Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5/16.0T8TBU.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
USUCAPIÃO
SINAIS VISÍVEIS E PERMANENTES
Data do Acordão: 04/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - TÁBUA - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.1548, 1263 CC
Sumário:
I – A razão de ser da impossibilidade em usucapir uma servidão não aparente, que não se revela materialmente em termos inequívocos, reside na preocupação legal de se evitar tal constituição em situações em que a actuação/posse é exercida por mera tolerância do dono do dito prédio serviente ou, até, sem que este dela tenha conhecimento.
II – A lei exige para que a aquisição de servidões de passagem por usucapião seja possível, factos inequivocamente demonstrativos da existência de situações duradouras e vinculativas, isto é, a existência de sinais visíveis e permanentes – nº 2 do art. 1548º do C.Civil –, que o mesmo é dizer, demonstrativos da inexistência de uma situação precária originada por actos de mera tolerância.
III – Não basta existirem sinais visíveis, designadamente por o caminho ter sido “feito em terra batida”, para se poder ou dever concluir que os mesmos eram ou foram permanentes.
IV – Assim, não se tendo alegado (nem provado) existir qualquer sinal permanente no ou sobre o prédio dos RR., não é possível constituir-se, por usucapião, a respetiva servidão de passagem.
Decisão Texto Integral:
Proc. nº5/16.0T8TBU.C1
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Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra Relator: Des. Luís Cravo
1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
2º Adjunto: Des. Carvalho Martins
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1 – RELATÓRIO
J (…), reformado, portador do B.I. (…), com o NIF (…) e M (…), reformada, portadora do cartão de cidadão n.º (…), com o NIF (…) , casados sob o regime de comunhão geral de bens, residentes …, intentaram a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum contra JA (…) e ML (…), casados, residentes na …, peticionando De referir que vai aqui ser considerada a p.i. corrigida de fls. 43-50.:
- o reconhecimento do direito de passagem dos AA. através da faixa de terreno existente na propriedade dos RR, desde o poço camarário até à sua propriedade, numa extensão de 100 metros de comprimento e com 2,30 de largura;
- a condenação dos RR. a remover o portão;
Ou em alternativa: - a condenação dos RR. a entregar aos AA. cópia da chave do portão e a colocar o caminho no estado em que antes se encontrava;
- a condenação dos RR. a pagar aos AA., €7.000,00 (sete mil euros) a título de indemnização pelos prejuízos patrimoniais causados, acrescidos de juros à taxa legal, desde a propositura da ação até ao trânsito em julgado;
- a condenação dos RR. a pagar aos AA., €500,00 (quinhentos euros) a título de danos morais, e em custas.
Para fundamentarem a sua pretensão, os AA. alegam, em síntese, que são donos de dois terrenos de cultura com oliveiras sita na …, inscritos na respetiva matriz predial sob o número xx e YY, tratando-se de prédios encravados sem contacto com a via pública. Alegam que para acederem a esta, a passagem há mais de cinquenta anos se fazia por caminho particular situado no terreno que hoje é propriedade dos RR., com traçado bem definido, iniciando junto ao poço camarário e terminando na propriedade dos AA., numa extensão de cerca de cem metros de comprimento e 2,5 metros de largura, com sinais visíveis e permanentes de passagem, feito em terra batida e em bom estado de conservação. Adiantam que os RR. lhes proibiram a passagem pelo dito caminho, colocando um portão em ferro no seu início, fechado com chave, junto ao poço camarário.
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Regularmente citados, os Réus contestaram, invocando, em síntese, que são donos do prédio rústico sito em …, inscrito na respetiva matriz sob o artigo XX, e descrito na Conservatória do Registo Predial de … com o nº YY, adquirido por escritura pública de compra e venda.
Alegam que para os Autores acederem ao prédio rústico, confinante com o que atualmente pertence aos Réus, ali passavam a pé, fazendo-o em diversos trajetos por entre as oliveiras conforme melhor lhes conviesse. Mas para acederem com animais, carros de bois ou tratores agrícolas, os AA. sempre utilizaram outros caminhos que oneram proprietários de outros terrenos confinantes.
Desde que os Réus adquiriram o prédio rústico identificado supra, os AA. e outros habitantes, continuavam a passar pelo prédio rústico adquirido pelos Réus para acederem às suas propriedades, mas faziam-no sem um trajeto definido, estragando a propriedade dos Réus, pelo que para proteger a sua propriedade, edificaram um muro na estrema poente e colocaram um portão.
Esclarecem que restringiram o acesso à sua propriedade, entregando uma chave do portão ao Sr.º F(…), proprietário de um prédio rústico que confina com o dos Réus, e acordando com este o melhor caminho a estabelecer de acesso à sua propriedade.
Consideram que não estão obrigados a remover o portão, nem a entregar uma chave do mesmo aos Autores e afirmam nunca ter existido um caminho bem definido na propriedade dos Réus para acesso à dos AA. Entendem não estarem demonstrados quaisquer danos patrimoniais ou não patrimoniais alegados pelos AA., e concluem pedindo que sejam absolvidos do pedido.
