Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
68/10.1IDVIS.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: CRIME FISCAL
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
PENA DE PRISÃO
CONDIÇÃO
NULIDADE DE SENTENÇA
PROIBIÇÃO
REFORMATIO IN PEJUS
Data do Acordão: 10/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SANTA COMBA DÃO (1.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 103.º E SS., E 14.º, N.º 1, DO RGIT; ARTIGO 409.º DO CPP
Sumário: Estando em causa crime de natureza fiscal (abuso de confiança), a dilação do período de suspensão da pena de prisão, inicialmente fixado em dois anos e oito meses, para cinco anos - decorrência de nova decisão final, proferida na sequência de nulidade da sentença declarada pela Relação -, envolvendo também a possibilidade de cumprimento da condição fixada no artigo 14.º do RGIT no mesmo prazo de cinco anos, na justa medida em que confere uma maior amplitude para que o condenado possa proceder ao pagamento das prestações tributárias e legais acréscimos, beneficiando, assim, de um período de tempo mais consentâneo com a sua posição económica presente e expectável futura, não viola o princípio plasmado no artigo 409.º, n.º 1, do CPP.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo comum n.º 68/10.1IDVIS, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Comba Dão, foram pronunciados, para julgamento com a intervenção do Tribunal singular, os arguidos A..., S.A. e B... [melhor identificados nos autos] sendo, então, imputada ao segundo arguido a prática em autoria material, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5 do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05.06, 30.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1, ambos do Código Penal, imputação extensiva à primeira arguida nos termos dos artigos 6.º, 7.º e 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5 do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, 30.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1, ambos do Código Penal.

2. Realizado o julgamento, no decurso do qual foi produzida e comunicada alteração, substancial e não substancial, dos factos – tudo conforme acta de fls. 511 a 516 –, por sentença de 13.07.2012 foi proferida a seguinte decisão:

«Pelo exposto decido:

- Condenar a sociedade arguida, “ A...., S.A.”, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 6.º, 7.º e 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5 do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05/06 e artigos 30.º, nº 2 e 79.º, nº 1, ambos do Código Penal, na pena de 720 (setecentos e vinte) dias de multa, ao quantitativo diário de € 12,00 (doze euros), perfazendo um total de € 8.640,00 (oito mil seiscentos e quarenta euros).

- Condenar o arguido B...., pela prática, em autoria material, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5 do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, e artigos 30.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1, ambos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão.

- Suspender na sua execução a pena de prisão supra determinada, por igual período, ficando tal suspensão condicionada ao pagamento, no decurso do prazo da suspensão, da prestação tributária e acréscimos legais e com a obrigação adicional, imposta a título de regra de conduta, de o arguido documentar a cada seis meses nos autos pagamentos parciais à Administração Fiscal, por conta do montante global a liquidar (cfr. artigos 50.º e 52.º, ambos do Código Penal e artigo 14º do RGIT).

- Condenar a sociedade arguida, “ A...., S.A.”, pela prática da contra-ordenação prevista e punida pelo artigo 114.º, n.º 3, 2.ª parte do RGIT – tendo por referência o IVA relativo ao mês de Fevereiro de 2010 – na coima de € 20.000,00 (vinte mil euros).

(…)».

3. Inconformado com o assim decidido recorreu o arguido B...., recurso, esse, sobre o qual incidiu o acórdão do TRC de 27.02.2013, que, por omissão de pronúncia, julgou nula a sentença, remetendo os autos à 1.ª instância, com vista à respectiva sanação «com a prolação de nova sentença por parte do tribunal recorrido, se necessário for com a reabertura da audiência para produção de prova suplementar nos termos dos artigos 369.º e 371.º do CPP» [sic].

4. Proferida nova sentença [em 24.02.2014], precedida da reabertura da audiência de discussão e julgamento, o tribunal decidiu [transcrição parcial do dispositivo]:

«Pelo exposto decido:

- Condenar a sociedade arguida, “ A...., S.A.”, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 6.º, 7.º e 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5 do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06 e artigos 30.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1, ambos do Código Penal, na pena de 720 (setecentos e vinte) dias de multa, ao quantitativo diária de € 12,00 (doze euros), perfazendo um total de € 8.640,00 (oito mil seiscentos e quarenta euros).

- Condenar o arguido B...., pela prática, em autoria material, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5 do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, e artigos 30.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1, ambos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão.

- Suspender na sua execução a pena de prisão supra determinada, pelo prazo de cinco anos, ficando tal suspensão condicionada ao pagamento, até ao final do prazo de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais e com a obrigação adicional, imposta a título de regra de conduta, de o arguido documentar a cada seis meses nos autos pagamentos parciais à Administração Fiscal, por conta do montante global a liquidar (cfr. artigos 50.º e 52.º, ambos do Código Penal e artigo 14.º do RGIT).

(…)».

5. Mais uma vez inconformado recorreu o arguido B...., extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. O arguido foi condenado, por douta sentença, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5 do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, e artigos 30.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1, ambos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão.

2. Tal pena foi suspensa na sua execução pelo prazo de cinco anos, ficando tal suspensão condicionada ao pagamento, até ao final do prazo de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais e com a obrigação adicional, imposta a título de regra de conduta, de o arguido documentar a cada seis meses nos autos pagamentos parciais à Administração Fiscal, por conta do montante global a liquidar.

3. A questão jurídica em causa nos autos reconduz-se a saber se a norma do artigo 14.º do RGIT permite ou não que se condicione a suspensão da pena de prisão em que foi condenado o ora recorrente ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais e, em caso de permitir, se se verificam os pressupostos legais inerentes.

4. A verdade é que, nos presentes autos a douta sentença, ao fazer depender a suspensão do pagamento de uma elevada quantia pecuniária, não teve em consideração a situação económica do arguido.

5. Quando as normas que norteiam a área penal devem sempre ter em linha de conta as condições económicas da pessoa.

6. Já que ninguém pode ser preso por padecer de fracos recursos económicos.

7. Nos presentes autos, a suspensão está dependente do pagamento da quantia de € 84.501,89, não se considerando os acréscimos legais, no prazo de cinco anos.

8. Ora considerando as circunstâncias actuais e presentes, ou seja, considerando que o requerente aufere um vencimento de 800 dólares mensais significa que, ainda que o recorrente não necessitasse de satisfazer as suas necessidades básicas e entregasse ao Estado todo o dinheiro que recebe, passados os 5 anos, o recorrente só teria logrado pagar o montante de 48.000,00 dólares … quantia esta que se situa bem abaixo da quantia a que foi obrigado - € 84.501,89.

9. Sendo que, inevitavelmente tal seria impossível, nem as normas jurídicas permitem tal, uma vez que o recorrente teria sempre de prover ao seu sustento e ao do seu filho de 8 anos que mora consigo.

10. O facto de ter património capaz de responder ao pagamento de tal quantia é um problema de natureza cível.

11. Na verdade, a Autoridade Tributária tem conhecimento da existência de tal bem, sendo a entidade competente para promover a sua venda em sede de execução fiscal para lograr recuperar o seu crédito …

12. No entanto, a existência de tal bem não pode servir para responsabilizar o arguido recorrente em termos criminais …

13. Desde logo, a existência de tal bem não importa liquidez financeira do requerente para cumprir a condição que lhe foi imposta,

14. Para tanto, teria de promover a sua venda e encontrar alguém que quisesse comprar,

15. Acresce que, não se pode olvidar que o recorrente não se encontra em Portugal, por motivos profissionais, pelo que não tem forma de promover a venda do bem em causa.

16. Finalmente, não se pode deixar de ter em conta que à massa insolvente foram apreendidos móveis num total de € 1.610.804,26, sendo que a massa insolvente é responsável em primeira linha pelo pagamento do montante em causa.

17. Assim, o que ficou provado não permite formular um juízo de prognose favorável acerca da razoabilidade de satisfação da condição legal imposta por parte do condenado.

18. Deve assim ser declarada a inconstitucionalidade do art. 14.º, n.º 1 do RGIT por violação do art. 202.º, 203.º e 204.º da CRP e anulada a sentença na parte em que aplicou aquela norma com violação do disposto nos artigos 70.º, 40.º e n.º 2 do art. 51.º do Código Penal.

19. Por outro lado, aquando do proferimento da primeira sentença, a pena aplicada ao recorrente havia sido suspensa pelo período de (dois) anos e 8 (oito) meses.

20. Na sequência do recurso no âmbito do qual foi proferido o Acórdão, pela 5.ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra, com o n.º de processo 68/10.1IDVIS.C1, foi a douta sentença julgada nula por omissão de pronúncia, nulidade essa que foi sanada com a prolação de nova sentença.

21. Sucede que, agora a suspensão foi efectuada pelo período de 5 anos.

22. Assim, a douta sentença recorrida é nula por violação do disposto no n.º 1 do artigo 409.º do CPP.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência, declarar-se revogada a douta decisão recorrida, na parte em que subordina a suspensão da execução da pena de prisão à condição de pagamento da prestação tributária [destaque nosso].

Assim se fazendo a sempre e a acostumada Justiça.

6. Por despacho exarado em 09.04.2014 foi o recurso admitido, fixado o respectivo regime de subida e efeito.

7. Ao recurso respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público, concluindo:

1. É pacífico na doutrina e jurisprudência que a suspensão da pena de prisão nos crimes previsto no RGIT é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais.

2. O arguido é licenciado em Engenharia Eletrotécnica, encontra-se a residir com o seu filho menor nos EUA em casa de uma sua irmã, junto da família desta, contribuindo o arguido para as despesas do agregado, sem para o efeito entregar qualquer quantia fixa; trabalha para uma empresa de construção civil (…) auferindo uma média mensal de 800 dólares; despendeu com o filho, no início do ano lectivo, quantia entre € 100,00 a € 200,00 dólares e gasta com a alimentação na escola a quantia mensal de cerca de € 100,00 dólares;

3. O arguido é proprietário de um prédio urbano, avaliado há três anos atrás, em cerca de 320.000,00, sendo as dívidas do arguido para com as instituições bancárias, actualmente, de cerca de € 200.000,00;

4. Os valores tributários em causa nos autos são € 13.888,63 do mês de fevereiro de 2010, € 7.565,14 do mês de maio de 2011, e € 63.048,11 do mês de junho de 2010 e acréscimos legais;

5. Daqui resulta, desde logo, que o arguido é proprietário de um prédio que valerá cerca de € 320.000,00, sendo que sobre o mesmo incidem ónus e encargos de cerca de € 200.000,00. Assim, se o arguido vender o referido imóvel, não só ficará com as dívidas que oneram o referido imóvel pagas, como ainda lhe permitirá pagar, senão a totalidade da dívida tributária e acréscimos legais, quase toda a dívida. Acresce que dessa forma ficará o arguido sem qualquer encargo mensal para com a banca;

6. Desta forma, afigura-se não haver dúvidas de que se terá de concluir pela existência de um juízo de prognose favorável sobre a razoabilidade da condição a que a suspensão da execução da pena de prisão fica sujeita.

7. O Tribunal Constitucional em diversas ocasiões se pronunciou “sobre a norma do artigo 14.º n.º 1 do RGIT, na parte que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento, pelo arguido, do imposto em dívida e respetivos acréscimos legais”, designadamente e entre outros, nos acórdãos n.ºs 256/03, 335/03, 376/03, 500/05, 309/06, 543/06, 587/06, 29/07 e 61/07”, sempre tendo concluído (antes e depois da entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei nº 59/2007, de 4.9) que aquela norma [art. 14.º do RGIT] não é inconstitucional, em conjugação com os artigos 50.º e 51.º do Código Penal, interpretada no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar, de prestação tributária e acréscimos legais, não havendo qualquer violação dos princípios da proporcionalidade ou da culpa.

8. É mais favorável ao arguido conceder-lhe o prazo de cinco anos para pagar a prestação tributária fixada como condição da suspensão da pena de prisão do que o prazo de dois anos e oito meses.

