Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
29/21.5T8LSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: EXCLUSÃO DO DIREITO DE PREFERÊNCIA
TERRENO COM ARTIGO MATRICIAL PRÓPRIO
EMPARCELAMENTO
INEXIGÊNCIA DE EXPLORAÇÃO AGRÍCOLA DO PRÉDIO GERADOR DO DIREITO DE PREFERÊNCIA
Data do Acordão: 04/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 204.º, 2; 416.º;417.º; 418.º; 1377.º; 1380.º, 1; 1381.º E 1410.º, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 5.º, 1 E 2, DO CIMI
Sumário: I - Um terreno que tem artigo matricial próprio não é qualificável como «logradouro» de outro prédio ou como «parte componente de um prédio urbano» para efeitos de preenchimento da exclusão do direito de preferência previsto no artigo 1381, al. a), do Código Civil.

II - Embora a razão de ser do regime legal estabelecido no artigo 1380.º, n.º 1, do Código Civil, seja a promoção do emparcelamento, visando-se com isso uma exploração agrícola rentável, esta norma não exige como requisito do nascimento do direito de preferência que o prédio gerador esse direito esteja a ser explorado.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra,

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Juiz relator…………....Alberto Augusto Vicente Ruço

1.º Juiz adjunto………José Vítor dos Santos Amaral

2.º Juiz adjunto……….Luís Filipe Dias Cravo


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(…)

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RECORRENTE …………………..U... Unipessoal, Lda.

RECORRIDOS……………………AA, BB e CC, na qualidade de únicos e universais herdeiros da Herança aberta por óbito de DD.

Todos melhor identificados nos autos.


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I. Relatório

a) O presente recurso vem interposto pela Ré e visa a sentença proferida nos autos que a condenou, a abrir mão de um prédio a favor dos Autores com fundamento num direito de preferência exercido por estes últimos.

 Efetivamente, após a audiência de julgamento, foi proferida sentença com este dispositivo:

«Por todo o exposto, julgo a presente acção totalmente procedente e, em consequência:

- Condeno os Réus a reconhecerem aos Autores, como herdeiros únicos da herança acima referida, o direito a preferir à 2ª Ré na compra do prédio rústico melhor identificado em 1. dos factos provados.

- Determino a substituição, no acto de compra e venda de dia 27.07.2020, acima melhor identificado, da titularidade da 2ª Ré, como compradora, pela Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de DD, de que são únicos herdeiros os aqui autores, assim se considerando para todos os efeitos legais transmitido o direito de propriedade sobre o prédio identificado em 1. dos factos provados.

- Ordeno o cancelamento de todos e quaisquer registos que a 2ª Ré, como adquirente, porventura haja feito a seu favor em consequência da compra do referido prédio, na Conservatória do Registo Predial respectiva.

- Condeno a 2ª Ré a abrir mão do identificado prédio rústico e a entregá-lo aos Autores, livre e desimpedido.

Custas a cargo dos réus (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

Valor da acção: o indicado pelas partes.»

b) É desta decisão que vem interposto recurso por parte da Ré, cujas conclusões são as seguintes:

« (…) c) Com o presente recurso visa-se a impugnação da sentença recorrida quanto a duas questões centrais: i) impugnação da matéria de facto fixada na sentença, por erro na apreciação da prova documental e testemunhal produzida, com recurso à prova gravada; ii) apurar se os autores têm direito de preferência quanto ao prédio ajuizado.

Assim:

A) Da impugnação da matéria de facto: erro na apreciação da prova:

d) No presente item pretendemos demonstrar que o Tribunal a quo cometeu Erro na apreciação da prova, por não ter ponderado, como devia em nosso entender, os depoimentos de parte dos Autores CC (…); AA, (…) e BB, (…); o depoimento das testemunhas EE, (…); FF, (…); GG, (…) e HH, (…), e confrontando os mesmos com a documentação junta aos autos.

Vejamos:

e) o seguinte facto deve ser dado como provado:

“a) Os Autores são donos e legítimos proprietários dos seguintes prédios:

iii. prédio rústico inscrito na matriz predial respetiva sob o art. ...50 e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o nº ...66;

iv. prédio rústico inscrito na matriz predial respetiva sob o art. ...51 e não descrito na competente Conservatória do Registo Predial.”

f) Os Autores, em 12.07.2021, esclareceram, nos presentes autos, que são também donos e legítimos proprietários de mais dois prédios rústicos, contíguos ao urbano, a saber: i) o prédio rústico inscrito na matriz predial respetiva sob o art. ...50 e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o nº ...66 (cfr doc. 3 e 4); ii) o prédio rústico inscrito na matriz predial respetiva sob o art. ...51 e não descrito na competente Conservatória do Registo Predial (cfr. doc. 5).

g) Pelo que, por ser mostrar relevante para a boa decisão da causa, deve tal matéria ser dada como provada.

Por outro lado:

h) Os seguintes factos devem ser dado como provados:

“b) Os prédios identificados nos pontos 2., 3. a) supra e 10 são todos contíguos, confrontando uns com os outros, não existindo qualquer parcela de terreno entre eles;

c) Os Autores sempre consideraram e utilizaram os prédios melhor identificados no ponto 2., a) supra e 10 como um único prédio, constituído por uma parte urbana, correspondente ao prédio identificado no ponto 10. e por uma parte rústica, composta pelos prédios identificados nos pontos 2. e a) supra, que os Autores utilizam como casa de férias”.

i) Como resulta do documento junto em sede de audiência final e dos depoimentos de parte dos Autores, o prédio identificado no ponto 2. dos factos provados e os prédios devidamente identificados no requerimento dos Autores de 12.07.2021 são todos contíguos, confrontando uns com os outros, e tais prédios sempre foram considerados e utilizados pelos mesmos, no seu conjunto, como um só prédio, como casa de férias, onde os Autores apenas se deslocam algumas semanas por ano.

j) Resulta, ainda, do depoimento de parte dos Autores (cfr. CC (…); AA (…); BB (…) do depoimento da testemunha EE (…)  e das fotografias captadas pelo Tribunal a quo aquando da inspecção ao local (designadamente as fotografias com os nºs 49 a 52, 63 a 66) que não existe  qualquer separação ou divisão física entre os prédios pertencentes aos autores e que no seu conjunto são considerados e utilizados pelos Autores como um único prédio ou unidade predial.

k) Pelo que, por ser mostrar relevante para a boa decisão da causa, deve tal matéria ser dada como provada.