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Realizou-se audiência prévia e foi proferido despacho saneador, no qual foram fixados o objeto do processo e os temas da prova.
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Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância dos formalismos legais, conforme resulta das respetivas atas, sendo que designadamente foi efetuada inspeção ao local com o resultado consignado na correspondente ata.
Na sentença, proferida na sequência, considerou-se, em suma, que de acordo com a matéria dada como provada, era de considerar constituída a favor dos AA. uma servidão legal de passagem a pé, com uma extensão de, aproximadamente, 100 metros de comprimento e um leito de, no mínimo 0,50 metros de largura, com a orientação e a configuração indicadas no ponto de facto n.º 9 da matéria provada, assim considerando parcialmente procedente por provada a ação, consequentemente, absolvendo os RR. do demais peticionado, sem embargo de ter ainda condenado os RR. a entregaram aos AA., uma cópia da chave do portão, o que tudo se traduziu no seguinte concreto “dispositivo”:
«Decisão:
Em face do exposto, de acordo com as disposições legais supra citadas:
Julgo a ação parcialmente procedente, por provada e em consequência:
a) declaro constituída sobre o prédio dos Réus, uma servidão legal de passagem a pé, com uma extensão de, aproximadamente, 100 metros de comprimento e um leito de, no mínimo 0,50 metros de largura, com a orientação e a configuração indicadas no ponto de facto n.º 9 da matéria provada;
b) para tanto, condeno os RR. a entregaram aos AA., uma cópia da chave do portão;
c) absolvo os Réus do demais peticionado.
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Custas a cargo de ambas as partes, na proporção dos decaimentos, à luz do estatuído no artigo 527.º nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.
Valor da ação: o fixado no despacho saneador.
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Registe e notifique. »
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Inconformados com essa sentença, apresentaram os AA. recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
(…)
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Por sua vez, apresentaram igualmente os RR. recurso de apelação da mesma sentença, tendo extraído das alegações recursivas De referir que vão aqui ser consideradas, obviamente, as alegações recursivas dos RR. reformuladas e com carimbo de entrada nos autos em 2018.01.30, na sequência e em cumprimento do despacho-convite do aqui Relator, para atinente esclarecimento e completamento. as seguintes “conclusões”:
(…)
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Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:
- recurso dos AA.
a) impugnação da matéria de facto, devendo o Tribunal dar como “não provado” o facto dado como “provado” sob o ponto “23.”, e dar como “provados” os factos constantes dos pontos dados como “não provados” sob as als. “b)” e “c)” a “q)”;
b) incorreto julgamento de direito/erro de decisão, porquanto deveria ter sido dada integral procedência aos pedidos formulados;
- recurso dos RR.
a) nulidade da sentença [als. d) e e) do nº1 do art. 615º do n.C.P.Civil];
b) impugnação da matéria de facto, devendo o Tribunal dar como “não provados” os factos dados como “provados” sob os pontos “5.”, “6.”, “8.”, “9”, “12.”, “13.”, “14.”, “15.” e “24.” e dar como “provado” o facto constante do ponto dado como “não provado” sob a al. “s)”;
c) incorreto julgamento de direito/erro de decisão, porquanto se encontrava formulado na ação um pedido de reconhecimento do direito de passagem, mas veio a ser proferida decisão no sentido da constituição de uma servidão legal de passagem; mas mesmo que em causa estivesse uma ação de constituição de servidão de passagem, deveria ter sido proferida decisão de absolvição do pedido.
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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que ambos os recursos têm em vista a alteração parcial dessa factualidade.
Tendo presente esta circunstância, considerou-se o seguinte na 1ª instância:
Factos provados:
«1. Os Autores são donos e legítimos possuidores de dois terrenos de cultura com oliveiras sita na …, inscritos na respetiva matriz predial sob o número xx e YY, como se alcança da Certidão de Teor Prédio Rústico passada pelo Serviço de Finanças de … em 06/05/2016.
2. Os Réus são donos e legítimos proprietários do prédio rústico composto por terreno de cultura com oliveiras e mato, sito ao …, com a área de 4.540 m2, a confrontar de norte com … e … (atualmente com os próprios Réus), sul e poente … e outro (atualmente com …) e a nascente com … e outro, inscrito na respetiva matriz sob o artigo XXº e descrito na Conservatória do Registo Predial de Tábua com o nº YY.
3. O prédio inscrito sob o artigo matricial n.º xx, com a área total de ha 0,180000, confronta a Norte com …, a Sul com …, a Nascente com Herd. … e a Poente com ….
4. O prédio inscrito sob o artigo matricial n.º YY, com a área total de ha 0,069000, confronta a norte com …, a nascente com Herdeiros …, a poente com ….
5. Os prédios referidos em 3. e 4., advieram ao património dos AA. através da celebração do contrato de compra e venda celebrado entre C (…)e outra e A (…)e outra e J (…) através de escritura pública exarada nos dias 12/05/1966 e 27/05/1969, no cartório notarial de ….