9. Com efeito, terá de se concluir, até por aquilo que o arguido refere nas suas conclusões de recurso, que encontrando-se nos EUA a trabalhar terá muito mais tempo para diligenciar pela venda do prédio de que é proprietário por um preço melhor, do que seria ter de o vender num prazo bem mais curto (quase metade), razão pela qual se entende que a sentença recorrida não padece da nulidade invocada pelo arguido.

Nestes termos, e por tudo o exposto, o recurso interposto pelo arguido não merece provimento, devendo ser considerado totalmente improcedente.

V. Ex.ªs, porém, e como sempre, farão Justiça.

8. Na Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando a resposta apresentada pelo Ministério Público em 1.ª instância, aduzindo ainda: «Assim e quanto à questão da reformatio, atento até o que constava da decisão deste TRC que declarou a nulidade da sentença, na medida em que havia necessidade de fundamentar a decisão de suspensão com o condicionalismo económico do recorrente, não se pode dizer que o aumento do período da suspensão lhe seja desfavorável, na medida em que lhe propicia um mais dilatado prazo para satisfazer a condição, sob pena até de se poder dizer que a prorrogação do prazo de suspensão, consagrada no art.º 55º d) do CP, não poderia ser aplicada pelas razões por si invocadas, o que decerto nem este defenderá se viesse a ser colocada tal hipótese. Ou seja, nesta parte não lhe é desfavorável a decisão e portanto não existe a violação do aludido princípio.

E, no que se refere à inconstitucionalidade do art.º 14.º, n.º 1 do RGIT (…) dir-se-á que o recorrente teria razão se a revogação da suspensão pelo não cumprimento da condição fosse automática, o que não se verifica tendo em conta o disposto nos art.º 55º do CP e 14º, n.º 2 b) do RGIT. Pois só nesse momento, ou no da não documentação do pagamento parcial que nem sequer foi quantificado, se irá em definitivo avaliar da correcção da prognose em que se baseou a decisão, não havendo violação dos preceitos constitucionais mencionados pelo recorrente.

Impõe-se ainda mencionar, no que respeita à aludida correcção e quanto à necessidade e possibilidade de venda do imóvel, no qual a sentença parcialmente se alicerça para estabelecer a condição, que as objecções levantadas pelo recorrente não têm em conta que a pena representa um sacrifício para o condenado que necessariamente lhe vai acarretar complicações várias, entre elas a obrigatoriedade, se for caso disso de vender esse bem, sendo que no decorrer do período da suspensão se irá avaliar a conduta daquele no que respeita ao cumprimento da condição que terá necessariamente em conta o circunstancialismo exterior e nomeadamente o que resultar da insolvência no que respeita ao pagamento dos montantes em débito à Administração Fiscal, de modo a verificar se forma alcançadas, através da suspensão, as finalidades em que esta se baseou, tudo como dispõe o art.º 56º n.º 1 do CP. O que de igual modo afasta a inconstitucionalidade mencionada pelo recorrente quer no que respeita ao princípio da igualdade, quer quanto à invasão da soberania do tribunal».

Conclui, assim, no sentido do recurso não merecer provimento.

9. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, nenhum dos sujeitos processuais interessados reagiu.

10. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

      De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas da motivação, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

No presente caso questiona o recorrente:

- A aplicação do artigo 14.º, n.º 1 do RGIT;

- A (in)constitucionalidade do artigo 14.º, n.º 1 do RGIT;

- A razoabilidade do juízo de prognose sobre o cumprimento da condição a que se mostra subordinada a suspensão da execução da pena de prisão;

- A violação da proibição da reformatio in pejus.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença recorrida [transcrição parcial]:

Factos Provados

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:

1. A arguida “ A...., SA“, com sede na (...), Santa Comba Dão, constituída em 11/03/2003 na Conservatória do Registo Comercial de Santa Comba Dão e matriculada sob o n.º (...), é uma sociedade anónima, cujo objecto consiste no “fabrico, comercialização e distribuição de ferragens e outros produtos para a construção, bem como a prestação de serviços e apoio técnico e consultoria económica e financeira”, a que corresponde o CAE (código de actividade económica) 25 720, por tal actividade se encontrando colectada no Serviço de Finanças de Santa Comba Dão, sob o N.I.P.C. (número individual de pessoa colectiva) (...), em IRC e IVA, neste último enquadrada no denominado regime normal de periodicidade mensal, ou seja, sujeita à obrigação de enviar a declaração periódica do imposto e os correspondentes meios de pagamento ao Serviço de Administração do I.V.A. até ao dia 10 do segundo mês seguinte àquele a que respeitam as operações.

2. O arguido, B...., foi administrador da sociedade arguida, nomeado para os anos de 2009 a 2012.

3. A administração da empresa, a gestão dos pagamentos aos credores, o pagamento de impostos ao Estado e a gestão efectiva da empresa era exercida pelo arguido B...., pessoa singular.

4. Ao longo do ano de 2010, a sociedade “ A...., SA”, através do segundo arguido, seu administrador, desenvolveu a sua actividade, comercializando os seus produtos - fechaduras, dobradiças e outras ferragens – e serviços, emitindo as competentes facturas, nelas liquidando o IVA incidente sobre tais operações.

5. No entanto, os arguidos não procederam (a sociedade arguida através do segundo arguido pessoa singular), concretamente nos meses de Fevereiro, Maio e Junho de 2010, ao envio da respectiva declaração periódica de IVA e à entrega até à data limite para pagamento, ou seja, o dia 10 do segundo mês seguinte àquele a que respeitam as obrigações, nem nos noventa dias posteriores a tal prazo, das quantias de IVA liquidadas durante tal período de tempo.

6. Assim, os arguidos – a primeira através do seu administrador e legal representante, agindo em nome, por intermédio e no interesse daquela – não procederam à entrega, nos cofres do Estado, como estavam obrigados a fazer, das prestações tributárias por conta de IVA efectivamente liquidadas e relativas aos meses de:

- Fevereiro de 2010, no valor de € 13.888,64;

- Maio de 2010, no valor de € 7.565,14;

- Junho de 2010, no valor de € 63.048,11.

7. No mês de Fevereiro de 2010, a sociedade arguida emitiu facturas respeitantes à comercialização dos seus produtos, em nome da sociedade “C..., Lda”, nelas liquidando o respectivo IVA, perfazendo um total de IVA a pagar de €18.518,18.

8. O arguido B...., também era legal representante e sócio da sociedade “ C..., Lda”, tendo o mesmo assumido, pessoalmente, o pagamento do valor total facturado em Fevereiro de 2010, respeitante aos fornecimentos aludidos em 7).

9. Uma vez que B.... era, à data, credor da sociedade arguida, em 30 de Julho de 2010, a quantia global correspondente aos fornecimentos pela “ A....” efectuados à sociedade “ C..., Lda”, incluindo o IVA liquidado nas facturas emitidas, foi imputada na conta de sócio do referido B...., por via de tal imputação, abatendo-se ao crédito do sócio sobre a arguida “ A....” valor correspondente ao da dívida da sociedade “ C..., Lda” cujo pagamento foi por este assumido, nos moldes aludidos em 7).

10. Mercê do aludido em 8) resultou liquidada a responsabilidade da sociedade “ C..., Lda” junto da arguida “ A....” pelo pagamento dos fornecimentos aludidos em 7), ficando o arguido B.... credor da sociedade “ C...” no exacto montante correspondente aos mencionados fornecimentos, incluindo IVA liquidado nas facturas.

11. Nos meses de Maio e Junho de 2010 a sociedade arguida emitiu facturas respeitantes à comercialização dos seus produtos e serviços, em nome da sociedade “ E..., Lda”, nelas liquidando o respectivo IVA, perfazendo um total de IVA a pagar, respectivamente, do mês de Maio de 2010, de € 8.252,88 e do mês de Junho de 2010, de € 63.048,11, quantias que foram efectivamente recebidas com o pagamento das facturas respectivas, ocorrido dentro do prazo limite para pagamento do imposto devido ao Estado.

12. Na sequência da instauração de processos de execução fiscal, a sociedade arguida procedeu a pagamentos parciais, encontrando-se actualmente em dívida os montantes indicados em 6).

13. Não obstante o aludido em 7) a 11) e apesar de bem saberem que estavam por lei obrigados a entregar nos cofres do Estado, a quem eram destinadas, as quantias de IVA supra identificadas, o arguido, ente individual, houve para a sociedade arguida, sua representada – e, pois, indirectamente para si próprio – tais quantias, utilizadas em proveito da sociedade arguida e, pois, colectivo, assim enriquecendo, desde logo, o património da sociedade, primeira arguida, em igual montante, e prejudicando correspondentemente o Estado – Fazenda Nacional, pelo menos, em valor equivalente.

14. Os arguidos foram notificados nos termos do disposto no art. 105º, nº 4, alínea b), do RGIT, no dia 19.11.2010, e designadamente de que dispunham do prazo de 30 dias para procederem ao pagamento das quantias acima referidas, acrescidas dos juros de mora, bem como do valor da coima aplicável, não tendo até ao momento procedido ao pagamento dos montantes elencados em 6).

15. Os arguidos após não terem entregue no mês de Fevereiro de 2010 o montante de IVA destinado ao Estado-Fazenda Nacional, acima discriminado, praticaram o mesmo tipo de conduta ao longo dos meses subsequentes, designadamente de Maio e Junho de 2010, porquanto, em virtude de não terem sido sujeitos a inspecção regular por parte dos competentes serviços de fiscalização tributária, se convenceram que a actuação que vinham levando a cabo estava a ser bem sucedida, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração na prática descrita que levaram a cabo, homogeneamente, ao longo do período de tempo referido.

16. Agiu o segundo arguido em todas as descritas circunstâncias livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de tornar, desde logo, da primeira arguida e, pois, suas também, as importâncias referidas que bem sabia estar obrigado a entregar ao credor tributário, o Estado – Fazenda Nacional, e à custa deste.

17. Estava o arguido, pessoa singular, certo, ademais, de que a sua relatada conduta o fazia incorrer e à sociedade arguida em responsabilidade criminal.

18. Os arguidos actuaram da forma supra descrita num quadro de graves dificuldades económicas que a sociedade arguida atravessava, dando prioridade, quando dispunham de liquidez, ao pagamento de salários a trabalhadores e fornecedores, de forma a permitir que a empresa continuasse em laboração.

19. Em 1 de Março de 2010 a sociedade arguida celebrou o contrato de “Cessão de Exploração de Estabelecimento Industrial” com a sociedade “ E..., Lda” do qual se encontra junta aos autos cópia, a fls. 321 e ss, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

20. A sociedade arguida foi declarada insolvente por sentença transitada em julgado a 29 de Novembro de 2010, proferida no âmbito do Processo n.º 649/10.3TBSCD, que corre termos no 2.º Juízo deste Tribunal.

21. No âmbito do processo de insolvência da arguida “ A....”, em sede de Assembleia de Credores de Apreciação do Relatório realizada a 5 de Janeiro de 2011, foi decidido o prosseguimento dos autos, com liquidação do activo que ainda prossegue e o encerramento da actividade da empresa.

22. No âmbito do processo de insolvência da arguida “ A....” foram apreendidos bens móveis num valor total de € 938.205,00 e bens imóveis num valor total de € 672.599,26, perfazendo um total de bens da massa insolvente de € 1.610.804,26.

23. O arguido B.... não procedeu ao pagamento das quantias em dívida às Finanças, supra aludidas.

24. O B.... está nos EUA desde Janeiro de 2013, sendo divorciado e tendo a seu cargo, consigo residindo, um filho menor, de 8 anos de idade, sendo que a progenitora do menor não aufere qualquer qualquer rendimento, sendo antropóloga, encontrando-se a terminar a tese de doutoramento e vivendo da ajuda dos seus progenitores. O arguido é licenciado em Engenharia Electrotécnica.

