Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1012/16.8 T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
LUGAR DO CUMPRIMENTO
Data do Acordão: 05/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: REGULAMENTO CE 44/2001, DE 22 DE DEZEMBRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: REGULAMENTO CE 44/2001, DE 22 DE DEZEMBRO
Sumário: I – A competência afere-se, conforme entendimento jurisprudencial constante, face ao objecto da ação, tal como o autor o configura na petição inicial, sendo irrelevantes as alterações posteriores.

II - Tem sido comummente entendido que motivado pela necessidade de garantir a segurança jurídica em matéria de competência internacional nos tipos de contratos mais comuns e, nessa medida, previsivelmente na origem do maior número de litígios a dirimir, o legislador comunitário consagrou, no caso dos contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, um conceito autónomo de lugar do cumprimento das obrigações deles emergentes, fazendo relevar o lugar do cumprimento da obrigação de entrega ou do lugar onde os serviços foram ou deveriam ser prestados, a este critério puramente factual - com dispensa, portanto, da intervenção do direito de conflitos do estado do foro - havendo de se atender mesmo que o pedido formulado pelo autor seja o de condenação do pagamento do preço fundado no incumprimento dessas obrigações.

III - Verdadeira definição autónoma ou a consagração da regra de que na venda de bens só releva o lugar de cumprimento da obrigação de entrega e na prestação de serviços o lugar do cumprimento da obrigação do prestador de serviços, a conclusão inevitável é a da irrelevância, para efeitos de determinação da competência do tribunal, do lugar de cumprimento da obrigação de pagamento do preço dos bens ou dos serviços, mesmo que o pedido se fundamente nesta obrigação.

IV - Sendo indiscutido nos autos que o lugar da entrega dos bens é (foi) a Alemanha, os tribunais portugueses são, conforme foi correctamente entendido, incompetentes em razão da nacionalidade para o julgamento da causa, excepção dilatória de conhecimento oficioso conducente à absolvição da ré da instância nos termos das disposições conjugadas dos artigos 96.º, al. a), 99.º, n.º 1, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. a), 578.º e 278.º, n.º 1, al. a), todos do Código de Processo Civil.

Decisão Texto Integral:





I. Relatório

M..., Lda, com sede na Rua ..., instaurou a presente acção declarativa, a seguir a forma única do processo comum, contra A..., com sede em ..., Alemanha, pedindo a final a condenação da ré no pagamento da quantia de 8.848,07€, acrescida de juros vincendos até efectivo pagamento, contados à taxa legal de 7% sobre a quantia de 8.049,83€.

Para tanto alegou, em síntese, dedicar-se à engenharia Industrial, Mecânica, Electrónica e Tecnologias de Informação, desenvolvimento de produtos e soluções tecnológicas na área de mecatrónica, designadamente desenvolvimento e fabricação de sistemas de retracção, design e desenvolvimento tecnológico de projectos personalizados, consultoria, fabricação e montagem de soluções mecatrónicas feitas à medida e sua comercialização.

No desenvolvimento da referida actividade e a solicitação da ré, que se dedica à comercialização de equipamentos de retracção, executou os trabalhos e forneceu os materiais discriminados nas facturas que identificou e pelos preços ali especificados, ascendendo o total a €8.049,83 (oito mil e quarenta e nove euros e oitenta e três cêntimos), o qual deveria ser pago directamente na sede da demandante ou mediante transferência bancária.

A ré recebeu os bens facturados em perfeitas condições, de nada tendo reclamado, tal como não reclamou das facturas que lhe foram enviadas. Não obstante, e apesar destas se encontrarem vencidas, não procedeu à transferência do preço devido para as contas tituladas pela autora e domiciliadas nas agências de Castelo Branco da CGD e BPI, cujos IBAN’s lhe foram atempadamente comunicados.

A autora tem assim direito a receber da ré o preço dos bens e materiais fornecidos acrescendo à quantia em dívida os juros de mora já vencidos e os vincendos à taxa de 7%.