6. Os AA. são donos dos identificados prédios há 50 e 47 anos, respetivamente.
7. Tratam-se de dois prédios sem contacto com a via pública.
8. Cuja passagem se fazia, há mais de 50 anos, através de caminho particular situado no terreno anteriormente propriedade de B (…) e hoje propriedade dos RR .
9. Tratava-se de um caminho com traçado definido, com início junto ao poço camarário e terminava na propriedade dos AA., numa extensão de cerca de cem metros de comprimento, com sinais visíveis e permanentes de passagem, feito em terra batida, com uma largura, pelo menos, de 0,50 metros.
10. Os RR. proibiram a passagem aos AA., pelo caminho que existe na sua propriedade, colocaram um portão em ferro no seu início, fechado com chave, junto ao poço camarário.
11. Os RR. edificaram um muro em blocos na estrema poente.
12. Os AA. sempre chegaram à sua propriedade através do caminho que atravessa a propriedade dos RR.
13. Quer os sucessivos donos de ambos os terrenos, quer os trabalhadores que neles trabalharam, sempre usaram o leito do citado caminho para passarem do prédio dos AA. para a via pública e da via pública para o prédio dos AA..
14. Sendo do conhecimento geral a existência do caminho e não tendo existido oposição ao mesmo.
15. Já no tempo das anteriores proprietárias - três irmãs que faleceram com idade bastante avançada - o acesso ao imóvel dos AA. se fazia por aquela via.
16. O referido caminho era o que os RR. usavam de cada vez que visitavam os AA. na sua propriedade.
17. Nessa altura o prédio dos RR., era propriedade da Casa do Esporão ou seja de B (…)
18. Foi a esta que os AA. o tomaram de arrendamento.
19. Há alguns anos atrás a Casa do … predispôs-se a vender o referido terreno.
20. Tendo para isso consultado os AA., afim de saber se eles estariam interessados em comprá-lo.
21. O dito terreno confinava com uma propriedade dos RR..
22. Os RR. adquiriram o dito terreno por escritura pública de compra e venda celebrada no Cartório Notarial de Tábua em 18/08/2003, a (…) proprietária da Casa do …, a fls. 114 a 115, do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº ….
23. Desde há mais de 20, 30, 40 e mais anos que os Réus e seus antecessores têm usado e fruído do referido prédio, murando-o, cultivando-o, passando no mesmo a pé e de trator, procedendo às respetivas limpezas, manutenções e conservações e a obras de beneficiação, pagando as respetivas contribuições e impostos e extraído dele todas as utilidades de que era suscetível e capaz.
24. O caminho referido em 9. e 12., encontra-se destruído e intransitável.
25. Percebendo que os AA. saltavam o muro, os RR. subiram o mesmo, aplicando ou mandando aplicar mais duas fiadas de blocos de cimento impossibilitando aos AA. de aceder ao caminho.
26. As colheitas e outros produtos pesados tiveram de (passar a) ser transportados através de (outros) terrenos vizinhos.
27. Os AA. passaram a ter de se deslocar de mota o que lhes acarreta prejuízo.
28. Os AA. não possuem a chave do portão, colocado no caminho.
29. O vizinho F (…) possui a chave (do portão).
30. Quando os Autores tratavam e utilizavam ambos os prédios rústicos, ou seja, antes dos Réus adquirirem o seu à “Casa do …”, aqueles andavam a pé por entre os mesmos de forma livre.
31. O prédio rústico que agora pertence aos Réus sempre foi um Olival.
32. Existe um caminho fixado na estrema sul do prédio dos Réus, numa linha reta que se inicia a poente, no portão identificado e se estende para nascente por aproximadamente 50 metros até atingir o prédio do Sr. (…), e com uma largura em toda a sua extensão de aproximadamente 1 metro.
33. Para que o caminho ficasse bem definido, os Réus colocaram um cordão de videiras em toda a extensão do mesmo, trajeto utilizado pelo Sr. (…) para aceder à sua propriedade.
34. Desde a delimitação existente entre a propriedade dos AA. com a dos RR., iniciou-se a contagem em passos até ao portão (da foto 1), passando pelo desnível existente na propriedade dos réus, com cerca de 1, 20 m de altura (da foto 10), medindo 134 passos. 35. Desde o caminho público (da foto n.º27- pelo pinhal) até à entrada da casa dos AA. a partir da estrada de alcatrão, foram contados cerca de 760 passos.
36. Desde o ponto de saída da casa dos AA. junto à estrada de alcatrão, até ao ponto fotografado na propriedade dos réus na foto n.º 1 (portão dos RR.), mediram-se cerca de 160 passos.»