25. O arguido e o filho menor encontram-se a residir em casa de uma irmã do arguido, junto da família desta, contribuindo o arguido para as despesas do agregado, sem para o efeito entregar qualquer quantia fixa. O arguido trabalha para uma empresa de construção civil, prestando apoio às actividades de tal empresa, designadamente conduzindo viaturas e fazendo entregas de materiais e de tal trabalho auferindo uma média mensal de cerca de 800 dólares e não efectuando quaisquer descontos; sendo que, actualmente, mercê das condições climatéricas, não tem trabalhado. O filho do arguido encontra-se a frequentar a escola pública, nos EUA, com as despesas escolares do menor tendo despendido, no início do ano lectivo, quantia entre 100,00 a 200,00 dólares e despendendo com a alimentação na escola a quantia mensal de cerca de 100,00 dólares. Nem o arguido nem o menor têm seguro de saúde.

26. O arguido encontra-se à procura de nova ocupação profissional nos EUA, compatível com a sua formação e experiência profissional e encontra-se a efectuar diligências por forma a aferir da possibilidade de, pelas autoridades americanas, lhe ser pago subsídio, designadamente por ter o menor a seu cargo.

27. Da base de dados da Segurança Social consta que o arguido tem como entidade patronal a empresa “ C..., Lda” sendo a última remuneração de Novembro de 2013, no valor de 485,00 euros. Da base de dados do Registo Automóvel não consta que o arguido seja proprietário de qualquer veículo.

28. O arguido é proprietário de um prédio urbano, casa de habitação composta de cave, rés-do-chão, 1.º andar e sótão, com a superfície coberta de 124 m2, dependência de 86 m2 e logradouro de 1690 m2, sito em (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de Seia sob o número (...)/19921215.

29. Sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Seia sob o número (...)/19921215, encontram-se registadas: - pela AP. 13 de 2000/01/11, hipoteca voluntária, com garantia de empréstimo do capital de 12.500.000,00, com o montante máximo assegurado de 16.236.250,00 escudos, a favor de “Banco I..., S.A.”; - pela AP. 9 de 2002/12/03, hipoteca voluntária, com garantia de empréstimo do capital de 22.445,91 euros, com o montante máximo assegurado de 29.443,30 euros, a favor de “Banco I..., S.A.”; - pela AP. 8 de 2006/01/31, hipoteca voluntária, com garantia de empréstimo do capital de 130.000,00 euros, com o montante máximo assegurado de 164.879,00 euros, a favor de “Banco I..., S.A.”; - pela AP. 9 de 2007/06/08, hipoteca voluntária, com garantia de responsabilidades assumidas ou a assumir pela sociedade “ A....”, até ao limite de 150.000,00 euros, com o montante máximo assegurado de 226.312,50 euros, a favor de “Banco J..., S.A.”; - pela AP. 1520 de 2011/06/24, penhora, pela quantia exequenda de 8.313,53 euros, a favor de D..., Sociedade Unipessoal, Lda, no âmbito do Processo n.º 79/11.0TBSCD, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Comba Dão; - pela AP. 2451 de 2011/07/29, penhora, pela quantia exequenda de 3.198,00 euros, a favor de L..., Lda, no âmbito do Processo n.º 584/11.8TBSCD, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Comba Dão.

30. O arguido tem dívidas de instituições bancárias que importam, mensalmente, num montante global de 800,00 a 1.000,00 euros, tendo efectuado vários acordos de pagamentos prestacionais que cumpre de acordo com as suas possibilidades.

31. O imóvel de que o arguido é proprietário foi avaliado há cerca de 3 anos atrás, em cerca de 320.000,00 euros, sendo as dívidas do arguido para com as instituições bancárias, actualmente, de cerca de 200.000,00 euros.

32. O arguido B.... não tem antecedentes criminais.

33. A sociedade arguida não tem antecedentes criminais.

Factos Não Provados

Estatui o n.º2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, no que respeita aos requisitos da sentença, que ao relatório, segue-se a «fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.».

Conforme se salienta no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19 de Dezembro de 2013 (disponível para consulta em www.dgsi.pt): «I - O “objecto do processo” fixa-se deduzida que seja a acusação, com as variáveis que podem ser introduzidas pelos demandantes cíveis, pela defesa e pelo poder de investigação do tribunal, balizado pelos arts. 358º e 359º do Código de Processo Penal. II - Se quer o pedido cível quer a contestação acrescentam factos, aumenta, necessariamente, esse objecto e a extensão da cognição, desde que esses factos sejam normativamente relevantes. III - O princípio da unidade ou indivisibilidade da vinculação temática do tribunal (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente) impõe que todos esses factos tenham um destino: ou se provam ou não se provam.».

No caso em apreço, conforme aludimos em sede de Relatório, deduzindo contestação, o arguido declarou: “oferece-se o merecimento dos autos e de toda a matéria que em sua defesa resultar da audiência de julgamento” (cfr. fls.282) não alegando pois, quaisquer factos concretos que, ora, cumpra consignar.

Assim, considerando a factualidade constante da decisão de pronúncia, não resultou provado que, através do seu administrador, segundo arguido, a sociedade arguida se tenha dedicado à fabricação de fechaduras, dobradiças e outras ferragens, durante todo o ano de 2010.

A factualidade aludida pelo arguido, em sede de declarações prestadas em sede de audiência, no que concerne ao destino das quantias de IVA liquidadas nas facturas emitidas, bem como quanto aos exactos termos do encontro de contas que, sustenta, existiu entre a “ A....” e a “ F..., S.A.”, foi objecto de devida ponderação, na análise e conjugação da prova produzida, conforme infra se consigna em sede de motivação.

Motivação

O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade dada como provada conjugando e entrecruzando os vários meios de prova, designadamente, as declarações prestadas em sede de audiência pelo arguido e pelo Sr. Administrador de Insolvência da sociedade arguida e o depoimento da testemunha ouvida, Sr.ª Inspectora Tributária, responsável pela recolha de prova do recebimento das quantias de IVA liquidadas nas facturas respeitantes aos períodos em causa nos autos.

A prova produzida foi apreciada à luz do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, ou seja, segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, já que o julgador é livre de decidir segundo o bom senso e a experiência de vida, claro está tendo em mente a capacidade crítica, o distanciamento e ponderação que se impõem.

Assim, a formação da convicção do Tribunal dependeu essencialmente de duas operações: de um lado a actividade cognitiva de filtragem de informações dadas e sua relevância ético-jurídica; de outro lado, elementos racionalmente não explicáveis – ou pelo menos de explicação menos linear - como a credibilidade que se concede a um certo meio de prova em detrimento de outro, já que não é quantidade de prova produzida que releva, mas antes a qualidade de tal prova.

Com efeito, desde logo quando estejam em causa depoimentos ou declarações, deverá o Tribunal formular um juízo de veracidade e autenticidade do declarado, o qual depende do contacto oral e directo com os declarantes e da forma como estes transmitem a sua versão dos factos – postura e comportamento, características de personalidade reveladas, carácter e probidade.

Sinteticamente podemos dizer que foi deste conjunto de vectores e da essência deste processo – sempre complexo – de apreciação e valoração da prova que resultou ou não comprovada a factualidade descrita em sede de decisão de pronúncia e, já que, em bom rigor, a contestação deduzida não continha factos em concreto a apurar.

Apreciando dir-se-á, desde logo, que na sua essência, o arguido B...., confirmou a factualidade descrita em sede de decisão de pronúncia, esclarecendo quanto ao facto de actualmente já não ser administrador da sociedade arguida (o que resulta documentado nos autos, mercê do teor das certidões extraídas e juntas provenientes do processo de insolvência) e bem assim esclarecendo quanto ao circunstancialismo em que as facturas em causa nos autos foram emitidas, em tais esclarecimentos se alicerçando a tese propugnada pelo arguido de que, não obstante a facturação e liquidação de IVA nela em causa, não se verificou efectivo recebimento dos valores (incluindo IVA) facturados.

O mencionado arguido esclareceu igualmente quanto ao contexto em que se estabeleceram as relações comerciais dadas como provadas entre a sociedade arguida e as sociedades “ C...” e “E...”, neste particular referindo que as facturas relativas a Fevereiro de 2010 e correspondentes a fornecimentos à “ C...” respeitaram antes a uma espécie de dação em pagamento, já que a “ C...” teria efectuado pagamentos da “ A....” (já que ambas as empresas a ele, arguido, pertenciam) e essa foi a forma de a “ C...” se pagar nessas dívidas, ficando com existências da “ A....”, sem efectivamente efectuar qualquer pagamento.

Já no que concerne à facturação relativa ao meses de Maio e Junho de 2012, o arguido sustenta que em causa esteve um acerto/encontro de contas entre a “ A....” e a sociedade “ F..., S.A.” (a cujo grupo pertencerá a sociedade “ E...”) e portanto a alienação de stock existente na sociedade arguida (quando a “ E...” tomou conta do negócio por via do contrato de cessão de exploração), sem que existisse qualquer efectivo pagamento, já que a dívida da “ A....” para com a “ F..., S.A.” era superior e portanto embora a “ E...” tivesse transferido dinheiro para pagamento das facturas emitidas pela “ A....” existia um acordo verbal entre ele e os responsáveis da “ F..., S.A.” por via do qual assim que recebia os pagamentos efectuados pela “ E...” a “ A....” canalizava tal dinheiro para a “ F..., S.A.” para abater na dívida que tinha com esta empresa, servindo o stock constante das facturas para abater na dívida que a “ A....” tinha com a “ F..., S.A.”; procurando o arguido fazer prova dessa operação com os documentos que juntou na última sessão de julgamento com produção de prova.

Ora, no que concerne ao vertido em 1) e 2) valoraram-se essencialmente, de forma conjugada, os documentos constantes de fls. 82 a 84 (prints extraídos da DGCI); fls.94 a 99 (prints da DGCI de liquidações de IVA); certidão permanente de fls. 103 a 109 e cópia de certidão de matrícula de fls. 110 a 113.

Relativamente ao vertido em 3) valorou-se, de forma conjugada, o teor da certidão permanente de fls. 103 a 109, documentos constantes de fls. 82 a 84 (prints extraídos da DGCI) e declarações do arguido B...., que reconheceu tal factualidade.

No que concerne ao vertido em 4) atentou-se, essencialmente, na conjugação das declarações prestadas pelo arguido B...., depoimento da testemunha H... e prova documental junta aos autos.

Com efeito, o próprio arguido, prestando declarações, não só esclareceu quanto ao contexto em que a sociedade “ E...” assumiu a exploração do estabelecimento industrial da sociedade arguida – dando conta de que até ao final de Fevereiro de 2010 ainda foi a “ A....” a responsável pela produção – como confirmou os fornecimentos efectuados tanto à “ C...” como à “ E...”, contextualizando-os no quadro supra sintetizado; sendo certo que tais relações comerciais resultam claramente documentadas nos documentos juntos aos autos e a cuja recolha procedeu a testemunha H..., inspectora tributária, respeitando tanto às relações comerciais com a “ C...” (cfr. documentação respeitante à facturação de Fevereiro de 2010, com nota de liquidação e conta corrente de fls. 32 e ss) como com a“ E...” (cfr. documentação respeitante à facturação de Maio de 2010 e Junho de 2010, junta aos autos após remessa pela própria “ E...”, conforme e-mail igualmente junto, remetido pela funcionária da E..., G..., no qual expressamente esta alude aos “comprovativos de pagamentos” efectuados desde Fevereiro a Julho de 2010, da E... à A.... – fls.36; encontrando-se juntas as notas de liquidação e comprovativos de pagamento por transferências bancárias e tendo a testemunha em causa após junto uma amostragem das facturas que consultou).

A mencionada testemunha, H..., inspectora tributária responsável pela recolha de elementos de prova respeitantes ao recebimento das importâncias objecto de facturação, prestando depoimento de forma isenta, espontânea e séria e que por via disso se afigurou credível, descreveu ao tribunal as diligências que efectuou por forma a concluir pelos dados apurados e documentalmente vertidos nos autos, tendo-se o seu depoimento relevado particularmente relevante para a compreensão da operação que foi realizada no mês de Fevereiro de 2010.