Por outro lado ainda:

l) O seguinte facto deve ser dado como provado:

“d) Os Autores não dão qualquer utilização agrícola aos prédios identificados nos pontos 2., a) supra e 10 que constituem o prédio identificado no ponto c) supra.”

m) Resulta dos depoimentos de parte dos Autores (cfr. CC (…); AA (…); BB (…) e das testemunhas (cfr. FF (…); HH (…); GG (…) que os Autores não dão qualquer utilização agrícola aos terrenos aqui em causa há mais de 20 anos e que são considerados e utilizados pelos Autores como um só prédio, ou seja, como casa de férias e logradouro.

n) Sendo que, o facto de os Autores terem plantado/semeado umas couves para o Natal apenas após a instauração da presente acção é bem demonstrativo de que os mesmos não utilizam, nem utilizavam o prédio para fins agrícolas, nem pode ser confundido ou considerado, nos termos e para os efeitos da aplicação do art. 1380º do CC, como dar utilização agrícola ou sequer ter uma exploração agrícola.

o) Acresce que, das declarações de parte de AA (::J e da testemunha EE (…) resulta de forma clara que aquela apenas pretende “evitar má vizinhança” e que articular-se-ia com a testemunha Senhor EE para impedir a aquisição do mesmo por parte da ora recorrente, e que aquele (testemunha) pretendia aumentar o seu logradouro.

p) Pelo que, por ser mostrar relevante para a boa decisão da causa, deve tal matéria ser dada como provada.

Por outro lado ainda:

q) Deve ser dado como não provado o facto vertido no ponto 9 dos factos provados da sentença recorrida.

r) O prédio ajuizado está inserido na área classificada como solo urbano e qualificada como área urbana de baixa densidade 2 (Aldeia da Serra), situando-se dentro do aglomerado urbano da localidade. Pelo que, o terreno identificado no ponto 2. dos factos provados terá necessariamente aptidão construtiva.

s) Resulta dos depoimentos de parte dos Autores CC (…); AA (…); BB (…) dos depoimentos das testemunhas FF (…); HH (…) e GG (…) que os Autores não dão qualquer utilização agrícola aos terrenos de que são proprietários na aldeia do ... há mais de 20 anos.

t) Assim, deve ser alterada a resposta dada à matéria de facto vertida no ponto 9. dos factos provados da sentença recorrida, que deverá ser dada como não provado e eliminada da factualidade dada como provada.

Por outro lado:

u) deve ser dada como provada a matéria de facto vertida no ponto A. dos factos dados como não provados na sentença recorrida.

v) Como é visível da observação da fotografia aérea junta como doc. 5 da P.I., para além do edificado ter área superior a 38m2, o mesmo não é apenas constituído por casa de recolha, mas também por eira, um telheiro e um tanque.

w) Dado que o prédio urbano tinha somente área coberta, tais edificações – eira, telheiro e tanque – terão de ter sido necessariamente edificados no prédio rústico identificado no ponto 2 dos factos provados. E se assim é, então, tem de se considerar, necessariamente, que o prédio rústico faz parte integrante do prédio urbano (cfr., a título de exemplo, os depoimentos de AA, (…); BB (…); EE (…); II (…).

x) Deve, igualmente, ser dada como provada a matéria de facto vertida no ponto B. dos factos dados como não provados na sentença recorrida, face aos depoimentos de CC (…); AA (…); BB (…); FF (…); HH (…); GG (…).

y) Assim, cometeu o Tribunal a quo erro na apreciação da prova.

z) Em face de tudo o exposto, não pode este Venerando Tribunal deixar de alterar a resposta dada à matéria de facto, nos seguintes termos:

- deve ser dada como provada a seguinte matéria:

- a) Os Autores são donos e legítimos proprietários dos seguintes prédios:

i) prédio rústico inscrito na matriz predial respetiva sob o art. ...50º e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o nº ...66;

ii) prédio rústico inscrito na matriz predial respetiva sob o art. ...51º e não descrito na competente Conservatória do Registo Predial.

- b) Os prédios identificados nos pontos 2., a) supra e 10 são todos contíguos, confrontando uns com os outros, não existindo qualquer parcela de terreno entre eles.

- c) Os Autores sempre consideraram e utilizaram os prédios melhor identificados no ponto 2., a) supra e 10 como um único prédio, constituído por uma parte urbana, correspondente ao prédio identificado no ponto 10. e por uma parte rústica, composta pelos prédios identificados nos pontos 2. e a) supra, que os Autores utilizam como casa de férias.

- d) Os Autores não dão qualquer utilização agrícola aos prédios identificados nos pontos 2., a) supra e 10 que constituem o prédio identificado no ponto c) supra.

- deve ser dada como não provada a factualidade vertida no ponto 9 dos factos dados como provados na sentença recorrida;

- deve ser dada como provada a matéria de facto vertida nos pontos A. e B. dos factos não provados na sentença recorrida, ou seja, deve ser dada como provada a seguinte matéria de facto:

- A. Sobre o terreno identificado em 2. foi implantado pelo menos parte do prédio urbano sito em ..., freguesia ..., Concelho ..., inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia sob o art.º ...98, pertencente à herança deixada por óbito do marido e pai dos autores, tendo tal terreno ficado a fazer parte componente do referido prédio urbano, constituindo o seu logradouro.

- B. Os autores não dão qualquer utilização agrícola ao prédio identificado em 2; com as legais consequências.

Por outro lado:

B) Do Direito aplicável:

aa) Face aos vícios que se vieram assacar à Sentença recorrida, no que respeita a matéria de facto e face às regras do ónus da prova, nos termos do artº 342º, nº 1, do CC, é manifesto que os Autores não lograram provar todos os requisitos de que depende o reconhecimento do direito legal de aquisição por eles invocado.

bb) Atento o artº 204º do CC e a jurisprudência uniforme dos nossos mais Altos Tribunais, face à prova produzida, não pode o prédio dos autores ser considerado prédio rústico.

cc) E o art. 1380º, nº 1, do CC vincula o exercício do direito de preferência à efetiva exploração dos prédios para fins agrícolas, não se bastando com o facto de serem prédios aptos para cultura (cfr, a título de exemplo, o Acórdão do STJ, de 28.02.2008 - Processo nº 08A075).

dd) Acresce que, não tendo os Autores alegado, nem provado que fazem uma efectiva actividade agrícola, não são os mesmos titulares do direito de preferência consagrado no artigo 1380º, nº 1, do Código Civil (neste mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 2021, proferido no Processo nº 892/18.7T8BJA.E1.S1).

ee) Ao ter decidido como decidiu violou a sentença recorrida, para além do mais, os art.ºs 204º, nº 2, 342º e 1380º, nº 1, do Código Civil.

ss) Pelo que, deve a sentença recorrida ser revogada e, em consequência, deve a acção ser julgada totalmente improcedente; o que tudo se requer seja declarado, com as legais consequências, assim se fazendo, com mui suprimento de V.s Exªs, JUSTIÇA!»

c) Os Autores contra-alegaram argumentando que a introdução de novos factos no processo não é processualmente admissível porque não foram alegados nos articulados e que o objeto do processo se restringe aos prédios dos artigos matriciais ...52 dos autores e ...53 dos Réus, devendo a impugnação da matéria de facto improceder.