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Factos não provados:
«Para além dos acima referidos, das conclusões de facto, dos meros juízos e interpretações do Direito e das repetições dos factos alegados, não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa, nomeadamente não se provou:
a) Que no ponto 8., tal passagem se fazia aí, única e exclusivamente.
b) Que no ponto 9., o caminho tinha a largura de 2,5 metros.
c) Ao serem privados de aceder ao terreno pelos RR., os AA. foram impedidos de cultivar o mesmo e de colher os frutos respetivos.
d) Aproximadamente cento e trinta quilos de milho, com um valor ano de 100,00€ (cem euros).
e) Sessenta e cinco quilos de feijão, com um valor ano de 70,00€ (setenta euros).
f) Hortaliças várias, com um valor estimado de 20,00€ ano (vinte euros).
g) Mil quilos de batata por ano, com um valor ano de 450,00€ (quatrocentos e cinquenta euros).
h) Cinquenta quilos de cebolas, com um valor ano de 65,00€ (sessenta e cinco euros).
i) Quinze quilos de pimentos, com um valor de 15,00€ (quinze euros).
j) Cinquenta quilos de tangerinas, com um valor ano de 65,00€ (sessenta e cinco euros).
k) Setenta quilos de laranjas, com um valor ano de 105,00€ (cento e cinco euros).
l) Cem quilos de maçãs, com um valor ano de 85,00€ (oitenta e cinco euros).
m) Oitocentos litros de vinho, com um valor ano de 800,00€ (oitocentos euros).
n) Cem litros de azeite, com um valor ano de 500,00€ (quinhentos euros).
o) Os AA. ao deslocarem-se de mota, isso lhes acarreta um prejuízo anual estimado de 55,00€ (cinquenta e cinco euros) de gasolina.
p) Ao todo, por ano, os AA. têm um prejuízo estimado de 2.330,00€ (dois mil trezentos e trinta euros).
q) Por ação dos RR., os AA. ficaram privados de cultivar o referido terreno durante três anos, o que lhes acarretou até ao momento um prejuízo estimado de 6.990,00€ (seis mil novecentos e noventa euros).
r) Os AA. ficaram indignados, tristes e magoados com o comportamento dos RR.
s) Que no ponto referido em 30., os AA. o fizessem sem qualquer trajeto determinado.» *
3.2 – A primeira ordem de questões que com precedência lógica importa solucionar é a que se traduz na alegada nulidade da sentença.
Com efeito, sustentam os RR./recorrentes nas respetivas alegações recursivas que na sentença a Exma. Juíza a quo “convolou” indevida e ilegalmente o pedido que se encontrava formulado na acção – estava formulado um pedido de reconhecimento do direito de passagem, mas veio a ser proferida decisão no sentido da constituição de uma servidão legal de passagem – o que determina a nulidade da sentença, ex vi do art. 615º, nº1, al. d) e e) do n.C.P.Civil.
Vejamos.
Nos termos da dita al. d), verifica-se a nulidade da sentença quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Com referência à 1ª parte desta citada al.d), do nº1, do art. 615º do n.C.P.Civil, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras – art. 608º, nº2 do mesmo n.C.P.Civil.
Sendo que a decisão padece do vício da nulidade quer no caso de o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, quer quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Por outro lado, nos termos da al.e) do nº1, do art. 615º do n.C.P.Civil, a sentença será nula quando o juiz extravase os pedidos das partes, isto é, seja a sentença condenatória, seja absolutória, não pode pronunciar-se sobre mais do que o que foi pedido ou sobre coisa diversa daquela que foi pedida, isto como decorrência do comando de que o objecto da sentença deve coincidir com o objecto do processo, não podendo o juiz ficar aquém nem ir além do que lhe foi pedido. Cf., mais desenvolvidamente sobre a questão, LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 3ª ed., Livª Almedina, 2017, a págs. 714-715 e a págs.735-737.
Consabidamente estão neste particular em causa os limites da sentença, segundo a regra de que não pode ter lugar pronúncia ultra petitum.
Atento o que está concretamente invocado – estava formulado um pedido de reconhecimento do direito de passagem, mas veio a ser proferida decisão no sentido da constituição de uma servidão legal de passagem –, será então que na sentença recorrida teve lugar o conhecimento de questão de que não podia tomar conhecimento (excesso de pronúncia) e em objeto diverso do pedido (2ª parte da al.d) e al.e) do nº1 do art. 615º do n.C.P.Civil, respetivamente)?
Cremos bem que sim.
Na verdade, foi formulado pelos AA. na ação um pedido um pedido de reconhecimento do direito de passagem, o que, consabidamente, corresponde à alegação de uma situação de violação do mesmo por parte dos RR., donde o pedido de condenação dos RR. no seu reconhecimento e respeito (abstendo-se de doravante o violar), enquanto manifestação daquela situação jurídica subjectiva (ou facto jurídico) de direito material, já constituída enquanto tal [arts. 1543º a 1547º, nº1 do C.Civil e art. 10º, nº3, al. b) do n.C.P.Civil].
Ora, tendo sido este o pedido dos AA., tal condicionava o conteúdo da decisão de mérito com que o Tribunal lhe responderia, isto é, o Juiz, na sentença, deveria declarar a existência ou inexistência desse direito, condenando (ou não) no respectivo reconhecimento.