*

A Ré foi citada mediante carta registada com a/r e nenhuma oposição deduziu.

Presentes os autos à Mm.ª juíza, conheceu a mesma oficiosamente da excepção da incompetência em razão da nacionalidade dos tribunais portugueses, absolvendo em conformidade a ré da instância.

Inconformada, apelou a autora e tendo desenvolvido nas alegações os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes necessárias conclusões:

...

Com tais fundamentos pretende que na procedência do recurso, se revogue a decisão recorrida, substituindo-a por outra que conheça do mérito da causa.

Tanto quanto resulta dos autos, a ré não contra alegou.

*

Há muito assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, a única questão que cumpre dilucidar é determinar se os tribunais portugueses, no caso a secção cível da instância local da comarca de Castelo Branco, são os competentes para o julgamento da causa ou, ao invés, tal como se decidiu no despacho recorrido, a competência internacional se encontra deferida aos tribunais alemães.

II. Fundamentação

À decisão interessam os factos relatados em I., cumprindo fazer notar que, tal como a apelante aceita expressamente, ao caso é aplicável o Regulamento CE 44/2001, de 22 de Dezembro, relativo à competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial, uma vez que quer Portugal, país onde a autora se encontra sediada, quer a Alemanha, país do domicílio da ré, são Estados-Membros. Indiscutida ainda é a prevalência daquela legislação sobre as regras de direito interno tal como, de resto, consta expressamente consagrado no art.º 59.º do CPC, e resultava já do disposto nos art.ºs 8.º, n.º 4 da CRP e 249.º do Tratado de Roma.

A competência afere-se, conforme entendimento jurisprudencial constante, face ao objecto da acção, tal como o autor o configura na petição inicial, sendo irrelevantes as alterações posteriores (cf. acórdãos deste TRC e 3.ª secção de 2/7/2013, processo 1509/1.6 TBMGR.C1 e também do TRP de 10/3/2014, processo 171/13.6 TVPRT.P1, acessíveis em www.dgsi.pt).

Mostra-se ainda assente nos autos sem controvérsia a qualificação do acordo celebrado entre autora e ré como de compra e venda/fornecimento, donde não ser aplicável a disposição geral do art.º 2.º do Regulamento, mas antes o seu art.º 5.º, em cuja interpretação se centra a desavença da apelante com o decidido.

Estatui o convocado preceito, no seu n.º 1, que “Uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro:

a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;

b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar do cumprimento da obrigação em questão será: no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues; no caso de prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;

c) se não se aplicar a al. b) será aplicável a al. a)”.

Face ao assim preceituado, tem sido comummente entendido, entendimento expresso na decisão apelada, que motivado pela necessidade de garantir a segurança jurídica em matéria de competência internacional nos tipos de contratos mais comuns e, nessa medida, previsivelmente na origem do maior número de litígios a dirimir, o legislador comunitário consagrou, no caso dos contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, um conceito autónomo de lugar do cumprimento das obrigações deles emergentes, fazendo relevar o lugar do cumprimento da obrigação de entrega ou do lugar onde os serviços foram ou deveriam ser prestados, a este critério puramente factual -com dispensa, portanto, da intervenção do direito de conflitos do estado do foro- havendo de se atender mesmo que o pedido formulado pelo autor seja o de condenação do pagamento do preço fundado no incumprimento dessas obrigações. Neste sentido, consignou-se no acórdão do STJ de 3/3/2005, processo 05B316, acessível em www.dgsi.pt “(…) Releva a alínea b) do referido n.°1 do artigo 5.°, segundo o qual, para efeito da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será, no caso de venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues.

É um normativo inspirado, por um lado, pela ideia divulgada pela doutrina nacional e estrangeira de que a prestação característica do contrato de compra e venda é a do vendedor, por assumir natureza não monetária (…).