Assim como a argumentação jurídica, porquanto se verificam os pressupostos do direito de preferência, sendo improcedente a alegação de que a falta de cultivo do prédio dos autores implique a improcedência da ação.

II. Objeto do recurso.

As questões que este recurso coloca são as seguintes:

1 -  O primeiro grupo de questões respeita à impugnação da matéria de facto.

(I) Os Réus pretendem que sejam acrescentados à matéria de facto provada os seguintes factos:

a) Os Autores são donos e legítimos proprietários dos seguintes prédios:

i) prédio rústico inscrito na matriz predial respetiva sob o art. ...50º e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o nº ...66;

ii) prédio rústico inscrito na matriz predial respetiva sob o art. ...51º e não descrito na competente Conservatória do Registo Predial.

b) Os prédios identificados nos pontos 2.,3. a) supra e 10 são todos contíguos, confrontando uns com os outros, não existindo qualquer parcela de terreno entre eles.

c) Os Autores sempre consideraram e utilizaram os prédios melhor identificados no ponto 2., a) supra e 10 como um único prédio, constituído por uma parte urbana, correspondente ao prédio identificado no ponto 10. e por uma parte rústica, composta pelos prédios identificados nos pontos 2. e a) supra, que os Autores utilizam como casa de férias.

d) Os Autores não dão qualquer utilização agrícola aos prédios identificados nos pontos 2., a) supra e 10 que constituem o prédio identificado no ponto c) supra.

(II) Os Autores pretendem ainda que o facto provado do n.º 9 com a redação «O prédio referido em 2. não tem aptidão construtiva e só pode ser usado, como sempre foi, para fins rústicos, constituído por terra de semeadura e de plantação de árvores de fruto, semeando-o, plantando-o, colhendo os frutos, limpando-o», passe para os factos não provados.

 (III) Por fim, os Réus pretendem que seja declarada provada a matéria de facto vertida nos pontos A. e B. dos factos não provados, ou seja:

«A. Sobre o terreno identificado em 2. foi implantado pelo menos parte do prédio urbano sito em ..., freguesia ..., Concelho ..., inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia sob o art.º ...98, pertencente à herança deixada por óbito do marido e pai dos autores, tendo tal terreno ficado a fazer parte componente do referido prédio urbano, constituindo o seu logradouro.»

«B. Os autores não dão qualquer utilização agrícola ao prédio identificado em 2; com as legais consequências»

2 – Em segundo lugar, coloca-se a questão de saber se os Autores não têm na sua esfera jurídica o direito de preferência que invocam porquanto o prédio do artigo matricial ...52 não é um prédio rústico, mas sim logradouro do urbano a que corresponde o artigo matricial ...98.

3 – Em terceiro lugar, cumpre verificar se os Autores não têm na sua esfera jurídica o direito de preferência que invocam porquanto os Autores não fazem efetiva atividade agrícola no prédio do artigo matricial ...52 (neste mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 2021, proferido no Processo nº 892/18.7T8BJA.E1.S1).

III. Fundamentação

a) Impugnação da matéria de facto

A Ré pretende a alteração da matéria de facto e invocam para o efeito os depoimentos dos autores CC, AA e BB e das testemunhas EE, FF, GG, JJ e HH, bem como as fotografias juntas aos autos e documentos aí existentes.

Vejamos então.

(I) A Ré pretende que sejam acrescentados à matéria de facto provada os seguintes factos:

a) Os Autores são donos e legítimos proprietários dos seguintes prédios:

i) prédio rústico inscrito na matriz predial respetiva sob o art. ...50º e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...66;

ii) prédio rústico inscrito na matriz predial respetiva sob o art. ...51º e não descrito na competente Conservatória do Registo Predial.

b) Os prédios identificados nos pontos 2.,3. a) supra e 10 são todos contíguos, confrontando uns com os outros, não existindo qualquer parcela de terreno entre eles.

c) Os Autores sempre consideraram e utilizaram os prédios melhor identificados no ponto 2., a) supra e 10 como um único prédio, constituído por uma parte urbana, correspondente ao prédio identificado no ponto 10. e por uma parte rústica, composta pelos prédios identificados nos pontos 2. e a) supra, que os Autores utilizam como casa de férias.

d) Os Autores não dão qualquer utilização agrícola aos prédios identificados nos pontos 2., a) supra e 10 que constituem o prédio identificado no ponto c) supra.

Passando à apreciação.

Muito embora não tenham sido alegados os factos relativos aos prédios dos artigos matriciais ...50 e ...51 e à circunstância de serem contíguos, admite-se a sua adição aos factos provados porque isso é permitido pelo disposto na al. a), do n.º 2, do artigo 5.º do CPC, e porque há nos autos consenso sobre estes factos, como resulta do depoimento dos três autores, cumprindo apenas referir que os prédios dos artigos matriciais ...50, ...51 e o referido no facto provado n.º 2 (artigo ...52) confrontam sucessivamente pelo lado Poente/Nascente, situando-se o prédio do facto provado n.º 10 a norte do prédio do facto provado n.º 2.

Relativamente à consideração e utilização dos quatro prédios como sendo um só prédio, especialmente o prédio do facto provado 10 (artigo ...52), como constituindo um só prédio fundido com o artigo urbano (artigo ...98) e uso deste último ou do conjunto como casa de férias, cumpre referir que foi a autora AA quem mostrou ter mais conhecimento da situação.

Referiu que embora os prédios confinem uns com os outros foram adquiridos por si e pelo seu marido a proprietários diferentes.

 Disse (minutos 12:58-13:40) que compraram o terreno ao lado do tanque, para baixo, a uma pessoa e (minuto 14:07-14:41) os outros dois foram comprados ao Sr. CC, na mesma altura, o que fica acima mais pequeno e o outro a seguir.