No que respeita ao vertido em 5) valoraram-se de forma conjugada as declarações do arguido – que confirmou a ausência de entrega das declarações e IVA respectivo no prazo legal – o depoimento da testemunha H... – confirmou o contexto em que os autos tiveram origem e a prova documental junta, assumindo especial relevo, quanto às declarações periódicas, os documentos de fls. 94 e ss.

Relativamente ao vertido em 6) relevaram, de forma conjugada, o depoimento da testemunha H... e o teor dos documentos juntos aos autos (cfr. fls. 27 a 77; 78 a 84; 94 a 102).

No que concerne ao vertido em 7) a 10), valoraram-se conjugadamente as declarações do arguido, depoimento da testemunha H... e documentos juntos aos autos; sendo que o arguido aludiu às relações comerciais em Fevereiro de 2010 estabelecidas nos moldes supra já sintetizados e que, na sua essência, acabaram por ser corroborados pela testemunha H... que de forma clara esclareceu o tribunal quanto ao que ela própria apurou, analisando os documentos contabilísticos, mais resultando a operação em causa reflectida nos documentos juntos aos autos (conta corrente e nota de liquidação de fls. 32 e ss); tendo o arguido esclarecido quanto à circunstância de ser também o legal representante e sócio, à data, da sociedade “ C...”.

Relativamente ao dado como provado em 11) valoraram-se igualmente, de forma conjugada, as declarações do arguido e do Sr. Administrador de Insolvência, depoimento da testemunha H... e documentos juntos aos autos (mormente fls. 36 e ss e documentação exibida pela Sr. Inspectora em sede de audiência e determinada juntar, através de cópia, aos autos); sendo que neste particular o arguido, confrontado com os documentos juntos autos – mormente os remetidos pela funcionária da “ E...”, G..., atinentes aos “comprovativos de pagamentos”, de fls. 36 e ss – acabou por admitir que as transferências bancárias que se mostram documentadas (efectuadas ora para contas da “ A....”, ora da “ C...”, mas respeitantes à facturação em causa nos presentes autos) foram efectuadas, alegando ainda assim que se tratou de dinheiro que não chegou a estar na efectiva disponibilidade da “ A....”, por logo após ser transferido para a “ F..., S.A.”.

Ora, importa desde logo dizer que independentemente do destino que a “ A....” depois desse aos pagamentos em causa, não podemos tirar outra conclusão, da documentação junta – e até do que o arguido acaba por admitir, embora justificando tal procedimento como mera operação financeira - se não a de que as facturas foram efectivamente pagas pela “ E...” à “ A....”, já que o dinheiro respeitante a estas ficou, por via das transferências efectuadas, na efectiva disponibilidade do arguido pessoa singular – que era então o sócio e gestor tanto da “ A....” como da “ E...” e portanto era quem controlava as contas bancárias de ambas, para as quais o dinheiro foi transferido; se depois (minutos, segundos, dias ou meses) a “ A....” reencaminhava esse dinheiro para contas da “ F..., S.A.”, é facto que não anula o recebimento prévio por parte da “ A....”.

Não ficou pois o Tribunal, com quaisquer dúvidas, de que os montantes facturados (e que incluem IVA, como resulta dos documentos juntos aos autos e foi confirmado pela Sr.ª Inspectora Tributária) à “ E...” foram por esta efectivamente pagos.

Dizer ainda, neste particular, que pese embora tal não se tenha invocado nos autos em sede de contestação, a verdade é que, no decurso da audiência, o arguido alicerçou, em parte, a sua defesa no supra aludido entendimento de que, mercê do acerto de contas que havia acordado com a “ F..., S.A.”, a sociedade arguida não teria tido acesso real às quantias pela “ E...” transferidas, tendo o arguido procurado de tal fazer prova com a junção dos documentos apresentados na última sessão de julgamento com produção de prova.

A verdade é que os mencionados documentos apenas permitem concluir que existiram inúmeras transferências bancárias de contas da “ A....” para a “ F..., S.A.”, sendo que não ressalta de tais documentos sequer que as coisas se passassem como inicialmente o arguido sustentou, a este propósito, dizendo que o dinheiro não chegava sequer a “parar” nas contas da “ A....”, já que não há correspondência entre os montantes transferidos para a “ F..., S.A.” e os pagamentos que a “ E...” foi efectuando à “ A....” e o próprio arguido, quando confrontado com tal circunstância, em bom rigor, não logrou dar ao tribunal qualquer explicação clara e cabal, limitando-se (o que aliás fez sempre que confrontado com as “operações” que foi invocando terem existido) a dizer que fez as coisas assim porque nesse sentido foi aconselhado, sem identificar concretamente por quem e/ou com que finalidade exacta; afigurando-se-nos difícil de compreender que, a serem as coisas como o arguido procurou convencer o tribunal, pertencendo a “ E...” e a “ F..., S.A.” ao mesmo grupo económico, porque não efectuou a “ E...” os pagamentos directamente à “ F...”, antes transferindo o dinheiro para contas da “ A....” ou da “ C...”, deixando na disponibilidade dos titulares dessas contas (em termos práticos, o arguido) o destino a dar a largos milhares de euros que dessa forma foram canalizados para as mencionadas contas bancárias.

Acresce que, pese embora o Sr. Administrador de Insolvência tenha confirmado que, das diligências que fez, apurou que terá existido efectivamente um acerto de contas entre a “ A....” e a “ F...”, não é menos certo que aquilo que o Sr. Administrador neste particular transmitiu ao Tribunal cingiu-se a factos que terá ouvido relatar, de forma vaga, a terceiros e cujo apuramento apenas incidentalmente a ele, Administrador de Insolvência, interessaram, por se ter apercebido de uma elevada facturação, com a correspondente liquidação de IVA, numa altura em que a empresa já estava numa situação económica difícil.

Assim, e pelo exposto, não ficou o Tribunal com qualquer dúvida de que as quantias aludidas em 11) foram efectivamente recebidas pela “ A....”, nos moldes supra explicados.

No que concerne ao vertido em 12), valorou-se a prova documental junta aos autos, mormente os documentos atinentes aos processos de execução fiscal instaurados e tramitação a estes respeitante, da qual resulta não apenas a existência de requerimentos de pagamento em prestações (cfr. fls. 69 e 70), como a existência de pagamentos parciais, efectuados até 30 de Setembro de 2009 (pagamentos que terminaram com a suspensão de tais autos, na sequência da declaração de insolvência – cfr. fls. 117).

O vertido em 13), 16) e 17) resulta da conjugação da factualidade objectiva vertida nos pontos anteriores, com as declarações do próprio arguido e regras de experiência comum. Com efeito, o arguido reconheceu o conhecimento da obrigação legal de proceder ao pagamento do IVA em causa – que aliás não só não questionou em sede de execução fiscal, como aceitou de forma clara, ao proceder a pagamentos parciais e que, dissemos já, só cessaram por causa da declaração de insolvência da arguida – e pese embora tenha procurado defender-se com a tese, construída, de que as quantias em causa não teriam sido efectivamente recebidas, a verdade é que os montantes foram liquidados nas facturas em causa e foram, os relativos ao mês de Fevereiro, contabilizados como recebimentos – já que se assim não fossem não eram considerados na operação que se deu como provada em 8 a 10 - e os relativos aos meses de Maio e Junho foram recebidos por via das transferências bancárias realizadas. Ora, assim sendo, naturalmente não podemos deixar de concluir que se trata de importâncias que foram utilizadas em proveito da sociedade e portanto indirectamente do arguido (quando ao mês de Fevereiro por via do abatimento no crédito que o sócio tinha para com a “ A....” e quanto aos meses de Maio e Junho por via da entrada nas contas bancárias da quantia correspondente ás facturas emitidas, incluindo IVA) e portanto, sendo essas quantias devidas ao Estado, claro está que este ficou prejudicado, pelo menos, em montante equivalente; sendo que o arguido sempre assumiu o seu conhecimento das obrigações legais em causa e das consequências que, do seu incumprimento, poderiam resultar – como aliás não podia deixar de conhecer, atenta a sua experiência profissional.

Relativamente ao vertido em 14), consideraram-se ainda as notificações efectuadas nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, n.º4, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, como consta de folhas 87 e 88 dos autos, respectivamente, ao arguido e à arguida pessoa colectiva.

No que concerne ao vertido em 15) valoraram-se os factos objectivos dados como provados, conjugados com as regras de experiência comum.

No que concerne ao vertido em 18) valoraram-se as declarações do arguido, conjugadas com a prova documental junta (mormente certidão extraída dos autos de insolvência, de cuja sentença resulta claro o quadro de graves dificuldades económicas que a sociedade atravessava).

O vertido em 19) resulta provado mercê da análise do documento junto aos autos a fls. 321 e ss.

O vertido em 21) e 22) resulta da análise do teor da prova documental junta aos autos, concretamente, certidão extraída do processo de insolvência da arguida, conjugada com as declarações do Sr. Administrador de Insolvência, que confirmou o estado actual dos autos.

Relativamente à situação económica, familiar e profissional do arguido valoraram-se as suas declarações - que, porque neste particular foram feitas de forma espontânea, coerente e séria, se nos afiguraram credíveis – conjugadas com a prova documental junta aos autos, mormente relatório social elaborado pela DGRS de fls.713 e ss, certidão de registo predial do imóvel do qual o arguido é proprietário, informação constante da base de dados da Segurança Social e do Registo Automóvel.

No que concerne aos antecedentes criminais dos arguidos valoraram-se os Certificados de Registo Criminal juntos aos autos.

No que concerne aos factos não provados, cumpre desde logo referir que se não produziu em audiência de julgamento qualquer prova que permitisse dar como provados outros factos para além daqueles que nessa qualidade se descreveram, designadamente por não ter sido produzida mais qualquer prova testemunhal ou por declarações credível e distinto resultado probatório não resultar dos documentos juntos aos autos; sendo que quanto ao facto em concreto dado como não provado o mesmo resulta da prova do vertido em 19), já que resultou apurado que pelo menos desde Março de 2010 não era efectivamente a “ A....” que explorava o estabelecimento industrial e portanto que se dedicava à fabricação e valendo aqui, mutatis mutandis, as considerações que, a propósito dos factos provados, foram já feitas quanto à ausência de credibilidade/prova, da tese propugnada pelo arguido no que concerne ao destino das quantias de IVA liquidadas nas facturas emitidas, bem como quanto aos exactos termos do encontro de contas que, sustenta, existiu entre a “ A....” e a “ F..., S.A.”.

3. Apreciação

a.

Dispõe o artigo 14.º, n.º 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias [doravante RGIT]:

«A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa

Perante tal realidade normativa afigura-se-nos evidente não poder proceder a pretensão do recorrente enquanto questiona, no caso, a aplicação da citada disposição, porquanto a condenação sofrida o foi pela prática, em autoria material e na forma continuada, de um crime tributário – concretamente de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5 do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05.06 e 30.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1, estes do Código Penal, na pena de 2 [dois] anos e 8 [oito] meses de prisão.

Trata-se, aliás, de matéria, cuja apreciação por parte dos tribunais superiores tem sido objecto de resposta praticamente unânime, ou seja em que não se detectam, no essencial, vozes dissonantes, juízos, esses, que, as mais das vezes, surgem no contexto de uma invocada inconstitucionalidade material da norma em referência, questão, igualmente, suscitada pelo recorrente.

Donde, reunidos que se mostram os pressupostos para fazer funcionar o sobredito preceito, nada mais resta declarar do que a falência da alegação.

b.

Mas, prossegue o recorrente, a perfilhar-se diferente entendimento sempre a norma em causa padeceria de inconstitucionalidade por violação dos artigos 202.º, 203.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa.

Como já atrás se sinalizou não é de hoje a controvérsia originada pelo n.º 1 do artigo 14.º do RGIT, antes tendo, ao longo dos tempos e por diversas vezes, sido submetida a questão da respectiva inconstitucionalidade – enquanto condiciona sempre a suspensão da execução da prisão ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais – ao Tribunal Constitucional, o qual se tem vindo sempre a pronunciar no sentido de não violar o mesmo qualquer preceito e/ou princípio constitucional.