Sucede que não foi isso que ocorreu.
A Exma. Juíza a quo, na sentença recorrida, proferiu decisão no sentido da constituição de uma servidão legal de passagem enquanto fundada no direito potestativo dos AA. de exigir a constituição, sobre os prédios rústicos dos RR., de uma servidão legal de passagem (art. 1550º do C.Civil): tal, consabidamente, correspondeu a uma alteração das situações jurídicas das partes em conformidade com o direito que como tal fosse exercido, a saber, enquanto expressão da vontade de exercer um direito potestativo que só judicialmente podia ser exercido [cf. art. 10º, nº3, al. c) do n.C.P.Civil].
Porém, os AA. não haviam formulado esta última pretensão/pedido!
Assim, porque a sentença recorrida se ocupou da apreciação de questão não submetida à sua apreciação e condenou em objeto diverso do que havia sido pedido, está verificada a arguida nulidade da mesma [cf. art. 615º, nº1, als. d) e e) do n.C.P.Civil], donde a anulação da dita sentença.
Importa, consequentemente, apreciar e decidir sobre a procedência ou improcedência do pedido que tinha sido efetivamente formulado na ação – o já referido pedido de reconhecimento da servidão (cf. art. 665º, nº1 do n.C.P.Civil) – designadamente face ao nesse sentido suscitado pelos AA./recorrentes no seu recurso (que deveria ter sido dada integral procedência aos pedidos formulados).
Sendo com tal que se prosseguirá quanto aos recursos deduzidos, nos termos que se verão de seguida.
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3.2 – AA. e RR. deduzem impugnação da decisão sobre a matéria de facto (aqueles pugnando no sentido de que deve o Tribunal dar como “não provado” o facto dado como “provado” sob o ponto “23.”, e dar como “provados” os factos constantes dos pontos dados como “não provados” sob as als. “b)” e “c)” a “q)”; e estes pugnando no sentido de que deve o Tribunal dar como “não provados” os factos dados como “provados” sob os pontos “5.”, “6.”, “8.”, “9”, “12.”, “13.”, “14.”, “15.” e “24.” e dar como “provado” o facto constante do ponto dado como “não provado” sob a al. “s)”):
De referir que, por força do vindo de decidir anteriormente, está agora em causa o pedido de condenação no reconhecimento de constituição da servidão por usucapião.
Com efeito, “as servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família.” Art. 1547º, nº1 do C.Civil.
Ora, no caso vertente, tendo em conta o que foi aduzido pelos AA. na p.i. (estando aqui em causa a p.i. corrigida d fls. 43-50), apenas estariam em causa a terceira forma de aquisição em referência (a usucapião).
Que dizer então?
Em termos normais importaria efectivamente apreciar e decidir estas matérias.
Contudo, importa ter presente que o controlo da decisão da matéria de facto da 1ª instância deve conformar-se, por um lado, com o princípio da utilidade dos actos processuais, e, por outro, com o princípio da disponibilidade privada do objecto do processo.
De facto, de harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (cf. art. 130º do n.C.P.Civil). Aliás, reproduzindo um princípio processual perene, já anteriormente constante do art. 137º do C.P.Civil.
Concretizando melhor: se o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância, o que sucederá sempre que, mesmo com a substituição a solução e o enquadramento jurídico do objeto da causa permanecer inalterado, porque, por exemplo, mesmo com a modificação, a factualidade assente continua a ser insuficiente ou é inidónea para produzir o efeito jurídico visado pelo autor, com a ação, ou pelo réu, com a contestação.
Daqui decorre que a reponderação apenas deve incidir sobre os factos que sejam relevantes para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, que o mesmo é dizer, segundo todos os enquadramentos jurídicos possíveis do objeto da acção Vincando este entendimento, ao que cremos pacificamente aceite, vide o acórdão do T.R.de Coimbra de 18-03-2014, no proc. nº 1157/10.8TJCBR.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc, sendo que ali doutamente se afirmou que “Se o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância. Isso sucederá sempre que, mesmo com a substituição a solução o enquadramento jurídico do objecto da causa permanecer inalterado, porque, por exemplo, mesmo com a modificação, a factualidade assente continua a ser insuficiente ou é inidónea para produzir o efeito jurídico visado pelo autor, com a acção, ou pelo réu, com a contestação..
É precisamente uma tal situação de irrelevância na apreciação que ocorre no caso vertente: entendemos que a apreciação e decisão das questões da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, se encontra prejudicada pela inutilidade que tal representaria, dado que, sem mais e pelos dados que liminarmente resultam dos autos, concretamente quanto a tal pedido de condenação no reconhecimento de constituição da servidão por usucapião, e causa de pedir apresentada para fundamentar a acção quanto a esse particular, sempre a factualidade assente que resultasse após a reclamada alteração, se revelaria insuficiente, ou seria inidónea, para produzir o efeito jurídico com ela visada pelos AA..