Se bem se interpretam estas declarações, o terreno que fica ao lado do tanque será o do artigo 6150 e os outros dois os terrenos dos artigos matriciais ...51 e ...52.

Por conseguinte, a Autora referiu que existiam ali três artigos matriciais correspondentes a outros tantos prédios, além do prédio onde está implantada a casa, o urbano do artigo ...98.

 A Autora referiu (minuto 11:41) que como aquilo era tudo dela quando comprou os rústicos não verificou em pormenor os limites, mas não tinha dúvidas que havia artigos matriciais diferentes.

Retira-se deste depoimento que a Autora sabia que existiam ali três prédios rústicos, mas como era tudo dela não conhecia nem se interessava por saber, por não ter necessidade disso, onde eram as respetivas estremas na parte em que os prédios confrontavam uns com os outros.

O filho da Autora, BB, também autor, referiu (minuto 03:36) que não tinha noção dos prédios que ali tinham, sabendo apenas que se trata de uma casa com terrenos.

O autor BB referiu (minuto 02:25) que quando os pais compraram a casa iam lá uma ou duas vezes por ano, depois mais raramente; que (minuto 07.43) a sua mãe vai lá mais vezes e que considera aquilo uma casa de férias (minuto 08:04).

Além destes depoimentos encontram-se nos autos 68 fotografias da casa e terrenos das quais se pode ver que existe uma separação física visível entre o artigo ...98, o urbano, e os restantes terrenos, separação formada pelo declive acentuado entre as construções do urbano e os terrenos dos artigos rústicos situados para sul e poente da casa.

O depoimento das testemunhas não retirou nem acrescentou nada de relevante a estes depoimentos.

Por conseguinte, a conclusão a retirar é que os prédios não ostentam estremas visíveis entre eles, salvo em relação ao urbano que termina onde terminam as construções e espaços empedrados, mas os autores sabem, especialmente a autora AA, que existem ali quatro artigos matriciais diferentes, sendo três artigos rústicos e um urbano.

Quanto ao uso dos prédios, o autor CC referiu que (minuto 14:40) a sua mãe passa semanas lá e (minuto 15:11) que ela tem pedido a uma prima do depoente para cultivar aquilo, não só agora, mas já antes, para terem couves pelo Natal.

A autora AA também referiu que (minuto 26:40) desde que o seu marido faleceu, há uns 20 anos, continuou a ir aos prédios; que no Inverno vai menos, mas a partir de maio até setembro, vai lá três ou quatro dias por mês, para ver se há ratos, se há água ou não, etc.

Por conseguinte, relativamente à postura que os Autores têm em relação aos prédios a convicção forma-se no sentido de que, salvo em relação ao prédio urbano do artigo ...98, os restantes prédios não estão delimitados entre si, sendo a casa utilizada, em regra, pela autora AA, a qual passa ali dois ou três dias por mês especialmente a partir de maio até setembro.

Do teor destes depoimentos, especialmente da autora AA, não se pode adquiri a convicção de que os Autores consideram aquela casa e terrenos como sendo um único prédio.

Aliás, até se ode colocar a questão de saber se alguma vez os Autores colocaram a si mesmos essa questão, isto é, se alguma vez eles consideram que existia ali um só prédio ou vários.

Mas a resposta é sem dúvida negativa em relação à autora AA, que sempre soube que existiam ali quatro artigos matriciais diferentes, comprados por si a proprietários diferentes e, portanto, outros tantos prédios.

A testemunha EE referiu o mesmo, que havia ali vários terrenos pertencentes aos Autores sem estremas visíveis nos locais em que confrontavam uns com os outros (minuto 49:17) e que era a autora AA quem ali se deslocava com mais frequência, tendo ali uma segunda casa (minuto 45:58).

Por conseguinte, acrescenta-se um facto com o número «2-C», com este teor:

«Os Autores, salvo quanto ao prédio do artigo matricial urbano ...98, sempre utilizaram os prédios sem cuidarem de os delimitar fisicamente entre si, sendo a casa utilizada em regra pela autora AA, a qual passa ali dois ou três dias por mês, especialmente a partir de maio até setembro, deslocando-se os filhos ali menos vezes, no período de férias».

Relativamente ao cultivo dos terrenos apenas se fez referência a cultivo no prédio do artigo matricial ...52, onde há um socalco com couves visível nas fotografias.

O Autor BB referiu (minuto 05:39) que chegaram a ter abelhas nos terrenos; que os seus pais plantaram lá árvores de fruto e plantavam pontualmente algumas couves.

A autora AA também referiu (minuto 4:27) que cultiva couves no terreno do artigo ...52 e que (minuto 06:05) no resto do rústico tiveram duas laranjeiras e um limoeiro, mas que as cabras comeram tudo.

A testemunha FF também referiu (minuto 19:57) que a autora AA fazia alguma plantação no terreno, mas pouca coisa, algo compatível com as curtas deslocações àquela casa.

A testemunha HH referiu mesmo que os autores não cultivavam o que quer que seja nos terrenos (minuto 04:49), outro tanto referindo a testemunha GG (minuto 02:30).

Ou seja, apenas se conclui que os autores cultivam por vezes couves no terreno do artigo ...52 e tiveram lá árvores de fruto, duas laranjeiras e um limoeiro.

O facto das testemunhas FF e HH terem referido que ali não havia nada cultivado tem de ser avaliado em termos da sua perceção, isto é, não têm ideia de ver ali culturas, mas isso não implica que não existisse ali algo plantado, quer porque estas testemunhas fizeram observações pontuais e não contínuas ao longo dos anos, quer porque não é habitual reparar pormenorizadamente  se há algo ou não plantado nos prédios e muito menos guardar memória a longo prazo sobre aquilo que se observa.

Acrescenta-se, pelo exposto, mais um facto com o numero «2-D», com este teor:

«A utilização agrícola dos terrenos por parte dos autores consistiu em terem, em alguns anos, plantado couves no prédio do artigo ...52 e em terem tido aí duas laranjeiras e um limoeiro.