Disto mesmo dá nota o Acórdão do TC n.º 237/2011 quando refere:

« … a questão da (alegada) inconstitucionalidade de interpretação normativa que sujeite a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento de dívidas de natureza fiscal (…), já foi objecto de inúmeras decisões por parte deste Tribunal Constitucional (cfr., a mero título de exemplo, Acórdãos n.º 256/2003, n.º 335/03, n.º 376/03, n.º 500/05, n.º 309/06, n.º 543/06, n.º 587/06, n.º 29/07, n.º 61/07, n.º 327/2008 e n.º 556/09, todos disponíveis in www.tribunalconstitucioanl.pt/tc/acordaos/).O Tribunal Constitucional tem vindo a entender que tal interpretação normativa não padece de qualquer inconstitucionalidade, seja por violação do princípio da proporcionalidade, seja por violação do princípio da culpa (…).»

No mesmo sentido decidiu o Acórdão do TC n.º 29/2007, no qual ficou consignado: «(…) o Tribunal teve já, por diversas vezes, oportunidade de se pronunciar sobre ela, concluindo pela inexistência de inconstitucionalidade do artigo 14º, n.º 1, do RGIT, na parte em que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo arguido do imposto em dívida e respectivos acréscimos legais. Fê-lo, designadamente, nos acórdãos n.ºs 256/03, 335/03 e 500/05 (…).

No primeiro dos arestos citados, para cuja fundamentação, em boa parte, remetem os demais, ponderou o Tribunal:

«Comparando o artigo 11.º, n.º 7, do RJIFNA com o (posterior) artigo 14.º do RGIT, verifica-se que ambos condicionam a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das quantias em dívida.

Não sendo pagas tais quantias, o primeiro preceito remetia (em parte) para o regime do Código Penal relativo ao não cumprimento culposo das condições da suspensão; já o segundo preceito – que englobou tal regime do Código Penal – é mais dúbio, porque não faz referência à necessidade de culpa do condenado.

De qualquer modo, deve entender-se que a já referida aplicação subsidiária do Código Penal, prevista no artigo 3.º, alínea a), do RGIT (cfr. os artigos 55.º e 56.º do referido Código), bem como a circunstância de só o incumprimento culposo conduzir a um prognóstico desfavorável relativamente ao comportamento do delinquente implicam a conclusão de que o artigo 14.º, n.º 2, do RGIT, quando se refere à falta de pagamento das quantias, tem em vista a falta de pagamento culposa (refira-se, a propósito, na sequência de Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português/Parte Geral, II – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, pp. 342-343, que pressuposto material de aplicação da suspensão da execução da pena de prisão é a existência de um prognóstico favorável a esse respeito).

[…]

«o que está vedado é a privação da liberdade pela única razão do não cumprimento de uma obrigação contratual, o que é coisa diferente»

De qualquer modo, dos arestos citados extrai-se uma ideia importante para a resolução da presente questão: é ela a de que não faz sentido analisá-la à luz da proibição da prisão por dívidas. Na verdade, mesmo que se considere – e é isso que importa determinar – desproporcionada a imposição da quantidade da quantia em dívida como condição de suspensão da execução da pena, o certo é que o motivo primário do cumprimento da pena de prisão não radica na falta de pagamento de tal quantia, mas na prática de um facto punível.

E mais adiante «( …) podendo a realização dos fins do Estado – dependente do cumprimento do dever de pagar impostos – justificar a adopção do critério da vantagem patrimonial no estabelecimento dos limites da pena de multa, não há qualquer motivo para censurar, como desproporcionada, a obrigação de pagamento da quantia em dívida como condição da suspensão da execução da pena. As razões que, relativamente à generalidade dos crimes, subjazem ao regime constante do artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal […] não têm necessariamente de assumir preponderância nos crimes tributários: no caso destes crimes, a eficácia do sistema fiscal pode perfeitamente justificar regime diverso, que exclua a relevância das condições pessoais do condenado no momento da imposição da obrigação de pagamento e atenda unicamente ao montante da quantia em dívida.

[…]

As normas em apreço não se afiguram, portanto, desproporcionadas, quando apenas encaradas na perspectiva da automática correspondência entre o montante da quantia em dívida e o montante a pagar como condição de suspensão da execução da pena, atendendo à justificável primazia que, no caso dos crimes fiscais, assume o interesse em arrecadar impostos.

Cabe, todavia, questionar se não existirá desproporção quando, no momento da imposição da obrigação, o julgador se apercebe que o condenado muito provavelmente não irá pagar o montante em dívida, por impossibilidade de o fazer.

Esta impossibilidade, que não chegou a ser declarada pelo tribunal recorrido – pois que este analisou a questão em abstracto, sem averiguar se o ora recorrente efectivamente estava impossibilitado de cumprir […] -, não altera, todavia, a conclusão a que se chegou.

Em primeiro lugar, porque perante tal impossibilidade, a lei não exclui a possibilidade de suspensão da execução da pena.

Dir-se-á que tal exclusão se encontra implícita na lei, atendendo a que não seria razoável que a lei permitisse ao juiz condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de um dever que ele próprio sabe ser de cumprimento impossível.

Todavia, tal objecção não procede, pois que traz implícita a ideia de que o juiz necessariamente elabora um prognóstico quanto à possibilidade de cumprimento da obrigação, no momento do decretamento da suspensão da execução da pena. Ora, nada permite supor a existência de um tal prognóstico: sucede apenas que a lei – bem ou mal, mas este aspecto é, para a questão de constitucionalidade que nos ocupa, irrelevante -, verificadas as condições gerais de suspensão da execução da pena (nas quais não se inclui a possibilidade de cumprimento da obrigação de pagamento da quantia em dívida), permite o decretamento de tal suspensão. O juízo do julgador quanto à possibilidade de pagar é, para tal efeito, indiferente.

Em segundo lugar, porque mesmo parecendo impossível o cumprimento no momento da imposição da obrigação que condiciona a suspensão da execução da pena, pode suceder que, mais tarde, se altere a fortuna do condenado e, como tal, seja possível ao Estado arrecadar a totalidade da quantia em dívida.

A imposição de uma obrigação de cumprimento muito difícil ou de aparência impossível teria assim esta vantagem: a de dispensar a modificação do dever (cfr. artigo 51.º, n.º 3, do Código Penal) no caso de alteração (para melhor) da situação económica do condenado. E, neste caso, não se vislumbra qualquer razão para o seu tratamento de favor, nem à luz do princípio da culpa, nem à luz dos princípios da proporcionalidade e da adequação.

Em terceiro lugar, e decisivamente, o não cumprimento não culposo da obrigação não determina a revogação da suspensão da execução da pena. Como claramente decorre do regime do Código Penal para o qual remetia o artigo 11.º, n.º 7, do RJIFNA, bem como do n.º 2 do artigo 14.º do RGIT, a revogação é sempre uma possibilidade; além disso, a revogação não dispensa a culpa do condenado (…).

Não colidem, assim, com os princípios constitucionais da culpa, adequação e proporcionalidade, as normas contidas (…) no artigo 14.º do RGIT […]».

E no que respeita a uma eventual violação do princípio da igualdade adianta o mesmo: «Este Tribunal já por diversas vezes se pronunciou sobre o princípio da igualdade, particularmente na dimensão da proibição do arbítrio, que assume maior relevo para apreciação do presente caso, firmando uma jurisprudência reiterada no sentido de que se é verdade que o princípio da igualdade obriga a que se trate por igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impede, contudo, qualquer diferenciação de tratamento, mas apenas as discriminações arbitrárias, irrazoáveis, ou seja, as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante», para concluir que detendo o legislador ordinário uma ampla margem de liberdade no exercício da sua actividade de criação e conformação dos tipos legais de crime, são, no essencial, razões de política criminal que justificam o regime em questão [destaques nossos].

Semelhante orientação foi acolhida no Acórdão TC n.º 556/2009, quando, convocando o Acórdão do TC n.º 327/08 [que julgou não inconstitucional a norma do artigo 14.º do RGIT, interpretada no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de duração da pena de prisão concretamente determinada, a contar do trânsito em julgado da decisão, da prestação tributária e acréscimos legais, com fundamento], aduz:

«Suposto que corresponda à exacta interpretação da lei e apesar deste efeito perverso, esta nova configuração do regime de suspensão da execução da pena de prisão por crimes fiscais não é de molde a justificar a revisão do entendimento consolidado do Tribunal na matéria.

Continuam a ser válidas as três razões pelas quais nesta jurisprudência se afasta a objecção de que se está a impor ao arguido um dever que se sabe de cumprimento impossível e, com isso, a violar os princípios da proporcionalidade e da culpa: (i) o juízo quanto à impossibilidade de pagar não impede legalmente a suspensão; (ii) sempre pode haver regresso de melhor fortuna; (iii) e a revogação não é automática, dependendo de uma avaliação judicial da culpa no incumprimento da condição».

Ainda, no confronto com o princípio da igualdade, lê-se no Acórdão do TC 61/2007: «Os recorrentes apontam ainda a violação do princípio da igualdade, quando sustentam que as normas em análise criam para o Estado um privilégio inadmissível, nos termos já indicados».

Como se sabe, o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado que «(…) o princípio da igualdade, tal como tem sido entendido na jurisprudência deste Tribunal, não proíbe ao legislador que faça distinções – proíbe apenas diferenciação de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos e relevantes. É esta, aliás, uma formulação repetida frequentemente por este Tribunal (cf. por exemplo, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 39/88, 325/92, 210/93, 302/97, 12/99 e 683/99 (…).

Como princípio de proibição do arbítrio no estabelecimento da distinção, tolera, pois, o princípio da igualdade a previsão de diferenciações no tratamento jurídico de situações que que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante.

(…) O princípio da igualdade apresenta-se, assim, como um limite à liberdade de conformação do legislador.

(…) Todavia, a vinculação jurídico-material do legislador a este princípio não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois lhe pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente.

Só existe violação do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio quando os limites externos da discricionariedade legislativa são afrontados por carência do adequado suporte material para a medida legislativa adoptada.

Por outro lado, as medidas de diferenciação devem ser materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade da justiça e da solidariedade, não se baseando em qualquer razão constitucionalmente imprópria» (Acórdão 187/2001)».

Igualmente relevante, atentas as normas constitucionais invocadas pelo recorrente à luz das quais pretende ver desaplicado o n.º 1 do artigo 14.º do RGIT, surge o Acórdão do TC n.º 587/2006, donde se extracta: «É inquestionável que os preceitos da lei, quando determinam a suspensão da pena de prisão condicionada ao pagamento das quantias em dívida, são bem explícitos e, o conteúdo de tais normas não viola qualquer imperativo de norma constitucional, por não pressupor a intervenção do juiz no sentido de adequação da condição à culpa ou às circunstâncias do caso concreto, pois tais circunstâncias terão sempre de ser ponderadas se se vier a colocar a questão da revogação da suspensão. Como é sabido, os art.ºs 55º e seguintes do CP não deixam dúvidas no sentido de que o não pagamento não tem como consequência automática a revogação da suspensão; é forçoso sempre averiguar e formular um juízo de culpa sobre os motivos determinantes que levaram o condenado a não cumprir o dever imposto».

Também o Supremo Tribunal de Justiça se vem debruçando sobre a questão, como, v.g., decorre do Acórdão de 06.01.2005, proferido no âmbito do proc. n.º 04P4204, do qual se respiga:

«O recorrente entende que a aplicação automática da subordinação da suspensão da execução da pena ao pagamento da quantia em dívida, mesmo fora dos condicionalismos do art.º 51.º, n.ºs 1, al. a) e 2, do Código Penal, viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade, constantes dos artigos 13.º e 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, pelo que será inconstitucional a norma do artigo 14.º, n.º 1 do RGIT, quando interpretado desse modo.

