Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
275/12.2GATBU.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: PROCESSO SUMÁRIO
PENA PRIVATIVA DA LIBERDADE
PRISÃO POR DIAS LIVRES
SENTENÇA NÃO ESCRITA
INEXISTÊNCIA JURÍDICA
Data do Acordão: 06/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ARGANIL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: DECLARADA A INEXISTÊNCIA JURÍDICA DA SENTENÇA
Legislação Nacional: ARTIGOS 389.º-A, N.º 5, DO CPP; ARTIGO 45.º DO CP
Sumário: A sentença não reduzida a escrito, proferida no âmbito de processo sumário, que condena o arguido em pena privativa da liberdade (no caso, pena de prisão a cumprir por dias livres), é juridicamente inexistente, ou seja, não tem aptidão para desencadear quaisquer consequências jurídicas, independentemente do prévio reconhecimento dessa inadequação.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

Nestes autos de processo sumário que correram termos pelo Tribunal Judicial de Arganil, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência, foi proferida oralmente sentença, com redução a escrito do dispositivo, condenando o arguido pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. p. pelos arts. 292º e 69º, nº 1, al. a), do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão a cumprir em 60 períodos correspondentes a fins-de-semana, cada um deles com a duração mínima de 36 horas, e ainda na proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 10 meses.

Inconformado, o arguido interpôs recurso, retirando da respectiva motivação as conclusões constantes de fls. 54vº a 55vº, reclamando a opção por uma pena de substituição, de trabalho a favor da comunidade.

            O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.

            Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, suscitando questão prévia respeitante ao facto de apenas o dispositivo ter sido ditado para a acta, apesar de o arguido ter sido condenado numa pena de prisão a cumprir por dias livres, resultando preterida a forma legal.

            Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

            O âmbito do recurso afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

            No caso vertente, a questão prévia suscitada pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto afirma-se como absolutamente pertinente, obstando à apreciação das questões suscitadas no recurso, como se verá.

II - FUNDAMENTAÇÃO:

            Apreciando e decidindo a questão prévia suscitada:

Como é sabido, os actos decisórios dos juízes tomam a forma de sentenças quando conhecem a final do objecto do processo, ou de despachos, quando conhecem de qualquer questão interlocutória ou quando põem termo ao processo fora das situações em que tal desiderato é atingido pela sentença [cfr. art. 97º, nº 1, als. a) e b), do CPP]. Consoante o caso, que é como quem diz, consoante a previsão legal, essas decisões revestem os requisitos formais dos actos escritos ou dos actos orais (nº 4 do mesmo artigo).

            No caso dos autos, a sentença, que impôs uma pena de prisão por dias livres, foi proferida oralmente. Apenas o respectivo dispositivo foi reduzido a escrito e consignado na acta da audiência. Ocorreu, pois, manifesta violação da norma constante do nº 5 do art. 389º-A do Código de Processo Penal (diploma a que se reportam todas as demais disposições citadas sem menção de origem).

É certo que o nº 1 deste artigo prevê como regra que em processo sumário a sentença seja oralmente proferida. Contudo, o nº 5 excepcionou duas situações: uma, de natureza imperativa, para o caso de ser aplicada pena privativa da liberdade, em que a sentença será necessariamente reduzida a escrito; e uma outra, deixada ao critério do juiz, que nas situações mais complexas ou que exijam mais aturado estudo ou ponderação, poderá optar por elaborar a sentença por escrito e proceder à sua leitura.

Só a primeira destas situações interessa agora tratar.

A obrigação de reduzir a escrito a sentença que condene em pena privativa da liberdade traduz uma garantia acrescida, imposta pela natureza da pena. O legislador, sistematicamente confrontado com a ineficácia do pesado sistema que tolhe a marcha processual mesmo nos casos mais simples, em que a decisão se oferece quase que como uma evidência, tem vindo a optar pela consagração de mecanismos de flexibilização, visando um maior desembaraço no funcionamento do sistema penal. Contudo, por razões que se prendem com uma longa tradição de certeza e de segurança das decisões judiciais, apesar de ter passado a admitir a prolação de decisões orais nos processos de maior simplicidade (mantendo, no entanto, precisamente por razões de segurança, a obrigação de redução a escrito do dispositivo), preservou, ainda assim, para os casos de maior melindre ou a que corresponda pena mais gravosa, a forma escrita da decisão; forma escrita para toda a decisão (relatório, fundamentos fácticos e jurídicos e motivação) e não apenas para o dispositivo.