Concluindo, acrescentam-se os seguintes factos aos provados:

«2-A. Os Autores são ainda proprietários dos seguintes prédios:

i) prédio rústico inscrito na matriz predial respetiva sob o art. ...50º e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o nº ...66;

ii) prédio rústico inscrito na matriz predial respetiva sob o art. ...51º e não descrito na competente Conservatória do Registo Predial»

«2-B» - Os prédios dos artigos matriciais ...50, ...51 e o referido no facto provado n.º 2 confrontam sucessivamente entre si pelo lado Poente/Nascente, situando-se o prédio do facto provado n.º 10 a norte do prédio do facto provado n.º 2, confrontando nessa estrema um com o outro»

«2-C» - «Os Autores, salvo quanto ao prédio do artigo matricial urbano ...98, sempre utilizaram os prédios sem cuidarem de os delimitar fisicamente entre si, sendo a casa utilizada em regra pela autora AA, a qual passa ali dois ou três dias por mês especialmente a partir de maio até setembro, deslocando-se os filhos ali menos vezes, no período de férias.»

«2-D» - A utilização agrícola dos terrenos por parte dos autores consistiu em terem, em alguns anos, plantado couves no prédio do artigo ...52 e em terem tido aí duas laranjeiras e um limoeiro.

(II) Os Autores pretendem que o facto provado do n.º 9 com a redação «O prédio referido em 2. não tem aptidão construtiva e só pode ser usado, como sempre foi, para fins rústicos, constituído por terra de semeadura e de plantação de árvores de fruto, semeando-o, plantando-o, colhendo os frutos, limpando-o», passe para os factos não provados.

Procede em parte esta pretensão.

Com efeito, não se pode afirmar que o prédio sempre foi semeado e limpo.

Apenas se provou o que já consta do facto provado «2-D».

Não se trata de terreno urbanizável.

Com efeito, o prédio fica imediatamente a sul do prédio urbano e vê-se pelas fotografias que está situado numa encosta sem acesso a qualquer via pública, circunstância esta que inviabiliza a sua urbanização.

Relativamente à sua utilização é a que já foi indicada. É adequado ao cultivo de produtos hortícolas, como couves, feijões, e também pode suportar árvores de fruto, porquanto os autores conseguem ter água para sustentar esse cultivo, proveniente de uma nascente que os Autores têm noutro prédio situado mais a norte e recolhem essa água no tanque que se vê nas fotografias.

Se não tem aptidão construtiva só pode ter uso agrícola.

Por conseguinte, este facto provado n.º 9 passa a ter esta redação:

«O prédio referido em 2. não tem aptidão construtiva e só pode ser usado para fins rústicos».

(III) Os Réus pretendem que seja declarada provada a matéria de facto vertida nos pontos A. e B. dos factos não provados, ou seja:

«A. Sobre o terreno identificado em 2. foi implantado pelo menos parte do prédio urbano sito em ..., freguesia ..., Concelho ..., inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia sob o art.º ...98, pertencente à herança deixada por óbito do marido e pai dos autores, tendo tal terreno ficado a fazer parte componente do referido prédio urbano, constituindo o seu logradouro.»

«B. Os autores não dão qualquer utilização agrícola ao prédio identificado em 2; com as legais consequências»

Resultou do depoimento da autora AA que (minuto 05:32 e 10:47) há uns 35 anos ela e o marido alargaram o espaço do prédio urbano, colocando pedra no que é o terraço, a eira, «tiramos um pouco ao rústico», disse.

Ou seja, em certo momento, quando reconstruíram a casa do artigo ...98, procederam ao alargamento do terraço desta casa à custa de outro prédio rústico que ali possuíam.

Mas da prova produzida não resulta com a necessária certeza se o espaço ocupado pertencia ao prédio do artigo 6151 ou do artigo ...52.

Se a própria Autora diz que subtraíram algum terreno ao rústico é porque certamente ocorreu.

Por conseguinte, apenas pode constar da matéria de facto provada o seguinte, sob o número «2-E»:

«Há uns 35 anos a autora AA e marido alargaram o espaço do prédio urbano do artigo matricial ...98, colocando pedra no que é hoje o terraço, ocupando um pouco de terreno do prédio rústico contíguo, ficando a parte ocupada a fazer parte do artigo ...98.»

Quanto à restante matéria deve continuar não provada ou ser eliminada.

O facto da alínea «A» tem uma redação equívoca porquanto não é claro se o conceito de «logradouro» se refere apenas à parte ocupada do rústico contíguo   aquando da reconstrução do urbano ou se se refere a todo o prédio do artigo ...52 como sendo logradouro do artigo urbano.

Não é possível concluir se a parte ocupada pelo urbano foi retirada do artigo ...52 ou do artigo 6151.

E também não se pode concluir que o resto do terreno do artigo ...52 ficou a constituir logradouro do urbano.

Esse terreno a sul do urbano, o artigo ...52, tem um artigo matricial atribuído, próprio, e, por isso, é um prédio autónomo e não parte de outro prédio.

Pelas fotografias juntas aos autos, a que já se fez referência, vê-se que o urbano termina nos seus muros ou paredes, visíveis nas fotografias e, para sul dessas construções, na encosta, situa-se o terreno do artigo ...52; há uma nítida separação física entre o urbano e o rústico (artigo ...52), ficando este situado numa encosta com acentuado declive.

Para além de serem dos mesmos donos, não se vislumbra, pois não há factos para isso, qualquer relação estrutural, de uso, ou outra, entre os dois prédios.

Se por «logradouro» se pretende dizer que se trata de um espaço adjacente ao urbano e que serve de apoio ou desenvolvimento das atividades gozadas no urbano, então o terreno do artigo ...52 não tem essas funções, desde logo porque é íngreme, não é de fácil acesso e tanto quanto se vê pelas fotografias não há nada nesses terrenos que possa ser desfrutado em ligação com o espaço urbano.

Por conseguinte, tendo em conta também o que já consta dos factos acrescentados, o facto não provado da alínea «A» será eliminado.

Relativamente ao facto não provado da alínea «B» deve continuar como está, pois provou-se que os autores fazem alguma utilização agrícola dos terrenos e tanto assim é que construíram lá um tanque para recolha de água destina a ser utilizada na rega, existindo ainda um segundo tanque mais pequeno.

b) 1. Matéria de facto – Factos provados

1. Por escritura pública de compra e venda datada de 27.07.2020, os 1º réus venderam à 2ª ré, pelo preço de € 882,00, o prédio rústico denominado “...”, composto de terra de semeadura, sito em ..., freguesia ..., Concelho ..., inscrito na matriz predial rústica daquela freguesia sob o art.º ...53 e omisso na Conservatória do Registo Predial.

2. Faz parte do acervo patrimonial da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD o prédio denominado “...”, sito em ..., freguesia ..., Concelho ..., inscrito na matriz predial rústica daquela freguesia sob o art.º ...52 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o n.º ...19 da freguesia ..., ali constando como composto de terra de semeadura.