Conhecem-se, pelo menos três decisões do Tribunal Constitucional a não julgar inconstitucional esta norma, na interpretação já referida. Trata-se dos Acórdãos de 21/05/2003, proc. 647/02, de 07/07/2003, proc. n.º 282/03 e de 15/07/2003, proc. 3/3003 (…).

O primeiro destes Acórdãos, que os outros depois em grande medida transcrevem, alinha em resumo os seguintes argumentos sobre a questão (…):

A) “(…) não faz sentido analisá-la à luz da proibição da prisão por dívidas. Na verdade, mesmo que se considere – e é isso que importa determinar – desproporcionada a imposição da totalidade da quantia em dívida como condição de suspensão da execução da pena, o certo é que o motivo primário do cumprimento da pena de prisão não radica na falta de pagamento de tal quantia, mas na prática de um facto punível.”

B) “As razões que, relativamente à generalidade dos crimes, subjazem ao regime constante do artigo 51º, n.º 2, do Código Penal (…) não têm necessariamente de assumir preponderância nos crimes tributários: no caso destes crimes, a eficácia do sistema fiscal pode perfeitamente justificar regime diverso, que exclua a relevância das condições pessoais do condenado no momento da imposição da obrigação de pagamento e atenda unicamente ao montante da quantia em dívida. Dito de outro modo, o objectivo de interesse público que preside ao dever de pagamento dos impostos justifica um tratamento diferenciado face a outros deveres de carácter patrimonial e, como tal, uma concepção da suspensão da execução da pena como medida sancionatória que cuida mais da vítima do que do delinquente.”

C) Cabe, todavia, questionar se não existirá desproporção quando, no momento da imposição da obrigação, o julgador se apercebe de que o condenado muito provavelmente não irá pagar o montante em dívida, por impossibilidade de o fazer. (…) Em primeiro lugar, porque perante tal impossibilidade, a lei não exclui a possibilidade de suspensão da execução da execução da pena. Dir-se-á que tal exclusão se encontra implícita na lei, atendendo a que não seria razoável que a lei permitisse ao juiz condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de um dever que ele próprio que ele próprio sabe ser de cumprimento impossível. Todavia, tal objecção não procede, pois que traz implícita a ideia de que o juiz necessariamente elabora um prognóstico quanto à possibilidade de cumprimento da obrigação, no momento do decretamento da suspensão da execução da pena. Ora, nada permite supor a existência de um tal prognóstico: sucede apenas que a lei – bem ou mal, mas este aspecto é, para a questão de constitucionalidade que nos ocupa, irrelevante -, verificadas as condições gerais de suspensão da execução da pena (nas quais não se inclui a possibilidade de cumprimento da obrigação de pagamento da quantia em dívida), permite o decretamento de tal suspensão. O juízo do julgador quanto à possibilidade de pagar é, para tal efeito, indiferente. Em segundo lugar, porque mesmo parecendo impossível o cumprimento no momento da imposição da obrigação que condiciona a suspensão da execução da pena, pode suceder que, mais tarde, se altere a fortuna do condenado e, como tal, seja possível ao Estado arrecadar a totalidade da quantia em dívida.”

D) “(…) o não cumprimento não culposo da obrigação não determina a revogação da suspensão da execução da pena. Como claramente decorre do regime do Código Penal para o qual remetia o artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA, bem como do n.º 2 do artigo 14.º do RGIT, a revogação é sempre uma possibilidade; além disso, a revogação não dispensa a culpa do condenado (…).”

E) “Não colidem, assim, com os princípios constitucionais da culpa, adequação e proporcionalidade, as normas contidas no artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA, e no artigo 14.º do RGIT.”

Perante esta argumentação do Tribunal Constitucional, já reiterada noutros Acórdãos e apenas com um único voto de vencido da primitiva relatora de um deles (o de 15/07/2003, proc. 3/2003), não seria razoável procurar uma orientação diversa, tanto mais que o recorrente não avança com argumentos novos.

Por isso, não consideramos inconstitucional a interpretação do art.º 14.º, n.º 1, do RGIT feita no Tribunal recorrido.»

Sobre a falta de condições económicas do recorrente para cumprir a condição de suspensão, prossegue o citado arresto: «Sendo obrigatório, nos termos apontados, que a suspensão da execução da pena fique condicionada ao pagamento da quantia em dívida e seus acréscimos legais, não faz sentido a discussão deste ponto.

Como refere o TC, é irrelevante o juízo que se faça agora sobre a (in)capacidade do condenado para satisfazer a condição de suspensão, não só porque a lei não obriga a esse exercício, como nada indica que, no prazo fixado, o mesmo não venha a adquirir bens necessários para tal.

Por outro, no momento em que o recorrente tiver de prestar contas sobre o cumprimento da condição, o Tribunal só poderá declarar revogada a suspensão da execução da pena por incumprimento dessa condição se este for culposo. E só o fará depois de ouvir as razões que lhe forem apresentadas pelo arguido, se não resultarem as demais medidas referidas no art.º 55.º do CP e se forem infringidas grosseira ou repetidamente os deveres impostos (art.º 56.º, n.º 1, al. a), do CP)».

A mesma linha de orientação foi seguida no Acórdão do STJ de 31.05.2006 [proc. 06P1294], salientando-se as seguintes passagens: «Essa exigência de pagamento, à margem da condição económico-pessoal do responsável tributário, nada tem de desmedida, justificando-se pela necessidade da eficácia do sistema penal tributário e o tratamento diferenciado – desligadamente de outros interesses a ponderar, ao invés do que sucede na sujeição a deveres impostos como condição de suspensão da execução da pena, nos termos do art.º 51.º, n.º 1, do CP, aqui se cuidando “ao mesmo tempo da vítima e do delinquente” – Cons.º Manso Preto, Textos – Centro de Estudos Judiciários, 1990 – 91, 173 -, face ao interesse preponderantemente público, a acautelar.

E semelhante inconsideração de possibilidade, pressuposta legalmente, mesmo assim tem sido havida como conforme à CRP porque a lei não exclui a suspensão, porque mesmo parecendo impossível a satisfação da prestação não é de excluir que, por mudança de fortuna, o devedor esteja em condições de arcá-la, porque só o incumprimento doloso determina a revogação, por fim porque sempre restam, em casos de dificuldades de cumprimento, alternativas, já que no regime rege o princípio “rebus sic stantibus”, norteado pelos princípios da culpa e da adequação, não se apresentando com a rigidez que aparente.»

Também no que a tal concerne lê-se no Acórdão do STJ de 21.12.2006, proferido no âmbito do proc. n.º 06P2946:

«(…) no que se refere à suspensão da execução da pena, veio o recorrente aduzir a inconstitucionalidade material da interpretação que, em seu entender, a decisão sindicada perfilhou na conjugação dos arts. 14.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias e 50.º, n.º 1, do Código Penal, isto é, no que concerne à imposição da comprovação do pagamento da prestação tributária e respectivos acréscimos legais como condição da referida suspensão.

Para tanto estribou-se na violação dos princípios da proporcionalidade, adequação, justiça e igualdade.

Antecipando a conclusão, adianta-se, desde já, que falece de todo razão ao recorrente.

 (…)

Especificamente quanto às infracções tributárias, não procede a alegação de que o art. 14.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, consagrou ordinariamente um privilégio indevido para o Estado, enquanto credor lesado, tendo em atenção que se está perante entidade vocacionada à realização do fim público e à prossecução de interesses de índole financeira, onde avulta o da justa repartição do rendimento. Aliás, é a natureza fundamental dos interesses em causa, constitucionalmente reconhecidos, que legitima a adopção pela lei desta discriminação positiva do Estado, corporizada na vinculação da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da prestação faltosa, acréscimos legais e benefícios obtidos.

Não é por demais realçar que o conteúdo jurídico-constitucional do princípio da igualdade, enquanto limite objectivo da discricionariedade legislativa, não impede que a lei possa criar distinções de tratamento, conquanto objectiva, material e razoavelmente alicerçadas.

Este Supremo Tribunal já teve ocasião de explanar que, nesta decorrência, pode afirmar-se que o ius puniendi de que o Estado é detentor na luta contra os devedores de impostos quando aos credores particulares do Estado lhes é denegado tutela idêntica, enquanto figura incumpridora ou em mora nas suas obrigações, não assume qualquer tratamento chocante, forma diferenciada ou desproporcionada, em colisão com os princípios da menor compressão possível dos direitos fundamentais e da igualdade dos cidadãos, respectivamente plasmados nos arts. 18.º, n.º 2 e 13.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa (Acórdãos de 22-01-03, Proc. n.º 972/02 e de 31-05-06, Proc. n.º 1294/06, ambos da 3.ª Secção).

A despeito do que à primeira vista possa parecer e pese embora aquele seja um normativo restringente de direitos, por comparação aos direitos dos autores de outros ilícitos penais, não só essa restrição está constitucionalmente prevista – n.º 2 do art. 18º e sem prejuízo do princípio da universalidade, contemplado pelo art. 12.º, n.º 1 -, como é reclamada pela premência dos interesses e direitos, com assento constitucional, que o Estado deve promover.

Neste contexto, a exigência do pagamento da prestação tributária como condição da suspensão da execução da pena de prisão, à margem da avaliação do quadro económico do responsável tributário, nada tem de desmedida, mostrando-se inteiramente justificada pelo interesse preponderantemente público que acautela e pela necessidade de eficácia do sistema penal tributário.

Ora, sendo o art.º 14.º, n.º 1, uma incriminação de natureza especial, afasta neste particular – “sujeição de deveres” – o plasmado no ordenamento penal geral, i. e., a norma substantiva traduzida pelo art. 51º, n.º 1.

E porque assim é, em sede de ilícitos fiscais esta aplicação automática da sujeição da pena de prisão cuja execução é suspensa, ao pagamento do valor global em dívida, ainda que fora do condicionalismo gizado pelo mencionado art. 51.º, n.ºs 1, al. a) e 2, não contende com os princípios da necessidade das sanções penais, igualdade e proporcionalidade, pelo que não é inconstitucional o dispositivo do art. 14.º, n.º 1, quando interpretado desse modo (…).

Retira-se do princípio da proibição de arbítrio que a desigualdade jurídica de tratamento só viola o princípio da igualdade quando atinge o nível do arbitrário…

(…), a lei não obriga a que, de antemão se faça um juízo definitivo sobre a capacidade do arguido em solver a condição: ainda que não tenha os meios aquando da prolação da decisão, nada garante que no período temporal de duração da suspensão da execução da pena de prisão, o mesmo não adquira bens para o efeito.

Acresce que o Tribunal só poderá revogar a suspensão da execução, por incumprimento da condição fixada, se este for culposo, se não forem viáveis as soluções alternativas enumeradas pelo art. 55º do Código Penal e se forem infringidos, de forma grosseira ou repetida, os deveres impostos, tal como sublinha o art. 56º, n.º 1, al. a), desse diploma legal, aplicável ex vi art. 3º, al. a), do Regime Geral das Infracções Tributárias.

Em suma, salvaguardado que está que os efeitos inerentes ao incumprimento das condições da suspensão não são automáticos, antes dependem da verificação culposa do mesmo, apurada em nova intervenção judicial, não fica constitucionalmente comprometida, na perspectiva do princípio da culpa, a legitimidade do preceito restritivo do art. 14.º, n.º 1 (…).

E é por causa desta salvaguarda, que a obrigatoriedade da imposição independentemente da verificação da razoabilidade da exigência do pagamento total não envolve ofensa do princípio da culpa, que enforma o sistema processual penal, como exigência incontornável do respeito pela dignidade da pessoa humana, nem tão – pouco gera inconstitucionalidade, por afronta dos arts. 1.º e 27.º, da Constituição da República Portuguesa (…)

Paralelamente, a circunstância deste condicionalismo ser obrigatório não atinge o limite do excesso, interditado pelo art.º 18.º, n.º 2, situando-se ainda no âmbito da ampla margem de liberdade das directrizes de política legislativa criminal, tendo em vista os valores e princípios fundamentais, com relevo constitucional, em matéria tributária, que se procuram salvaguardar com tal imposição (Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 15 e 23 a 26; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo I, Coimbra Editora, 2001, p. 43/44; Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Edição, p. 197».