Dito de outra forma: evidencia-se uma situação de irrelevância na apreciação quanto aos factos visados pelas partes.
Isto porque nos encontramos perante a liminar impossibilidade em usucapir, dado se tratar de uma servidão “não aparente” (cf. art. 1548º, nos 1 e 2 do C.Civil), mais precisamente por não ter sido invocado, nem resultar provado, o requisito de a servidão se revelar por sinais permanentes.
Senão vejamos.
Consabidamente, “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”. Cf. Assento do STJ de 14 de Maio de 1996, in Boletim do Ministério da Justiça”, nº 457, a págs. 55.
Para existir posse, é necessário assim que haja uma actuação de facto sobre determinada coisa, traduzida na prática de actos materiais que consubstanciem uma relação de domínio ou o exercício de um qualquer outro direito menor.
Por outro lado, é preciso ter presente que a posse adquire-se, entre outras formas, pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito, nos termos do art. 1263º, al.a) do C.Civil.
Para o acto de investidura na posse não é suficiente a prática de um único acto, mas de vários, embora possam ter conteúdos distintos e, por outro lado, sem que esta reiteração implique a necessidade de uma actuação ininterrupta e/ou contínua.
O que é certo é que, para o apossamento, é já necessária uma actuação com uma intensidade superior, traduzida em actos materiais de uso, fruição ou transformação, reveladores, de forma indubitável, de que entre a coisa e o adquirente se estabeleceu, “ex novo”, uma clara relação de domínio.
Na verdade, “o essencial, em suma, é que os actos aquisitivos, variáveis de caso para caso, se dirijam ao estabelecimento de uma relação duradoura com a coisa não bastando um contacto fugaz, passageiro. Assim HENRIQUE MESQUITA, in “Direitos Reais”, Coimbra, 1967, a págs. 97
Quando os actos materiais não apresentem a exterioridade suficiente para serem conhecidos dos interessados, quer porque, de per si, não a possuam, quer porque, por acto voluntário do seu autor, sejam ocultados, então, serão meros actos clandestinos, insusceptíveis de conformar qualquer apossamento.
De referir que tais preocupações, no caso das servidões constituídas por usucapião, foram levadas pelo legislador ao extremo de não permitir tal constituição nos casos de servidões “não aparentes”.
Com efeito, por força do disposto no já citado art.1548º do C.Civil, as servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião, considerando-se não aparentes as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes.
Nesta linha de entendimento “(…) a irrelevância do magno instituto da usucapião para a constituição de invocadas servidões que não se revelem materialmente em termos inequívocos, reside na preocupação legal de se evitar tal constituição em situações em que a atuação/posse é exercida por mera tolerância do dono do dito prédio serviente ou, até, sem que este dela tenha conhecimento”. Citámos agora o acórdão do T. Rel. Coimbra de 15.10.2013, no proc. nº 78/11.1TBSCD.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
Isto porque – a não exigir-se um rigor acrescido nos referidos termos – muitas servidões poderiam constituir-se de forma clandestina (por serem de todo desconhecidas) ou legitimar-se-iam até pela mera prática de actos compatíveis com a mera tolerância do proprietário onerado.
Neste sentido, o que foi evidenciado em douto aresto, a saber:
«1. No domínio do Código Civil de Seabra, até à alteração introduzida neste código pelo Decreto n.º 19 126, de 16 de Dezembro de 1930, as servidões descontínuas, como é exemplo típico a servidão de passagem, não podiam ser adquiridas por usucapião.
2. A razão da proibição residia na circunstância do legislador recear que actos de tolerância, de solidariedade ou boa vontade dos proprietários, para com os seus vizinhos, tolerando a passagem destes pelos seus terrenos, se tornassem em motivo de aquisição de direitos, contrariando as expectativas de quem havia manifestado apenas tolerância e boa vontade.
3. A partir do momento em que o legislador permitiu a aquisição de servidões de passagem por usucapião, a lei exigiu, para isso ser possível, factos inequivocamente demonstrativos da existência de situações duradouras e vinculativas, isto é, a existência de sinais visíveis e permanentes – n.º 2 do artigo 1548.º do Código Civil –, demonstrativos da inexistência de uma situação precária originada por actos de mera tolerância.
