Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
373/11.0GCAVR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: SENTENÇA
ERRO MANIFESTO
OBSCURIDADE
AMBIGUIDADE
MODIFICAÇÃO
PENA ACESSÓRIA
PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS MOTORIZADOS
Data do Acordão: 10/15/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA (JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL DE AVEIRO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 380.º, N.º 1, ALÍNEA B), DO CPP
Sumário: I - Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 380.º, n.º 1, alínea b), do CPP, o erro ou lapso manifesto - ostensivo, perceptível a qualquer pessoa de medianos conhecimentos - cuja eliminação não importe modificação essencial há-de decorrer do pensamento do julgador, a averiguar única e exclusivamente no contexto específico da sentença.

II - Não obstante estar escrito no dispositivo da sentença «mais se condena o arguido em 8 (oito) meses de inibição de conduzir veículos automóveis», constando nos factos provados da mesma peça processual:

«Todavia, apesar de suficientemente advertido das proibições que lhe foram aplicadas no âmbito do referido processo e de que a sua carta se encontrava apreendida à ordem daquele processo, no dia 18 de Setembro de 2011, pelas 3h30m, o arguido conduzia o ciclomotor com a matrícula FV(...), na Rua Direita, (...)»;

• «Após a paragem do referido veículo, foi ordenada ao arguido (…) a realização do teste de alcoolemia, que este recusou»;

e na fundamentação de direito:

«O art. 69º nº 1 al. c) do CP estabelece ainda (…).

Ora, considerando os antecedentes criminais do arguido, nos termos do art. 69º do CP, ficará proibido de conduzir veículos automóveis durante um período de 8 meses»;

é manifestamente eloquente o pensamento do julgador, dirigido ao ciclomotor referido e à proibição de conduzir decorrente da descrita conduta do arguido.

III - Nesta perspectiva, situamo-nos perante erro material, cuja eliminação, no sentido de a pena acessória abranger todo e qualquer veículo motorizado, não importa modificação essencial do decidido.

Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - HISTÓRICO DO PROCESSO

            1.         O Ministério Público (de futuro, apenas Mº Pº), deduziu acusação contra o arguido A..., nos seguintes termos:

                «Por sentença proferida pela Mmª Juiz em 21/10/2010, no âmbito do Processo Comum Singular nº 168/09.0GTAVR do Juízo de Média Instância Criminal de Aveiro- Juiz 3, foi o arguido condenado pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p., pelo artº 292º, nº 1 do C. Penal, na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 1 (um) ano, a qual transitou em julgado.

                No dia 14 de Abril de 2011, o Governo Civil de Aveiro remeteu àquele Juízo de Média Instância Criminal a licença de condução nº AVR00302645 do arguido para cumprimento da referida inibição de conduzir, o que foi dado a conhecer ao arguido (cfr. fls. 4 e 54).

                Todavia, apesar de suficientemente advertido das proibições que lhe foram aplicadas no âmbito do referido processo e de que a sua carta se encontrava apreendida à ordem daquele processo, no dia 18 de Setembro de 2011, pelas 3h30m, o arguido conduzia o ciclomotor com a matrícula FV (...) , na Rua Direita, em Costa do Vaiado, em Aveiro, quando foi fiscalizado pelos Guardas - B... e C... da GNR de Aveiro.

                Após a paragem do referido veículo, foi ordenado ao mesmo pelos referidos agentes de autoridade que efectuasse o teste de alcoolémia, mas, o arguido recusou realizar o referido teste, apesar de advertido que essa recusa o fazia incorrer na prática do crime de desobediência.

                O arguido actuou, da forma descrita com intenção de não cumprir uma proibição que lhe foi imposta pelas autoridades competentes.

                Ao não acatar a ordem dada, o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que tal ordem lhe fora regularmente transmitida e emanava de autoridade policial.

                Também sabia que ao actuar da forma descrita praticava factos proibidos por lei.