Da mesma forma ficou a constar do Acórdão do STJ de 09-05-2012, proferido no âmbito do proc. n.º 12705.8IDBJA.S1:

«I. A suspensão da execução da pena de prisão imposta nos crimes tributários obedece a regras específicas decorrentes do art. 14.º do RGIT, sendo aquela sempre condicionada ao pagamento das prestações tributárias e legais acréscimos, do montante dos benefícios indevidamente recebidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento das quantias até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa – n.º 1, mas o preceito não afasta a aplicação complementar do art. 56.º do CP, regulamentando as condições em que a revogação da suspensão pode ter lugar, em última ratio, por via do incumprimento grosseiro e culposo, das obrigações impostas ao condenado.

II. Uma particularidade deste regime está, ainda, em que na falta de pagamento, o tribunal pode exigir garantias de pagamento, prorrogar o período de suspensão até metade do inicialmente previsto, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível ou revogar a suspensão da execução da pena – n.º 2, als. a), b), e c). E por força desse regime especial, que não é derrogado pela lei geral, o período de duração da pena suspensa não tem que coincidir com a duração da pena.

(…)».

Em suma, do excurso que se vem de fazer – assumindo-se o transtorno causado pelas inevitáveis repetições – não ocorrem razões válidas para contrariar a corrente jurisprudencial que se veio sedimentando quer ao nível do Tribunal Constitucional, quer do Supremo Tribunal de Justiça, tanto mais que, de relevante, nada capaz de a infirmar traz o recorrente.

Com efeito, mesmo na vertente de uma suposta invasão da soberania dos tribunais, da função jurisdicional, da sua independência, apenas, com subordinação à lei – subordinação, essa, que no caso encontrou «eco» -, nem sequer se alcança o sentido da «alegação», certo, porém, que excluída a violação v.g. dos princípios constitucionais da adequação, da proporcionalidade, da igualdade e da culpa, incontestada que se apresenta «uma ampla margem de liberdade por parte do legislador ordinário no exercício da sua actividade de criação e conformação dos tipos legais de crime», não vindo a ser reconhecido, pelos motivos explanados na resenha jurisprudencial a que se procedeu, no regime do n.º 1 do artigo 14.º do RGIT a consagração de «discriminações arbitrárias, irrazoáveis, isto é distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante», não ressuma qualquer violação das invocadas normas constitucionais.

Falece, pois, também aqui razão ao recorrente.

c.

Entretanto, o Supremo Tribunal de Justiça no AUF n.º 8/2012, publicado no DR, I Série, de 24.10.2012 fixou a seguinte jurisprudência: «No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p.p. no art. 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do art. 50.º, n.º 1, do CP, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o art. 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia».

Foi com fundamento na ausência de tal juízo de prognose na primitiva decisão, sobre a qual incidiu recurso para este Tribunal da Relação, que, por acórdão de 27.02.2013, veio a ser declarada a nulidade da sentença.

Remetidos os autos à primeira instância, com relevância para a questão que ora nos ocupa, ficou a constar da sentença recorrida:

«Estatui o artigo 14.º do RGIT que (…).

Por via do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º8/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série — N.º 206 — 24 de outubro de 2012, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça que:

(…).

Conforme resulta claro da análise do mencionado Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, para além de cumprir ao julgador efectuar o juízo de prognose favorável, quanto à suspensão de execução da pena, impõe-se ainda que se efectue um juízo de prognose sobre a razoabilidade da condição a que a suspensão fica sujeita, estando em causa o critério de razoabilidade por que tem de pautar-se esta forma de reparação penal forçada.

Mais se acrescenta, no aludido Acórdão, que a razoabilidade da condição tem de ser necessariamente avaliada e ponderada antes da declaração da imposição, já que, considerando os montantes em dívida, a duração do prazo de pagamento e a capacidade de resposta do agente, muitas vezes será fácil antecipar o desfecho da imposição de uma “missão impossível”.

Assim, conforme aí se refere, «ao decretar-se a imposição da condição deve ter-se uma imagem global do condicionamento, da real dimensão económica do dever imposto», sendo que «na avaliação da opção pela suspensão não podem ser olvidados os condicionalismos inerentes ao agente e se é certo que a impossibilidade de cumprimento não integra os elementos constitutivos do tipo, tal avaliação tem de estar presente no juízo de opção pela substituição».

Na impressiva síntese conclusiva do Acórdão de Uniformização em referência:

 «A margem de liberdade do julgador situa -se no justo ponto e momento em que pode optar pela substituição, mas para o fazer tem de estar de posse do pleno das informações possíveis, de modo a bem fundamentar a opção.

Feita a escolha, a adopção da medida de substituição, cessa a liberdade de punição, porque imposta é a subordinação à condição; o juiz fica subordinado, amarrado, ao incontornável passo seguinte, que é a impor a subordinação ao pagamento.

Mas porque assim é, será nesse primeiro momento, em que é possível o exercício de liberdade, que poderá avaliar do sucesso da medida e mesmo cogitar sobre o regresso ao estádio anterior e pensar sobre a escolha de pena que temporariamente, como mero exercício de raciocínio, não foi tida então em consideração e tomada como boa solução.

Por último, o julgador sempre terá uma palavra a dizer sobre o prazo de pagamento, para mais no âmbito de uma norma especial.».

Ora, no caso em apreço, no que concerne à situação do arguido B...., resulta apurado que:

- o arguido está nos EUA desde Janeiro de 2013, sendo divorciado e tendo a seu cargo, consigo residindo, um filho menor, de 8 anos de idade, sendo que a progenitora do menor não aufere qualquer rendimento, sendo antropóloga, encontrando-se a terminar a tese de doutoramento e vivendo da ajuda dos seus progenitores. O arguido é licenciado em Engenharia Electrotécnica;

- o arguido e o filho menor encontram-se a residir em casa de uma irmã do arguido, junto da família desta, contribuindo o arguido para as despesas do agregado, sem para o efeito entregar qualquer quantia fixa. O arguido trabalha para uma empresa de construção civil, prestando apoio às actividades de tal empresa, designadamente conduzindo viaturas e fazendo entregas de materiais e de tal trabalho auferindo uma média mensal de cerca de 800 dólares; sendo que, actualmente, mercê das condições climatéricas, não tem trabalhado. O filho do arguido encontra-se a frequentar a escola pública, nos EUA, com as despesas escolares do menor tendo despendido, no início do ano lectivo, quantia entre 100,00 a 200,00 dólares e despendendo com a alimentação na escola a quantia mensal de cerca de 100,00 dólares. Nem o arguido nem o menor têm seguro de saúde;

- o arguido encontra-se à procura de nova ocupação profissional nos EUA, compatível com a sua formação e experiência profissional e encontra-se a efectuar diligências por forma aferir da possibilidade de, pelas autoridades americanas, lhe ser pago subsídio, designadamente por ter o menor a seu cargo;

- da base de dados da Segurança Social consta que o arguido tem como entidade patronal a empresa “ C..., Lda” sendo a última remuneração de Novembro de 2013, no valor de 485,00 euros. Da base de dados do Registo Automóvel não consta que o arguido seja proprietário de qualquer veículo;

- o arguido é proprietário de um prédio urbano, casa de habitação composta de cave, rés-do-chão, 1.º andar e sótão, com a superfície coberta de 124 m2, dependência de 86 m2 e logradouro de 1690 m2, sito em (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de Seia sob o número (...)/19921215;

- sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Seia sob o número (...)/19921215, encontram-se registadas: - pela AP. 13 de 2000/01/11, hipoteca voluntária, com garantia de empréstimo do capital de 12.500.000,00, com o montante máximo assegurado de 16.236.250,00 escudos, a favor de “Banco I..., S.A.”; - pela AP. 9 de 2002/12/03, hipoteca voluntária, com garantia de empréstimo do capital de 22.445,91 euros, com o montante máximo assegurado de 29.443,30 euros, a favor de “Banco I..., S.A.”; - pela AP. 8 de 2006/01/31, hipoteca voluntária, com garantia de empréstimo do capital de 130.000,00 euros, com o montante máximo assegurado de 164.879,00 euros, a favor de “Banco I..., S.A.”; - pela AP. 9 de 2007/06/08, hipoteca voluntária, com garantia de responsabilidades assumidas ou a assumir pela sociedade “ A....”, até ao limite de 150.000,00 euros, com o montante máximo assegurado de 226.312,50 euros, a favor de “Banco J..., S.A.”; - pela AP. 1520 de 2011/06/24, penhora, pela quantia exequenda de 8.313,53 euros, a favor de D..., Sociedade Unipessoal, Lda, no âmbito do Processo n.º 79/11.0TBSCD, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Comba Dão; - pela AP. 2451 de 2011/07/29, penhora, pela quantia exequenda de 3.198,00 euros, a favor de L..., Lda, no âmbito do Processo n.º 584/11.8TBSCD, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Comba Dão;

- o arguido tem dívidas junto de instituições bancárias que importam, mensalmente, num montante global de 800,00 a 1.000,00 euros, tendo efectuado vários acordos de pagamentos prestacionais que cumpre de acordo com as suas possibilidades;

- o imóvel de que o arguido é proprietário foi avaliado há cerca de 3 anos atrás, em cerca de 320.000,00 euros, sendo as dívidas do arguido para com as instituições bancárias, actualmente, de cerca de 200.000,00 euros.

Com vista a aferir da razoabilidade de imposição da condição de pagamento das quantias em dívida (do mês de Fevereiro de 2010, o valor de € 13.888,64; do mês de Maio de 2010, o valor de € 7.565,14; do mês de Junho de 2010, o valor de € 63.048,11 e acréscimos legais), para além do valor de tais quantias, importa ponderar a actual situação profissional e económica do arguido e sua previsível situação futura – atentando nos seus rendimentos, encargos, formação profissional e património; tendo ainda em mente que o prazo de concessão para pagamento poderá ir até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação.

Com efeito, também aqui seguindo de perto o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência supra aludido, também nós entendemos que «uma coisa é o prazo de suspensão, outra é o prazo de concessão para pagamento, pois como diz o artigo 51.º, n.º1, alínea a), o pagamento, ou a prestação de garantia, deverá ter lugar “dentro de certo prazo”.

Nestes casos, em obediência a um critério de razoabilidade por que tem de pautar-se esta forma de reparação penal forçada, alguns acórdãos deste STJ têm optado pela solução de não correspondência de prazos.

Como se extrai do Acórdão de 9 de Janeiro de 2008, processo n.º 4632/07 -3.ª, «entende -se que nestes casos não é fazer corresponder o período de suspensão ao da medida da pena substituída, como o impõe o actual artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal, por se estar face a um caso especial, em que a condição é imposta, quando nos termos gerais se trata de uma faculdade, sendo que a aplicação do novo regime, no concreto, redundaria em agravamento da situação do arguido (no caso com a manutenção da pena de prisão de 18 meses, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos, sob condição de, no prazo de 5 anos, comprovar nos autos o pagamento do devido e acréscimos legais); de 10 de Julho de 2008, processo n.º 103/06 -5.ª, em que se considera que o tempo de duração da medida não pode deixar de ter em consideração o valor das importâncias a pagar ao Estado. Mais se pondera em tal acórdão: «Tendo o legislador português, ao criminalizar as infracções fiscais, optado por uma concepção de carácter patrimonialista do bem jurídico tutelado, centrada na obtenção das receitas tributárias, procurando a administração fiscal a outrance obter o pagamento dos impostos em dívida, compreende-se que o regime da suspensão da execução da pena por infracções fiscais se afaste, neste ponto, do novo regime geral do Código Penal, continuando o juiz, independentemente da duração da pena, a ter a faculdade de fixar, para a suspensão, um prazo que, na realidade, permita ao condenado proceder ao pagamento das prestações tributárias em falta, existindo, nesta matéria, uma nova especialidade no RGIT.» E no mesmo sentido, do mesmo relator, o Acórdão de 18 de Dezembro de 2008, processo n.º 20/07 — 5.ª».