2-A - Os Autores são ainda proprietários dos seguintes prédios:

i) prédio rústico inscrito na matriz predial respetiva sob o art. ...50º e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o nº ...66;

ii) prédio rústico inscrito na matriz predial respetiva sob o art. ...51º e não descrito na competente Conservatória do Registo Predial.

2-B - Os prédios dos artigos matriciais ...50, ...51 e o referido no facto provado n.º 2 confrontam sucessivamente entre si pelo lado Poente/Nascente, situando-se o prédio do facto provado n.º 10 a norte do prédio do facto provado n.º 2, confrontando nessa estrema um com o outro.

2-C - Os Autores, salvo quanto ao prédio do artigo matricial urbano ...98, sempre utilizaram os prédios sem cuidarem de os delimitar fisicamente entre si, sendo a casa utilizada em regra pela autora AA, a qual passa ali dois ou três dias por mês especialmente a partir de maio até setembro, deslocando-se os filhos ali menos vezes, no período de férias.

2-D - A utilização agrícola dos terrenos por parte dos autores consistiu em terem, em alguns anos, plantado couves no prédio do artigo ...52 e em terem tido aí duas laranjeiras e um limoeiro.

2-E - Há uns 35 anos a autora AA e marido alargaram o espaço do prédio urbano do artigo matricial ...98, colocando pedra no que é hoje o terraço, ocupando um pouco de terreno do prédio rústico contíguo ficando a parte ocupada a fazer parte do artigo ...98.

3. Este último imóvel (artigo ...52) foi adquirido pelo extinto casal, formado pela aqui 1ª autora e seu falecido marido DD, no ano de 1996, através de compra a KK e esposa LL.

4. O prédio dos autores identificado em 2. confronta em toda a sua extensão do seu lado nascente com o prédio objeto do contrato de compra e venda identificado em 1., não existindo qualquer parcela de terreno entre ambos.

5. As confrontações assinaladas para ambos os prédios nas respetivas matrizes prediais não estão corretas, perdendo-se na memória dos tempos a identidade das pessoas que aí figuram, as quais não têm nenhuma correspondência com os titulares atuais.

6. Os 1ºs réus e a 2ª ré não eram nem são proprietários de prédios contíguos entre si.

7. O terreno dos autores identificado em 2. e o terreno que os 1º réus venderam à 2ª ré apresentam ambos área inferior à unidade de cultura, tendo os mesmos as áreas de 0,016 e 0,030 hectares, respetivamente.

8. Da venda aludida em 1. nunca foi dado conhecimento aos autores, não tendo, nem antes nem depois da realização da sobredita escritura de compra e venda, os vendedores ou a compradora ou qualquer outra pessoa comunicado aos autores os elementos essenciais do mesmo negócio.

9. O prédio referido em 2. não tem aptidão construtiva e só pode ser usado para fins rústicos.

10. Os autores deslocam-se algumas semanas por ano ao prédio urbano sito em ..., freguesia ..., Concelho ..., inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia sob o art.º ...98, pertencente à herança deixada por óbito do marido e pai dos autores.

11. Os prédios identificados em 1., 2. e 10. estão inseridos na área classificada como solo urbano e qualificada como área urbana de baixa densidade 2 (Aldeia da Serra).

12. Os autores procederam, na data da instauração da ação, ao depósito da quantia de € 882,00, correspondente ao preço declarado na respetiva escritura aludida em 1., pelo qual o prédio nela referido foi vendido à 2.ª ré compradora.

13. A 2.ª ré dedica-se a turismo no espaço rural ou em outros estabelecimentos hoteleiros, com ou sem serviço de refeições, outras atividades de animação turística, agroturismo, compra e venda de bens imobiliários, arrendamento de imóveis, avaliação e medição de imóveis e consultadoria de gestão.

14. A 2.ª ré comprou o prédio identificado em 1. para nele construir um empreendimento de turismo no espaço rural.

2. Matéria de facto – Factos não provados

A. [Eliminado].

B. Os autores não dão qualquer utilização agrícola ao prédio identificado em 2.

C. O empreendimento de turismo no espaço rural que a 2.ª ré pretende construir no prédio identificado em 1. é legalmente viável.

D. O referido prédio confronta a norte com caminho e largo público, que está devidamente pavimentado e infraestruturado.

c) Apreciação das restantes questões objeto do recurso

A reanálise do aspeto jurídico da sentença estava dependente da procedência do recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto.

Como a matéria de facto não sofreu alteração relevantes, o recurso também improcede quanto ao seu aspeto jurídico, uma vez que não vem colocada em causa a solução jurídica exarada na sentença tendo em consideração a matéria de facto aí declarada provada.

Mas vejamos melhor.

(I) Nos termos do artigo 1380.º (Direito de preferência) do Código Civil, «1. Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante.

2. Sendo vários os proprietários com direito de preferência, cabe este direito:

a) No caso de alienação de prédio encravado, ao proprietário que estiver onerado com a servidão de passagem;

b) Nos outros casos, ao proprietário que, pela preferência, obtenha a área que mais se aproxime da unidade de cultura fixada para a respetiva zona.

3. Estando os preferentes em igualdade de circunstâncias, abrir-se-á licitação entre eles, revertendo o excesso para o alienante.

4. É aplicável ao direito de preferência conferido neste artigo o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º, com as necessárias adaptações.

Por sua vez, o artigo 1381.º (Casos em que não existe o direito de preferência) dispõe que «Não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes:

a) Quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura;

b) Quando a alienação abranja um conjunto de prédios que, embora dispersos, formem uma exploração agrícola de tipo familiar.»

A Ré fundamenta o recurso sustentando o que já referiu no artigo 33.º da sua contestação, isto é, que o prédio dos Autores que confina com o adquirido pela Ré é parte componente do prédio urbano que os Autores aí possuem, constituindo logradouro deste prédio urbano, pelo que, por esta razão, sendo um prédio urbano, os Autores não gozam de qualquer direito de preferência.

Não lhes assiste razão.

Nos termos do n.º 2 do artigo 204.º do Código Civil, «Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro.»

A definição de logradouro será fulcral para distinguir um prédio urbano de um rústico.

Porém, o conceito de «logradouro» é indeterminado e só pode concretizar-se em cada caso concreto.