                Pelo exposto foi autor material, na forma consumada e em concurso real de:

                - de um crime de violação de proibições ou interdições, p. e p., 353º do C. Penal;

                - e de um crime de desobediência, p. e p., pelos artºs 348º, nº 1 al. a)- com referência ao artº 152º, nº 3 do C. Estrada.». (fls. 31/32)

            A audiência de julgamento iniciou-se no dia 28.05.2012, prolongou-se pelo dia 04.06.2012 e terminou no dia 13.06.2012 com a leitura da sentença. (fls. 36 a 48)

            No dia da leitura da sentença (13.06.2012), e antes de a ela procedeu, a M.mª Juíza proferiu o seguinte despacho: «Ao arguido vem imputada a prática de um crime de desobediência por recusa à submissão às provas que visam detetar alcool no sangue, crime esse que é também punido com pena acessória de inibição de conduzir do art. 69º, nº 1 al. c) do C.P. Assim, procede-se à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, em conformidade com o agora exposto.». O arguido declarou prescindir de prazo para a reorganização da defesa, pelo que a M.mª Juíza procedeu à leitura da sentença. (fls. 48)

            Nessa sentença, julgando-se a “acusação procedente por provada”, condenou-se o arguido: « - pela pratica de um crime de violação de proibições ou interdições, p. e p., 353º do C. Penal na pena de 7 (sete) meses de prisão

                 - pela pratica de crime de desobediência, p. e p., pelos artºs 348º, nº 1 al. a) - com referência ao art. 152º nº 3 do C. Estrada fixo a pena de 4 (quatro) meses de prisão.

                 - na pena de cúmulo de 9 (nove) meses de prisão, suspendendo a sua execução pelo período de um ano.

                Mais se condena o arguido em 8 (oito) meses de inibição de conduzir veículos automóveis.».

            Da análise da sentença pode verificar-se (cf. fls. 47) que no respectivo dispositivo, a palavra “automóveis” se mostra riscada com dois traços e, de forma manuscrita, nela se fez constar “a) (motorizados)”, acrescentando-se ainda “a) retificado conforme ordenado a fls. 188”, seguindo-se uma rubrica ilegível.

            Em 13.03.2013, o Mº Pº promoveu se solicitasse “a apreensão da licença de condução e demais títulos que o habilitem o arguido a conduzir veículos motorizados, nos termos do art. 500º nº 3 do Código de Processo Penal” (fls. 51).

            Em 19.03.2013, a M.mª Juíza decidiu solicitar “à entidade policial que no mesmo acto notifique o arguido para vir entregar a carta de condução a fim de cumprir a sanção acessória, sob pena de a mesma lhe ser apreendida” (fls. 52).

            Em 30.08.2013, o Mº Pº promoveu se solicitasse “à entidade policial competente que proceda à apreensão da licença de condução do arguido, nos termos do art. 500º nº 3 do Código de Processo Penal” (fls. 53).

            Em 16.09.2013, a M.mª Juíza ordenou a notificação “do arguido para vir juntar aos autos a carta de condução sob pena de a mesma lhe ser apreendida a fim de cumprir a sanção acessória em que foi condenado” (fls. 54).

            E, em 11.10.2013, mais ordenou se solicitasse “à entidade policial competente a apreensão da carta, nos termos do art. 500º nº 3 do CPP” (fls. 55).

            A GNR veio juntar aos autos um “auto de declarações”, donde consta que, ouvido o arguido, o mesmo prestou as seguintes declarações: «Que relativamente ao processo 373/11.0GCAVR (...), o declarante disse que a sua carta nº AVR - 00302645, foi apreendida pela GNR de Aveiro, por falta de pagamento de um auto de contraordenação, acerca de 4 anos, por este motivo a carta de condução encontra-se no Atendimento ao Público do Destacamento de Trânsito da GNR em Aveiro.» (fls. 67).

            Em 29.01.2014, perante o teor deste “auto de declarações”, o Mº Pº promove o seguinte: «Mais bem analisados os autos, designadamente a sentença condenatória, verifica-se que o arguido não foi condenado na sanção acessória de proibição de veículos motorizados, mas somente em “8 (oito) meses de inibição de conduzir veículos automóveis”.