Quais as consequências da inobservância da forma legalmente prevista?

Tanto quanto nos foi dado verificar, a jurisprudência já formada sobre o tema propende para considerar a sentença nula, por decorrência do previsto no art. 379º, nº 1, al. a), reportado ao art. 374º.

Discordamos, no entanto!

Desde logo, porque a sentença que não respeite a forma escrita não é exequível, como dispõe o art. 468º, al. b).

 A interpretação histórico-actualista desta norma, interpretada na harmonia do sistema em conjugação com o disposto nos arts. 389º-A e 391º-F leva-nos a considerar necessariamente abrangidas na sua letra duas situações distintas:

- Não é exequível a sentença proferida em processo sumário ou em processo abreviado que condene em pena não detentiva quando o dispositivo não estiver reduzido a escrito; e

- Não é exequível a sentença proferida em processo sumário ou em processo abreviado que condene em pena privativa da liberdade que não tenha sido reduzida a escrito.

A afirmação de que a sentença não é exequível implica que não produza quaisquer efeitos. Ou seja, tal sentença enquadra-se indiscutivelmente no âmbito das ineficácias. Simplesmente, a ineficácia é uma categoria geral que abrange vários tipos de invalidade, não sendo inócua a determinação da variante concreta por serem diversas as consequências assacáveis a cada uma delas.

Mas qual é então o concreto vício de que padece a sentença a que nos reportamos?

Temos por seguro que tal sentença é inexistente!|

De Plácido e Silva define assim a inexistência reportada aos actos jurídicos: “(…) quer o vocábulo exprimir a falta de sanção ou aprovação legal a certos actos jurídicos, que se formaram viciosamente ou com preterição de formalidades substanciais. É assim o não conhecimento da sua existência, em virtude do que não surtem, legalmente, qualquer eficácia jurídica. Não geram direitos nem estabelecem obrigações. É como não existindo ou não tendo existência” [1].

            Não poderíamos estar mais de acordo. Por muito que se diga que no caso a que se reportam os autos existe um princípio de sentença, que esta foi oralmente proferida e que o seu dispositivo até foi consignado em acta, certo é que ainda assim, por força do disposto no art. 468º, al. b), essa sentença será inexequível. Ora, dizer-se que uma decisão judicial é inexequível é algo de qualitativamente diverso da nulidade, desde logo porque o acto nulo, ainda que de nulidade insanável se trate, tem que ser declarado como tal. Enquanto não for declarado nulo produz efeitos jurídicos (cfr. o proémio do art. 119º e o art. 122º, nº 2). Já a inexistência, por força da própria configuração do vício, impõe os seus efeitos independentemente de prévio reconhecimento nesse sentido.

É precisamente o que sucede com a sentença não reduzida a escrito que condena em pena privativa da liberdade. Independentemente de qualquer prévia declaração (judicial) nesse sentido, tal sentença, pura e simplesmente, não é exequível! E não o é porque ainda que exista de facto – existirá uma decisão gravada em suporte magnético e um dispositivo reduzido a escrito – não existe no domínio do jurídico. É esta característica que permite identificar o vício da inexistência. A inexistência não se afirma no domínio da materialidade, na existência material ou fáctica, mas no domínio imaterial da pura juridicidade. É juridicamente inexistente a decisão ou acto jurídico que por força do próprio vício de que enferma não tem aptidão para desencadear quaisquer consequências jurídicas, independentemente do prévio reconhecimento jurídico dessa inadequação.

           

            Conhecida nos termos apontados a questão prévia suscitada, resultam prejudicadas as questões suscitadas nas conclusões do recurso interposto.

III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, reconhece-se a inexistência jurídica da decisão recorrida, determinando-se que o tribunal a quo proceda à sanação desse vício, proferindo sentença nos termos legalmente previstos.

Sem tributação.

                                                                       *

                                                                       *

                                                                                 

                                               (Jorge Miranda Jacob - Relator)

                                               (Maria Pilar de Oliveira)


[1] - in “Vocabulário Jurídico”, vol. II, 5ª Ed., pág. 824.