino jurídico unitário da coisa.

II - Por assim ser, não podem constituir-se direitos de propriedade diversos sobre as diferentes partes de um mesmo imóvel, excepto nos termos em que a lei permite a chamada propriedade horizontal.

III - Uma porção de terreno que está contida pelas paredes de um prédio urbano e que se situa por baixo do mesmo ao nível do seu rés do chão, atravessando-o em toda a sua extensão longitudinal, formando um túnel, não tendo na extremidade que confina com a via pública qualquer porta, e desembocando a outra sua extremidade numa porta que dá acesso a um outro prédio urbano, deverá qualificar-se como logradouro do prédio urbano que o contém.

 IV - Em função do princípio da unidade acima referido não pode admitir-se que ainda que apenas sobre parte desse túnel se constitua direito de propriedade diverso daquele que incide sobre o prédio urbano em cujas paredes o mesmo se contém.

V - Deverá admitir-se a constituição por usucapião de uma servidão legal de passagem que se faça não por um prédio rústico, como se refere literalmente no art 1550º CC, mas pelo logradouro de um prédio urbano.

VI - Porque a servidão por destinação de pai de família se pode constituir sobre prédios urbanos ou sobre prédios rústicos, não se mostra absolutamente contrário à natureza de uma servidão de passagem que a mesma se faça através de um prédio urbano e menos ainda através de um seu logradouro.

 VII - Na servidão legal de passagem não está em causa um tipo de direito real de gozo mas um seu sub-tipo. 

VIII - O princípio da tipicidade, no que se reporta a servidões, resulta satisfeito desde que não seja inutilizado o núcleo essencial das mesmas tal como emerge do art 1544º: o gozo das utilidades do prédio serviente, quaisquer que sejam, ser feito por intermédio do prédio dominante com acréscimo do seu proveito.

IX - A razão de ser da restrição constante do art 1550º resulta de se entender que a solução oposta colidiria com a intimidade de que deve rodear-se a habitação ou domicilio.

X - Essa razão de ser não verifica no que se reporta ao acima referido logradouro.

XI – Pelas razões expostas, deverá concluir-se que a constituição de uma servidão de passagem por usucapião sobre o túnel acima referido, a favor do prédio em que este desemboca numa das suas extremidades, não fere o princípio da tipicidade dos direitos reais.


***


[1] Assim, Paulo Pimenta, «Processo Civil Declarativo », 2014,  p 207, falando de ónus do autor de responder à matéria das excepções deduzidas na contestação
[2] - Assim, Paulo Ramos Faria/Ana Luísa Loureiro, «Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil», em anotação ao preceito em referência.
[3] - Obra referida, 2014, p 168
 [4] - Obra referida, fls 178
[5] - Lembra Lebre de Freitas/Montalvão Machado/Rui Pinto, «Código de Processo Civil Anotado», Vol II, 2008, 2ª ed, arts 381 a 675º: «Para que o efeito cominatório se não produzisse, não bastava até ao DL 329-A/95, que o réu genericamente negasse a realidade dos factos alegados pelo autor – a impugnação tinha de ser feita especificadamente, isto é, facto por facto».

[6]- «Lições de Direitos Reais», 1996, p 63 e ss 
[7] -  «Direitos Reais», 1976, p  83

[8] - Não deixa de sublinhar que «esta ideia parece-nos certa, pelo menos no que se refere às partes componentes ou constitutivas de uma coisa, já podendo surgir dúvidas no tocante às partes integrantes»

[9] - «Teoria Geral da Relação Jurídica», vol I, p 237
[10] - Pires de Lima Antunes varela, «Código Civil Anotado», 2ª ed revista e actualizada, anotação ao preceito em causa
[11]Direito Civil Português, I – Parte Geral», Tomo II, Coisas, 2000, p 124
[12] -Citando o Ac STJ 25/3/1993 (Pais de Sousa), CJ/STJ I,33, onde concretamente se diz: «E como a lei não estabelece directamente um critério para fazer a distinção, compete ao intérprete  determina-la caso por caso.  Na ausência de definição legal, logradouro de prédio urbano constitui no nosso direito um conceito jurídico indeterminado que só se determina na sua aplicação aos casos concretos»
[13] - Citando aqui o Ac R C 17/11-1981, CJ VI, 5, e Ac RC 22/1/1991, CJ I, 55
[14] - CJ, T2., p 276

[16]- Relatora, Sílvia Pires, acórdão acessível em www.dgsi.pt . Na mesma linha embora em função da propriedade horizontal, cfr Ac R L 31/5/2012 ( Pedro Martins), Ac R E 14/6/2007 (Fernando Bento) , Ac R L 16/6/2009 (Abrantes Geraldes), Ac R P 14/12/2006 (Deolinda Varão), Ac STJ 4/1072018 (Tomé Gomes), Ac STJ 7/4/2011 (Fonseca Ramos) 

[17] - Cfr a respeito da tipicidade nos direitos reais Orlando de Carvalho,  «Direitos Reais», 2012,  182 a 192
[18] - Obra referida, p 68
[19]«A Tipicidade», p 319
[20] -Obra referida, p 385
[21] - «Direitos Reais, 1979, 729
[22] - Obra referida, p 67
[23] - Menezes Cordeiro, «Direitos Reais», 412.