                Não é conhecida ao arguido a titularidade de carta de condução que o habilite a conduzir veículos automóveis, apenas havendo notícia nos autos que o mesmo se encontra habilitado a conduzir ciclomotores pela licença de condução nº AVR00302645, apreendida pela GNR e que se encontra na posse do IMT.

                Assim, com vista a apurar se o arguido é possuidor de título de condução que o habilite a conduzir veículos automóveis e ao cumprimento da sanção acessória imposta nestes autos, promovo que se oficie ao IMT solicitando tal informação.» (fls. 68/69).

            Sobre tal promoção, versou despacho da M.mª Juíza, proferido em 04.02.2014, do seguinte teor:

            «Conforme se retira claramente do corpo da sentença pretendeu-se aplicar a sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados, sendo que só por imprecisão de linguagem ficou a constar inibição de conduzir veículos automóveis. Não obstante essa imprecisão, como se retira de todo o posterior desenvolvimento processual, o verdadeiro escopo da sentença foi claramente entendido por todos os sujeitos processuais, neles incluída a Digna Magistrada do Ministério Público que a seu tempo não recorreu da sentença nem requereu qualquer retificação e que só volvido mais de um ano e meio sobre a prolação da sentença procede a “uma sua leitura mais atenta”.

                No entanto, para que não restem dúvidas, nos termos do art. 380º b) do CPP, retifica-se a sentença ficando a constar da parte decisória “Mais se condena o arguido em 8 (oito) meses de inibição de conduzir veículos motorizados” (fls. 70 destes autos, correspondendo a fls. 188 dos autos em 1ª instância).

            2.         Inconformado com o teor deste despacho, dele recorre o Mº Pº, formulando as seguintes CONCLUSÕES:

            «1° - Nos termos previstos no art. 29°, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa "Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime ".

                2° - Por sentença de 13 de Junho de 2012, foi o arguido A... condenado:

                - pela prática de um crime de violação de proibições ou interdições, previsto e punível pelo art. 353º do Código Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão;

                - pela prática de um crime de desobediência, previsto e punível pelo art. 348°, n.º 1, al. a), do Código Penal, por referência ao art. 152°, nº 3, do Código da Estrada, na pena de 4 (quatro) meses de prisão;

                - em cúmulo jurídico, na pena única de 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano; e

                - em 8 (oito) meses de inibição de conduzir veículos automóveis.

                3° - Nenhum sujeito processual recorreu da sentença.

                4° - Tal condenação transitou em julgado em 13 de Julho de 2012.

                5° - O arguido não é possuidor de título que o habilite a conduzir veículos automóveis.

                6° - O despacho recorrido, de 4 de Fevereiro de 2014, de fls. 1.88. ao retificar a sentença e decidir que "Mais se condena o arguido em 8 (oito) meses de inibição de conduzir veículos motorizados" procede a uma modificação essencial da condenação.

                7° - Ao concluir que "Conforme se retira claramente do corpo da sentença pretendeu-se aplicar a sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados" e decidir rectificar o dispositivo da sentença fazendo dela constar, na parte decisória, que "Mais se condena o arguido em 8 (oito) meses de inibição de conduzir veículos motorizados”, o tribunal a quo fez uma incorrecta interpretação do art. 380°, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal e violou o disposto no art. 29°, nº 5, da Constituição da República Portuguesa.

                8° - Pelo que, deve ser revogado o despacho recorrido e mantida a sentença condenatória tal como foi proferida e transitou em julgado.

Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se o despacho recorrido e ordenar-se o prosseguimento dos autos para execução da sentença condenatória transitada em julgado, com o que será feita, JUSTIÇA.»

3.         O arguido não respondeu.

Já neste Tribunal da Relação, o Ex.mº Sr. Procurador-Geral Adjunto, considerando que a correcção efectuada cabe nos limites de correcção do art. 380º nº 1 al. b) do CPP, emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.