Visou-se o estabelecimento de um conceito autónomo de lugar de cumprimento da obrigação nos mais frequentes contratos, que são o de compra e venda e o de prestação de serviços, por via de um critério factual, com vista a atenuar os inconvenientes do recurso às regras de direito internacional privado do Estado do foro.

Decorrentemente, é fundado o entendimento de que a alínea b) do n.° 1 do artigo 5° abrange qualquer obrigação emergente do contrato de compra e venda, designadamente a obrigação de pagamento da contrapartida pecuniária do contrato e não apenas a de entrega da coisa que constitui o seu objecto mediato

Assim o “lugar do cumprimento da obrigação” é o local efectivo da entrega dos bens, sendo a jurisdição desse local (país Estado-Membro) a competente internacionalmente para apreciar o alegado incumprimento do preço”.

Verdadeira definição autónoma ou a consagração da regra de que na venda de bens só releva o lugar de cumprimento da obrigação de entrega e na prestação de serviços o lugar do cumprimento da obrigação do prestador de serviços, a conclusão inevitável é a da irrelevância, para efeitos de determinação da competência do tribunal, do lugar de cumprimento da obrigação de pagamento do preço dos bens ou dos serviços, mesmo que o pedido se fundamente nesta obrigação (assim, Lima Pinheiro, in "Direito Internacional Privado" vol. III, págs. 83 e 84).

No caso vertente está em causa a obrigação do pagamento do preço pela ré e que, nos termos alegados pela autora, deveria ter sido satisfeita na data do vencimento das facturas mediante transferência bancária a efectuar para conta sediada em Portugal. Daqui resultaria, em seu entender, a existência de acordo das partes no sentido do lugar do pagamento se situar em território português, excepção à regra vinda de enunciar, a deferir a competência internacional para o julgamento da causa aos tribunais portugueses.

Não cremos, porém, em face ao que se deixou já referido, que lhe assista razão.

Assim, e antes de mais, tal como se defendeu no acórdão desta Relação e secção antes citado e também no acórdão do TRG de 21/2/2008, processo n.º 2745/07-1, ambos acessíveis no identificado sítio, afigura-se que a “convenção em contrário” relevante para efeitos de afastamento da regra da al. b) é apenas a que decorre da celebração do pacto atributivo de jurisdição a que se reporta o art.º 23.º, não valendo como tal o acordo sobre a forma e local do pagamento do preço; depois, e decisivamente, já se disse que o critério do cumprimento da obrigação em questão -ainda quando, como é o caso, esteja em causa o pagamento do preço- remete para o lugar da entrega dos bens, sendo portanto irrelevante para este efeito o local onde o pagamento devia ser efectuado, mesmo que as partes nele tenham acordado (cf., neste mesmo sentido, aresto do STJ de 5/4/2016, processo n.º 27630/13.8 YIPRT-A.G1.S1, também em www.dgsi.pt, entendimento que se afigura não ter sido contrariado pela Relação do Porto, no acórdão convocado pela apelante, no qual estava em causa essencialmente a aplicação do art.º 24.º, consagrador da denominada competência convencional tácita, e também a interpretação da al. a) do art.º 5.º, uma vez que a relação contratual estabelecida entre as partes não configurava nenhum dos tipos contratuais contemplados na previsão da al. b) do preceito).

Deste modo, sendo indiscutido nos autos que o lugar da entrega dos bens é (foi) a Alemanha, os tribunais portugueses são, conforme foi correctamente entendido, incompetentes em razão da nacionalidade para o julgamento da causa, excepção dilatória de conhecimento oficioso conducente à absolvição da ré da instância nos termos das disposições conjugadas dos artigos 96.º, al. a), 99.º, n.º 1, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. a), 578.º e 278.º, n.º 1, al. a), todos do Código de Processo Civil. Tal qual foi decidido, que assim merece confirmação.

III. Decisão

Acordam os juízes da 3.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão apelada.

Custas pela apelante.

Relator:

Maria Domingas Simões

Adjuntos:

1º - Jaime Ferreira

2º - Jorge Arcanjo