Ora, não sendo a actual situação económica do arguido, considerando a liquidez dos seus rendimentos, particularmente desafogada, dos dados apurados podemos, desde logo, concluir que não se trata igualmente de situação de precariedade extrema.

Com efeito, o arguido não só tem uma ocupação profissional remunerada – pela qual aufere o salário mensal de cerca de 800,00 dólares – como se encontra a procurar nova ocupação, mais compatível com a sua formação académica e experiência profissional, pela qual, naturalmente, não se perspectiva que venha a auferir remuneração inferior à que hoje aufere, trabalhando na construção civil, executando tarefas básicas como transporte de materiais; sendo que pese embora tenha um filho menor a seu cargo, conta com o apoio do agregado familiar da irmã, que lhe permite, desde logo, ter uma residência, sem necessidade de suportar, exclusivamente por sua conta, as despesas a tal inerentes.

Acresce que, não obstante os ónus que existem sobre o imóvel do qual o arguido é proprietário, foi o próprio quem esclareceu o tribunal de que, actualmente, as dívidas que tem, onerando tal imóvel, importarão em cerca de 200.000,00 euros, quando o imóvel em causa terá sido avaliado, há cerca de 3 anos, em cerca de 330.000,00 euros.

No âmbito do juízo de prognose que nos cumpre efectuar, não podemos deixar de considerar, pois, que ainda que saldando todas as dívidas que oneram o aludido imóvel, alienando este o arguido disporia ainda de uma quantia próxima dos 100.000,00 euros, a qual, permitiria pagar parte significativa das quantias em dívida para com as Finanças.

Considerando o valor das prestações tributárias em falta mencionados nos factos provados, estaremos a falar, sem contabilizar os montantes respeitantes aos legais acréscimos, num valor global de 84.501,89 euros, quantia que, subdividida pelo máximo de cinco anos subsequentes à condenação, implicaria um pagamento anual de 16.900,378 euros (acrescido dos legais acréscimos às prestações tributárias em dívida).

Ora, considerando o valor do imóvel do qual o arguido é proprietário e os rendimentos mensais por este auferidos – e que, em termos de juízo de prognose, à luz das regras de experiência, considerando a formação académica do arguido, se poderá prever que aumentarão – afigura-se-nos previsível que o arguido terá, ao longo do aludido período de cinco anos, solvabilidade económica para efectuar o pagamento das quantias em dívida, efectuando-se pois um juízo de prognose favorável sobre a razoabilidade da condição a que a suspensão fica sujeita.

Por tudo o exposto, e de forma a potenciar uma alteração de comportamentos por parte do arguido, confrontando-o com as suas acções e consciencializando-o para as suas consequências, tudo em ordem à prevenção da reiteração na prática de crimes, decide-se suspender a pena de prisão de 2 anos e 8 meses, pelo prazo de cinco anos, com a condição legal de proceder ao pagamento integral das quantias devidas à Administração Tributária, até ao final do prazo de cinco anos subsequentes à condenação e com a obrigação adicional, a título de regra de conduta, de documentar a cada seis meses nos autos pagamentos parciais àquela Administração, por conta do montante global a liquidar (cfr. artigos 50.º e 52.º, ambos do Código Penal e artigo 14.º do RGIT)».

Apreciação, esta, que num juízo de prognose sobre a probabilidade de o arguido vir a satisfazer a condição – legalmente imposta – a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena de prisão, atendendo à concreta situação económica presente e futura do recorrente, se nos afigura razoável, já por via da sua formação académica e profissão, circunstâncias que criam uma séria expectativa de progressão no respectivo estatuto remuneratório através de um esperado futuro desempenho profissional compatível com tal «perfil», já porque – ao contrário do que preconiza – o juízo de prognose positivo não se confina, naturalmente, a uma questão de liquidez, estendendo-se aos demais bens que integram o respectivo património, tais como o prédio em referência, não constituindo, por outro lado, obstáculo sério à consideração, para o efeito, de tal bem uma suposta dificuldade na sua alienação, designadamente por, por motivos profissionais, se encontrar, a residir no estrangeiro.

Acresce que parece ignorar o recorrente a circunstância de a condição [a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena], por imposição legal, imposta respeita à pena – não sendo decorrência de qualquer condenação no âmbito de um enxerto cível - carecendo, também por isso, de fundamento as asserções vertidas nos pontos 10., 11., 12. e 16. das conclusões, retendo-se, contudo, o reconhecimento pelo próprio de ter património capaz de responder ao pagamento de tal quantia [cf. ponto 10.], configurando-o - erradamente, porém - como um problema de natureza cível, pretendendo, assim, endossar a responsabilidade «pelo pagamento do montante em causa» à «massa insolvente», quando, obviamente, a questão de cível nada tem.

Significa, pois, e sem desprezar os encargos, designadamente com o filho, que se encontra razoabilidade na ponderação efectuada quanto ao juízo de prognose, com recurso às condições económicas presentes e futuras fundadamente expectáveis, sem que se mostre comprometida a satisfação do mínimo necessário à subsistência do arguido e seu agregado, sendo, consequentemente, de refutar a invocada violação do n.º 2 do artigo 51.º do Código Penal.

Quanto à falta de fundamento de uma eventual prisão por «fracos recursos económicos», por uma questão de economia da decisão remete-se para o que exarado ficou por ocasião da resenha jurisprudencial, concretamente quando contraria a ideia de qualquer «prisão por dívidas», salientando-se a circunstância de a revogação da suspensão da execução da pena não dispensar um incumprimento culposo – [cf. artigo 55.º e ss. do Código Penal].

Por fim não se vê, no caso concreto, qualquer circunstância capaz de suportar a alegada violação dos artigos 70.º e 40.º do Código Penal, já porque, atento o crime em questão, excluída se mostra a previsão, em alternativa, de uma pena não detentiva da liberdade, já porque a sujeição da suspensão da execução da pena à condição imposta pelo n.º 1 do artigo 14.º do RGIT, tal como vem considerando o Tribunal Constitucional [cf. a resenha jurisprudencial supra], não contraria os princípios da adequação, proporcionalidade e culpa inerentes às penas.

d.

Pretende ver o recorrente na dilatação do período de suspensão da execução da pena violação da proibição da  reformatio in pejus.

Com efeito, com consagração no artigo 409.º do CPP, a proibição do «princípio» em questão, maugrado a letra do preceito não é privativo do tribunal ad quem, antes extensivo ao tribunal ad quo, como vem entendendo a doutrina e a jurisprudência por forma a obviar à reformatio, denominada indirecta, impedindo, assim que, em caso de recurso interposto tão somente pelo arguido ou pela acusação no exclusivo interesse do mesmo, decidindo o tribunal de recurso no sentido do reenvio ou da anulação do julgamento, venha o tribunal do novo julgamento ou do reenvio a deter poder que estava vedado ao tribunal de recurso, o que significa que, tal como refere Jorge Dias Duarte « …a actual compreensão do processo penal como um processo equitativo, em que está constitucionalmente consagrada a estrutura acusatória do processo, com pleno relevo do princípio da acusação, implica o entendimento da proibição da reformatio não, apenas, como um princípio dos recursos, mas como um princípio de todo o processo» - [cfr. “Proibição de Reformatio in pejus. Consequências processuais”, Revista Maia Jurídica, ano I, n.º 2, Julho – Dezembro de 2005, págs. 205 e ss.].

No mesmo sentido se pronuncia José Manuel Damião da Cunha quando, a propósito da reformatio in pejus, adianta tratar-se de «um princípio do processo, na ligação (na relação jurídica processual) que intercede entre MP e arguido» - [cf. “O Caso Julgado Parcial. Questão da culpabilidade e questão da sanção num processo de estrutura acusatória”, Publicações Universidade Católica, 2002, pág. 659].

Também o Tribunal Constitucional no seu acórdão 236/2007 [DR. II Série, de 24.05.2007] julgou inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 409.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de não proibir o agravamento da condenação em novo julgamento a que se procedeu por o primeiro ter sido anulado na sequência de recurso unicamente interposto pelo arguido, julgamento retomado no acórdão do mesmo Tribunal n.º 502/2007.

Da mesma forma, há muito, vem decidindo o Supremo Tribunal de Justiça, como, a título exemplificativo, decorre dos acórdãos de 08.07.2003 [proc. n.º 03P2616], de 09.12.2004 [proc. n.º 4535/04 – 5.ª], de 17.02.2005 [proc. n.º 04P4324], de 17.02.2005 [proc. n.º 565/ - 5.ª], de 02.03.2006 [proc. n.º 550/06 – 5.ª], todos no sentido da proibição da reformatio «indirecta».

O que se questiona é se a dilação do período de suspensão da pena, inicialmente fixado em dois anos e oito meses, para cinco anos, se traduz, no caso concreto, num agravamento da situação do «condenado», resultando em seu prejuízo?

Respeitando, embora, opinião contrária, na nossa perspectiva a resposta terá de ser negativa.

E isto porque, na situação em apreço, não é possível segmentar a condição a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena – pagamento até ao final do prazo de cinco anos subsequentes à condenação da prestação tributária e acréscimos legais – do período de suspensão.

Tendo nós por certo que o período de suspensão não pode situar-se aquém do prazo fixado para o cumprimento da condição a que se encontra subordinada – o que a não ser assim poderia conduzir a que a pena fosse declarada extinta sem que se mostrasse cumprida a condição, cujo prazo ainda não se havia esgotado -, resultando claro do juízo de prognose sobre a condição económica presente e futura do arguido haver o tribunal a quo entendido ser razoável exigir o cumprimento da condição num prazo de cinco anos e não já no de dois anos e oito meses, como inicialmente decidido – naturalmente por considerar, sopesada a situação económica presente e futura do arguido, mostrar-se irrealista impor-lhe o cumprimento num prazo mais curto – não podemos deixar de sufragar o juízo levado a efeito pelo julgador, que no contexto da decisão redunda em benefício do «condenado».

É que parece olvidar o recorrente que a decisão no que à pena concerne resulta de um «complexo» em que as várias «componentes» se encontram imbrincadas umas nas outras. Com efeito, não estamos perante uma pena de prisão suspensa na sua execução sem sujeição a condição, caso em que a dilatação subsequente [na nova sentença] do período de suspensão traduziria, sem dúvida, violação da reformatio in pejus.

Curiosamente, no caso concreto, atenta a moldura penal abstracta correspondente ao crime [prisão de 1 a 5 anos] e a pena concretamente aplicada [2 anos e oito meses de prisão], o juízo de prognose «imposto» pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2012 em nada mais poderia influir, afastada que estava qualquer possibilidade de aplicação de uma outra pena de substituição, que não precisamente na reponderação do prazo de cumprimento da obrigação [cujo carácter obrigatório, como condição da suspensão, nunca ali vem colocado em crise] e consequentemente do período da suspensão, porquanto – já o afirmámos – pela própria natureza das coisas nunca este poderia – poderá - ser inferior àquele outro.

Foi precisamente esse juízo que o julgador levou a efeito, a nosso ver, de forma realista, criando, através da dilatação do prazo para o pagamento e, em consequência, do período de suspensão, um maior lastro para que o arguido possa vir a satisfazer, beneficiando de um período de tempo mais consentâneo com a sua posição económica presente e expectável futura, a condição imposta.

É, pois, de manter, também, neste particular a decisão recorrida, na qual não se vê afronta ao princípio da proibição da reformatio in pejus.

III. Decisão

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em negar provimento ao recurso.

Condena-se o recorrente em 4 [quatro] Ucs de taxa de justiça.

Coimbra, 29 de Outubro de 2014

(Maria José Nogueira - relatora)

(Isabel Valongo - adjunta)