Cumprido o art. 417º nº 2 do Código de Processo Penal (de futuro, apenas CPP), o arguido nada disse.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

4.         No tocante a factualidade pertinente ao conhecimento do recurso, damos aqui por reproduzidos OS FACTOS referidos no ponto “I. 1.” desta peça.

            5.            O MÉRITO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 412º nº 1 do CPP. [[1]]

            QUESTÃO A RESOLVER: se a alteração da expressãoMais se condena o arguido em 8 (oito) meses de inibição de conduzir veículos automóveis”, constante da sentença proferida em 13.06.2012, para a expressão “Mais se condena o arguido em 8 (oito) meses de inibição de conduzir veículos motorizados”, ordenada por despacho de 04.02.2014, traduz uma rectificação de erro material ou, antes, uma modificação essencial da condenação.

            5.1.      Para proceder à dita “retificação”, a M.mª Juíza estribou-se no art. 380º nº 1 al. b) do CPP, que é do seguinte teor:

            1. O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando:

            a) (...)

            b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.

            Um erro ou lapso manifesto há-de ser ostensivo, perceptível a qualquer pessoa de medianos conhecimentos.

            Faz-se muitas vezes apelo à noção de erro material, constante do art. 614º nº 1 do Código de Processo Civil (de futuro, apenas CPC) [[2]], talvez em virtude da maior elaboração doutrinal e jurisprudencial de que este preceito tem sido objecto.

            As semelhanças, no entanto, terão de se ficar por aí.

            Na verdade, enquanto o art. 614º nº 1 do CPC permite a possibilidade de correcção a “erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto”, o art. 380º nº 1 al. b) do CPP exige mais: não basta a ocorrência da ostensividade do erro, antes se torna ainda necessário que a eliminação desse erro “não importe modificação essencial”.

            O que bem se entende, se atentarmos no facto de no âmbito do processo penal estarem as mais das vezes em causa direitos, liberdades e garantias de tutela constitucional.

            Sobre o conceito de “modificação essencial”, escreveu Maia Gonçalves: «Esta modificação essencial afere-se em relação ao que estava no pensamento do tribunal decidir, e não em relação ao que ficou escrito; por isso se incluem aqui os erros materiais ou de escrita. (...). Assim, se for manifesto, em face da fundamentação, que estava no pensamento do tribunal condenar em 3 anos de prisão, mas na sentença se escreveu 3 meses de prisão, será lícito corrigir à sentença, ao abrigo do n.º 1, al. b); não será, porém, lícito corrigir para coisa que não seja dizer que a condenação é em 3 anos de prisão». [[3]]

            Este tem vindo também a ser o entendimento jurisprudencial. [[4]]

            O artigo 69º do CP usa a expressão “veículos com motor”.

            No entanto, como é sabido, é mais vulgar na linguagem corrente a utilização da expressão “veículos motorizados”, conceito amplo, que abrange várias categorias de veículos, pretendendo aludir-se à utilização de um qualquer veículo que use um motor de propulsão para ser movimentado.

            «Automóvel é o veículo com motor de propulsão, dotado de pelo menos quatro rodas, com tara superior a 550 kg, cuja velocidade máxima é, por construção, superior a 25 km/h, e que se destina, pela sua função, a transitar na via pública, sem sujeição a carris»: art. 105º do Código da Estrada (de futuro, apenas CE).

            «Ciclomotor é o veículo dotado de duas ou três rodas, com uma velocidade máxima, em patamar e por construção, não superior a 45 km/h, e cujo motor: (...)»: art. 107º nº 2 do CE.

            Visto isto, e como atrás se deixou referido, a procura do pensamento do julgador terá de ser averiguada única e exclusivamente pelo próprio contexto da sentença.

            Vejamos, pois, o que dela se extrai.