4. A visibilidade dos sinais respeita à sua materialidade, no sentido de serem percepcionáveis e interpretáveis como tais pela generalidade das pessoas que se confrontem com eles. A permanência consiste na manutenção dos sinais, com a aludida visibilidade, ao longo do tempo, sem interrupções (pelo menos nos casos em que a ausência temporária dos sinais torne equívoco o seu significado), por forma a gerar e manter a ideia de que se trata de uma situação estável e duradoura e, ao mesmo tempo, afastar a hipótese de se tratar de uma situação precária, podendo tais sinais, no entanto, ser alterados ao longo do tempo ou substituídos por outros.». Cf. acórdão do T. Rel. Coimbra de 10.07.2013, no proc. nº 2482/08.3TBAGD.C1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
Sendo certo que, como já foi doutamente salientado, «(…) continua a entender-se que se torna as mais das vezes difícil distinguir entre as servidões não aparentes e os actos de mera tolerância, consentidos jure familiaritatis, que não reflectem uma relação possessória capaz de conduzir à usucapião (cfr. D., 41, 2, 41). Admitir a usucapião como título aquisitivo deste tipo de servidões, não obstante a equivocidade congénita dos actos reveladores do seu exercício, teria o grave inconveniente de dificultar, em vez de estimular, as boas relações de vizinhança, pelo fundado receio que assaltaria as pessoas de verem convertidas em situações jurídicas de carácter irremovível situações de facto, assentes sobre actos de mera condescendência ou obsequiosidade. Preferível julgou a lei cortar o mal pela raiz, presumindo-se juris et de jure o título precário e mantendo a eliminação indiscriminada da usucapião como aquisitivo das servidões não aparentes a fim de facilitar as relações de boa vizinhança entre os donos de prédios contíguos ou próximos.
No mesmo sentido milita ainda a circunstância de, não havendo sinais visíveis e permanentes reveladores da servidão, sendo esta porventura exercida só clandestinamente, a atitude passiva do proprietário poder ser apenas devida à ignorância da prática dos actos constitutivos da servidão.» Assim ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, in “Código Civil Anotado”, Vol. III, 1987, a págs. 629.
Donde, sendo a posse mais do que um mero poder de facto exercido sobre determinada coisa – corpus – implicando, de igual forma, uma intencionalidade específica de actuação como beneficiário do direito – animus, no caso particular da constituição de uma servidão, por usucapião, tal direito pressuporá sempre, além do mais, que tal posse seja revelada por sinais visíveis e permanentes, que o revelem de forma indiscutível.
Na qualificação do que se deverá entender por sinais visíveis e permanentes, adere-se ao que foi evidenciado em douto aresto deste mesmo Tribunal da Relação de Coimbra, na parte em que se referiu que:
«(…) Por sinais entende-se tudo aquilo que possa conduzir à revelação de qualquer coisa ou facto, principalmente indícios que revelem a existência de obras destinadas a facilitar e a tornar possível a servidão.
Na servidão de passagem poderão ser, por exemplo, a existência de um trilho de terra batida ou empedrada, de sulcos de rodados de tracção animal deixados pelo decorrer dos tempos, em pedras existentes no caminho, tranqueiros, cancelas, pontes, etc.. A servidão de passagem tornar-se-á aparente desde que se faça um caminho, uma ponte ou se abra uma porta.
Esses sinais hão-de ser visíveis, permanentes e inequívocos, pois só deste modo poderão indicar a existência de servidão aparente. (…)
Além de visíveis ou aparentes, os sinais devem ser permanentes, revelando uma situação estável, que foram postos com intenção de assegurar a serventia de um prédio para o outro, com carácter de permanência. …». Trata-se do acórdão de 16.10.2012, no proc. nº 2763/08.6TBPBL.C1, também ele acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
Ora, revertendo estes ensinamentos ao caso ajuizado, o que é que temos?
Que os AA. não alegaram sequer, s.m.j., a existência de uma tal classe de sinais permanentes revelados pela serventia ajuizada:
Do art. 8º da p.i. apenas constava o seguinte: «Tratava-se de um caminho com traçado bem definido, com início junto ao poço camarário e termina na propriedade dos AA., numa extensão de cerca de cem metros de comprimento, com uma largura de aproximadamente 2,5 metros com sinais visíveis e permanentes de passagem, feito em terra batida, e em bom estado de conservação».
Da factualidade constante deste artigo, resultou provado o seguinte: «Tratava-se de um caminho com traçado definido, com início junto ao poço camarário e terminava na propriedade dos AA., numa extensão de cerca de cem metros de comprimento, com sinais visíveis e permanentes de passagem, feito em terra batida, com uma largura, pelo menos, de 0,50 metros.» (cf. facto “provado” sob “9.”)
Sucede que daquele facto E que nessa sua dimensão de “sinais visíveis e permanentes” não foi impugnado por qualquer das partes, pois que, apenas e tão-somente os AA. reclamam, “ex adversu”, que seja considerada como “provada” a largura de “2,5 metros” que haviam alegado… – que resulta ser o que mais diretamente foi alegado em função dos requisitos do normativo em referência (o art.1548º do C.Civil) – não resulta qualquer aspeto atinente (e muito menos concludente!), em atenção ao dito requisito dos sinais permanentes revelados pela serventia ajuizada (constituída por usucapião)…
«A permanência consiste na manutenção dos sinais, com a aludida visibilidade, ao longo do tempo, sem interrupções (pelo menos nos casos em que a ausência temporária dos sinais torne equívoco o seu significado), por forma a gerar e manter a ideia de que se trata de uma situação estável e duradoura e, ao mesmo tempo, afastar a hipótese de se tratar de uma situação precária, podendo tais sinais, no entanto, ser alterados ao longo do tempo ou substituídos por outros.». Cf. acórdão do T. Rel. Coimbra de 10.07.2013, no proc. nº 2482/08.3TBAGD.C1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
Revertendo ao caso ajuizado, não basta existirem sinais visíveis, designadamente por o caminho ter sido “feito em terra batida”, para se poder ou dever concluir que os mesmos eram ou foram permanentes.