Nas palavras do Prof. Menezes Cordeiro, «O logradouro está afecto ao edifício, normalmente para habitação: dá apoio aos moradores. Mas pode, também, apoiar um edifício industrial ou comercial: parque de estacionamento, área de depósito de materiais, jardim de resguardo ecológico, campos de desporto, pistas de ensaios, ou simplesmente área verde exigida pelos planos de urbanização, como anexo às edificações» - Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo II. 2.ª Edição, 2002, pág. 124.

Para os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, «Deve entender-se que se está perante uma unidade predial ou, inversamente, perante uma pluralidade, conforme o conjunto em causa apresente ou não uma unidade estrutural – unidade esta que há-de aferir-se através dos seus elementos essenciais, designadamente através das paredes mestras, dos pilares e vigas de sustentação, da cobertura (telhado ou terraço), das instalações de água, de electricidade, etc.

Em conformidade com o critério legal, não devem considerar-se prédios urbanos, mas partes componentes dos prédios rústicos, as construções que não tenham autonomia económica, tais como as adegas, os celeiros, as edificações destinadas às alfaias agrícolas, etc., assim como não devem considerar-se prédios rústicos os logradouros de prédios urbanos, como os jardins, pátios e quintais. Ao logradouro deve ser atribuída a mesma natureza do edifício a que está ligado, designadamente para efeitos de determinação do seu valor, em caso de expropriação por utilidade pública (…), e para efeitos de averiguar se, em caso de alienação, se verificam os pressupostos do direito de algum dos direitos de preferência previstos na lei (…)» - Código Civil Anotado, Vol. I.  3.ª edição, pág.195/196.

No caso, o terreno do artigo matricial ...52 e a construção do artigo matricial ...98 não constituem entre si qualquer unidade estrutural, estando, inclusive separados por paredes ou muros e não resulta dos factos provados que o terreno do artigo ...52 seja logradouro do prédio urbano do artigo ...98.

Por outro lado, o prédio do artigo ...52, que confina com o vendido e que objeto do direito de preferência, tem inscrição matricial própria.

Ora, se existe um prédio autónomo, com artigo matricial atribuído, isso implica que esse prédio (artigo ...52) não possa ser considerado juridicamente como «parte componente de um prédio urbano», para efeitos da al. a) do artigo 1381.º º (Casos em que não existe o direito de preferência) do Código Civil.

Acresce que, na economia do Código Civil, esse rústico do artigo ...52 não pode ser unido ao prédio urbano do artigo ...98 passando a existir ali um prédio «misto», com um artigo matricial rústico e outro urbano.

Com efeito, o conceito de prédio usado nos artigos 1380.º e 1381.º é o mesmo conceito utilizado no artigo 204.º do mesmo código, onde não se prevê a figura de «prédio misto», ao invés do que ocorre no direito fiscal [A lei civil não se refere em parte alguma a uma dupla natureza do mesmo prédio; pelo contrário, nos termos do artigo 204.º do Código Civil, os prédios ou são rústicos ou urbanos, não sendo admitida, para efeitos civis, a categoria de prédios mistos, simultaneamente rústicos e urbanos – ac. Tribunal da Relação do Porto de 16-01-1971, Boletim do Ministério da Justiça n.º 209, pág. 198]

No direito fiscal, como se vê do n.º 1 do artigo 5º, nº 1 e 2, do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (Dec.- Lei nº 287/2003, de 12 de novembro, «Sempre que um prédio tenha partes rústicas e urbana é classificado, na íntegra, de acordo com a parte principal» e «Se nenhuma das partes puder ser classificada como principal, o prédio é havido como misto.»

E no artigo 84.º do mesmo diploma refere-se que «Cada uma das partes distintas do prédio misto é inscrita na matriz que lhe competir», ou seja, fiscalmente um prédio pode ser composto por mais de um artigo matricial e de diversa natureza.

De qualquer modo, frisa-se, no âmbito do Código Civil, se um espaço físico tem um artigo matricial próprio, a sua qualificação como prédio rústico ou urbano faz-se em relação aquilo que se encontra dentro dos seus limites físicos, consoante as construções que aí existam ou a ausência delas, sem prejuízo da sua afetação legal a fins urbanísticos, mas não se faz tendo em consideração outro prédio adjacente.

Por outras palavras, um terreno que tem artigo matricial não é qualificável como «logradouro» de outro prédio ou como «parte componente de um prédio urbano», porque esse prédio com artigo matricial próprio é um prédio em si mesmo e, logicamente não pode ser «parte de outro prédio» ou «logradouro de outro prédio», ainda que de facto até possa ter essa utilização funcional em dado momento.

Aliás, como referem Pires de Lima/Antunes Varela, em anotação ao artigo 1377.º do Código Civil, acerca das exceções à proibição de fracionamento de prédio: «Segundo o disposto no n.º 2 do artigo 204.º, consideram-se partes componentes dos prédios urbanos os terrenos que lhes servem de logradouros. São estes, por conseguinte, os que podem ser fraccionados, independentemente do fim a que se destinem, atenta a sua função em face do prédio urbano que integram» - Código Civil Anotado, Vol. III. 2.ª Edição, 1984, pág. 262.

Ou seja, estas «partes componentes» não são ou não correspondem a artigos matriciais autónomos, pois se já correspondessem a artigos matriciais autónomos não fazia sentido falar em proibição ou permissão de fracionamento, porque um artigo matricial é um prédio e não uma parte fracionável ou uma parte componente de um prédio que, como tal, pode ser separada, fracionada do prédio a que pertence.

Improcede, pelo exposto, este fundamento recursivo.

(II) Vejamos se os Autores não levam a cabo uma efetiva atividade agrícola no prédio do artigo matricial ...52 e se isso impede o surgimento do direito de preferência.

No caso dos autos, como já se concluiu, o prédio do artigo matricial ...52 não é «logradouro» ou «parte componente» do prédio urbano do artigo matricial ...98; é um prédio que os Autores ali possuem, ao lado de outros.

É certo que se provou apenas uma reduzida atividade agrícola praticada no prédio do artigo ...52, isto é, provou-se que «2-D - A utilização agrícola dos terrenos por parte dos autores consistiu em terem, em alguns anos, plantado couves no prédio do artigo ...52 e em terem tido aí duas laranjeiras e um limoeiro.»

É pouco, mas tem existido alguma atividade agrícola.

Por outro lado, a efetiva exploração agrícola não consta como requisito do artigo 1380.º (Direito de preferência) do Código Civil, para que nasça o direito de preferência, pois são requisitos do direito de preferência apenas os seguintes:

- Confinância entre prédios;

- área inferior à unidade de cultura;

- venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante.