            Consta dos factos provados:

  • “Por sentença proferida (...) em 21/10/2010, no âmbito do Processo Comum Singular nº 168/09.0GTAVR do Juízo de Média Instância Criminal de Aveiro- Juiz 3, foi o arguido condenado pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, (...), na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 1 (um) ano, a qual transitou em julgado”
  • “No dia 14 de Abril de 2011, o Governo Civil de Aveiro remeteu àquele Juízo de Média Instância Criminal a licença de condução nº AVR00302645 do arguido para cumprimento da referida inibição de conduzir, o que foi dado a conhecer ao arguido”
  • “Todavia, apesar de suficientemente advertido das proibições que lhe foram aplicadas no âmbito do referido processo e de que a sua carta se encontrava apreendida à ordem daquele processo, no dia 18 de Setembro de 2011, pelas 3h30m, o arguido conduzia o ciclomotor com a matrícula FV (...) , na Rua Direita, (...)”
  • “Após a paragem do referido veículo, foi ordenado ao mesmo pelos referidos agentes de autoridade que efectuasse o teste de alcoolémia, mas, o arguido recusou realizar o referido teste, apesar de advertido que essa recusa o fazia incorrer na prática do crime de desobediência”.

            Daqui resulta que quanto à factualidade típica sujeita a julgamento, esteve sempre em vista no pensamento do julgador a condução de um ciclomotor.

            Depois de proceder à subsumpção dos factos ao direito (tendo-se considerado praticados os crimes de desobediência simples e de violação de proibições), bem como à fundamentação da medida da pena e sua fixação em concreto, escreveu ainda a M.mª Juíza na fundamentação da sentença:

            «O art. 69º nº 1 al. c) do CP estabelece ainda que é condenado na proibição de conduzir veículos motorizados por um período fixado entre 3 meses e 3 anos quem for punido por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para a detecção de condução de veículo sob o efeito do álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.

            Ora, considerando os antecedentes criminais do arguido o mesmo ficará, nos termos do art. 69º do CP, proibido de conduzir veículos automóveis durante um período de 8 meses.».

            Neste contexto, cremos resultar suficientemente inequívoco que, não obstante se ter escrito “veículos automóveis”, o que estava no pensamento da M.mª Juíza era a condução do ciclomotor que era conduzido pelo arguido.

            Nesta perspectiva, trata-se de um erro material cuja eliminação não importa modificação essencial do decidido.

            5.2.      Ao aludir-se ao art. 29º nº 5 da Constituição da República Portuguesa (de futuro, apenas CRP), invoca-se a violação do princípio ne bis in idem [[5]], o que ocorre quando alguém é julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime.

            «Este princípio é geralmente expresso segundo uma de duas fórmulas: uma de sentido material refere-se à sanção penal (ninguém pode ser castigado várias vezes pelo mesmo facto) e outra de sentido processual como é a utilizada pela Constituição portuguesa. A primeira fórmula seria mais adequada a permitir o recurso de revisão, pois o que proíbe é que pelo mesmo facto o agente sofra mais do que uma pena, enquanto a segunda impediria a renovação do procedimento penal pelo menos em prejuízo da mesma pessoa.». [[6]]

Isto é, na incidência processual penal, o princípio ne bis in idem está em íntima conexão com o chamado efeito negativo do caso julgado material [[7]], dirigindo-se um comando ao tribunal, vinculando-o ao mesmo resultado (o de não repetir ou contradizer decisão anterior) com a autoridade de caso julgado.

            Não havendo definição específica no CPP, há que, efectuadas as devidas adaptações, nos socorrermos das regras do CPC, ex vi do art. 4º do CPP.

            Assim, o caso julgado material pressupõe a repetição de uma causa que já foi anteriormente decidida (por sentença transitada), considerando-se que se repete uma causa quando existe, simultaneamente, identidade de sujeitos, de pedidos e de causa de pedir: art. 497º e 498º do CPC.

Tais requisitos (tríplice identidade), são de verificação cumulativa, bastando a não verificação de um para não vingar a excepção.

«O que deve entender-se por pedido e por causa de pedir em processo penal? Pensamos que pedido e causa de pedir se reconduzem aos termos da própria acusação. A causa de pedir é o facto jurídico concreto que fundamenta a aplicação ao arguido da pena. O pedido é a pretensão de reconhecimento jurisdicional de que aquele facto constitui o crime por que o arguido é acusado, da sua responsabilidade criminal e consequente aplicação da sanção cominada por lei, dentro dos limites penal e processualmente admissíveis.». [[8]]

No caso em apreço tal não se verifica, desde logo por estarmos no âmbito do mesmo processo, inexistindo portanto duplicidade de causas/processo.