Atente-se que as expressões usadas nos articulados V.g. nos arts. 7º, 11º, 14º e 67º da dita p.i. corrigida. e que figuram em alguns dos “factos provados” (“há mais de cinquenta anos”, “sempre”), são basicamente alegações de sentido “conclusivo”, sendo certo que não se deteta a alegação factual, clara e coerente, da existência de quaisquer marcas ou sulcos de passagem de pessoas e veículos, que se tivessem mantido ininterruptamente visíveis...
Por outro lado, ter-se alegado E que veio a resultar “provado”, em parte, sob o facto “10.”. que “(…) entenderam os RR. proibir a passagem aos AA., colocando um portão em ferro no seu início, fechado com chave, junto ao poço camarário” (cf. art. 9º da p.i.), também não aponta ou sequer indicia – antes pelo contrário! – que antes de tal existisse qualquer sinal permanente, isto é, que era a partir daí e por esse local que existia e se desenvolvia a serventia ajuizada (constituída por usucapião).
O que tudo serve para dizer que se este requisito dos sinais permanentes revelados pela serventia ajuizada (a constituída por usucapião) não se encontrava a priori consubstanciado em qualquer dos factos alegados, também, por maioria de razão, não veio a constar dos factos “provados”, pelo que, independentemente de se dar ou não acolhimento à impugnação sobre a matéria de facto deduzida pelas partes, sempre a factualidade se revelaria insuficiente, ou seria inidónea, para produzir o efeito jurídico de constituição da serventia por usucapião pretendida pelos AA., atenta a incontornável não verificação do requisito em causa, isto é, porque confrontados com a impossibilidade em usucapir uma servidão não aparente.
Mas o que se retira ademais desta apontada situação de irrelevância na apreciação quanto aos factos visados na impugnação sobre a decisão da matéria de facto?
Na medida em que está subjacente a ela a não verificação dos requisitos de procedência da ação na vertente do seu pedido principal – reconhecimento e declaração de constituição da serventia por usucapião – que improcedem, sem mais, a totalidade dos restantes pedidos formulados na ação, porque da procedência desse pedido principal sempre estavam dependentes.
O que, na prática, significa a improcedência total do recurso deduzido pelos AA., e igualmente significa a procedência do recurso deduzido pelos RR. – que tal improcedência dos pedidos formulados na ação visava em último termo acautelar.
Procedendo, assim, nesta parte, e no seu efeito útil, o recurso deduzido pelos RR., sem embargo de o mesmo já haver procedido quanto à arguição de nulidade.
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4 – SÍNTESE CONCLUSIVA
I – A razão de ser da impossibilidade em usucapir uma servidão não aparente, que não se revela materialmente em termos inequívocos, reside na preocupação legal de se evitar tal constituição em situações em que a actuação/posse é exercida por mera tolerância do dono do dito prédio serviente ou, até, sem que este dela tenha conhecimento.
II – A lei exige para que a aquisição de servidões de passagem por usucapião seja possível, factos inequivocamente demonstrativos da existência de situações duradouras e vinculativas, isto é, a existência de sinais visíveis e permanentes – nº 2 do art. 1548º do C.Civil –, que o mesmo é dizer, demonstrativos da inexistência de uma situação precária originada por actos de mera tolerância.
III – Não basta existirem sinais visíveis, designadamente por o caminho ter sido “feito em terra batida”, para se poder ou dever concluir que os mesmos eram ou foram permanentes.
IV – Assim, não se tendo alegado (nem provado) existir qualquer sinal permanente no ou sobre o prédio dos RR., não é possível constituir-se, por usucapião, a respetiva servidão de passagem.
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5 - DISPOSITIVO
Pelo exposto, decide-se a final, na parcial procedência da apelação dos RR. e na total improcedência da apelação dos AA., o seguinte:
a) porque a sentença recorrida se ocupou da apreciação de questão não submetida à sua apreciação e condenou em objeto diverso do que havia sido pedido, declara-se verificada a arguida nulidade da mesma [cf. art. 615º, nº1, als. d) e e) do n.C.P.Civil], donde a anulação da dita sentença;
b) não julgar verificados os requisitos de procedência da ação na vertente do seu pedido principal – reconhecimento e declaração de constituição da serventia por usucapião – pedido este que se julga, assim, improcedente, donde declarar improcedentes, sem mais, a totalidade dos restantes pedidos formulados na ação, porque da procedência desse pedido principal sempre estavam dependentes.
Custas de ambos os recursos pelos AA.. Coimbra, 12 de Abril de 2018
(Luís Filipe Cravo ( Relator )
(Fernando Monteiro)
(António Carvalho Martins)