Dir-se-á que «A razão de ser do regime legal consagrado no art. 1380.º, n.º 1, do Código Civil, ancora num propósito propiciador do emparcelamento de terrenos com área inferior à unidade de cultura, visando uma exploração agrícola tecnicamente rentável, evitando-se, assim, a proliferação do minifúndio, considerado incompatível com um aproveitamento fundiário eficiente» - Acórdão do STJ, de 28.02.2008, no processo nº 08A075 (in www.dgsi.pt)

Esta razão ou fundamento para a existência do direito de preferência como categoria jurídica tem em vista um fim geral, que a norma pretende alcançar, fim esse que não tem de se verificar ou ser alcançado em todo e qualquer caso concreto, pois se o legislador tivesse querido que assim fosse teria acrescentado esse requisito e não o acrescentou.

Teria prescrito que era requisito do nascimento da preferência a efetiva exploração agrícola do prédio que confere a preferência; ou que impedia a preferência o facto do prédio que confere a preferência não estar a ser cultivado.

Assim, não é impeditivo do nascimento do direito de preferência o facto do prédio que confere a preferência não estar a ser explorado agricolamente.

Não é por essa razão que deixa de ser um prédio rústico, sendo certo que no Código Civil não há prédios «neutros», ou são urbanos ou são rústicos.

E compreende-se que assim seja, que não seja exigido um tal requisito.

Ou seja, pretende-se promover a existência futura de propriedades com adequação mínima para a exploração agrícola.

Ora, se esta é uma opção e finalidade para futuro, então não pode ser condicionada por circunstâncias do presente que podem vir a desaparecer no futuro.

Com efeito, a promoção do emparcelamento de terrenos com área inferior à unidade de cultura e o combate ao minifúndio é uma opção de política agrícola geral, para todo o país, e a longo prazo, a qual vale por si mesma, independentemente de em alguns casos concretos os prédios que conferem o direito de preferência não estarem a ser explorados.

Na verdade, até pode ocorrer, em alguns casos, que a não exploração do prédio que confere a preferência se deva ao facto do prédio ter dimensões reduzidas, sendo já viável ou rentável a exploração se o proprietário passar a ser dono do prédio confinante que pretende adquirir através do exercício do direito de preferência.

Por outro lado, o facto de um prédio não estar a ser cultivado nunca implica que não venha a ser cultivado amanhã, e esta possibilidade, só por si, já justifica a promoção do emparcelamento e, logicamente, que o direito de preferência não dependa da circunstância do prédio que leva à preferência estar ou não estar a ser explorado.

Os Réus invocaram a seu favor, nessa linha de argumentação que dá relevância à inatividade agrícola, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 2021, proferido no Processo nº 892/18.7T8BJA.E1.S1.

Ponderou-se neste acórdão o seguinte (parte final):

«Acresce ser sobre os autores que recaía, nos termos do disposto no art. 342.º, n.º 1 do C. Civil, o ónus de alegar e provar, que praticam nestes terrenos qualquer tipo de exploração florestal e/ou atividade agrícola, pelo que, não tendo os mesmos alegado, no caso dos autos, quaisquer factos demonstrativos do aproveitamento destes terrenos, são eles que têm de sofrer as consequências dessa falta de prova.

De referir ainda que, contrariamente ao afirmado no acórdão recorrido, não se vê que se possa defender resultar do espírito da lei que o citado art. 1380º, nº 1 não vincula o exercício do direito de preferência à efetiva exploração dos prédios para fins agrícolas, bastando-se com o facto de serem prédios aptos para cultura, quando é certo que, como se escreveu no Acórdão do STJ, de 28.02.2008 (processo nº 08A075), «a razão de ser do regime legal consagrado no art. 1380.º, n.º 1, do Código Civil, ancora num propósito propiciador do emparcelamento de terrenos com área inferior à unidade de cultura, visando uma exploração agrícola tecnicamente rentável, evitando-se, assim, a proliferação do minifúndio, considerado incompatível com um aproveitamento fundiário eficiente.»

Daí que, aceitando-se o critério de destinação ou afetação económica como critério base para qualificar determinado prédio como rústico ou urbano e tendo ficado provado que os autores residem no prédio de que são proprietários (nº 10 dos factos provados) e nele não desenvolvem qualquer atividade agrícola (nº 11 dos factos provados), evidente se torna que os autores utilizam o prédio em causa essencialmente para a sua habitação, o que tudo quer dizer, nas palavras do citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.02.2008, que o núcleo essencial do “prédio misto”, dos autores, a sua destinação e afetação, são próprias de um prédio urbano, não se alcançando, deste modo, os fins para que o legislador consagrou, no art. 1380.º, n.º 1 do C. Civil, o direito de preferência.

E sendo assim, ou seja, não podendo o prédio dos autores ser considerado prédio rústico, indemonstrado fica, desde logo, um dos requisitos do art. 1380.º, n.º 1, do Código Civil, o que tanto basta para se concluir não serem os autores titulares de direito de preferência sobre o prédio vendido à ré, ora recorrente.»

Se bem se interpreta o exposto, a ausência de atividade agrícola serviu para qualificar todo o prédio como urbano e daí a improcedência do direito de preferência invocado.

E no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.02.2008, no processo n.º 08A075, acima já citado, considerou-se «Porque os fins para que o legislador consagrou o emparcelamento e o direito de preferência – arts. 1380.º, n.º 1, a) e 1382.º do Código Civil – não se alcançam quando o prédio confinante não se destina a cultura agrícola, e não relevando o facto de ter logradouro ou terrenos ainda que possam ser cultivados – dado que não estão afectos à rusticidade do prédio por ele se destinar a habitação – não existe o direito de preferência.»

Ou seja, considerou-se no caso que o prédio era qualificável como urbano, apesar de ter logradouro que podia ser cultivado.

Por conseguinte, a ausência de cultivo dos prédios serviu, nestes casos, de fundamento à qualificação do prédio que conferia a preferência como urbano.

Concluindo, afigura-se como certo que a exigência de exploração agrícola do terreno que confere a preferência não é requisito exigido no artigo 1380.º, n.º 1, do Código Civil, e, sendo assim, não pode o tribunal exigi-lo.

Por outro lado, a exclusão do direito de preferência quando um dos terrenos «constitua parte componente de um prédio urbano» – artigo 1381.º, al. a), do Código Civil – não ocorre quando esse terreno é um prédio com inscrição matricial própria, pois se é um prédio autónomo não é logicamente parte de outro prédio.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.


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Coimbra, 12 de abril de 2023