Do que se tratou, como atrás concluímos, foi que na sentença datada de 13.06.2012 se incorreu em erro de escrita, erro esse corrigido posteriormente pelo despacho de 04.02.2014 (ora em crise).

O arguido foi julgado por se encontrar a conduzir um ciclomotor durante o período em que se encontrava inibido de conduzir, bem como por se ter recusado a submeter ao teste de alcoolemia.

Estes os factos.

Atente-se em que, no tocante à sanção de inibição de conduzir (legalmente cominada para esses factos), a sentença proferida, nos termos em que o foi, era inexequível: não tendo o arguido automóvel, nem a respectiva licença de condução, era-lhe indiferente a condenação, não se podendo apreender algo que não existe.

            «A existência de um lapso material a necessitar de ser corrigido, bem como a omissão de qualquer acto susceptível de complementar tal correcção, não tem virtualidade para inquinar a força executiva da decisão condenatória. Os recorrentes ao pretender extrair de tal anomalia um efeito aniquilador da decisão condenatória estão a interromper a dinâmica dos autos, nos quais a força executiva da decisão aparece como elemento fundamental.». [[9]]

Face a todo o exposto, concluimos que o despacho de 04.02.2014 corporiza uma correcção de erro material da sentença, não implicando modificação essencial da condenação nem a violação do princípio ne bis in idem.

            III.          DECISÃO

6.         Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção da Relação de Coimbra em julgar o recurso não provido.

Sem custas, atenta a qualidade do Recorrente.

Coimbra, 15 de Outubro de 2014                                                    

 (Relatora, Isabel Silva)

(Adjunta, Alcina da Costa Ribeiro)

      [[1]] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 12.09.2007 (processo 07P2583), disponível em http://www.dgsi.pt/, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem: «III - Como decorre do art. 412.º do CPP, é à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, ou seja, o cerne e o limite de todas de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso estão contidos nas conclusões, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso.

                IV - As possibilidades de cognição oficiosa por parte deste Tribunal verificam-se por duas vias: uma primeira, que ocorre por necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida previstos no art. 410.º, n.º 2 do CPP, e uma outra, que poderá verificar-se em virtude de nulidade da decisão, nos termos do art. 379.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.».

      [[2]] Coincidente com o art. 667º do anterior CPC de 1961.

      [[3]] M. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal, Anotado”, 12ª edição, Almedina, 2001, pág. 726. No mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª edição actualizada, 2008, Universidade Católica Editora, pág. 968/969.

            [[4]] Cf. acórdão do STJ, de 01.07.2009 (processo 732/06.0GCFAR.S1) e, desta Relação de Coimbra, acórdão de 15.06.2011 (processo 465/10.2PCCBR.C1).

      [[5]] Cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, pág. 330.

      [[6]] Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, I, Verbo, edição revista, 2008, pág. 91.

     [[7]]Importa aqui apenas o caso julgado material, uma vez que o caso julgado formal consiste no próprio trânsito em julgado de qualquer decisão (insusceptibilidade de recurso ordinário), obrigando por isso apenas dentro do próprio processo.

      Quando se trata de apurar da influência de uma decisão anterior num processo que lhe é posterior, trata-se do caso julgado material.

Sobre esta problemática, cf. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, Editorial Verbo, 1994, pág. 30 a 39; Miguel Teixeira de Sousa, "O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material", estudo publicado no Boletim do Ministério da Justiça (BMJ), nº 325, pág. 167, bem como Lebre de Freitas, "Código de Processo Civil, Anotado", vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 354.

      [[8]] Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, Editorial Verbo, 1994, pág. 36/37.

      [[9] Acórdão do STJ, de 18.09.2013 (processo 438/08.5SGLSB.L1-B.S1).